Verdade

Verdade

VERDADE. a) Genericamente, verdade consiste nalguma conformidade entre dois extremos. Quando nenhum destes é o intelecto, temos a verdade tomada em sentido lato (uma pedra verdadeira); quando um deles é o intelecto, temo-la em sentido restrito (este objeto é pedra). Neste sentido, é a adequação entre a coisa e o intelecto, como definiam Aristóteles e os escolásticos. Na verdade lógica, a adequação ou conformidade é entre a coisa e a formalidade correspondente. A verdade metafísica é a adequação entre a forma e a coisa. A verdade material é a da coisa considerada segundo todas as suas notas e propriedades, ou segundo toda a sua compreensão. A adequação é qualitativa e não quantitativa em todos os tipos de verdade. Vide Falsidade.

b) Verdade é também um conceito transcendental. Todo ser é verdade. Por isso os escolásticos diziam ens et verum convertuntur, ente e verdade são convertíveis. Todo ser é verdadeiro e tudo o que é verdadeiro é ser. Se há uma falsidade lógica, não há ontológica nem ôntica (a verdade da coisa em si mesma). Entre o ser e a verdade há apenas uma distinção real-racional.

A verdade pode-se dizer do intelecto e das coisas. Por isso se podem distinguir: a verdade do intelecto, que é cognição; a verdade lógica, a verdade da coisa, a verdade ontológica ou transcendental, a verdade do ser. Todo o ente é verdadeiro. Todo ente pode ser considerado como ensidade. E enquanto tal (unidade) é adequado a si mesmo. Não se deve considerar a verdade como se fosse apenas a verdade lógica. Ela é, também, um atributo ontológico (por ser ente). Toda tensão, como ensidade, é verdade num determinado plano. Este pássaro, como pássaro, é verdade (ôntica e ontologicamente considerado). Um pássaro voando no fundo do mar (outro plano existencial), não é verdade.

A verdade lógica permite a verificação, adequação com a coisa (adaequatio rei).  A relatividade da verdade está na operação que verifica a adequação (é a verdade subjetiva).

 Verdades fundamentais de Balmes:

Primum principium: o princípio de não-contradição.

Primum factum: o eu, que investiga.

Primum conditio a capacidade da razão para a verdade.

Tais verdades, para ele, são indiscutíveis, e servem de ponto de partida para toda investigação filosófica.

Crítica da verdade — Verdade como termo verbal é um substantivo abstrato ao qual portanto, não corresponde nenhum sujeito. Usavam os gregos a palavra alétheia, formada do alfa privativo e de lethes, esquecimento, significando o que é des-esquecido, o que não é mais oculto, o que se revela, para nomear a verdade. É o termo empregado de diversas maneiras, através de seus derivados, como verdadeiro, veraz, verídico, etc. Fala-se em "amigo verdadeiro", em "ouro verdadeiro", em oposição ao amigo falso, que demonstra falsa amizade, ao ouro falso. Quando se fala em palavras verdadeiras, diz-se que são palavras que não contém mentira. Quando se fala num conhecimento verdadeiro, quer-se referir a um conhecimento que não é falso, que se opõe ao falso. Desde logo se nota que o conceito de verdade implica dois termos extremos e uma conformidade entre eles.

Genericamente significa que há alguma conformidade entre dois extremos. Mas, especificamente, implica que um destes dois termos seja o intelecto.  Quer dizer que há conformidade entre o que afirma o intelecto e a coisa, o objeto ao qual se refere essa afirmação. Daí os antigos terem afirmado que a verdade, no sentido lógico, nada mais é que a adequação entre a coisa e o intelecto, a coisa à qual aquele se refere, ou na fórmula latina adaequatio rei et intellectus.  

Dizer-se que verdade não é isso, é negar-se ao termo a intencionalidade que lhe dá a nossa mente. Poder-se-ia ter outro conceito? Absolutamente não, porque fora deste não será mais o que intencionalmente queremos dizer com tal termo. Poder-se-ia, contudo, em sentido lato, dizer que é apenas a conformidade entre dois extremos, nos quais um deles é o intelecto, como quando se diz uma noite verdadeira, água verdadeira, uma dor verdadeira. Mas a verdade lógica, que é básica para a filosofia, é tomada no sentido estrito que acima citamos. Há aqui inúmeras controvérsias. Precisemos um conjunto de ideias para analisar as razões apresentadas pelos que lutam contra ela, e que acham que "verdadeiramente" não há verdade. Diz-se que a verdade é ontológica ou real quando consiste na conformidade entre coisas e o intelecto. Diz-se que é lógica quando a conformidade se dá entre o intelecto e a coisa (intellectus cum re).  Assim é uma verdade ontológica que o anterior tem prioridade sobre o posterior; é uma verdade lógica chamar esta residência de casa, porque realmente o que conceituamos por casa está conforme com ela.

Quanto à conformidade e adequação, diz-se que é conforme o que está de acordo formal com alguma coisa. Adequado é o ad aequalis, o que é igual de certo modo a outro. Ao tomarmos um objeto podemos considerá-lo segundo todas as suas notas e propriedades; ou seja, segundo a sua compreensão. Tomamo-lo, assim, materialmente. Mas se consideramos segundo uma ou mais notas e propriedades, tomamo-la formalmente. Não conhecemos tudo de uma coisa, e quando falamos em verdade lógica queremos nos referir que há adequação entre o que conhecemos ou dizemos da coisa com a coisa. Deste modo, o que conhecemos pode ser verdadeiro. Uma verdade lógica seria perfeita se a conformidade se desse em todas as notas. Há, assim, verdades lógicas mais perfeitas ou menos perfeitas. Mas a menor não é menos verdadeira que a maior, porque a verdade não se refere à quantidade do que se sabe, mas à qualidade do que se sabe. Não é mister que o que sabemos seja total para ver verdadeiro, pode ser parcial. Quando filósofos modernos dizem que o conhecimento é falso, porque não sabemos tudo, seria o mesmo que dizer que é falso afirmar que é um ser humano o soldado A do pelotão tal, do batalhão tal, pelo simples fato de não sabermos tudo sobre ele. Do mesmo modo não iremos dizer que o conhecimento que temos de tal filósofo é falso, pelo simples fato de não o conhecermos pessoalmente, não saber sua idade, sua filiação, seu peso, sua altura. Contudo há filósofos que afirmam que há falsidade no conhecimento enquanto não é ele total.

Ora, a falsidade é o oposto da verdade. Quando se diz falsidade, diz-se que há ausência de verdade. Uma verdade mais perfeita ou menos perfeita, não é mais verdadeira que outra, nem é mais falsa ou menos falsa que outra. Estaria certa essa afirmação se entre verdade e falsidade fosse possível inscrever-se um terceiro termo. São extremos, porém, que se excluem. Mas a conformidade que se exige do intelecto com a coisa é uma conformidade intencional. Não é mister uma identificação, o que seria impossível. Portanto, a melhor definição da verdade lógica é a conformidade ou adequação intencional do intelecto com a coisa. Para Kant a verdade consiste na conformidade da cognição consigo mesma; ou seja, na conformidade de todas as cognições com as leis do cogitar, e entre si mesmas. Também esta é a opinião dos relativistas. Ora, tal definição é falha, porque não é recíproca. Dizer-se que a verdade é a conformidade da cognição consigo mesma não permite a inversa; a conformidade da cognição consigo mesma não é a verdade, porque então bastaria haver essa conformidade para haver verdade, neste caso qualquer cognição falsa seria verdadeira, bastando apenas ter conformidade consigo mesma. Dizer-se que a verdade é estar de acordo com as leis do cogitar é a definição da retitude, não da verdade. Uma cogitação pode proceder retamente e contudo ser falsa.

Segundo os empiristas só é verdadeiro o que se verifica na experiência como os sensistas, verificado através dos sentidos. Tais posições restringem o âmbito da verdade. Já para os pragmatistas ela é apenas o que é útil, o que é fértil ao conhecimento, o que favorece a vida. Ora, tal posição apenas capta uma nota da verdade. Ademais, há erros que são úteis, e nem por isso são eles verdadeiros. Modernamente, alguns cultores da axiologia (como Rickert, Wildelband, etc.), dizem que a verdade é um valor. Mas há muita confusão e controvérsia entre os modernos axiólogos. Muitas objeções à posição positiva sobre a verdade foram apresentadas pelos adversários. Não é possível uma conformidade intencional entre o intelecto e a coisa, porque para que tal se desse seria mister que se referisse a todas as perfeições que estão na coisa. Mas esquecem que não se trata de uma adequação total, mas apenas parcial. Afirmam que uma adequação parcial é uma contradictio in adjectis, pois quando se diz adequação se diz total e não parcial, porque uma adequação parcial é uma inadequação. Mas a resposta a tal argumento é muito simples: haveria tal inadequação se postulássemos uma adequação meramente quantitativa. Mas a própria adequação qualitativa é por sua vez rejeitada pelos adversários, porque não admitem nenhuma espécie de adequação entre o intelecto e a coisa conhecida, porque o primeiro é um ente mental e o segundo um ente extra mental. Mas a resposta que merece tal argumento é de que não se trata de uma conformidade entitativa, em sentido físico, mas apenas uma conformidade intencional. E quanto àqueles que afirmam que o objeto mental é imaterial, enquanto o objeto conhecido é material, o que impede qualquer adequação entre ambos, esquecem que a conformidade afirma uma analogia entre o objeto mental e o extra mental, e não uma adequação perfeita.

Esses são os argumentos principais dos que negam a definição de verdade lógica. Alguns argumentam ainda com as negações; pois como poderia haver adequação entre um conceito negativo e a coisa? Mas o conceito negativo não se refere à coisa, mas a alguma ausência na coisa; apenas afirma a recusa da presença de alguma determinada positividade na coisa, sem negar esta. Portanto, também, este argumento não procede. Ademais, qualquer outro em contrário à tese consiste apenas numa ignoratio elenchi; ou seja numa ignorância do tema, pois combate-se a adequação, porque a tomam num sentido diverso daquele que tem para os filósofos positivos e concretos. Nenhum deles jamais afirmou que o esquema noético fosse uma cópia da mesma natureza da coisa conhecida. Nem há necessidade para que haja alguma adequação entre uma coisa e outra, que sejam elas da mesma natureza. Por ex.: o retrato de alguém se adequa fisicamente ao retratado, sem necessidade de que a natureza do retrato seja a mesma daquele. Gravíssimo erro foi julgar-se que o conhecimento parcial, por ser assim, é falso. Uma apreensão, que é captação de uma notícia de alguma coisa, é mais um ato passivo, e não há nela nenhuma afirmação ou negação da notícia; ou seja, não se estabelece um juízo sobre a notícia, mas apenas a simples representação. No juízo há outra operação, porque nele a mente afirma ou nega o atributo ao sujeito, toma portanto uma atitude, prefere alguma coisa, julga.

Vejamos algumas distinções no referente à verdade lógica. Dada uma cognição, podemos verificar que ela é conforme com o seu objeto; contudo, não sabemos qual é essa conformidade; apenas sabemos que há uma, sem sabermos qual é. Esta verdade lógica é imperfeita e os escolásticos chamavam-na de incoativa. Quando se conhece qual a conformidade, então a verdade é perfeita. E esta pode dar-se de dois modos: 1) quando se conhece a verdade da própria cognição (o que os escolásticos chamavam de in actu signato); ou 2) quando, além desse conhecimento, sabemos que este é conforme o que é a coisa enquanto em si mesma (chamado pelos escolásticos in actu exercito).  

Entre os filósofos há os que admitem a existência da verdade lógica e os que a negam. Quanto aos primeiros, mostramos a improcedência de sua posição, que decorre de uma falha compreensão do que seja verdade lógica. Quanto aos segundos (que é a nossa), admitimos que ela se dá gradativamente em sentido perfectivo. A simples conformidade da cognição com o seu objeto é uma verdade lógica (incoativa), podendo alcançar graus perfectivos maiores, como a in actu signato e a in actu exercito.

Perfectibiliza-se a verdade lógica quando é consistente num ato cognoscitivo, no qual são conotadas as notícias que correspondem ao objeto no mesmo modo como são representadas. Não se deve confundir a imagem (o phantasma), que se tem de uma coisa com as formas eidético-noéticas, os eide, que nosso espírito, nous, constrói. Estas afirmam as notas captadas do objeto, mas reduzidas a esquemas noéticos. Estamos aqui em face de uma representação noética, que é distinta da imagem. Assim podemos compreender, representar o ultravioleta, sem uma imagem correspondente. A representação que fazemos do ultravioleta, como a do infravermelho não contém nenhuma imagem (nenhum phantasma), porque não são entes de nossa experiência sensível, mas entidades que alcançamos através de nossos conhecimentos. Quando o enunciado lógico que fazemos (o juízo que construímos) representa o objeto com notas adequadas ao que ele é na realidade, esse juízo encerra uma verdade formal perfeita.

Na mente humana, o esquema eidético-noético não é uma imagem do que está na coisa, mas apenas uma expressão formal, que intencionalmente se refere ao que está na coisa. E se o que está nesta é representado adequadamente no espírito, este estabelece uma verdade formal perfeita, uma verdade lógica perfeita. Sem dúvida que a muitos esquemas eidético-noéticos estão unidos esboços memorizados de experiências sensíveis. Mas é inegável a capacidade humana de poder, a pouco e pouco, purificar os esquemas eidético-noéticos até da influência noética, buscando-se a sua pureza eidética.

A falsidade só se dá no juízo e não na simples apreensão, porque a inconformidade se dá entre o que intelectualmente afirmamos do objeto e ao qual não se adequa. Pode um juízo ser formalmente verdadeiro, sem que o seja materialmente, pois a prova material é outra. "Deus existe" é um juízo logicamente verdadeiro, porque é próprio de Deus existir; ou seja, o predicado existir cabe necessariamente a Deus, pois um Deus inexistente não é Deus. Mas se há verdade formal no juízo, a verdade material não decorre daquele, mas de uma prova outra que robusteça a adequação, a conformidade daquele juízo com a realidade. A afirmação de que Deus existe realmente, independentemente da mente humana, já exige outras provas, que deem as razões materiais de sua existência.

Um juízo lógico pode ser logicamente verdadeiro e também realmente (materialmente verdadeiro) quando, além da verdade formal cabe-lhe, ainda, a verdade material. Se a verdade formal e a material são provadas, e há ainda a razão ontológica, alcançamos ao que chamamos a verdade concreta, que é a connexio de todas essas verdades.

Quando carecemos da cognição de alguma coisa, ignoramo-la. A ignorância é essa ausência de cognição, que pode ser negativa, como a nesciência pura e simples, não-ciência, e a privativa, que é a ausência da cognição devida. Muitos confundem a falsidade com a ignorância, mas a distinção é simples e clara. Na falsidade há inconformidade, discrepância do conhecido com o cognitum, enquanto, na ignorância há falta, ausência de conhecimento.

Em face de uma oposição contraditória, quando a mente permanece indecisa, estamos em dúvida. Há opinião quando a mente apoia, assenta sobre um juízo, mas teme, contudo, o erro, e que o juízo contrário seja verdadeiro. Há certeza quando a mente já não teme mais o assentimento que dá um juízo. Há suspeita quando ela permanece entre a dúvida e a opinião. A certeza pode ser conseguida de dois modos: subjetivamente, pela fé, pela adesão firme da mente a um juízo sem temor de erro; ou objetivamente, pela demonstração rigorosa, que prova a validez e o acerto do juízo, retirando qualquer temor de erro. A primeira certeza (fé) é a da religião, a segunda é a da filosofia.

Há, contudo, uma filosofia de opinião que se funda em juízos assertóricos e meramente opinativos. A filosofia deve ser provada, e a prova filosófica é a demonstração, como a experiência é a prova científica. Há os que alegam e expõem seus pontos de vista ao sabor das suas inspirações. São os estetas, que fazem estética filosófica. Mas a filosofia propriamente dita não se submete à estética, mas segue sua linha e seu método, que lhe é genuíno: a demonstração, e esta deve ser a mais apodítica possível; ou seja, fundada em juízos necessários. A falta desse rigor e o domínio pouco eficiente da lógica e da dialética favoreceu que muitos filósofos aumentassem o número dos erros, em vez de demonstrações. Por esta razão impõe-se uma revisão da filosofia. Mas ela tem de processar-se pelo apontamento dos erros e das suas origens, da sua etiologia, porque é aí que está a chave principal do trabalho de seleção, que deverão fazer as gerações futuras. É preciso selecionar e, para isso, é mister separar. Mas esta exige um critério, e este só pode ser o da apoditicidade. Examinar tudo com o máximo cuidado, volver à discussão dos pontos fundamentais do filosofar, é o primeiro passo, para a denúncia destes erros.

Prosseguindo na fundamentação dos principais pontos de partida é mister distinguir o juízo provável de o juízo de probabilidade.  O primeiro afirma que o nexo que une o predicado ao sujeito é apenas um possível, como se vê no juízo provável: "João possivelmente se salvará com esta operação". Mas, no juízo de probabilidade, o nexo que há entre o predicado e o sujeito afirma existir já, no sujeito, motivos, condições, etc., para que se dê o que lhe é predicado ou não. Assim o juízo: "João tem possibilidades de curar" é um juízo de probabilidade. A diferença que há entre os dois juízos é importantíssima no filosofar. É que, enquanto o predicado é afirmado do sujeito como algo provável de acontecer, no segundo juízo, a possibilidade que se afirma do sujeito é fundamentalmente certa porque há naquela condições para que tal aconteça. Deste modo, quando se argumenta com juízos em que o predicado é afirmado como possível, é mister distinguir se a predicação é provável ou é uma probabilidade. O provável pode ser meramente fortuito, mas a probabilidade que também pode não acontecer, possui, porém, algum elemento seguro, certo, algum motivo ou condição que a afirma como predisponente para o evento, o que é distinto do primeiro caso.

Ora, a opinião funda-se em geral em tais juízos. E é ela prudente ou imprudente, segundo se fundamente em probabilidades ou improbabilidades. A imprudente é também chamada de temerária. Para haver uma certeza absoluta é mister que se excluam as possibilidades opostas e simultâneas ao juízo que se formula. Enquanto tal não se dá, havendo uma possibilidade contrária, simultaneamente, não podemos ter uma certeza absoluta. Deste modo, um juízo para ser absolutamente certo tem de excluir o opinativo, e não pode ser provável ou de probabilidade, pois manteria, simultaneamente, a possibilidade contrária. É mister afastarem-se as possibilidades contrárias para que se possa afirmar que há certeza absoluta.

Quando a possibilidade contrária é absurda, por ser contraditória, estamos em face de um juízo verdadeiro pela prova de sua redução ao impossível, pois seria impossível o enunciado contrário. Essa prova não é, contudo, suficiente, alega-se no que se refere à matemática e à física, pois há casos em que o contraditório é passível de admitir uma possibilidade ou probabilidade. Contudo, na ontologia, não há tal possibilidade, e verdadeiramente também não o há nem na matemática nem na física. Muitas possibilidades o são, enquanto subjetivamente fundadas, embora objetivamente não ofereçam fundamento. Ademais, em tais juízos, em que o seu contraditório é possível, nem sempre há clareza na classificação deles. Ora os que estudaram lógica sabem que os juízos contraditórios são os juízos universal afirmativo em relação ao particular negativo, e o universal negativo em relação ao particular afirmativo. Um desses juízos é verdadeiro, e o seu contraditório será necessariamente falso. Dois juízos particulares, um afirmativo e outro negativo, podem ambos ser verdadeiros e podem ser ambos falsos se a matéria for contingente. Mas um juízo universal afirmativo, se for verdadeiro o particular negativo que a ele se opõe, será necessariamente falso. O mesmo se dá com o universal negativo e o particular afirmativo quando se opõem. Mas, quando se dão dois juízos contrários, ambos podem ser falsos, embora apenas um poderia ser verdadeiro. Jamais ambos podem ser verdadeiros.

Quando se alegava que a física admitia a contradição, pois afirmava e provava na teoria atômica a tese corpuscular e ao mesmo tempo a tese vibratória, e que os últimos entes dos átomos, ou eram corpúsculos ou eram vibrações, e que eles procediam, ora como corpúsculos, ora como vibrações, e que havia aí uma prova de contradição e da validez de juízos contraditórios, tais pessoas revelavam apenas desconhecerem totalmente a lógica fundamental, e nada mais. Primeiramente não se tratava de dois juízos contraditórios, mas de dois juízos que predicavam atributos distintos a um mesmo ser: vibratório e corpuscular. Para uns a natureza do átomo era vibratório, para outros corpuscular, mas corpuscular não é total e absoluta privação do vibratório, nem vice-versa, o que seria exigível para haver contradição. Haveria sim, se afirmássemos que todo átomo é vibratório e que alguns não o são. Estaríamos em face de uma contradição. Tanto vibratório como corpuscular são diferenças acidentais. E haver acidentes distintos num ente não implica contradição.

Outra aparente contradição consistia na afirmação das duas leis da termodinâmica que eram contraditórias. Mas essa contradição não era ontológica. Referia-se apenas a fatos que eram constituídos de acidentes, que revelavam uma oposição, mas passíveis de serem entendidos numa concepção que os conciliasse, como aconteceu, e a pseudo contradição, que nega validez e fundamento à contradição atual, ruiu finalmente ante as novas explicações da ciência.

Para alcançar-se a certeza perfeita, é mister atingir a exclusão absoluta da possibilidade da simultaneidade dos contraditórios. Sabemos que em ato são impossíveis os contraditórios sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo. Potencialmente os contraditórios são possíveis. Assim estar João sentado agora e estar em pé ao mesmo tempo é impossível por contraditório. Não são impossíveis: estar João em pé e estar sentado daqui há pouco, pois são possibilidades que poderão atualizar-se, uma ou outra, não ambas ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.

O princípio de identidade, o princípio de razão suficiente, o de não-contradição, o do terceiro excluído e outros tiveram, através dos tempos, as mais decisivas demonstrações. Mas também houve os que procuraram retirar-lhes a validez ontológica, lógica e ôntica (real-real). E que argumentos apresentaram? Os mesmos de sempre, sempre refutados. Quando se fala em liberdade não se deve confundi-la com a de exercício, pois esta até os animais a possuem, mas a de especificação, que decorre da vontade que assente ou dissente. Na verdade o intelecto não é livre na escolha, porque, enquanto tal, ele obedece às suas leis próprias. O que é livre é a vontade que elege, que prefere ou pretere, ou escolhe entre o que é conveniente ou não. De per si não é livre o intelecto, mas é livre a vontade imperante do homem. O juízo não é um ato da vontade, mas do intelecto. Não há no juízo uma apetência ao bem ou ao mal, mas apenas à afirmação verdadeira.

Sabemos que a apreensão é a notícia da coisa por parte do intelecto, e este erra quando há discrepância entre sujeito e predicado, o que surge de o intelecto estender seus assentimentos acima do que foi apreendido, cuja causa remota é sempre o influxo da vontade, predisposta muitas vezes por condições, como seja a aparência do verdadeiro, ou pelo afeto que vicia a vontade ao ato indeliberado.

Erra a mente quando ela assente firmemente sobre o que é falso, como se fosse verdadeiro. Para Spinoza e Hegel, o erro consiste na cognição inadequada, o que não expressa bem o conceito. Há erro quando nosso intelecto estende seu assentimento além do que apreendeu. A apreensão não realiza erros. Ela nos dá o que capta. É o intelecto que erra ao apreciar o que capta, além do que realmente é.

São os nossos sentidos externos fontes de conhecimentos certos e verdadeiros. Uma afirmativa como esta encontra objetores. Para respondê-la, nada melhor que demonstrar as afirmativas que fazemos. Na psicologia, os sentidos são os meios pelos quais percebemos as coisas materiais, singulares. Constituem órgãos que têm uma função vital determinada, quer vegetativa, quer sensitiva, assim como os olhos para a visão (não os olhos propriamente, mas todo o conjunto do órgão visual, inclusive a parte cerebral). A percepção sensível é distinta das outras potências (como a vegetativa), ela realiza o ato representativo do objeto por diferenciações de potencial sensível. O objeto da sensação é a coisa material, singular. Dividem-se os sentidos em internos e externos. A capacidade cognoscitiva dos primeiros reside no órgão, e a sensação realiza-se imediatamente por estímulo dos objetos externos sobre tais órgãos. Os internos são dados também, fundados em órgãos, mas seus atos cognoscitivos se realizam através de outra sensação. Assim é a memória, a qual depende de sensações anteriores.

Diz-se que é sensível o objeto que pode ser percebido pelos sentidos. Há o sensível que cabe apenas a um órgão (que toma o nome de sensível próprio), como o som, e o que pode ser percebido por vários órgãos como a extensão pelas visão e pelo tato, chamados sensíveis comuns. Costumavam os antigos classificar como sensíveis comuns: quantidade, figura, número, movimento e quietude. Chamavam de sensível por acidente o que não é sentido propriamente pelo sentido, mas o que é incluso ao que é sentido, como ao dizermos que "vemos uma árvore". Propriamente não vemos a árvore (que é uma forma), pois esta é uma substância que se apresenta com determinados acidentes que vemos, e que sabemos por dedução pertencer à árvore. Todos os conhecimentos da psicologia moderna não modificaram em nada tais conceitos. Surgem diversos problemas e questões de filosofia, no tocante a saber qual o grau de procedência e de adequação de nossos sentidos aos objetos; se nossos conhecimentos correspondem e até onde correspondem à realidade dos mesmos, e se não são estes nada mais que meras construções de nosso sistema sensório-motriz, etc. Podemos distinguir as diversas posições em duas genéricas: 1) a dos que não admitem haver objetos exteriores, realmente, extra-mentis, e 2) a dos que afirmam que, realmente, há tais objetos. Examinemos a primeira posição. Leibniz, afirmava não existirem corpos formalmente, mas apenas aparentemente para nós. Para ele, os corpos são compostos de mônadas que são inextensas. Deste modo, não possuem os corpos as três dimensões, que são da sua essência, pois não há distância entre as mônadas, não há movimento entre elas nem interatuação de umas sobre as outras. De modo que o nosso conhecimento dos corpos não se funda na realidade exterior dos corpos, pois estes não são, na realidade, o que parecem ser para nós.

Kant, que também toma essa posição genérica, afirma que não conhecemos o que realmente as coisas são em si mesmas, o noumenon.  O que conhecemos é o fenômeno, o que nos aparece e que é modelado segundo as formas da nossa sensibilidade, que lhes dá as características do tempo e do espaço como se realmente fossem corpos.

Berkeley, por sua vez, também negava a existência dos corpos e da matéria sensível. Por isso sua posição foi chamada de imaterialista. Os fenômenos são meramente subjetivos, e o ser das coisas é o que percebemos que elas são (esse est percipi).  Tais sensações são realizadas por Deus em nós. Da mesma posição pertenciam: Locke, que afirmava que o que percebemos das coisas são apenas nossas representações subjetivas; Malebranche que afirmava que eram o que Deus provocava em nós, através de representações; os neo-realistas anglo-americanos, que seguem a linha de Leibniz e uma coorte de inúmeros filósofos idealistas, defendem também estas ideias.

A segunda posição afirma a existência de corpos formalmente extensos. Nesta está o realismo ingênuo do homem comum, que nenhuma dúvida põe quanto aos nossos conhecimentos sensíveis, e que está certo que as coisas são realmente como elas são vistas, tateadas, ouvidas, saboreadas. Ao lado dessa posição há a do realismo crítico que admite a existência dos corpos, com sua tridimensionalidade, a qual possui poderes que produzem em nós, segundo a relação e a proporcionalidade dos nossos sentidos (ou seja, segundo a acomodação e assimilação dos nossos esquemas sensíveis) as representações subjetivas que temos das cores, dos sons, dos odores, etc., que são proporcionadas à nossa esquemática, mas fundadas na realidade do corpo. Esta posição é a aceita pelos filósofos positivos e concretos de todos os tempos. Temos diretamente a evidência imediata da existência do mundo exterior. Em face dos atuais conhecimentos científicos é inadmissível negar a existência de tal mundo, embora se reconheça que o conhecimento que dele temos é proporcionado à nossa esquemática e na relação em que aquele se encontra ante nós. Não há dúvida que as cores não são como nos parecem ser, que muitas são, na natureza, diferentes da imagem que temos. Mas todas essas diferenças não tornam falsas as nossas apreensões, pois um conhecimento parcial não é falso pelo simples fato de ser parcial.

A verdade material, a verdade formal e os preconceitos — Quando Spengler chamava a atenção que os gregos concebiam o tempo distintamente dos egípcios; que os números, na concepção mágica (a árabe), eram distintos do modo de concebe-los da cultura fáustica, ocidental, e que desse modo a verdade era relativa aos ciclos culturais e que, com eles se modificava, referia-se sem dúvida a verdades materiais, não porém, a verdades formais, como ele julgava. Sim, porque formalmente, três é três em todos os povos e em todos os tempos, em todos os ciclos culturais. O que variou foram as verdades materiais, históricas, porque, enquanto tal, a água é água para todos os povos, embora para certos gregos e mesopotâmicos fosse o princípio de todas as coisas materiais, ou símbolo da vibração, como o era para os egípcios, princípio de todas as coisas sensíveis.

Só pode haver uma filosofia genuinamente especulativa, liberta portanto do axioantropológico, que é o gerador de preconceitos e de erros que se perpetuam e perturbam o pensamento humano, quando o intelecto consegue alcançar uma certeza formal, pois enquanto valer a possibilidade simultânea dos contraditórios, estamos no terreno da asserção apenas opinativa. Essa é uma verdade que a experiência humana ofereceu, porque só ao alcançarmos a certeza formal conseguimos aquietar neste ponto, a mente, junto a uma evidência não axioantropológica. O assentimento absolutamente certo não pactua com a possibilidade simultânea e atual dos opostos, porque se se desse o contrário, o que afirma poderia compor-se com o seu contraditório. Nem tampouco se pode admitir a possibilidade atual da simultaneidade dos opostos contraditórios. Só se alcança ao juízo apodítico quando se atinge à excludência: é necessário que seja assim... só pode ser deste modo... Mas essa afirmativa tem de fundar-se sobre algo formalmente necessário, e não apenas numa vivência, numa convicção, no que alguém poderia traduzir por: para mim, julgo que é necessário que seja assim..., tudo leva a crer que necessariamente é assim.

Muitos dirão que a mente se atingisse a esse estado, estaria em estado perfeito. Ora ela é imperfeita e incapaz de atingir a estados de tal perfeição. Poder-se-ia responder que tratando-se de alcançar um conhecimento exaustivo, absoluto, é certo que a mente humana é incapaz de tal. Não é preciso saber tudo para que não seja falso o que se sabe. Não é mister ter a sabedoria absoluta para afirmar-se que alguém é sábio, nem tampouco se pode negar totalmente a sabedoria de alguém pelo simples fato de não possuir a sabedoria absoluta. Trata-se de alcançar uma verdade formal, e não é mister conhecer exaustivamente todas as causas de uma coisa, como seria exigível para se ter um conhecimento perfeito dela.

As teses demonstradas na Filosofia Concreta alcançam essa apoditicidade sem apelos a meras asserções opinativas. Demonstramos que a filosofia especulativa pode alcançar a apoditicidade desejada. Poderão alguns dizer que essas teses já foram propostas por filósofos, desde Pitágoras até os nossos dias, e que a filosofia concreta não é original. Mas é precisamente aí que está o seu valor. A originalidade é apenas um anseio histórico, válido em certo período da história humana, em certas fases de certos ciclos. A verdade em si já é original e, nesse setor, não cabem novas originalidades. Não há originalidade na matemática. Ninguém vai descobrir outro resultado de 7 vezes 4, que 28. A originalidade pode ter algum prestígio, mas muito pequeno, na filosofia prática, na filosofia dominada pelo axioantropológico, onde as vivências humanas e as verdades materiais e históricas podem ter uma certa aceitação e um campo um tanto livre para atuar. Não no da filosofia especulativa, que é ciência e não arte, que é apoditicidade, não asserção.

Já expusemos a necessidade absoluta ou perfeita, cujo motivo é metafísico, na qual a incedibilidade funda-se em razões metafísicas, essenciais e não acidentais, enquanto a necessidade hipotética ou imperfeita é aquela em que o efeito depende da verificação de uma condição. É a que pode admitir a não realização do efeito. Que para algo ser humano é mister que seja animal racional é de necessidade absoluta, mas que cante não o é. Para um ser neste planeta ser gramático, é necessário que seja humano, não é necessário porém, que todo o ser humano seja gramático. Esta segunda necessidade não pode ser confundida com a primeira. A certeza fundada nessa necessidade será por sua vez também hipotética, enquanto a fundada na primeira será apodítica.

Só a certeza metafísica é perfeita, porque só ela exclui absolutamente a possibilidade da simultaneidade dos contraditórios.  Esta certeza não provém da vontade, como o afirmava Descartes, mas do intelecto. A vontade pode ser livre; o intelecto, não. Na escolha da verdade não entra a eleição ou a preterição de caráter afetivo, mas apenas o intelecto hábil para alcançá-la, independentemente de nossos pendores e de nossa afetividade. É mister que se distinga, porém, quando falamos na não liberdade do intelecto. Há uma liberdade interna e uma liberdade externa. Internamente, como faculdade de captar a verdade, ela não é livre, mas quanto ao externo, ela o é.

O juízo não é um ato da vontade, mas do intelecto. A vontade tende para o bem apetecido e para afastar-se do mal temido. O juízo não tem apetência para o verdadeiro conhecido, mas para o verdadeiro afirmado. A afirmação não é uma busca do bem, nem a negação uma fuga ao mal, porque então só afirmaríamos aquilo do qual gostamos, e negaríamos aquilo que odiamos. Ora, com o juízo não se dá tal coisa, salvo naqueles que não conseguem alcançá-lo em sua pureza. O verdadeiro filósofo não é aquele que se deixa arrastar por suas vivências e simpatias ou antipatias, mas o que busca a verdade, intelectualmente, pela verdade apenas.

Por não se proceder assim é que se erra. No erro há um desvio, há aceitação pela vontade do que não foi devidamente examinado pelo intelecto. E por que erramos? Porque ultrapassamos os limites do que é captado pelo intelecto, quando levamos nosso assentimento além dos limites do que é intelectualmente apreendido. A causa remota do erro está na vontade, porque esta pode desmesurar-se, pode ir além dos limites. Não se diga, porém, que o erro seja sempre produto de uma intencionalidade deliberada, a escolha do falso, um pecado, em suma. Não, porque pode surgir de defeitos da atenção. A vontade não peca per se, por essência, mas por acidente. O erro pode surgir da aparência de uma verdade, de um defeito afetivo, de uma confusão de ideias, de um preconceito aceito como verdadeiro, de uma informação falsa, de um defeito de reflexão, de raciocínio de até um desconhecimento. Mas que revela o erro? Revela que se aceitou como dado certo o que não era, o que não se apresentara com todos os requisitos essenciais. Ouvimos uma voz que julgamos ser de alguém: Pedro. Dizemos que é a voz de Pedro. Mas poder-se-ia posteriormente verificar que não era dele. Erramos, por que? Porque consideramos os elementos que dispúnhamos como suficientes para uma afirmação julgada verdadeira. Que se fez senão ir além dos limites de conhecimento que haviam sido dados? Vemos o Sol em diversas posições durante o dia, surgir no oriente e descer no ocidente, e concluímos que ele faz esse trajeto em torno da Terra, e que esta é imóvel. Errou-se aqui, e por que? Porque os elementos que se dispunham eram insuficientes. Erramos quando deixamos nossas paixões nos dominarem em nossas apreciações subjetivas e no julgamento da realidade. O intelecto retamente conduzido não erra. Pode não alcançar a verdade. Mas quando dizemos que não possuímos ainda meios seguros para fazer uma afirmação verdadeira não erramos, se realmente não dispomos dos meios suficientes. Mas se nossa vontade nos leva a aceitar como definitivamente suficientes para podermos realizar um juízo, podemos errar. Mas jamais erraremos se o juízo que pronunciarmos se fundar em verdades formais, e o que afirmamos ou negamos no juízo é um conceito que, necessariamente, pode ser predicado do sujeito, ou que não pode ser predicado porque o contradiria.

Poderia ainda alguém afirmar que a ciência, por trabalhar apenas com juízos contingentes, não poderia nunca afirmar a verdade. Tal não procede porque a ciência tem meios de prova para justificar seus juízos, que é a experiência científica. Mas esta apenas poderá garantir a presença ou a ausência dos dados afirmados ou negados. Mas para que a ciência atinja a apoditicidade desejada, deverá ter seus fundamentos também em verdades formais. E enquanto não puder alcançá-los, terá que se restringir, como se restringe, apenas a formular hipóteses, fundadas em teorias com fundamento in re.

Fundamentos para a verdade oferecidos pela experiência — É a experiência um dos meios de que dispõe o homem para obter conhecimentos dos mais variados. Que se entende por meio? A intencionalidade, que damos a este conceito, é a do que está entre dois outros ou, em sentido mais restrito, o que entre dois extremos de certo modo os conjuga. Podemos distinguir dois tipos de meios: 1) o que serve para alcançar o conhecimento (meio quo, pelo qual); 2) aquele no qual a mente vai captar o conhecimento (meio quod, o que), o que propriamente se chama a fonte do conhecimento. Assim, o ar é um meio quo para ouvir, meio quod, a fonte ou fontes por meio das quais se adquirem novos conhecimentos. Para tanto, deve dispor o ser humano de algo que permita distinguir o verdadeiro do falso, que é o pré-requisito para o conhecimento. Assim a mente clara e sã o é para o conhecimento. Fundamento é aquela verdade exigida em última instância para fundar uma certeza. Assim, o princípio de não-contradição é um fundamento para o conhecimento, não uma fonte. As principais fontes ou meios do conhecimento são a experiência interna e a externa. Ambas são fontes de conhecimento verdadeiro e certo, bem como servem de critério particular de certeza.

A experiência interna chama-se também consciência. Este termo etimologicamente vem de cum-scientia, notícia da notícia, cognição da cognição. Quem vê, sente a si ver, quem ouve sente a si ouvir, quando entendemos temos notícia que entendemos, como afirma Aristóteles. Esta consciência deve ser distinguida da consciência psicológica, que consiste no objeto que está na consciência, que chamam de consciente. A consciência psicológica é o ato que consiste na notícia de nossos atos psicológicos. Ela é chamada de concomitante, que é a percepção da experiência da própria percepção, simultânea com esta. Nela há o objeto (uma casa, por exemplo), o próprio ato (o conhecimento da casa) e o sujeito (o ego que conhece), os quais embora distintos constituem, imanentemente, aspectos do mesmo processo.

A consciência é chamada reflexiva ou reflexa, quando há notícia dos próprios atos, cujas operações são advertidas pelo sujeito, que sobre eles se reflete (se dobra, espelha-os). Esta pode ser imperfeita, como se verifica nos animais, que advertem a dor pelo ato dos sentidos combinados, e perfeita, que se realiza através de atos abstrativos, pela atuação de esquemas mentais, que é propriamente a intelectual, peculiar ao homem.

Nota-se desde logo que a consciência reflexa é mais perfectiva que a concomitante. Enquanto esta se dá sempre, aquela nem sempre. Esta é a fonte pela qual a mente conhece os fatos internos, enquanto a reflexa é direta e própria da cognição daqueles fatos. Sem a concomitante, não pode haver certeza, enquanto nem sempre é mister a reflexa para que haja certeza. Propriamente a consciência reflexa é a intelectual. Não é da natureza (per se) da consciência oferecer erros, mas sim, por acidente (per accidens).  A ilusão, a alucinação, para exemplificar, não são essenciais aos sentidos, mas acidentais. E a razão é simples: o que é essencial dá-se sempre, porque constitui a estrutura emergencial de um ser. Ora nem sempre os nossos sentidos estão sujeitos a alucinações. Portanto, como o que acontece numa coisa algumas vezes é acidental, tais fatos são acidentais. Consequentemente nossos sentidos não erram per se (por natureza), mas per accidens (acidentalmente). Por haverem confundido o que é essencial e o que é acidental, confusão que fizeram muitos filósofos, é que se pode explicar o surgimento de concepções que afirmam que tudo é sonho, que tudo é ilusão, que nossos sentidos são fundamentalmente fontes de erros.

Os positivistas modernos, como Hume, Stuart Mill, Wundt e outros, também Kant e os subjetivistas afirmam a existência de fatos internos, mas deturpados pelo nosso testemunho, transformados em ilusões nossas, não servindo, portanto, como fonte de indubitável certeza. A tese contrária é, contudo, a aceita pela filosofia positiva e concreta.

A consciência é uma verdadeira fonte de conhecimento, como vemos não só por sua razão, mas pela nossa própria experiência cotidiana. Desde o momento que os juízos obtidos através dela nada afirmam, além da sua realidade, são eles verdadeiros. Quando reflexionamos, reflexionamos; quando temos consciência, temos consciência, porque se fosse uma ilusão ter consciência de alguma coisa, essa mesma ilusão mostraria a realidade da consciência, porque ter consciência de que se tem consciência demonstra a realidade da mesma. Ela é suficiente para provar a si mesma. Sem ela não haveria nenhuma certeza. É pois a fonte da certeza. Contudo, não se poderá dizer que ela é a causa ou motivo ou fonte de toda certeza. Ela testifica-a, porém.

Alegam alguns que nossos juízos estão sujeitos a erro, porém não sempre. Quando alguém alega que aquele a quem foi amputado um braço, sente dor no braço, tal prova a alucinação, portanto o erro. Não esqueçamos que tais fatos se dão, mas a dor sentida não o é realmente no braço, mas no cérebro, embora determinada por uma ilusão da imaginação. Tal acontece acidentalmente, não necessariamente (por essência). Também os exemplos dos sonâmbulos, dos hipnotizados, dos embriagados são sempre acidentais. Em suma: os erros são acidentais e não necessários.

Examinemos o fundamento da experiência externa. A tese empirista, já aceita por Aristóteles, é de que nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu (nada há no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos). Esse adágio empirista foi aceito pelos escolásticos, contudo estes não lhe deram um sentido tão extremado como comumente se julga. Na verdade o que desejavam afirmar é que nosso conhecimento principia nos sentidos, ou é por meio deles que alcançamos o saber sobre as coisas do mundo exterior. Não quer dizer que nosso conhecimento se funda exclusivamente nos sentidos, mas os dados oferecidos por estes (os phantasmata) são por sua vez objeto de uma atividade do intelecto, cujo conhecimento é fundado, também, nas experiências internas e não apenas nas externas. Dos sensíveis, o intelecto abstrai os insensíveis, as formas, que não são objeto de estímulo dos sentidos, nem são captados por estes. Deste modo, a sensação não é o fundamento da nossa cognição, porque esta se funda nos juízos que o intelecto realiza sobre os dados da sensação.

Assim convém distinguir que o conhecimento se inicia nos sentidos, mas o seu fundamento é dado pelo intelecto, no qual toda a certeza e toda a verdade se baseiam. O juízo é um ato intelectual e não um ato dos sentidos. Tomás de Aquino e os escolásticos se referiam a um juízo dos sentidos. Mas o juízo que queremos nos referir é o intelectual, é o que expressa uma operação de assentimento, pela qual juntamos ou separamos o predicado do sujeito. Este juízo revela uma operação mais complexa e de natureza distinta daquela que realizamos nos sentidos. Na psicologia entende-se por sentido, em lato senso, aquela potência orgânica perceptiva da coisa material, da coisa singular, a capacidade do sensório-motriz de perceber as coisas materiais que são singulares. É uma capacidade orgânica, porque ela se realiza através de órgãos, os quais são partes do corpo, com um função destinada. Diz-se que ela é perceptiva ou representativa, porque realiza um ato representativo, diferente das funções vegetativas, que embora orgânicas se distinguem daquela. Coisas materiais singulares são apenas essas que os sentidos captam, função distinta da que realiza o ato de intelecção.

Distinguem os psicólogos os sentidos externos dos internos. Os externos são aqueles que captam as coisas do mundo exterior, as quais exercem uma mudança de potencial, atuando como estímulos desses órgãos. Estas sensações são captadas imediatamente sem intermédio de outras sensações. As internas sediam-se em órgãos internos, e seus atos cognoscitivos se realizam mediante outras sensações. A sensação externa, que constitui a nossa experiência externa, capta os chamados sensíveis externos, que são os objetos que podem ser percebidos pelos sentidos. Os sensíveis são distinguidos na filosofia positiva e concreta em sensíveis per se e sensíveis per accidens. Esses sensíveis per se são classificados em sensíveis próprios, aqueles que podem ser percebidos por um só sentido, como a cor, o som, etc., e sensíveis comuns, aqueles que podem ser percebidos por muitos sentidos, como a extensão, o tamanho, que pode ser percebido pela visão e pelo tato. Costumavam os antigos classificar esses sensíveis em cinco: tamanho, magnitude ou quantidade, figura, número, movimento e quietação.

São chamados sensíveis por acidentes aqueles que não são percebidos diretamente pelos sentidos, mas que, por conjunção com outro sentido, podem ser deduzidos, como pela visão deduzimos a maciez ou a aspereza de alguma coisa. Quando se diz: "vejo um homem", "seguro um copo", na verdade não vemos o homem, nem seguramos o copo, porque homem e copo são substâncias que não caem sobre os nossos sentidos. O que cai é a matéria que os compõem. Assim se diz que o homem é um sensível por acidente e não per se. Corpo é aqui tomado no sentido vulgar do termo, ou seja o ente espacial tridimensional, limitado por superfícies. Em relação à existência desses corpos, várias são as posições na filosofia. Assim Leibniz admite que eles existem sem serem formalmente tais, e como eles se apresentam para nós através da sensação, são compostos de mônadas simples e inextensas. Deste modo, não tem as três dimensões, não há distâncias entre as suas partes, nem movimento local, apenas produzem em nós fenômenos que chamamos corpos, distâncias, movimento, etc. Kant afirma que o que conhecemos das coisas é apenas o que nos aparece no modo puramente subjetivo; ou seja, o fenômeno e não o que elas são em si, o númeno. Os corpos não são como nos aparecem e nem poderemos saber como eles na verdade são. Berkeley nega a existência de qualquer corpo, e apenas afirma a do fenômeno puramente subjetivo cujas aparências são produzidas em nós por Deus. Locke afirma que os corpos não são percebidos, e que são apenas representações subjetivas em nós. O realismo ingênuo afirma que os corpos existem com todas as qualidades sensíveis como os sentimos. Muitos escolásticos seguem a linha do realismo ingênuo. O realismo crítico afirma que realmente os corpos têm três dimensões, e possuem as propriedades que lhe são atribuídas, mas essas qualidades sensíveis não são possuídas formalmente, mas apenas virtualmente. Em suma, há nos corpos poderes que produzem em nossos sentidos representações subjetivas da cor, etc. Afirmam alguns escolásticos que, pela intuição, temos a evidência imediata da existência dos corpos, e que não podemos negar-lhes sua existência, sob pena de cairmos em absurdos e em aporias insolúveis.

A demonstração da existência dos corpos pode ser feita de modo direto ou indireto. Indiretamente, demonstrando a improcedência das posições que examinamos, que afirmam que os corpos são ilusões produzidas em nós pela divindade. Atribuir a Deus o papel de um mistificador, está em contradição com qualquer concepção culta que se faça do Ser Supremo.

Quanto àqueles que afirmam que não conhecemos os seres corpóreos, que são meras criações subjetivas, fundam-se em que? Fundam-se apenas em suposições, porque não oferecem um critério de verdade. O único fundamento que encontram consiste na limitação dos nossos sentidos. Mas já mostramos que não saber tudo não quer dizer que o que se sabe parcialmente seja falso. Que os corpos são como são, mas em nossa representação são proporcionados a nós, não pode haver a menor dúvida, em face dos atuais conhecimentos que a ciência e a filosofia nos ministra. Se nos fundássemos apenas nos sentidos, na aparência dos corpos, poderiam afirmar que eles, ou o que os constitui são diferentes das nossas representações, mas esquecem que há outros meios de verificação, não só de ordem intelectual como ainda experimental e de conexão dos fatos corpóreos, segundo leis que a ciência capta, o que vêm favorecer a certeza da sua existência extra mentis. Assim aquela montanha, que à distância é para nós apenas uma massa cinzenta, à proporção que dela nos aproximamos apresenta-se-nos cada vez mais heterogênea até que, quando nela estamos, oferece-nos maior soma de aspectos distintos que na distância, em que estávamos anteriormente, não podiam ser percebidos. Tudo isso adquirimos através de verificações, o que enriquece o nosso conhecimento, que nos permite completar com aspectos vários aquilo que se apresenta de modo homogêneo, segundo a relação que dela estamos e que nos é possível captar. A não existência do mundo exterior nos levaria a aporias insolúveis. Aceitar a sua existência, e ao mesmo tempo de que a representação que dele fazemos é proporcionada à nossa esquemática, e que as nossas relações com ele sem serem falsas são verdadeiras, segundo a proporcionalidade, é uma posição realista e prudente, portanto, sábia, sem deixar cair no realismo ingênuo.

Ademais, considerando-se do ângulo prático, devemos reconhecer que o homem, unindo a técnica à ciência, conseguiu exercer o seu domínio sobre este mundo exterior, pô-lo a seu serviço, dar-lhe uma direção, e prever acontecimentos futuros que decorrem com nexo rigoroso dos antecedentes, sem desmentir a construção que ele faz desse mesmo mundo. Graças à ciência e à técnica ele retifica muito da visão que tem do mundo exterior, mas estas retificações, em vez de porem em risco a evidência da existência dos seres corpóreos, robusteceu ainda mais essa evidência, oferecendo mais elementos probativos.

É mister examinar se os sentidos externos são também fontes de cognição verdadeira e certa, no que se refere aos sensíveis próprios. Já vimos que o sensível próprio é o que é percebido por um único sentido, como a cor, o som, que são chamados, também, na filosofia moderna, de qualidades secundárias, já que as primárias são as substanciais, etc. Em face das demonstrações anteriores, válidas para esta parte, não pode pairar dúvida sobre a existência dos sensíveis próprios, das qualidades secundárias. A dúvida só poderia permanecer quanto ao seguinte:

a) que os sensíveis próprios são fundamentalmente, em sua subjetividade, mas diversos, formalmente, do que a nossa representação diz que são. Neste caso, seriam nas coisas de um modo e de outro (formalmente) em nós;

b) que os sensíveis próprios são nas coisas, fundamental e formalmente, o que são, e nossas representações os reproduzem eidético-noeticamente, segundo a nossa esquemática, o que eles são em nós.

No primeiro caso a cor azul seria, na realidade, apenas um número determinado de vibrações que realizam em nós a imagem (já formal) do azul. No segundo caso, o azul seria, nas coisas, azul como é em nós. Este é um tema de esquematologia, o que interessa estabelecer é que a sensação de azul, que temos nos olhos, representativa de algo que há na natureza, corresponde formalmente nos olhos ao que é pelo menos fundamentalmente nas coisas, e não uma mera alucinação. E tal porque podemos distinguir esta de outras experiências, que são verificáveis por meios técnico-científicos. Assim a alucinação que temos pode verificar-se que foi uma alucinação, e distinta totalmente no fenômeno de um lago de águas azuis, de um céu azul, cuja verificabilidade pode ser feita por meios técnico-científicos, o que nos demonstra que há uma distinção real entre a alucinação e a realidade, pois é impossível fotografar uma alucinação, e não um fato do mundo exterior. Onde há meios distintos, há distinção. A existência do mundo fenomênico é indubitável e apoditicamente demonstrável.

A etiologia dos erros — É a etiologia a disciplina ontológica, cuja finalidade é estudar as causas de um modo de ser. Delineamos aí as grandes causas, de onde os grandes erros surgiram, e que todos, afinal, se reduzem ao afastamento da filosofia positiva e concreta, que já havia sido esboçada desde Pitágoras, prosseguida por Platão e Aristóteles, continuada genialmente pelos grandes medievalistas, mas que sofreu um hiato na idade moderna quando desabrochou uma nova linha filosófica que, afastando-se das normas positivas e concretas caiu nos abstratismos viciosos, que só poderiam dar como consequência o que deram: a confusão.

Um exemplo expressivo temos no tema de causa e efeito, onde o afã de destruir o que é positivo e concreto revelou-se tremendamente ativo. Qual a intencionalidade humana ao considerar causa? Entendeu-se sempre o que põe em causa alguma coisa, já que o termo tanto no grego como no latim, foi tirado da casuística do direito. Pôr em causa é pôr em existência, é tornar efetivo alguma coisa. Em seu sentido mais vulgar foi sempre causa o que faz que alguma coisa seja ou venha a ser. Ora por se ter com o tempo distinguido inúmeros aspectos que cooperam para que uma coisa venha a ser o que é, distinguiram-se, então, as causas. Desse modo, Aristóteles, prosseguindo o trabalho já realizado por seus antecessores, podia dividir as causas em quatro principais: a causa eficiente (a que faz), que é a causa ativa, a causa formal, a forma da coisa, o pelo qual a coisa é o que ela é e não outra, a causa material, o de que a coisa é feita e, finalmente, a causa final, o para que a coisa é feita, o para que ela tende, a sua intencionalidade.

Graças aos exames dos escolásticos, o conceito de causa foi tomando um sentido claro, bem como mais sábio e mais seguro. Causa não é apenas o que antecede uma coisa, como julgam muitos, mas o que, sem o qual, a coisa não é o que é, ou seja, o de que a coisa depende realmente e também essencial e necessariamente para ser. Em suma, o efeito é algo que depende real, essencial e necessariamente de um antecedente ontológico (não cronológico, porque há causas que são contemporâneas ao efeito). Esse conceito claro nos permitiria compreender que o efeito, de certo modo, tem atualmente em si a causa, e não é outro, absolutamente outro, que algumas causas. Consequentemente, do exame da realidade (e note-se este ponto que é importante: os escolásticos sempre tomam como ponto de partida para a especulação filosófica a experiência, são empiristas racionalistas e não meros racionalistas nem idealistas), verificou-se, em combinação com os fundamentos, que são de ordem intelectual, mas que representam as leis ontológicas indefectíveis, uma série de adágios filosóficos, que expressam verdade e apenas verdade: 1) a causa (tomada abstrata e universalmente) tem de conter perfectivamente o efeito. Se a causa não contivesse a perfeição do efeito, este poderia ser mais que sua causa ou causas; então esse suprimento de ser viria do nada, o que é absurdo; 2) o efeito nunca pode ser superior à causa. É um corolário do primeiro adágio; 3) o efeito depende real, essencial e necessariamente da causa, pois do contrário seria apenas um ser total e absolutamente autônomo, e não causado.

Que fizeram inúmeros filósofos ao verem que a doutrina de causa e efeito, como dela tratavam os escolásticos, levaria fatalmente a construir uma filosofia positiva e concreta? Começaram por tornar confusos os conceitos de causa e efeito. A dependência, que era real para a escolástica, passou a ser apresentada como meramente formal, como razão de ser, etc., confundindo-se razão suficiente com causa. A prioridade ontológica da causa passou a ser exposta como antecedência cronológica, e afirmou-se que o efeito nada mais era que a própria causa travestida de efeito, porque aquela ainda estava no efeito, e não era outro ser, total e absolutamente outro, como o afirmavam os escolásticos. Houve filósofos que afirmaram que o efeito podia ser superior em ser à causa ou causas. Criou-se uma concepção da evolução, afirmando-se que constantemente o universo revelava um aumento de perfectibilidade e de ser, de modo que o amanhã teria mais ser que hoje, e hoje mais que ontem. Renan chegou até a afirmar que Deus seria o ponto final da evolução. De modo que Deus ainda não existia, mas existirá, afirmava, quando o universo tiver alcançado o seu grau evolutivo máximo de perfeição. Desse modo, o mais viria do menos, o mais perfeito do menos perfeito, o resultado conteria eminencialmente mais ser que as causas. E de onde viria esse aumento de ser? Se não tinha uma causa anterior que o contivesse, só poderia vir do nada, surgir por absoluta geração espontânea. O nada assou a ser o criador. Admitir um ser perfeito criador era um absurdo, mas admitir que o nada fosse capaz de realizar a perfeição era mais absurdo ainda. O mesmo se fez com os conceitos e ato e potência, essência e existência, forma e matéria, finalidade, intencionalidade e muitos outros conceitos que se tornaram confusos, porque tudo se fez para que se tivesse uma concepção confusa, pois assim se derruía pela raiz os fundamentos da concepção cristã, que é uma religião positiva e concreta, embora assim não consideram os adversários, sempre abstratistas e negativistas.

Seria um erro julgar que houve nisso tudo apenas má fé. Sem dúvida, que há certo satanismo dos que desejaram destruir os fundamentos filosóficos da escolástica, e sobretudo deficiência no conhecimento, ausência de mentes filosóficas mais seguras, erros palmares de lógica, preconceitos admitidos como postulados demonstrados, quando, na verdade, não passavam de afirmativas sem fundamento. Mas também houve da parte dos escolásticos modernos uma parcela de culpa. Depois da floração que teve a escolástica, sucedeu-se um período de disputas de escolas, em que mais se preocuparam os escolásticos em disputar entre si sobre a exegese do pensamento dos grandes mestres, como Tomás de Aquino, Duns Scot, São Boaventura, Alexandre de Hales e Suarez, do que propriamente levar avante o trabalho desses luminares e divulgar como se deveria divulgar o verdadeiro saber escolástico. Permitiram que a filosofia moderna se divorciasse do passado próximo, que volvesse aos modelos gregos do período da decadência, que obras como as de Averróis, Avicena e os grandes árabes, permanecessem praticamente desconhecidas.

Muito erro que hoje domina no mundo é devido à culpa dos que deveriam ser guardiães da filosofia positiva, que mais se preocupam com as polêmicas de escola, em acusarem-se uns aos outros de heréticos, de panteístas, de imprudentes e de temerários, do que em levar aos estudiosos um conhecimento claro do pensamento dos grandes filósofos da Idade Média. Pela ação maléfica de uns e pelo descaso de tantos outros, e pela inadvertência de quase todos não era de admirar eu os semeadores de erros não colhessem confusão, e que o mundo conturbado de nossos dias não tivesse a principal razão de sua angústia nos grandes erros que se disseminaram em prejuízo do bem e da cultura humanas. (1)

(1) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.