A mesma menina de sempre
Era uma escola pública do ensino fundamental comum. Os alunos brincavam no pátio durante o intervalo. Uma menina foi ao banheiro e ao olhar para o espelho, viu a imagem de um horrível monstro: serpentes no lugar dos cabelos, pele escamosa e verde, olhos amarelos e enormes, além de dentes pontudos como de vampiros e garras afiadíssimas.
A estudante gritava desesperadamente, chamando a atenção de outras meninas que não conseguiam ver a imagem monstruosa refletida no espelho. Rapidamente, a notícia chegou à diretoria.
O diretor veio prontamente e levou a menina para a sala dele. Ela não parava de berrar de forma enlouquecida. Ele pediu que lhe trouxessem um copo de água e ela, finalmente, acalmou um pouco, parando com a gritaria. Então o diretor passou a interrogá-la:
"O que houve, menina?"
"Eu virei um monstro."
"Não seja boba, você ainda é a mesma menina que vem à escola todos os dias.Vou trazer um espelho."
"Não, por favor, não! "
O diretor ignorou o pedido dela e trouxe o espelho, mostrando para ela e dizendo:
"Veja, você é a mesma menina de sempre. A mesma menina de sempre, a mesma de sempre. Você quer chamar atenção? Quer?"
Algo acendeu dentro dela, fazendo com que nunca mais fosse a mesma. Os olhos iniciaram a metamorfose, ficando amarelos, enormes e raivosos. Os dentes cresceram e tornaram-se incrivelmente pontudos. As mãos, antes pequenas e frágeis, passaram a ser garras enormes e afiadíssimas. Ela ficou muito mais alta e a pele ganhou uma coloração esverdeada. Em questão de segundos, a mesma menina de sempre virou uma mulher gigantesca com traços monstruosos. Por fim, os cabelos foram substituídos por serpentes assustadoras.
O diretor, inicialmente paralisado, tentou escapar, porém a mulher monstruosa o atacou cravando os dentes no pescoço dele. Ela provocou um grande derramamento de sangue e, em seguida, usando a força de suas garras, arrancou a cabeça do homem. Várias pessoas irromperam na sala da diretoria para ajudar, mas a criatura fugiu, com incrível velocidade, levando a cabeça do gestor como um troféu macabro.
Toda a comunidade escolar ficou perplexa, principalmente porque aquela menina pacata, a mesma de sempre, não reagindo nem quando sofria bullying, era a última pessoa de quem podia se desconfiar ser capaz de tão medonha metamorfose. Houve quem sustentasse que era uma maldição de família, mas é provável que o caso continue sendo inexplicável.
Primeira parte
O doutor Peter Fisher era um cidadão inglês que se refugiou na América do Sul para fugir de um amor não correspondido. Tentou enriquecer plantando café, sem obter êxito. Por isso retornou à antiga profissão, a medicina. Paralelamente, travou contato com uma doutrina espiritualista que acreditava na comunicação entre vivos e mortos, inclusive admitindo a possibilidade de que alguém falecido retornasse para o mundo dos vivos mediante a aplicação de um certo método. O sábio estudou a fundo técnicas de ressurreição e ansiava por colocar em prática os conhecimentos adquiridos.
Emanuel e Maria formavam um casal rico que , cansado da vida em sociedade, passara a viver em uma propriedade interiorana da família de Emanuel. Uma casa espaçosa, luxuosa e com uma belíssima área verde. Trouxeram criados e passaram a viver pacatamente, usufruindo do prestigiado ócio entre livros, passeios a cavalo e um sem fim de outras diversões. Era uma vida que podia ser chamada de perfeita.
Até o dia em que Maria caiu enferma.
O doutor Fisher acordou cedo como de hábito e , após os rituais de higiene e alimentação, foi ler a correspondência. No meio das revistas científicas inglesas e do jornal da cidade, havia uma carta de um remetente desconhecido. Curioso, o médico rasgou o envelope e iniciou a leitura. O corpo da epístola era composta pelas palavras que se seguem:
"Doutor Peter Fisher, o senhor não me conhece, no entanto sou um grande admirador do trabalho do senhor. Consegui vosso endereço com uma pessoa amiga. Sei que possui sabedoria e competência capazes de salvar vidas. E é um caso terrível que me leva a procurá-lo: minha jovem esposa faleceu. Não ousei enterrá-la, pois tenho esperança que o senhor será o anjo que a trará de volta para mim. Sou incrivelmente rico e não há limites para a minha generosidade…
Eu imploro, Doutor Fisher… responda positivamente ao meu anseio… ressuscite a minha amada. Posso mandar uma carruagem para buscá-lo e o senhor será muito bem recebido aqui. Peça o valor que quiser, mas não demore, pelo amor de Deus."
O doutor Fisher sentiu o incrível som da pancada do destino. Farejava, finalmente, a oportunidade de conquistar glória e fortuna reais. Aceitou o desafio e , dias depois, uma carruagem enviada por Emanuel aparecia para transportá-lo.
Segunda parte
O doutor foi recebido calorosamente pelo jovem viúvo. Saudações iniciais, pêsames, lanche revigorante, troca de amabilidades, Emanuel conta a história, emoção à tona, Fisher comenta:
"A vida é trágica, mas precisamos amá-la para viver."
Passado o momento inicial, Emanuel tratou de conduzir Fisher até o quarto da falecida. Lá fora, o sol morria em um crepúsculo alegre para uns, melancólico para outros.
Um pássaro negro pousa em uma árvore, como quem anuncia a noite que se avizinha.
No caminho, os dois homens conversam:
"Dispensei os criados, quis viver o luto sozinho" diz Emanuel.
"Ela era muito especial, não era?"
"Sim, muito alegre e expansiva. Exceto em noites de lua cheia, jamais pude compreender isso. Ela ficava mais silenciosa e passava horas contemplando a lua… muito estranho, doutor."
"Certamente somos todos seres estranhos simulando normalidade."
Mal o doutor Fisher havia concluído a frase, um medonho uivo de lobo pôde ser escutado. E o mais curioso é que os lobos não faziam parte da fauna da localidade. Os dois homens ficaram assustados, no entanto resolveram continuar o que faziam. Emanuel abre a porta do quarto em que Maria aguarda. Outro uivo acompanha o rangido da porta.
Terceira parte
Entrando no quarto, o doutor Peter Fisher vê Maria, pálida e com os cabelos negros como a noite.O cheiro incrivelmente não era desagradável e a mulher não parecia estar se decompondo, somente estava muito branca. Abre sua maleta e retira instrumentos de trabalho. Ele irá combinar ciência médica e espiritualidade para tentar fazer um milagre.
Emanuel, deixa o médico trabalhando e encaminha-se para a janela fechada. Ao abri-la, permite a entrada de um enorme morcego. O animal pousa na cabeça de Maria e é atacado por Peter Fisher. Então, voa e parte pela mesma janela.
Emanuel não compreende aquela exótica noite. Observa que a lua está cheia e que, mais impressionante, o quintal está repleto de lobos ferozes.
"Deus meu, de onde vieram aqueles lobos?"
"O meu célebre compatriota estava certo quando disse que há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia."
"Sim, vocês europeus são muito sábios. Por isso chamei o senhor, não confio na inteligência dos brasileiros."
O doutor Fisher assentiu com a cabeça e continuou trabalhando. Após alguns procedimentos preliminares, começou a dar fortes pancadas no coração de Maria ao mesmo tempo em que declamava em uma língua esotérica. Após alguns minutos, Maria ergueu-se soltando um grito terrível. Emanuel não podia crer e permaneceu paralisado em choque. O doutor Fisher não se conteve:
"Consegui, consegui, realizei o milagre! Sou o maior dos médicos, pois não apenas salvo vidas, mas também posso ressuscitar. Sou vencedor no duelo com a morte."
Um forte trovão ressoa e uma tempestade subitamente despenca. Emanuel procura fechar a janela, mas antes o pássaro negro entra no quarto e pousa no ombro de Maria. Fisher tenta espantá-lo, porém Maria faz um gesto para que ele deixe o animal onde está. Emanuel aproxima-se da esposa e explode em lágrimas ao constatar que ela estava viva. Abraça e beija a esposa que permanece impassível. Cumprimenta o doutor e promete uma recompensa magnífica. Lá fora a chuva cai como um dilúvio e os lobos uivam. Dentro do recinto, o pássaro emite um som de outro mundo.
Maria permaneceu silenciosa e quieta e Peter Fisher ponderou que a vitalidade poderia talvez demorar um pouco para retornar completamente. Emanuel, por sua vez, sustentou que a razão de tal comportamento deveria ser a lua cheia.
"De qualquer forma, Doutor Fisher, não é uma noite comum. Lobos, morcego, pássaro negro, ressurreição, nada mais me surpreende. O senhor deve estar cansado, irei encaminhá-lo para o quarto de hóspedes."
Instalado confortavelmente em um quarto excelente, Peter Fisher tentou conciliar o sono, no entanto estava muito excitado pelo triunfo. Seria muito bem pago e o mundo civilizado teria que se curvar diante dele. Olhou para a janela e lembrou-se que, lá fora, bem longe, existiam Paris e Londres. E alegrou-se por ter certeza que seria recebido nas metrópoles como o cientista mais poderoso do mundo.
Eis que o vidro da janela é estilhaçado e uma onça-preta enorme penetra o quarto:
Elegante e velozmente, ela ataca Peter Fisher, arrancando-lhe a cabeça. A sede da inteligência do sábio britânico é devorada em questão de segundos. O último pensamento daquela cabeça foi para uma senhora inglesa que contava histórias e cantava canções antigas para embalar o sono de uma criança elétrica e curiosa.
Maria dormia, enquanto Emanuel permanecia acordado, andando de um lado para outro do quarto. Não conseguia controlar a ansiedade e a perplexidade diante daqueles acontecimentos desconexos. Sentia-se feliz e assombrado ao mesmo tempo. Olhava para o pássaro negro, talvez uma graúna, na cabeceira da cama como a velar o sono de Maria e sentia-se mais confuso ainda.
O felino rapidamente percorreu o espaço que separava o quarto de hóspedes do aposento do casal e, com uma forte patada, derrubou a porta. Emanuel virou-se e foi atacado pelo animal. Ato contínuo, a onça rasgou o peito do pobre humano e devorou o coração dele. O último pensamento de Emanuel foi o sorriso de Maria em uma tarde de verão.
Maria acordou e andou na direção da onça-preta. O animal, com os dentes escorrendo sangue, permaneceu quieto e mansamente deixou-se acariciar por Maria. O pássaro pousou no ombro da mulher e o trio encaminhou-se para fora da casa, deixando os dois homens mortos.
A chuva torrencial repentinamente cessou, deixando visível todo o esplendor da lua cheia. A alcateia também acompanhou Maria, o pássaro e a onça. Morcegos voavam perto do grupo também. Maria ia na frente, com o pássaro no ombro. Passaram por ruas escuras até chegarem ao cemitério da cidade. Maria dirigiu-se para a sepultura da mãe. Foi aí que a alma dela pôde penetrar, finalmente, no reino da Morte. Os animais foram com ela, pois também não pertenciam ao mundo dos vivos.