Uma académica e ativista transmontana
Em memória de Otília Lage
Eduardo Beira
Terei conhecido a Otilia Lage há cerca de vinte anos na fase inicial do projeto FOZTUA. Apesar de frequentador assíduo das terras de Carrazeda de Ansiães desde há cinquenta anos, não conhecia a Otilia. Foi o José Manuel Lopes Cordeiro, co-coordenador do projeto, quem trouxe a Otilia para o projeto, onde colaborou ativamente especialmente nas atividades dos subprojetos memTUA e memTUAEscolas. Daí nasceu uma colaboração que se manteve ao longo dos anos, mesmo depois do projeto ter terminado. O seu último livro (Uma comunidade viva, Carrazeda anos 1950-60) resultou de uma colaboração da Otilia comigo e com o Helder Carvalho tendo por pano de fundo a história e a realidade das pessoas e da vila.
Ao preparar uma terceira edição deste livro, alguns meses depois da morte súbita da Otília, decidi adicionar esta secção inicial como uma homenagem à sua memória de académica e transmontana empenhada e também como uma forma de reconhecimento pelo contributo que teve para o projeto FOZTUA. Pensei que a melhor maneira de o fazer seria recordar e divulgar o que escreveu e fez no projeto, facilitando o acesso a esses ensaios e apresentações.
Incluimos no final deste texto uma bibliografia da Otília no âmbito do projeto FOZTUA. Esses materiais podem ser acedidos por uma página web que criamos para o efeito e com acesso público.
No projeto FOZTUA a Otilia foi colaboradora ativa de três áreas: na área TUAhistória (sobre a história do vale e da linha do Tua) e nos dois subprojetos de memória oral (memTUA e memTUA Escolas) que o projeto promoveu. Na área da memória oral, um tema predileto da Otilia como investigadora, ela foi entrevistadora ativa na produção da maioria das mais de três dezenas de entrevistas memTUA e respetivas transcrições. Mais do que isso: muitos dos entrevistados memTUA foram por ela sugeridos ou identifcados, fruto da sua extensa rede de conhecimentos pessoais (e familiares) na região, rede que foi estabelecendo e consolidando ao longo da vida.
Teve uma importante participação na equipe responsável pela animação e coordenação do memTUA Escolas, um (sub)projeto do FOZTUA de memória oral pelos alunos e docentes de dez escolas secundárias e profissionais do vale do Tua, de que resultou uma coleção de memória oral com mais de duzentos vídeos produzidos e transcritos pelos alunos das escolas participantes. No final, a Otilia escreveu ou colaborou na organização de três livros resultantes dessa parceria com as escolas da região.
Na área TUAhistoria, a Otilia contribuiu com trabalho de investigação e ensaios para as três conferências internacionais FOZTUA (2011-2013) e para as obras publicadas nessa área. Esta coletânea de textos literários de e/ou sobre o vale do Tua foi um desses livros. Foi a Otilia que descobriu, investigou e organizou os textos e os autores para a coletânea, a que eu juntei fotografias do vale do Tua suscitadas por passagens dos textos e selecionadas do meu arquivo fotográfico mais recente. O académico Álvaro Domingos sugeriu, num texto incluído na segunda edição deste livro, o termo “fotografalar do Tua” para esse “olhar cruzado” entre a literatura e a fotografia sobre um território com caraterísticas muito próprias.
Certamente que a bibliografia no âmbito do FOZTUA não esgota a extensa produção académica e de livros da Otília, incluisivé mesmo a bibliografia relacionada com Carrazeda de Ansiães e Trás os Montes. Gostaria de recordar aqui alguns dos seus livros mais “transmontanos”. Em primeiro lugar dois livros de investigação relevantes para compreender o vale do Tua (e Carrazeda em especial, mas não só):
Wolfram = volfrámio: terra revolvida, memória revolta para uma análise transversal da sociedade portuguesa: anos 1930-1960. Braga, Portugal: Universidade do Minho / FCT. 2002., a sua tese de doutoramento, uma obra reconhecida como de referência na literatura académica dos estudos sobre as sagas do volframio em Portugal e na Europa. Recorda-se que Carrazeda de Ansiães conheceu um boom fugaz mas intenso nos tempos da segunda guerra. Na primeira conferência internacional FOZTUA a Otília tratou do significado desse período no vale do Tua.
Como Carrazeda (e o Alto Douro) deslocou a fronteira da produção de vinho (do Porto, mas não só) no Douro depois da filoxera, coisa que os “nobres” dourienses e a aristocracia do vinho do porto centrada na Régua parece que nunca reconheceram e continuam a ignorar.
Em segundo lugar, como autora e/ou historiadora a Otilia publicou vários livros sobre Carrazeda:
O velho, a chave e o castelo : Carrazeda d'e Ansiães na história. Carrazeda de Ansiães, Portugal. 2013.
Roteiro artístico-literário de Carrazeda de Ansiães. Carrazeda de Ansiães, Portugal. 2013.
Histórias fantásticas e reais do avô Sapo : um rogador do Douro. Carrazeda de Ansiães, Portugal. 2006.
Tesouros, mouras e facanitos... : estórias, trilha da história. Carrazeda de Ansiães, Portugal: Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães. 2004.
Durante o projeto FOZTUA desafiamos a Otília para escrever sobre o que era viajar em Trás os Montes no século XIX, quando a linha do Tua foi construída. O texto da Otília ficou registado como um “Working Paper” do projeto e foi depois parcialmente incorporado noutros ensaios publicados, mas a sua versão original e integral nunca chegou a ser publicada em livro. Aproveitamos esta oportunidade para o recuperar e incorporar nesta obra como um contributo para a coletânea literária sobre o vale do Tua.
V. N. Gaia, maio de 2024
Introdução para a terceira edição do livroTUA. Colectânea literária: o vale, o rio e a linha férrea, 2024