O primeiro desafio que encontrei quando começamos as ações diz respeito a uma das etapas de contrainteligência, que é a varredura. A varredura nada mais é do que a procura de dispositivos e códigos registradores ou transmissores instalados ilegalmente. Àquela época, a telefonia celular tinha uma vulnerabilidade que poderia derrubar a atividade de contrainteligência logo no seu princípio. Isso porque toda a comunicação na frequência de 850 Mhz, não sei dizer se em Brasília era AMPS, TDMA ou CDMA, era analógica e sem criptografia. Isso significa que qualquer aparelho de rádio que tivesse um sintonizador para essa frequência podia ouvir as transmissões de celular na sua área de cobertura. Era uma transmissão contínua, onde só se escutava um dos interlocutores. Por exemplo, os aparelhos A e B se comunicando, você ouvia tudo que A falava, mas nada do que B dizia. Tão logo a ligação era encerrada, imediatamente entrava a conversa de C com D, onde você só ouvia C, e assim por diante. Creio que isso ocorria pela diferença de potência entre o aparelho telefônico e a ERB, o equipamento da companhia telefônica, muito mais potente. É bem verdade que muita gente àquela época utilizava seu equipamento de rádio amador, e até mesmo técnicos em eletrônica construíam e vendiam receptores, para atender a demanda de curiosos, já que muita gente achava divertido escutar as conversas alheias.
Assim nosso correlacionador espectral, mesmo sem ter um decodificador, podia captar uma conversa dessas. Fui surpreendido quando isso ocorreu pela primeira vez, já que a informação que eu tinha era que os celulares em Brasília já se comunicavam por meio digital, mas creio que talvez operassem em ambos modos, coexistindo diferentes redes. Claro que, como comentei, qualquer rádio UHF devidamente sintonizado poderia fazer o mesmo. A diferença era que esse fato poderia ser explorado por políticos ou por agencias de inteligência interessadas em interromper a implementação da contrainteligência no Senado. Além disso, sendo um equipamento sensível, não posso afirmar que se por acaso os A e B citados onde A escuto e B não, se B estivesse próximo do equipamento possivelmente eu poderia escutar A e B. Isso tecnicamente tornaria o OSCOR-5000 tanto um equipamento de contrainteligência quanto de inteligência. No final das contas, considerando que o bisturi que pode salvar é o mesmo que pode matar, então estava melhor o equipamento nas minhas mãos do que na de outros. Sobre a possibilidade de utilização do equipamento para a interceptação de conversas eu sequer quis testar, me restringindo àqueles primeiros contatos, todos frequentes mas não intencionais.
Naquele momento eu era o único a dominar a correlação espectral manual, lenta e complexa, e para isso havia sido necessário conhecer todo o espectro das faixas de frequência. Eu fazia uma varredura manual completa do espectro coberto pelo equipamento demorando cerca de quatro horas, tentando compreender todas as particularidades e evitando ser surpreendido com uma descoberta inconveniente em um momento impróprio. Fazia isso sozinho, em um ambiente isolado. Isso não era possível durante uma ação de varredura, então a mesma era automatizada com parâmetros por mim programados através da interface do equipamento. A interface tinha recursos suficientes para que eu pudesse "camuflar" a vulnerabilidade, ou seja, evitar que qualquer agente que estivesse ajudando na varredura ou operando o correlacionador pudesse captar uma conversa dessas.
Funcionava assim: ativada a procura automática por dispositivos suspeitos, o correlacionador varria o espectro das frequências e o avaliava de acordo com os parâmetros previamente configurados. Por default, ao indicar uma ameaça o instrumento parava na frequência suspeita e começava uma avaliação mais aprofundada, imprimia o relatório e depois continuava a busca. Durante essa análise mais detalhada, o equipamento disparava um alarme visual e sonoro e passava a apresentar o conteúdo na forma de áudio, por meio de uma caixa de som embutida. Isso servia para que os operadores pudessem comparar o áudio com o som ambiente, por isso a varredura era preferencialmente realizada com alguma fonte de som ligada. Todo esse procedimento pode ser visto no segundo vídeo que postei na página inicial deste site.
Já imaginaram o que poderia ocorrer se o equipamento começasse a transmitir uma conversa telefônica na presença de um parlamentar?
Assim, na entrada referente à banda de 5 MHz a 1.5 GHz programei a faixa de frequência (cerca de 850 MHz) utilizada pela telefonia celular como amigável, sem avisar aos colegas. Fiz isso também com as frequências harmônicas. Então, quando executavam a função, independente da potência de sinal detectado, as transmissões que porventura estivessem ocorrendo naquele espectro eram ignoradas. Ao final da varredura, como era eu a fazer a verificação dos resultados, sintonizava a frequência em questão e fazia uma busca manual naquele espectro, com o alarme desligado e utilizando o fone de ouvido, pois isso bloqueava o áudio da caixa embutida, como ocorre hoje com o celular. Tinha que proceder assim para não deixar passar alguma escuta que pudesse estar camuflada por ali.
Felizmente essa situação não durou muito tempo. Tão logo as operadoras migraram para o sinal digital, o problema acabou, pois a partir daí era necessário um decriptador que o OSCOR nunca teve nem viria a ter.
Saindo desta questão em particular, esclareço que a condução da atividade de contrainteligência nunca foi por mim exercida com o intuito de atender a demandas específicas de parlamentares.
Para frisar bem essa questão, vou transcrever parte da justificativa que inseri no Memorando 01/2012 do Serviço de Tecnologia e Projetos, através do qual encaminhei o Projeto Básico 3, de 2011, aquisição de equipamentos de contrainteligência, mais de uma década portanto depois do início da atividade:
"A respeito de tais informações quero deixar registrado que o Presidente do Congresso Nacional, seus Membros, Comissões e Servidores tem acesso, em virtude das prerrogativas, participação em planejamento estratégico, atuação política ou simplesmente por motivos técnicos, a dados e informações estratégicas que envolvem assuntos os mais diversos, tais como pré-sal, estratégias de comércio, grandes licitações internacionais, entre outras, e cujo vazamento pode se traduzir em enorme custo para o Governo Brasileiro e para suas pretensões sociais em prol do povo brasileiro."
Infelizmente acabei chegando a conclusão de que por mais bem intencionado que fosse meu discurso os políticos não se interessam por esse tipo de questão. Ponto para o ex-Presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo, que na entrevista "Revelações de um Presidente" ao jornalista Alexandre Eggers Garcia para a extinta TV Manchete em 25/01/1985, já tinha alertado para esse fato.
Mais recentemente ficou evidente que os inimigos da pátria não estavam lá fora, mas sim sentados nas cadeiras das diretorias e conselhos deliberativos dos órgãos cujo prejuízo eu tentava ajudar a evitar.
Quando saí do Serviço de Inteligência para exercer a chefia do Serviço de Treinamento e Logística, pude consolidar um ponto de vista pessoal: nem a inteligência, nem qualquer setor ligado à investigação deveria possuir equipamentos, sejam eles de inteligência ou de contrainteligência. É tanto uma forma de proteção quanto de prevenção ao mau uso. Quero deixar claro que essa necessidade constitui uma especificidade do Senado Federal, e pode não espelhar a realidade de outros órgãos.
Essa foi uma conclusão a que cheguei com o tempo. Quando se começa do zero, cada passo é um desafio e um aprendizado. A norma que elaborei, por exemplo, ficou inicialmente restrita às minhas mãos pelo simples fato de que eu não conseguia anexa-la ao processo de aquisição. Isso em virtude do processo de aquisição ter sido considerado extraviado por alguns anos. Acontece que, processo finalizado, suporte unicamente físico, alguém o tira da ordem e... já era. Naquele momento eu cumpria e fazia cumprir procedimentos, mas não mostrava nem entregava uma cópia mesmo aos colegas, com receio de melindrar as chefias. A auto-designação como responsável pela atividade poderia ser considerada pelos mais antigos como pretensão demais para um novato, e eu tinha minhas razões para ficar com um pé atrás. Eu não queria que nada comprometesse meu planejamento, depois de tanto trabalho. Não pretendia me colocar em alguma situação onde precisasse ter de acionar o ACM, pois a bem da verdade era impossível saber o que poderia sair daí. Sem o processo, preferi aguardar uma oportunidade melhor para encaixar, de alguma maneira, a norma entre as previstas pelo Regulamento Administrativo.
Acrescente-se ainda a isso a falta de pessoal, de tempo disponível e a sobrecarga de tarefas, e o resultado foram algumas indecisões sobre o planejamento dos próximos passos, sobre que atitude eu deveria tomar...
Para esclarecer, concomitante a atividade de responsável pela contrainteligência exerci as seguintes funções na estrutura administrativa:
E a cada um desses períodos, também executei outras atividades relacionadas ao exercício das demais competências, tais como participar de comissões sindicantes, responsável técnico em comissões de licitação, participar de estudos e trabalhos os mais diversos em outras áreas, elaborar e ministrar treinamentos, fazer manutenção e até ir para o confronto durante tentativas de invasão.
Para ilustrar, durante a invasão do MLST em 6 de junho de 2006, cerca de 500 pessoas entraram na Câmara dos Deputados derrubando portas e ocupando corredores, depredando o que encontravam pela frente, agredindo funcionários (um servidor teve traumatismo craniano) e espalhando o terror. Ocuparam o Salão Verde (acesso a Presidência da CD) e só não invadiram o Salão Azul do Senado (acesso a Presidência do Senado), porque quando lá chegaram os agentes do Senado já estavam com pistolas TASER nas mãos, e prontos para utiliza-las. Os dirigentes do MLST sabiam que ninguém seria maluco de usar uma arma de fogo lá dentro, mas tiveram certeza de que, em se tratando de armas de choque, os agentes IRIAM usa-las. Foi até meio bizarro, os manifestantes fizeram um cordão de isolamento para evitar o confronto conosco. Nessa ocasião minha sala ficava no vigésimo oitavo andar do Anexo I e as armas TASER eram resultado recente de especificação e projeto de minha autoria. Após recente aquisição, poucas tinham sido distribuídas, por determinação do Diretor. Quando fiquei sabendo da invasão pelo rádio, corri para minha sala e peguei duas bolsas que eu tinha aprontado (coisas de um cara metódico) com pistolas TASER carregadas e cartuchos, e consegui chegar ao Salão Azul e distribui-las antes da chegada dos manifestantes.
Outro exemplo para o período foi no caso da aquisição de pórticos e raios-x onde, por exemplo, tive que pedir (não foi bem o caso de convocar, foi trabalho executado de forma voluntária) a meus subordinados ajuda para dar instrução aos vigilantes que executavam o controle dos acessos. Foram muitos finais de semana e noites para treinar centenas de vigilantes e colegas. Embora aqueles servidores terceirizados tivessem cursos de formação de vigilantes, não há como exigir que os vigilantes contratados já soubessem operar nossos equipamentos e conhecer as particularidades do órgão. E seria uma irresponsabilidade não prepara-los para o Senado Federal, com suas características e especificidades, ainda mais que nenhum curso de formação de vigilantes em Brasília tinha equipamentos desse tipo para proceder os treinamentos.
Embora essas responsabilidades citadas não fossem especificamente minhas, é muito fácil para algumas pessoas se desvencilharem de qualquer obrigação. A ciência da existência dessa lacuna, por questão de consciência do dever, torna impossível para outras pessoas não agir. Ainda mais sabendo das consequências para a segurança do público envolvido. Esse tipo de atuação fazia com que nesse período a minha produção fosse enorme, muito acima do razoável. Elaborei diversos Projetos Básicos, além de conduzir a aquisição, instalação ou implantação de sistemas os mais diversos. E ainda orientei a elaboração dos Projetos levados a cabo pelos meus subordinados.
Relaciono alguns, exclusivamente desse período, para dar uma ideia da situação de produção a que me referi:
Nesse período ainda fiz parte de dois grupos de Trabalho que considero muito relevantes e que, obviamente, também consumiram bastante tempo. Os documentos anexos a seguir foram disponibilizados pela Página da Transparência do Senado Federal.
Embora anterior ao período a que me refiro, também fiz parte de duas Comissões Especiais que me permitiram conhecer a fundo as deficiências do Senado Federal em relação à sua segurança institucional. Foram eles:
E finalmente, ainda tinha que conduzir administrativamente os Serviços e Diretoria. Embora comuns em cargos de direção, nunca tive sequer uma secretária para me auxiliar. É verdade que embora pudesse ter direito a facilidades desse tipo nunca as requeri. Me limitei a aceitar um telefone celular com cota padrão, celular esse que muitas vezes, principalmente de madrugada, nos finais de semana e nas férias, tive vontade de jogar pela janela.
Entendo ainda que um dos meus pontos fortes no exercício das diversas funções, seja no Senado ou na Aeronáutica, foi a capacidade de observação e compreensão do ambiente. Essa capacidade muito me ajudou no desenvolvimento de projetos, inclusive no que tange à estrutura administrativa.
Eu adotei a lógica: sempre defender o estudo das peculiaridades, propondo métodos e ações personalizados às atividades desenvolvidas no Senado Federal. Felizmente, pude dar sugestões em alterações estruturais ou normativas em diversas ocasiões. Nem sempre com sucesso, mas pelo menos tenho a consciência limpa de quem sempre tentou.
Voltando a questão da contrainteligência, o leitor precisa compreender como as especificidades e peculiaridades do Senado Federal poderiam afetar o resultado final do trabalho que eu desenvolvia. Um bom planejamento é aquele pronto para as contingências, tipo a função IF-THEN-ELSE (me capacitei programador COBOL e FORTRAN muito tempo atrás...). Eu sabia que após o início da atividade de contrainteligência a demanda certamente iria indicar novos caminhos, os quais eu tinha a responsabilidade, inclusive moral, por manter no rumo certo.
Para complicar ainda mais, findada a fase do levantamento das necessidades, aquisição de equipamentos, capacitação e execução, ocorre um efeito tipo bola de neve. A ação de segurança das informações em um ambiente é acrescida da ação de segurança das informações sobre a própria ação. Ou seja: um ambiente necessita de verificação para garantir o sigilo de informações; logo, uma ação deve ser planejada, e esse planejamento também necessita de sigilo. A forma, equipe, local, data, horário, tudo necessita de sigilo. E o resultado necessita de sigilo. Pode não parecer tão difícil assim, mas temos que levar em conta de que nada pode ser feito ao acaso, tudo deve ser realizado de maneira estruturada, devem existir técnicas a serem aplicadas, particularidades a serem observadas, riscos a serem calculados. Estando toda essa responsabilidade nas mãos de uma única pessoa e apesar da importância, no final das contas não me foram dadas condições para treinar alguém e replicar a capacidade para assumir tais responsabilidades.
Deixo claro que considero que essas condições excluem a ordem do tipo "- Ensina aquele cara ali!". Isso porquê o conhecimento adquirido e acumulado durante o exercício da atividade (o que eu encontrei, o que eu fiz, o que eu vi, o que eu ouvi, e como reagi), conhecido por "experiência", não pode ser repassado na ausência de certos requisitos mínimos. E esses requisitos são a confiança e a competência.
Em diversas ocasiões tive a impressão de que as chefias e diretorias não tinham compreensão sobre a complexidade da tarefa. Nas oportunidades em que tive para descrever os procedimentos técnicos, senti como se os olhares, no começo focados em mim, aos poucos me atravessavam como se olhassem algo lá atrás, na parede, senão mais longe.
Enquanto conduzia a atividade, acabei por concluir que os dirigentes, inclusive os da área de segurança, não se preocupavam ou não tinham afinidade com políticas de segurança de informações estratégicas, agindo meramente como intermediários: se um parlamentar reclamasse de ruídos ou suspeitasse do vazamento de informações, simplesmente repassavam o problema e se limitavam a exercer aquele serviço característico dos chefes: cobrar a execução do serviço, e depois perguntar se tinha sido encontrado algo. A resposta que eu dava era padrão e escondia o resultado: "Até agora nada", "ainda falta a compilação dos dados", e nunca dava um resultado definitivo. Essa estratégia perdurou até o fim da minha participação na atividade, exceto quando era necessária a elaboração de um relatório, momento em que eu informava sobre a ação pontual da varredura, e sempre negativamente.
No início da implantação da contrainteligência tive a sorte do setor de segurança do Senado, já com o status da condução por um diretor, ter muito bom relacionamento com os demais órgãos policiais e de inteligência. Após a chegada do atual diretor, o mesmo que m 2016 foi preso pela operação Métis, a situação mudou muito. Possuindo o dom de atrair a antipatia alheia, foi um problema a mais para ter de lidar.
Abaixo, o rascunho de um acautelamento do Correlacionador Espectral a um perito da Polícia Federal, com data anterior à gestão do atual Diretor preso pela operação Métis. A confiança era grande entre as instituições, e, se a Polícia Federal porventura estava sem equipamentos disponíveis para a realização de varreduras, a Polícia do Senado estava pronta para cobrir a lacuna.