Os argumentos terra planistas sobre o giroscópio são poucos, e errados. Praticamente todos os vídeos disponíveis na internet sobre esse tópico contem uma variação ou combinação de duas classes de argumentos:
A primeira classe de argumentos se baseia num erro de conhecimento. Os defensores da ideia não sabem, ou esquecem de mencionar, que todos instrumentos giroscópicos de orientação e navegação usados em barcos e aeronaves, não são giroscópios. Eles contem um ou mais giroscópios. E contem também outros componentes que restringem os movimentos do giroscópio, e induzem forças de precessão.
O argumento funciona mais ou menos assim: sabemos que um giroscópio montado livre, isto é, podendo girar sem impedimento em torno de 3 eixos perpendiculares entre si, se mantém fixo num referencial inercial. É o assim chamado 'principio de rigidez espacial', que é a expressão da Lei de Inércia para um corpo em rotação. Estando o giroscópio assim montado, apoiado sobre uma superfície que gira com a Terra, a base dele irá se inclinando em relação ao referencial inercial. Do ponto de vista do observador fixo junto ao giroscópio, e portanto girando junto com a Terra, a aparência é de que o eixo do giroscópio vai mudando de orientação em relação a sua base e ao ambiente em torno dele.
A figura abaixo esquematiza esse efeito.
Um giroscópio no Equador, com seu eixo alinhado na direção Leste-Oeste, parece girar em torno do seu eixo horizontal uma vez a cada 24 horas.
Se um instrumento de navegação ou orientação fosse construido assim, certamente iria mostrar esse efeito e portanto não serviria como instrumento de navegação ou de orientação. Porque essas duas atividades ocorrem em relação a superfície da Terra, e não em relação a um referencial inercial.
Por isso, instrumentos baseados em giroscópios tem eles montados com menos graus de liberdade (2 ou 1 ao invés de 3 como no exemplo acima). E além disso, incluem um dispositivo que utiliza a gravidade para induzir torques que forçam o giroscópio a se orientar com a vertical local. Nesta pagina aqui apresento uma discussão detalhada de um vídeo terra planista que comete esse erro. Na pagina tem mais dois vídeos que explicam o mecanismo de auto-alinhamento.
Este tipo de argumento se baseia num erro experimental, e numa falácia lógica. O experimento de Foucault é basicamente aquele esquematizado na figura acima. Observando um giroscópio completamente livre (3 graus de liberdade) por tempo suficiente, deveremos ve-lo se mover em torno de seu eixo horizontal se estiver exatamente no Equador. Se estiver exatamente sobre o polo, com o eixo de rotação na horizontal, deverá se mover em torno do eixo vertical. Numa latitude intermediária, gira em torno dos dois eixos.
Os terra planistas que tentam reproduzir o experimento, sistematicamente encontram resultado negativo. Com isso, concluem que a rotação da Terra não acontece. Nenhum questiona o seu próprio arranjo experimental. Além disso, outra falha do argumento é que ele espera provar uma hipótese (terra plana) através de um resultado negativo (não detectar movimento no giroscópio). Essa argumentação é uma falácia lógica, e viola o método científico: não se provam hipóteses assertivas, com resultados negativos. Em outras palavras, o giroscópio pode ser usado para provar a Terra esférica e giratória, mas não pode ser usado para provar a terra plana, já que o movimento do giroscópio (resultado positivo do experimento de Foucault) só acontece no caso da Terra ser esférica e girar sobre seu eixo.
Examinando incontáveis vídeos com esse mesmo conteúdo (resultado negativo do experimento de Foucault), fica bem aparente o problema em todos eles: utilizam giroscópios e outros componentes com qualidade inferior ao necessário. Sucesso no experimento de Foucault é altamente dependente da ausência de atrito nos suportes da armadura do giroscópio. Isso porque o torque gerado pela precessão originaria da rotação da Terra, e que age nesses eixos, pode ser muito fraco se não se tomarem as devidas medidas no projeto e execução do experimento.
Por exemplo, nesta pagina aqui apresento exemplos de vídeos assim. Estes estão entre os melhores, utilizam um giroscópio de aparente boa qualidade, mas que não foi feito para tarefas que requerem alta sensibilidade. E incorrem em problemas óbvios com os arranjos e controles experimentais.
Um dos erros mais comuns é usar um motor elétrico acoplado ao rotor para mante-lo girando. Além de alterar as características do giroscópio em si, já que o motor também tem um rotor interno que gira, nenhum dos experimentadores terra planistas leva em conta que esse motor também tem um ímã que responde ao campo magnético da Terra. A forma como ele responde nunca é levada em conta. Esse fato sozinho já basta para invalidar esses experimentos. Experimentos válidos tem que, ou levar em conta os efeitos desse ímã, ou não usar um motor, como fez o próprio Foucault.
Nos exemplos abaixo, veja como o experimento de Foucault rendeu valiosos dividendos tecnológicos com a invenção da bússola giroscópica. Note que, com projeto e execução apropriados, pode-se obter instrumentos onde o torque devido `a rotação da Terra é bastante grande, suficiente para gerar sinais de alta confiabilidade para navegação de precisão.
Giroscópio de Foucault caseiro: um exemplo de como um arranjo experimental caseiro porém feito de forma a ter controle sobre as variáveis pertinentes, permite detectar a rotação da Terra
O torque causado pela rotação da Terra num desses giroscópios típicos usados nesses experimentos, pode ser calculado, por exemplo, com base na Equação 1, nesta referencia http://snowball.millersville.edu/~adecaria/DERIVATIONS/Coriolis_Torque.pdf :
Essa equação se simplifica bastante quando a configuracão experimental coloca o eixo do rotor do giroscópio perpendicular a direção N-S. Nesse caso, apenas o primeiro termo é diferente de zero. E o produto vetorial se reduz a um valor escalar. Calculando dessa forma simplificada, obtém-se na verdade um valor máximo para o torque. Qualquer outra configuração experimental (orientação diferente do giroscópio em relação ao eixo polar da Terra) causará um torque menor.
E também é preciso lembrar que esse torque é distribuído por mais de um eixo da armadura do giroscópio (a montagem Cardan). Apenas se o giroscópio estiver localizado exatamente sobre o equador da Terra, ou sobre um dos polos, é que o torque agiria apenas sobre um eixo. No caso geral, numa latitude qualquer, o torque que age em cada um dos eixos da armadura é o torque máximo porém multiplicado pelo seno ou coseno da latitude. É portanto menor do que o máximo calculado pela equação simplificada.
A equação, depois de simplificada, diz que o módulo do torque é apenas o produto de tres termos escalares: o momento de inércia do rotor (C), o módulo da velocidade angular de rotação do rotor (w), e o módulo da velocidade angular de rotação da Terra (W):
T = C W w
Calculemos esse torque em alguns exemplos práticos.
Exemplo 1: Giroscópio amador porém de boa precisão, mostrado em vários vídeos que pretendem demonstrar a falha do experimento de Foucault. As especificações estão aqui: https://www.gyroscopes.co.uk/d.asp?product=SUPER2
Peso do rotor M = 112 g (na verdade, grama-força, uma unidade não-SI). A massa inercial (que é o valor que importa para o giroscópio) será o peso do rotor dividido pela aceleração da gravidade = 112 / 9,8 (em m/s^2) = 11,43 g.
Raio do rotor: r = 2,6 cm
Raio da armadura: 3,1 cm
Máxima rotação: 12 mil RPM
Assumindo que toda a massa do rotor esteja na sua borda, o momento de inércia C será M r^2, ou seja, C = 11,43 g x 2,6^2 cm^2 = 77,26 g cm^2. A simplificação sobre a distribuição de massa resulta, no caso desse rotor, um valor ligeiramente super-estimado para o momento de inércia
A velocidade do rotor, 12 mil RPM, corresponde a 200 rotações por segundo. Uma rotação corresponde a 2 Pi radianos, que é 6,283. Portanto a velocidade angular do rotor é w = 6,283 x 200 = 1257 1/s
A velocidade angular da Terra pode ser obtida considerando que ela dá uma volta completa, de 2 Pi radianos, em 24 horas. Calculando em unidades apropriadas, W = 6,283 / 24 / 60 / 60 = 0,0000727 1/s
Então, o torque máximo possível proveniente da rotação da Terra será de aproximadamente T = 77,261 x 1257 x 0,0000727 = 7,06 g cm^2 / s^2
Para comparação, calculemos a força necessária para criar esse mesmo torque, caso o rotor esteja parado, e apliquemos essa força numa das extremidades da armadura, para desequilibra-la. Isto é, utilizemos a armadura do giroscópio como uma balança. O torque é essa força multiplicada pelo braço de alavanca. O braço é o raio da armadura do giroscópio, 3,1 cm. Portanto a força é o torque dividido pelo braço, em unidades corretas: 7,06 (em unidades g cm^2 / s^2) / 3,1 (cm) = 2,28 g cm / s^2 .
Esse resultado é uma força em unidades SI. Para convertermos para peso em gramas-força (aquilo que a balança mede), multiplicamos pela aceleração da gravidade, 9,8 m/s^2. Obtendo um peso de 22,35 grama. Isto é, uma massinha de 22,3 gramas colocada sobre a armadura, no lugar apropriado, exerce um torque sobre a armadura aproximadamente igual ao máximo torque que esse giroscópio pode sofrer por influencia da rotação da Terra.
Se colocarmos uma massa dessa ordem no lugar apropriado na armadura do giroscópio (com o rotor girando!), ela causará algum movimento da armadura? Lembrando que temos que colocar uma massa menor, em função da latitude do experimento. Por exemplo, a 45 graus de latitude, o peso teriam que ser da ordem de 15 gramas (peso máximo multiplicado pelo coseno da latitude). Esse teste do peso deve ser aplicado a ambos eixos, horizontal e vertical. Esse seria o teste que provaria que esse giroscópio consegue detectar a rotação da Terra quando orientado corretamente em relação `a direção N-S. Nenhum vídeo jamais publicado mostrou isso.
Na minha avaliação, esse giroscópio teria o potencial de detectar a rotação da Terra, mas com algumas ressalvas:
Esse mesmo giroscópio foi analisado neste vídeo aqui, onde se pode ver claramente o grande atrito existente nas juntas: https://www.youtube.com/watch?v=EfeKfp6HBIM
E neste vídeo aqui, uma análise detalhada do vídeo original mostra fraude, e projeto experimental falho: https://www.youtube.com/watch?v=VALfsVN78Rc
Exemplo 2: giroscópio caseiro mostrado neste link: https://www.youtube.com/watch?v=ssCN73eyq6U&feature=youtu.be
Peso do rotor: 5 mini-CDs pesam cerca de 35 g, correspondendo a uma massa (inercial) de 3,57 g
Raio do rotor: 4 cm
Raio da armadura (estimado da foto): 7 cm
Máxima rotação: não fornecida. Estimamos em cerca de 1000 RPM.
Ao contrário do Exemplo 1, o rotor é um disco de espessura uniforme. O momento de inércia C para esse disco é M r^2 / 2, ou seja, C = 3,57 g x 4 cm^2 x 4 cm^2 / 2 = 28,57 g cm^2.
A velocidade do rotor, 1000 RPM, corresponde a 16,7 rotações por segundo. Uma rotação corresponde a 2 Pi radianos, que é 6,283. Portanto a velocidade angular do rotor seria 105 1/s
A velocidade angular da Terra foi calculada no Exemplo 1: 0,0000727 1/s
Então, o torque máximo causado pela rotação da Terra nesse giroscópio será de aproximadamente T = 28,57 x 105 x 0,0000727 = 0,22 g cm^2 / s^2
Fazendo a comparação como no Exemplo 1, calculamos que a rotação da Terra cria o efeito equivalente a um peso de 0,3 gramas repousando na armadura. Pela aparência do aparelho, não parece que ele tenha essa sensibilidade. Em particular, uma junta rotativa com contato elétrico ou passagem de fio tende a gerar muita resistência ao movimento. Seria necessário que o experimentador mostrasse esse teste, usando por exemplo um pedacinho pequeno de um clipe de papel (um clipe pesa 1 grama), antes de alegar que o giroscópio prova a não-rotação da Terra. Principalmente se lembrarmos que esse é um limite superior ao torque. Esse pode ser, na prática, muitíssimo menor, dependendo da latitude do local e da orientação em relação ao meridiano.
Na minha avaliação, esse giroscópio não tem precisão suficiente para detectar a rotação da Terra.
Exemplo 3: bússola giroscópica Sperry Mark 14, dos anos 1940, muito usada nos navios militares durante a 2a Guerra Mundial.
Referencias:
Com dados desta referencia: https://books.google.com/books?id=wuzzS0GpAIwC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
Peso do rotor: 55 libras = 25 mil gramas, correspondendo a uma massa (inercial) de 2550 g
Raio do rotor: 12,5 cm
Raio da armadura (estimado de imagens e diagramas): 25 cm
Rotação: 6000 RPM.
Calculando como nos Exemplos 1 e 2:
Resultando um torque T = 398440 x 628,3 x 0,0000727 = 18200 g cm^2 / s^2
A força correspondente será T / 25 cm = 728 g cm / s^2, e o peso equivalente 728 x 9,8 = 7,130 g, ou seja, mais de 7 kg!
Não admira que esse sistema seja capaz não só de detectar a rotação da Terra, como também seja capaz de utiliza-la para gerar um sinal de navegação super preciso.