Olhão
Breve História de um Povo Forjado pelo Mar e pela Autonomia
1. Introdução
Uma História Forjada pelo Mar e pela Audácia
A história de Olhão é um fascinante estudo sobre como a geografia, a audácia e o espírito de comunidade podem forjar a identidade de um povo. Mais do que uma cronologia linear de eventos, o percurso de Olhão é a narrativa de um lugar que se desenvolveu na orla de um estuário, à margem da autoridade, e cuja independência foi conquistada com atos de notável coragem e engenho. Embora relativamente recente em comparação com outras cidades históricas de Portugal, a sua história é extraordinariamente dinâmica, definida por momentos de autodeterminação e ação coletiva que se tornaram a base do seu carácter.
O presente relatório aprofunda as forças históricas, sociais e económicas que moldaram Olhão, argumentando que a sua identidade única está indissociavelmente ligada ao mar, à Ria Formosa, e a um persistente espírito de autonomia. Exploraremos a génese da sua comunidade, o papel fulcral da revolta de 1808, a relação simbiótica entre a sua geografia e economia, e o paradoxo da sua arquitetura "cubista" e folclore, para traçar um quadro completo de uma cidade singular no Algarve.
2. As Origens e a Consolidação de um Lugar Rebelde
2.1. Da Pré-História ao Topónimo
O Olho de Água e a Primeira Referência Escrita
A área onde se situa o atual concelho de Olhão apresenta indícios de ocupação humana desde o Neolítico.O território, estrategicamente localizado na Ria Formosa, foi também um ponto de fixação humana relevante durante a ocupação romana, com achados arqueológicos, como tanques de salga de peixe descobertos em 1950, que atestam a existência de uma importante indústria pesqueira e agrícola na região de Olhão e na vizinha Marim. A mais antiga referência escrita a este local data de 1378, quando é designado como "lugar a que chamam Olham".
A origem do topónimo "Olhão" está profundamente ligada às características geográficas que tornaram o local atrativo. Segundo a versão popular e a maioria dos historiadores, o nome é o aumentativo do substantivo comum "olho", derivado de um grande "olho de água" (fonte ou nascente de grande caudal) que existia na zona, nas imediações do atual Jardim João Serra.A existência desta fonte de água potável abundante, juntamente com a barra de acesso ao oceano, foi um fator decisivo para que os primeiros pescadores se fixassem na praia de Olhão no início do século XVII. A ligação entre o nome e o recurso natural que sustentou a vida da comunidade é direta e fundamental, demonstrando como a identidade do lugar está intrinsecamente ligada ao seu bem mais crítico e valioso.
2.2. O Assentamento no Século XVII
Entre o Mar e a Autonomia
A fundação do povoado de Olhão no início do século XVII foi um ato de pragmatismo e desafio. Impulsionados pela necessidade de acesso fácil ao mar e a fontes de água potável, os pescadores começaram a construir as suas primeiras palhotas no local.No entanto, este desenvolvimento ocorreu contra a vontade das autoridades de Faro, ao cujo termo Olhão pertencia.1 Um documento de Faro de 1654 revela a tensão, sugerindo a "queima das cabanas de Olhão" para evitar os "roubos" e a evasão de impostos que os pescadores praticavam, usando a barra de Olhão para fugir ao controlo fiscal de Faro.
A oposição de Faro não era apenas uma questão de controlo administrativo, mas uma reação direta à autonomia que a geografia de Olhão proporcionava. O povoado crescia à margem do sistema estabelecido, explorando uma vantagem natural para se desenvolver de forma independente. O crescimento da comunidade foi, a partir de meados do século XVII, também beneficiado pela proteção da Fortaleza de S. Lourenço, construída em 1654 para vigiar a entrada da barra e dissuadir os ataques de corsários.1 O espírito de rebelião e autossuficiência, nascido da necessidade e do pragmatismo, estava, portanto, enraizado no próprio ato de fundação da comunidade.
2.3. A Fundação da Freguesia e a Construção da Identidade
Com o incremento da pesca costeira e em alto mar, bem como do comércio, a população do povoado de Olhão experimentou um grande surto demográfico. Este crescimento populacional e económico levou a um passo decisivo em direção à autonomia. Em 1695, os moradores do lugar solicitaram formalmente ao Bispo a desanexação da freguesia de Quelfes, que culminou na criação da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Olhão.
A construção do primeiro edifício de pedra da localidade, a Igreja Matriz de Olhão, entre 1698 e 1715, é a manifestação física desta nova identidade coletiva. Uma placa na fachada da igreja atesta o esforço da comunidade, referindo que o templo foi erguido "À custa dos homens do mar deste povo... no tempo em que só haviam umas palhotas". Este monumento, financiado e construído pelos próprios pescadores, é mais do que um simples edifício religioso; é um símbolo de coesão social e de poder económico. A construção da igreja solidificou a independência da comunidade, que, com as suas próprias mãos, se ergueu de um aglomerado de cabanas para uma entidade com uma identidade e um espaço definidos.
3. A Revolta da Restauração: Do Levante Popular à Viagem Épica
3.1. O Estopim de uma Rebelião Única
A culminação do espírito de rebelião de Olhão ocorreu em 1808. Em 16 de junho desse ano, a população, maioritariamente composta por pescadores sem instrução, iniciou um "espontâneo e genuíno levantamento popular" contra os invasores franceses, liderados por Junot. A revolta foi desencadeada por um edital que obrigava os portugueses a alistarem-se para combater a rebelião na Andaluzia. A particularidade desta revolta reside no facto de ter sido o primeiro confronto popular real e bem-sucedido contra as tropas francesas em Portugal.8 A vitória em Olhão, que resultou na expulsão dos franceses da localidade, serviu de faísca para que o resto do Algarve seguisse o exemplo, culminando na expulsão das tropas napoleónicas de toda a região. O sucesso desta comunidade marginalizada teve, assim, um impacto regional e nacional, demonstrando como a audácia de um grupo de pescadores se tornou o catalisador para um movimento de libertação mais vasto.
3.2. A Travessia Atlântica do Caíque Bom Sucesso
No mês seguinte à revolta, um grupo de 17 homens de Olhão embarcou numa missão extraordinária: atravessar o Atlântico no Caíque Bom Sucesso para levar a notícia da expulsão dos franceses ao Príncipe-Regente D. João VI, exilado no Brasil. O Caíque, uma pequena embarcação de pesca e transporte, não era adequada para a perigosa travessia transoceânica. O seu piloto navegou "por estimativa", sem aparelhos de orientação nem cartas marítimas.
Esta viagem é a manifestação física e simbólica do caráter de Olhão. A ousadia da tripulação, a sua resiliência e a sua dependência da navegação por instinto e experiência ecoam o espírito de auto-suficiência que definiu a comunidade desde as suas origens. A jornada é uma metáfora para a identidade de um povo que sempre confiou na sua própria iniciativa para superar desafios, quer fosse fugindo ao fisco, repelindo invasores ou navegando o vasto oceano. O Caíque Bom Sucesso continua a ser hoje o mais emblemático símbolo da identidade olhanense, com uma réplica da embarcação a atracar junto aos Mercados Municipais, celebrando a sua história.
3.3. A Recompensa Real
De Lugar a "Vila de Olhão da Restauração"
A audaciosa viagem do Caíque Bom Sucesso teve uma recompensa histórica. O Príncipe-Regente D. João VI, ciente da atitude dos olhanenses, recompensou-os com um Alvará com força de Lei, elevando o "lugar" de Olhão ao estatuto de "Vila", com a designação honorífica de "Vila de Olhão da Restauração". O decreto concedeu a Olhão a sua autonomia formal e o direito de constituir o seu próprio concelho em 1826, com a criação da Câmara de Olhão. Este ato selou a separação administrativa de Faro.
A elevação a vila não foi o ponto de partida da identidade de Olhão, mas sim o seu reconhecimento oficial. A autonomia, o espírito de luta e a coesão social já existiam, demonstrados pela sua fundação contra a vontade de Faro, pela autofinanciada Igreja Matriz e pela espontânea revolta popular. O título de "Vila de Olhão da Restauração" é, portanto, a formalização de uma identidade que a comunidade construiu por si própria, com as suas próprias ações, não por uma concessão real.
1378: Primeira referência escrita a "Olham". Primeira menção documental do povoado.
Início Séc. XVII: Fixação dos primeiros pescadores na praia de Olhão. A comunidade inicia-se de forma espontânea e à margem da autoridade de Faro.
1695: Criação da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário. Ato de autodeterminação que estabelece a autonomia religiosa e social de Olhão.
1698-1715: Construção da Igreja Matriz. A comunidade constrói o seu primeiro edifício de pedra, um símbolo de coesão e esforço coletivo.
16 de junho de 1808: Revolta popular contra as tropas francesas. Primeiro confronto popular vitorioso contra os franceses, catalisador da expulsão do invasor em todo o Algarve.
Julho de 1808: Viagem do caíque Bom Sucesso para o Brasil. A missão que levou a notícia da vitória ao Príncipe Regente, uma expressão máxima de coragem e autoconfiança.
1826: Criação do Concelho de Olhão. O Príncipe Regente recompensa a audácia do povo, concedendo-lhe autonomia administrativa e o título de "Vila de Olhão da Restauração".
4. O Coração Económico da Vila: A Indústria da Pesca e das Conservas
4.1. A Pesca: Um Legado Antigo e uma Atividade Contínua
A atividade pesqueira é um pilar da história de Olhão desde os tempos antigos, com vestígios que remontam à ocupação romana, como os tanques de salga de peixe. O desenvolvimento do povoado no século XVII foi diretamente impulsionado pela pesca costeira e em alto mar. A cidade mantém esta forte ligação ao mar até aos dias de hoje, sendo considerada o maior porto de pesca do Algarve. A frescura do seu peixe e marisco, celebrada no Mercado Municipal, é um reflexo desta identidade duradoura.
4.2. A Revolução Conserveira
Impacto Social e Económico no Final do Século XIX
No final do século XIX, a economia de Olhão foi transformada pela ascensão da indústria conserveira. A primeira fábrica foi instalada em 1881 pela empresa francesa F. Delory, impulsionada pela escassez de peixe no mar da Bretanha, o que levou industriais franceses, espanhóis e italianos a procurarem matérias-primas no Algarve. A indústria cresceu rapidamente, com cerca de 80 fábricas em funcionamento em 1918, e teve um impacto social profundo. Este novo motor económico ajudou a travar um surto de emigração de olhanenses para o Brasil e o sul de Angola no início da década de 1880, proporcionando uma alternativa económica viável e enraizando a população local na sua terra. A transformação de uma simples aldeia de pescadores num grande centro industrial reflete a capacidade de Olhão em adaptar-se a tendências económicas globais, mantendo-se fiel à sua ligação com o mar.
4.3. O Papel Central das Mulheres Operárias
A indústria conserveira, embora economicamente vital, era baseada no trabalho de centenas de operários, com as mulheres a desempenharem um papel central e, muitas vezes, invisível na produção. O trabalho feminino era fundamental, mas as condições eram precárias, com longas jornadas de trabalho de até 18 horas por dia, combinando o trabalho fabril com as tarefas agrícolas e domésticas.13 A sua contribuição foi tão significativa que um diploma governamental de 1893 estipulava a obrigatoriedade de creches em fábricas com mais de 50 operárias.
A exploração e os salários de miséria levaram a um dos momentos mais importantes da história social de Olhão: uma greve histórica em 1903 liderada por cerca de 100 mulheres, que culminou na fundação da Associação de Classe das Operárias das Fábricas de Conservas de Peixe de Olhão. A história económica da cidade não pode ser contada sem reconhecer a luta e o ativismo destas mulheres, que, apesar do seu elevado grau de analfabetismo e miséria, se organizaram para reivindicar os seus direitos. A Rotunda das Operárias Conserveiras, inaugurada em 2020, é um reconhecimento formal do seu contributo fundamental para o desenvolvimento e a identidade da cidade.
1881: Instalação da primeira fábrica conserveira pela empresa francesa F. Delory. Início da transformação de uma vila de pescadores em um centro industrial.
Início Séc. XX: Surto da indústria conserveira em Olhão. A indústria ajuda a travar a emigração para o Brasil e Angola, fixando a população local.
1893: Diploma governamental regulamenta o trabalho de mulheres e crianças. Reconhecimento legislativo da presença feminina na força de trabalho e das condições de trabalho precárias.
1901: Olhão já contava com 8 fábricas de conservas. A indústria consolidou-se rapidamente como um motor económico da cidade.
1903: Greves e fundação da Associação de Classe das Operárias das Fábricas de Conservas de Peixe. As mulheres operárias assumem o papel de agentes de mudança, lutando por melhores condições de trabalho.
1918: Número de fábricas atinge cerca de 80. A indústria atinge o seu auge, tornando Olhão um dos maiores centros conserveiros de Portugal.
5. O Património de um Povo Singular: Arquitetura, Lendas e Cultura
5.1. A Arquitetura "Cubista": Um Epíteto de Valor Inestimável
Olhão é reconhecida pela sua arquitetura única, caracterizada por casas cúbicas de telhados planos, que lhe valeu o epíteto de "Vila Cubista". A origem deste termo é disputada, com fontes a atribuí-la a intelectuais e artistas como Roberto Nobre, José Dias Sancho ou Francisco Fernandes Lopes, que a associaram ao movimento artístico do Cubismo e às pinturas de Picasso.
A arquitetura, no entanto, apresenta uma singularidade histórica: apesar da sua aparência mourisca, não é uma herança direta da ocupação árabe.2 Pelo contrário, foi construída por europeus, refletindo uma escolha funcional e estética, adaptada ao clima e ao modo de vida local. O valor deste património não reside numa linhagem histórica fabricada, mas na sua autenticidade e originalidade como expressão genuína de uma comunidade que, por sua própria iniciativa, desenvolveu uma linguagem arquitetónica única. A sua beleza reside na sua autenticidade, que a distingue de outras localidades históricas.
5.2. A Memória e as Lendas: Do Menino dos Olhos Grandes a Outros Mitos
A história de Olhão é também povoada de figuras lendárias, como a Moura Floripes e o Menino dos Olhos Grandes, cuja lenda tem raízes na própria história social da cidade. A lenda do "Menino dos Olhos Grandes" relata a aparição de uma criança com um cesto de verga num canto de uma rua, no Bairro da Barreta, numa época em que Olhão era uma terra de muitos contrabandistas.
A lenda adquire um significado mais profundo quando vista como um reflexo das realidades sociais da época. O facto de o menino ser visto principalmente por "marítimos solitários e com grandes bebedeiras" e de ter um peso bruto que o impedia de ser levantado pode ser interpretado como um aviso moral contra o contrabando e o alcoolismo, ou até mesmo como uma forma de manter as pessoas em casa à noite para facilitar as atividades ilícitas. A lenda é, assim, mais do que uma história simples; é um artefacto psicológico e social que reflete as tensões, os perigos e as ambiguidades morais de uma vida no limite, onde a linha entre o trabalho árduo e a atividade ilegal era por vezes ténue.
5.3. Espaços de Encontro e Tradição: Os Mercados Municipais e a Vida Urbana
O carácter de Olhão está fisicamente codificado na sua malha urbana, com espaços públicos que são centrais à vida social e cultural. Os Mercados Municipais, um dos ex-líbris da cidade, remontam a 1866, mas os edifícios atuais, modelos da arquitetura do ferro e vidro, foram inaugurados em 1916. Estes espaços são o coração da cidade, onde a identidade pesqueira e a vida quotidiana se manifestam plenamente.
O Jardim Pescador Olhanense, inaugurado em 1984, é outro ponto de encontro crucial, palco de eventos de grande dimensão como o Festival do Marisco. A sua requalificação em 2021 teve como objetivo valorizar a memória da zona e a importância dos pescadores de Olhão, com bancos revestidos de azulejos alusivos aos barcos de pesca. Estes espaços públicos, tal como a Igreja Matriz que foi o primeiro edifício de pedra da cidade, funcionam como âncoras históricas, onde cada nova camada arquitetónica e cada evento cultural se somam à narrativa de uma comunidade que se define pela sua autossuficiência e pela sua ligação indestrutível com o mar.
6. Conclusão e Perspetivas: A Identidade de Olhão na Contemporaneidade
Em síntese, a história de Olhão é a de uma comunidade que se construiu a si própria, à margem da autoridade e contra as adversidades. Desde o seu desenvolvimento inicial contra a vontade de Faro, passando pela conquista da autonomia religiosa com a fundação da freguesia, até ao ato culminante da revolta de 1808 e a épica viagem do Caíque Bom Sucesso, o percurso de Olhão é um testamento à sua persistência e à audácia do seu povo. A ascensão da indústria conserveira consolidou a sua identidade económica, embora o sucesso tenha sido construído sobre a luta e o ativismo das suas operárias.
Na contemporaneidade, o legado de Olhão é visível no seu Mercado Municipal, que continua a ser o centro vibrante da vida local, na réplica do Caíque Bom Sucesso que celebra a sua história lendária, e na sua arquitetura "cubista" que, apesar do seu aspeto, é uma expressão autêntica da sua identidade única. A cidade mantém-se fiel à sua essência de porto de pesca e de gente forjada pelo mar, celebrando um carácter que não lhe foi imposto, mas que foi conquistado, passo a passo, pelos seus próprios habitantes.