A trágica noite: em busca de romance
Luiz Philippe Nunes Ribeiro
Baixei o tinder.
Entre um perfil e outro, dei match com um cara que eu conhecia de vista e pelo qual eu tinha um certo interesse. Ele tinha por volta dos 32 anos e isso era interessante para mim, pois espera-se que uma pessoa dessa idade tenha o mínimo de bagagem para um date legal. E aí começamos a conversar e ele me convidou para tomar um vinho comendo frios (achei chique), ou uma cerveja com alguns petiscos... Logo, fiquei interessado, achei um rolê mais maduro, não pediu nudes e nem perguntou se eu sou ativo ou passivo de cara (como na maioria dos casos), então fiquei super empolgado. Chegou o dia do date e ele me perguntou onde faríamos o encontro. Eu não estava nem um pouco animado de ser na minha casa, então falei que não poderia ser lá, daí tudo começa a ficar um tanto quanto estranho.
Ele morava com os pais e então não poderia ser na sua casa. Ele propôs de ser na loja dele (eu nem sabia que ele tinha uma), achei a ideia um pouco diferente, mas fui pro lado do fetiche e pensei que poderia ser legal a gente se pegando na mesa do escritório, então concordei com a ideia.
Deu o horário da gente se encontrar, eu já estava todo arrumado e empolgado para tomar o vinho com frios ou a cerveja com petiscos. Não havíamos decidido o que seria de fato, deixei pra ele escolher. Mandei uma mensagem perguntando o endereço da tal loja e ele disse que estava do carro e poderia passar na minha casa (eu achei tudooo!!). Assim que entrei no carro e o cumprimentei, ele já soltou esta:
“Nossa, trabalhei o dia inteiro e não tive tempo de comprar o que comer e nem o que beber, mas vamos passar na drogaria Araújo”.
Confesso que já me deu uma broxada, eu já estava imaginando a mesa pronta na loja com tudo que uma dama, como eu, merece, mas ok, dava tempo de salvar esse date, apesar de que estava quase tudo fechado e tipo, Araujo? Drogaria? Até onde sei não tem vinho, nem cerveja, muito menos frios (afff!!)... Mas fomos pra drogaria (me surpreenda!). Fiquei no carro enquanto ele foi até a loja, esperei bastante tempo e até que enfim ele chegou, meus olhos foram direto na sacola, eu estava curioso com o que ele ia trazer de dentro de uma farmácia para um date...
SOCORROO!!
Logo vi dentro da sacola uma garrafa de refrigerante de 3 litros e não acreditei, mas fingi que estava tudo bem e como não consegui ver o que tinha dentro das outras sacolas, ainda sobrava uma gotinha de esperança. No caminho da loja o assunto dele era somente sobre o desenho Naturo (nada contra, mas eu detesto homem mais velho que ama anime), aliás, ele começou esse assunto porque tinha feito no mesmo dia uma tatuagem enorme no braço, sabe de quê? NARUTO.
Enfim chegamos na loja, uma rua somente de comércios e totalmente deserta. Ele abriu uma daquelas portas de ferro que enrolam e que fazem um barulhão para abrir. Entramos na loja, que vendia cortinas, tapetes, essas coisas de decoração. Sentei em uma mesa onde ele possivelmente atendia clientes e finalmente mostrou o que tinha dentro da outra sacola, com certeza não era os frios nem os petiscos, pelo menos não os petiscos que eu imaginava... eram pimentinhas torcidas e uma barra de chocolate. (Acho que minha cara de decepção nesse momento já dizia tudo, mas ok, ainda dá para salvar). Ele foi até uma cozinha improvisada e voltou com duas canecas pra gente beber os 500 litros de refrigerante, quando chegou na minha frente, parou e fez uma pose com as canecas na mão e perguntou:
“Você prefere a da Marvel ou do Deadpool?”
Minha vontade era falar “prefiro a do meu cu! “, mas falei que preferia a da Marvel com uma cara de que o date estava ótimo. (Detalhe ele ainda estava falando do Naruto e da tal tatuagem, e eu fazendo a simpática).
Se não bastasse ele ligou o computador que estava em cima da mesa e foi me mostrar as tatuagens que ele ainda quer fazer, adivinha qual era o desenho? NA-RU-TO.
Gente, não dá!!!! Fala de outra coisa, porra!!! Cadê a bagagem de um cara de 32 anos, ou ele passou todos esses anos só vendo Naruto?
Daí ele encheu minha caneca (da Marvel) de refrigerante, até o talo !!! E aí fui bebendo, comendo torcida e ouvindo sobre as tatuagens que ele pretendia fazer sobre nosso querido Naruto.
Naquela época eu estava deixando meu cabelo crescer e ele perguntou se podia passar a mão, mas ele falou de um jeito bem formal que eu particularmente acho broxante:
“Posso tocar-lhe?”
Gente, eu nem sei se é correto falar assim, mas achei estranho. Apesar disso, gostei da ideia e pensei que poderia ser uma oportunidade dele me excitar, puxando meu cabelo ou fazendo um “carinho gostoso” (volte e leia essa expressão com voz de neném), não entendeu? (Aguarde os próximos episódios, é uma frase de outro date ruim).
E aí ele levantou deu a volta na mesa e foi “tocar-lhe” meu cabelo! Ele simplesmente passou as pontas dos dedos em minhas madeixas, como se tivesse com medo de encostar e voltou para o outro lado da mesa.
Nessa altura do campeonato (...) – desculpa o palavreado
Eu já estava cansado, mas pensei que de alguma forma esse date ainda poderia ser minimamente bom. Tentei mudar o assunto apesar de não saber muito o que falar, ainda mais com alguém que respira anime. Então, desesperadamente, querendo mudar o tema que ele havia novamente recomeçado, comentei sobre uma cortina muito bonita que estava em cima da mesa (aliás a gente comeu e bebeu em uma mesa cheia de cortinas e tapetes). Olha, não que eu seja exigente ou chato, mas pelo amor de Deus, podia ao menos liberar a porra da mesa.
Ah! um detalhe importante!! Assim que meu copo esvaziava um pouquinho que fosse ele o enchia até a tampa, e falava pra eu comer mais torcida... gente, eu tomei raiva de torcida e dessas garrafonas de refrigerante!...
Mas voltando....
Depois que eu elogiei a cortina ele levantou e inacreditavelmente começou a me tratar como cliente! (naõ acreditei!)
Ele começou a andar pela loja mostrando cada tapete e cortina que tinha naquele lugar, falando de preços, medidas e etc ...
Eu respirei fundo e fiz a simpática e fui acompanhando-o pela loja....
Depois de um bom tempo dele tentando me convencer a comprar um produto da sua loja, voltamos pra mesa e ele soltou a frase:
“Posso lhe beijar?”
(Ai gente, pedir pra um beijo assim eu só vi em novelas dos anos 20).
Mas tá, pensei que o beijo poderia ser muito bom e salvar esse date que, pra mim, estava sendo péssimo. Ele aproximou de mim e colocou as duas mãos na minha cintura e nos beijamos ali, em pé, com ele segurando minha cintura, eu me sentindo uma dama dos anos 20 beijando seu amado pretendente.
(Não que eu quisesse que ele enfiasse o dedo enquanto a gente se beijava, mas pelo menos “tocar-lhe” meu cabelo).
Enfim, o beijo era bem ruim e eu queria ir pra casa... (sem frios, nem vinho muito menos uma cervejinha). Então fomos embora, acho que ele percebeu que eu já estava desconfortável e falou que poderíamos ir. Ele me deixou em casa, e eu saí do carro com a certeza de que nunca mais ia rolar nada, nada. Depois desse dia, ele até mandou uma mensagem querendo um reencontro, mas sinceramente? CORAGEM!!
Um conto para a banda Trem das Sete
de Giselle Moreira
Um garoto chamado Raul, certo dia, resolveu se rebatizar e escolher ele mesmo o seu nome. Ele achava que seus pais haviam se enganado na hora de propor a grafia no cartório para o homem que registra o nome das criancinhas que não escolhem seu próprio nome e portanto desde àquele dia passou a se apresentar como Luar. Luar deveria ser com certeza o nome que ele escolhera quando estava prestes a vir à terra, já que a lua sempre fora o lugar em que sua alma perambulava. Uma coisa de que se lembrava era de que gostava muito de ficar sentado à beira da piscina olhando os simples mortais, de maneiras que o fato de o terem batizado de Raul só podia ser porque as pessoas deviam sofrer da síndrome da obrigação de fazer tudo mesmo sem querer, inclusive seus estimados pais.
Pois bem, Raul, ou melhor dizendo, Luar, que também sofro do transtorno... Era um rapazinho danado de inteligente, mas que possuía um defeito: tinha a mania de fazer profecias que nunca se cumpriam para os adultos cheios de si. Por falar pelos cotovelos e logo em seguida desdizer aquilo tudo que já tinha dito antes, mangavam dele:
___ Raul é mesmo um doido varrido! Esse negócio de ser o carpinteiro do universo ou Judas, parte de um plano secreto...
___ Não só doido, mas um mentiroso de uma figa porque pra ele falar que nasceu há dez mil anos atrás... Que palhaçada?!
___ E esse trem de ser a luz das estrelas, a cor do luar, as coisas da vida e tudo mais? ... Sem noção...
E por aí ia o pensamento e ironia dos que conviviam com ele e não suportavam as metáforas lunáticas de Luar, que acerca desse fato cagava e andava porque gostava mesmo era de ser um maluco total.
Por mais que tenha falado que jamais seria prefeito, quando cresceu e atingiu a mentalidade de um sábio chinês, se candidatou na sua cidade natal ganhando para a surpresa de todos, porque já sabemos, e ele também, que as pessoas sofriam da síndrome da obrigação de fazer tudo mesmo sem querer. Ganhou então Luar a prefeitura de Arnakilópolis.
Em seu primeiro discurso como prefeito, tratou logo de apresentar o seu sonho de que Arnakilópolis pudesse virar uma sociedade alternativa. Logo em seguida deu um jeito de o realizar, porque ele não queria, ele sabia bem disso, sentar num trono e morrer com a boca escancarada cheia de dentes. Para fugir de destino tão tolo, mandou fabricar e instalar um grande chuveiro comunitário, que abarcasse assim toda a praça da cidade para que as pessoas pudessem, à hora que quisessem, tomar banho de chapéu. E como ele já sabia que a maioria dos cidadãos sofria da síndrome de fazer tudo mesmo sem querer, mandou deixar uns capins guinés à disposição para quem quisesse plantar, dando a ordem de deixarem a grande porteira da cidade sempre aberta, para que os bois pudessem se achegar e irem abanar rabo. É bom lembrar que os bichos, ao contrário dos homens, sabem bem dos seus desejos; e assim ele o fez. Explicou para todos que tudo era uma aventura e que se quisessem voar para outro universo que boa viagem, estava tudo certo.
Arnakilópolis começou a se apresentar para o resto do mundo como uma cidade de gente feliz já que tudo era permitido e da lei. Papai Noel vivia por ali tranquilo, os Panteras a fofocarem sobre os quatro caras que ficavam ocupando as faixas de pedestres... agora Pedro... Pedro vamos falar logo, foi embora e foi até bom porque nunca fora um amigo de verdade, era um chato de galocha... sempre com um mesmo terno... e além de chato era feio.
O povo foi vivendo ali naquela vida boa, ninguém precisava casar com ninguém e não precisavam mais ter medo da chuva, mesmo de noite podiam beber da fonte que desce do monte e foi nessa vida assim que muitos e muitos anos se passaram. As pessoas não queriam outro prefeito e também não assassinaram Luar. O que queriam mesmo era ficar ali naquela vida mansa. Será que estavam se curando da tal profunda síndrome de fazerem tudo mesmo sem querer?, porque estava na cara que era aquilo ali mesmo que eles queriam.
Mas acontece que Luar não vivia tranquilo por conta de já estar sentindo umas pontadas do seu antigo poder de fazer profecias. E achando que a semente que ele ajudara a plantar já tinha nascido, apostando nas pessoas, foi embora deixando como testamento sua lucidez e as seguintes palavras “Vocês vão ver um mundo melhor que o meu, e quando se sentirem desanimados lembrem-se, vocês ainda têm a velocidade da luz pra alcançar.” Luar sabia, agora mais do que nunca, que o que ele queria era muito fácil de conseguir porque as pessoas sempre pediam bis pra tudo que ele fazia... e antes que um dia aparecesse um palhaço com uma manha de apresentar um banquete, um verdadeiro latão de lixo, no qual todos caíssem de boca como uma dentadura postiça, tratou de ir para o monte da fonte de água viva e ali se deixou ficar descobrindo os segredos da vida. O povo de Anarkilópolis não estranhou nada nada, conheciam seu prefeito e acreditavam que depois de refletir muito, ele voltaria e implementaria mais uma ideia mirabolante para a mansidão de todos, como foi com o dia de fazerem cócegas nos pés uns dos outros.
O tempo foi passando, mas nada dele voltar. Isso começou a despertar antigos sentimentos e a síndrome de fazer tudo mesmo sem querer assomou toda aquela gente novamente e de repente todos da cidade caíram num inferno de fim de mês. E lá vamos nós, charrete sem condutor... não é possível que o povo sempre precisará de um Durango kid, não é possível!!! Mas era. Logo se provou que era. A vida só era vivível à luz das ideias de Luar. Não sabia fazer mais nada o povo de Anarkilópolis a não ser aproveitar dos inventos do prefeito. E danaram a reclamar e a vociferar até que um tal de Dr. Pacheco com sua careca inconfundível, a gravata e o paletó, misturou-se as pessoas. Formado e reformado e engomado, o herói dos dias úteis chegou com olhos no cifrão. Agora então era cada um por si meeeesmo. E Anarkilópolis virou uma cidade pobre, carregadora de uma miséria dividida entre Ipanema e a empregada do patrão. Todos passaram a varrer o lixo pra debaixo de um tapete supostamente persa... Virou um pesadelo só!
Mais tempo se passou e eis que em um belo dia, Luar, lá do seu retiro do monte de água viva, sentiu aquelas coisas no coração... Lançou mão de sua guitarra, porque durante esse período em que se encontrava recluso aprendera rock com o diabo e sabia que agora era a hora de mostrar para o pai do Rock tudo que tinha aprendido. Era necessário dizer ao mundo que estava certo e gritar e cantar e demonstrar o teorema da vida e do xadrez. Firme em sua certeza, lançou sobre a cidade, que tanto amava, seus acordes de verdades e verdades e verdades e mais verdades que tinha para dizer, até que sentiu seu corpo ser tragado por alguma força que vinha do alto. Olhou para cima e viu um disco voador.... Mais que depressa, sentindo que iria partir deste mundo para outra estrela, cantou sua mais perfeita profecia, que ele tinha visto num sonho:
“Um dia a terra irá parar, o empregado não sairá para o seu trabalho porque o patrão não estará lá.”
E poof! Anarkilópolis parou. A partir daquele dia ninguém mais saiu de casa, ninguém! O povo de Anarkilópolis teve então a certeza que Raul era um verdadeiro profeta, oops..., Luaaar!! Tanta certeza, que passaram a esperar o Trem das Sete porque lembraram que ele havia dito, em algum momento antes de ser prefeito, nos tempos em que mangavam dele, que esse seria o último Trem do sertão!
de Erinilton Gomes Soares
Havia um país que possuía três classes: os famintos, os saciados e os insaciáveis. Veio a Peste e os insaciáveis se esconderam em palácios colossais, os saciados se refugiaram em casas confortáveis e os famintos ficaram à mercê da Morte.
Dentre os insaciáveis, havia um Soberano. E este regente planejou uma festa para remover o tédio. Convidou outros cidadãos insaciáveis, prometendo muita comida, bebida e uma hilariante apresentação teatral. A comida e a bebida ficariam a cargo dos funcionários do palácio, mas para a comédia era necessário contratar artistas. Um alto funcionário do reino foi encarregado de acertar os detalhes com uma companhia teatral.
O funcionário foi até a parte da cidade em que os artistas viviam. Constatou uma grande pobreza em todos os cantos. Casebres deploráveis, pessoas com vestes esfarrapadas, ratos disputando comida com humanos. Em toda parte o luto e o temor de ser a próxima vítima da Peste. Em um galpão decadente, estava instalada a companhia teatral. O funcionário dirigiu a palavra a um sujeito com uma aparência horrenda:
"Nobre cidadão, saudações. Gostaria de conversar com o líder desta respeitável organização artística."
"Penso que o senhor poderia ser mais econômico com os adjetivos, caro senhor. Não sou nobre, porque sou apenas um pobre artista. E nem minha companhia é respeitável, uma vez que o mundo respeita apenas aqueles cujos cofres estão cheios de ouro."
"A arte merece respeito e o artista ainda mais. Não é o desprezo do vulgo que anula a importância da missão artística e de seus sublimes missionários."
"Vejo que o visitante aprecia a retórica, ao contrário de mim. Mas para não alongar o instrutivo colóquio, sou o que pode se chamar de líder desse grupo decadente. Estou à disposição..."
O emissário do Soberano olhou o interlocutor de alto a baixo. Aquele homem não se parecia nada com um líder. Trajava roupas miseráveis, cheirava à bebida barata e usava um tapa-olho. O retrato de um vagabundo repugnante. Mas também não era de se esperar que um venerável cavalheiro liderasse um chiqueiro execrável como esse.
O empregado do Regente retomou a palavra:
"O Divino Soberano deseja uma hilariante representação teatral a ser realizada no Grande Palácio. Precisa ser algo muito bem elaborado, à altura dos mais sofisticados cavaleiros do reino."
“O que pode ser hilariante com a Morte reinando nos bairros pobres?”
“O Soberano paga bem e creio que os senhores, talentosos como são, sabem trabalhar por encomenda, não tenho razão?”
“Somos a única companhia teatral restante nesta cidade miserável. Estamos do lado dos famintos, pois os saciados e os insaciáveis nos ignoram. Estamos do lado dos fragilizados, queremos justiça...”
“Todavia não é possível que os senhores não tenham dívidas e compromissos financeiros de todo tipo. Todos temos nossos ideais, mas também precisamos trabalhar por dinheiro. O Soberano pagará bem e depois vocês poderão usar parte do dinheiro com caridade. Pense bem, excelentíssimo artista.”
“Caridade, caridade... não resolve nada...
Neste intervalo, uma menina de cabelos longos e roupas gastas se aproximou dos interlocutores. Ela vinha com um gato preto nas mãos e olhava o visitante com olhos grandes e atentos. O diretor observou a filha e decidiu aceitar a oferta.
Era preciso montar uma comédia, engraçada, nada sutil e sem a menor sombra de crítica aos privilégios da elite. O dramaturgo tinha que trabalhar duro no texto, precisava entregar uma peça completa com uma semana de prazo. O diretor da companhia teatral o auxiliou no desenvolvimento da história, dos personagens e na criação dos diálogos.
Pronto o texto escrito, o diretor de atores começou a trabalhar com os artistas. Muitos profissionais faleceram com a doença ou se afastaram por perderem entes queridos. Então, mendigos, loucos, bêbados e meretrizes foram contratados, aprenderam diversos ofícios teatrais e se engajaram no projeto. Pela primeira vez, o Soberano, ou qualquer insaciável, investia no teatro. Ele queria uma apresentação maravilhosa e não pouparia investimento financeiro.
Passados quarenta dias, o funcionário responsável pela contratação da companhia apareceu para se inteirar do andamento dos preparativos e ter algum adiantamento do tema ou de qualquer outro pormenor de interesse da obra. O diretor geral alegou que qualquer informação estragaria a surpresa da apresentação e que não era necessário haver preocupação, pois dentro de três semanas o Soberano e convidados seriam recompensados pelo desfrute de uma extraordinária comédia.
Na data marcada, o palácio do Soberano estava abarrotado de mulheres e homens elegantes com vestimentas caríssimas e almas nem tanto. Bebidas e iguarias finas, conversações fúteis, alguns poucos genuinamente interessados em teatro. O grande momento da comédia, enfim, chegava. As cortinas se abrem. Um homem esfarrapado e com um repulsivo tapa-olho surge no palco. Recebe aplausos. Mas fica em silêncio, durante vários minutos, gerando desconforto na refinada plateia. Quando as primeiras vaias surgiram, o ator finalmente falou:
“O meu silêncio incomodou vocês? Pense como seria pior se em vez de deixar de ouvir saborosas anedotas, o problema fosse não ter o que comer, ou morrer de doença quando os médicos são tão caros que só trabalham para os ricos? Veja este magnífico palácio. Quanto dinheiro gasto num prédio, com tantos morando em casebres miseráveis ou ao relento. O vestido desta bela dama na primeira fila poderia construir um hospital para atender os mais pobres. São duras verdades, mas...”
Neste momento, o Soberano revoltado começou a vociferar:
“Que palhaçada execrável. Paguei por uma peça teatral divertida e não por toda essa baboseira ressentida que questiona a ordem natural das coisas. O mundo se divide entre os que devem servir e os que devem ser servidos. É assim que as coisas sempre funcionaram e sempre devem funcionar.”
A plateia aplaudiu com vivacidade. Mas como se essa fosse a deixa para o próximo número, artistas voando com cordas começaram a despejar baldes de fezes sobre toda aquela gente fina que só queria participar de uma bela festa e assistir a uma relaxante peça teatral.
Foi um pandemônio, roupas e cabelos tão chiques dessa forma emporcalhados. Entretanto, a justiça não tardaria. Todos os artistas foram presos. Os diretores e o dramaturgo condenados à forca e os outros artistas condenados à prisão perpétua. O teatro e a arte em geral foram proibidos por serem essencialmente subversivos. Assim os palácios ficariam seguros.
Mas nos becos escuros e paupérrimos da cidade, uma menina crescia. Órfã de pai e mãe, apaixonada por gatos, desejosa de justiça, com longos cabelos e olhos grande e atentos, ela escrevia, clandestinamente, versos de luta e revolução e os ensinava a artistas do povo. Assim o sangue e a liberdade dos artistas que afrontaram o Soberano e convidados não haveria de ser em vão.
Talvez o leitor se pergunte se a Peste terminou. A doença infecciosa desapareceu, mas a outra doença, a enfermidade social, a miséria do povo, ainda precisa ser combatida.
de Erinilton Gomes Soares
O cenário é uma mesa em que um pincel, um cartão de ônibus e um celular conversam. Há também um violão calado e esquecido sobre um sofá.
Dizia o cartão de ônibus:
"Eu sou o objeto mais importante da professora. Sem mim, ela não iria até o trabalho cumprir as obrigações dela como educadora. Vocês são meramente acessórios."
"Eu, indiscutivelmente, sou o mais importante. É comigo que ela escreve no quadro e apresenta aos estudantes o maravilhoso universo dos números, das quantidades e das fórmulas geométricas. Comigo ela ensina e inspira vidas, sonhos, realizações."
" Quanta tolice! É comigo que ela faz pesquisas, organiza a agenda e se comunica. Sou mais importante, mas admito que vocês também têm lá o seu valor. Não são como aquele instrumento musical inútil. Afinal, para que serve um violão?"
"Para nada" responderam em uníssono os outros dois objetos orgulhosos.
Apenas o violão permaneceu mudo, pois, até no mundo encantado das histórias, o violão só se expressa quando alguém o usa como meio de expressão.
Eis que veio a Pandemia e a suspensão das aulas. O cartão de ônibus e o pincel ficaram esquecidos. Agora o celular reinava. Era usado para reuniões, cursos, justificativas de cartão de ponto, mensagens de colegas e alunos. O celular estava com o ego infladíssimo, mas a professora ficou estressada e , cansada de trabalhar, resolveu desligar o aparelho.
Sentiu saudade de algo indefinível e reparou no violão. Começou a se lembrar de antigas canções ensinadas pelo pai quando ela era criança. E também músicas cantadas com amigos na adolescência e na faculdade. Sentiu-se conectada com algo mais brilhante e colorido do que o cotidiano cinza que era obrigada a suportar. Assim o violão, sem servir para nada de útil, fez com que a alma da professora renascesse.
Ana Clara Dias
Era uma vez um menino que tinha medo de si mesmo. Ele vivia fugindo. Sempre estava rodeado de pessoas em festas e eventos. Até que um dia tudo parou. Ele teve que lidar com seu reflexo no espelho, seu peso nesse mundo, sua existência. No início ele evitou ao máximo, mas com o tempo não teve saída. Quando o mundo voltou, ele tinha se encontrado, vivia em paz em sua própria casa e companhia.
– Que a pandemia te faça ir ao seu encontro.
Ednéia Angélica Gomes
O que há entre uma meia-noite e um meio-dia? Um intervalo de doze horas? O esplendor de uma festa? O arrebatamento de uma paixão? A mágoa de um coração partido? Um plantão?
O que há nesse abismo de ponteiros. Um buraco de coelho? Um país sem maravilhas? Uma psicose? Um sono profundo, sem sonhos?
Há os que procuram algo onde nada colocaram. Certos de que um sentido para a vida e uma alegria razoável são acontecimentos naturais. Não são.
Há os que acreditam que é preciso guerrear, e empunham espadas com as quais ferem a si próprios, em primeiro lugar. Voltam machucados, convencidos de que ousaram demais. Não ousaram o suficiente.
Há também os que se esquecem de si em frente à televisão e respiram lentamente, como que hibernados. Juram que viver é não pensar. Não pensar é estar morto.
De uma forma ou de outra, todo mundo necessita sobrepor algo ao abismo dos dias, a fim de não resvalar completamente ao absurdo. Ah, essa fraqueza, esse cansaço, essa carência, essa solidão...
Todo mundo precisa estender uma narrativa qualquer sobre o precipício do tempo a fim de não ser tragado, definitivamente, pelo vão que há entre a meia-noite e o meio-dia.
Ednéia Angélica Gomes
O dia fora lavado a mão e a água que enchera o tanque, transbordava dos olhos da lavadeira. Era muito bom ver o produto do seu trabalho secando ao sol. O brilho translúcido indicava um grande esforço ao esfregar e a certeza de que sempre é possível estender, no varal do tempo, uma versão melhor da vida.
Contudo, essa versão, aparentemente melhor, não esconde o desgaste natural do tecido. Quem contempla minuciosamente a colcha estendida no arame, não pode deixar de perceber esses detalhes. O ponto em que as manchas eram tão intensas que não saíram sem um esgarçamento. As partes em que as cores naturais esmaeceram. As dobras em que a costura se afrouxou.
No momento em que finaliza o trabalho, no entanto, a lavadeira não tem olhos para essas imperfeições. Toda ela é o êxtase de haver, com suas próprias mãos, removido a sujeira e devolvido ao tempo um novo material para os instantes. Se a vida não trouxera o aconchego e o sabor com que sonhara, ela podia, pelo menos, se orgulhar de haver realizado um serviço bem feito.
Sempre se pode contar uma versão bem lavada da própria vida.