“PATRIMÔNIO EM XEQUE#”, de Vida (SP)

Panela, cumbuca, vaso, alguidar, mealheiro, boneco de feira. Suportes dos pequenos ritos do cotidiano e dos rituais de simbolização da vida, os objetos manufaturados a partir do barro narram múltiplas histórias sociais e confirmam nossa condição de produtores de cultura material. Moldados de forma figurativa ou abstrata, grafados, texturizados, polidos, pigmentados, não se reduzem às suas funções utilitárias imediatas. Estetizam, significam e organizam as relações humanas, expressando modos individuais e coletivos de ser e pertencer.  

Na exposição "Patrimônio em Xeque#" o barro é transmutado pelas impressões de Isabela Vida Moreno, artista e pesquisadora que recolheu em solo pernambucano matéria fértil para criação poética e científica. Na mostra, Moreno saúda a trajetória e a obra de protagonistas de suas investigações acadêmicas, Mestras e Mestres detentores do saber-fazer da arte cerâmica no município de Tracunhaém (PE). Nomeadamente: Mestra Maria Amélia, distinguida pela santaria; Mestre Zezinho, afamado pelas pinhas portuguesas; Mestre Nuca, reputado pelos leões de jubas encaracoladas; Mestre Titino (in memoriam), consagrado pelas mulheres e mães de sua terra. 

Com a exibição assenta um território fronteiriço entre campos discursivos, propondo aproximações entre arte contemporânea e artes que aprendemos a denominar, por subtração, de populares. Refutando categorias descritivas paternalistas e reducionistas, a artista destaca a pluralidade e a potência dos universos poéticos materializados por essas figuras reconhecidas como Patrimônios Vivos do Estado de Pernambuco (Lei nº 12.196/2002), bem como por parceiras de profissão e descendentes, mantenedores de um conjunto de crônicas e contos visuais.

Na instalação ora apresentada, ceramistas e suas criações são retratadas sobre a superfície de pequenas lajotas produzidas com argila da Mata Norte pernambucana. Essas fotografias, fundidas com a imagem de suas impressões digitais, aludem à dimensão identitária das produções artísticas, que dão sentido à existência comunitária e alicerçam subjetividades. Destarte, as peças conformam uma espécie de arqueologia da cultura local, engendrada por vestígios daquelas e daqueles que produzem e sustentam técnicas e sistemas iconográficos, por meio da oralidade e da repetição/reinvenção de gestos.

A fragmentação dessas peças cerâmicas no painel, sinaliza a premência da implementação de ações concretas de fomento e salvaguarda para o patrimônio imaterial e, portanto, para indivíduos das comunidades de prática. Nessa direção, a artista coloca em debate uma lacuna significativa na política pública para o Patrimônio Vivo, que consiste na suspensão dos subsídios financeiros às gerações sucessoras das Mestras e Mestres do barro. Isentas de recursos para dar continuidade ao legado de anciã(o)s, procuram novas formas de renda e enterram junto aos finados a possibilidade de reinscrição de tradições. 

O trabalho de Isabela é fruto de um comprometimento poético que não prescinde do político, assim como de sua sensibilidade para ouvir e deixar falar. Ao lado das flâmulas nas quais referencia e reverencia Patrimônios Vivos, trechos do seu diário de campo fazem ecoar as vozes desses narradores e as questões que se impõe sobre a rotina de homens e mulheres alocados em bordas sociais arranjadas. Nesses relatos, o chão batido de Tracunhaém se abre como um terreiro de sonhos, do qual extraíram a possibilidade de transgredir o movimento histórico que os destinava ao serviço braçal. 

Transformando a terra seca em argila e a realidade concreta em fabulação, tracunhaenses firmaram seus quintais como lugares de produção de conhecimento e passaram a integrar um domínio ainda hoje restrito, o da criação artística. Promoveram o acesso à fruição e à produção estética, fazendo delas direitos estendidos.

No cenário político árido do Brasil contemporâneo, marcado por uma série de precarizações simbolizadas pelas cinzas do Museu Nacional (2018), Patrimônio em xeque# denota a urgência das discussões sobre os bens patrimoniais e da projeção de novas estratégias de manutenção e difusão de manifestações culturais nacionais. Todavia, a exposição dá a ver a força das articulações realizadas nas brechas das instituições por ceramistas de Tracunhaém e a relevância sociocultural dessa rede criativa estruturada por artistas improváveis. 


Milla Pizzignacco

VIDA

Isabela Vida Moreno é arte-educadora, designer de interiores, produtora cultural, especializada em Fotografia, Arte e Mediações e mestra em Artes Visuais, pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Graduada em Artes Visuais (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/SP). Sua atuação como artista visual abrange formas poéticas mutáveis numa perspectiva inter e transdisciplinar com aprofundamento e prática principal em fotografia, cerâmica, memória e patrimônio. 

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