Todo e Parte

Todo. Aquilo que, embora tenha partes ou aspectos distinguíveis, apresenta-se contudo como unidade, e pode ser tratado sem referir-se às suas partes. O todo é quantitativamente a soma de suas partes, mas é, de qualquer forma, qualitativamente diferente e, quase sempre, especificamente diferente. No todo há algo mais que as partes, quer tomadas separadamente, quer como partes de um todo, partes integrais, que o constituem quantitativamente ou partes essenciais, quando componentes da essência ou natureza essencial de alguma coisa.

Todo e Divisão. Chama-se divisão a distribuição de um todo em suas partes.

Chamam-se membros as partes da divisão. É mister distinguir: 1) o todo, que é dividido; 2) as partes (membros), nos quais é dividido; 3) o fundamento, a razão pela qual é feita a divisão. Se dividimos os homens em brancos, negros e amarelos, etc., o todo a ser dividido são os homens, as partes são brancos, negros, amarelos, e o fundamental é a cor.

Divisão da coisa é a que se realiza por uma operação real ou também consistente na enumeração das partes que podem ser separadas. Esta divisão pode ser regulada, e o deve ser, pelas regras lógicas que cabem à ela. Divisão de conceito é a divisão propriamente lógica, em que são distribuídas as partes componentes de um todo lógico.

O todo é o um que se pode resolver em muitos (partes). O todo pode ser real ou lógico. O todo real (também chamado atual) é aquele que é um em si e que pode realmente ser dividido em partes. Todo lógico (também chamado potencial) é aquele que não é em si um realmente e que, apenas, é um concebido pela mente. Assim, o universal é um todo lógico em relação aos seus inferiores, que estão contidos nele em potência, e que são chamados de partes subjetivas. Homem contém em si Pedro, João, etc., de cujos indivíduos se pode predicar homem.

O todo lógico ou potencial pode ser duplamente classificado em unívoco e análogo.  O todo potencial unívoco é a razão universal unívoca relativamente aos seus inferiores, relativamente às quais pode ser predicado. Assim o gênero animal é um todo potencial unívoco. O todo potencial análogo é a razão universal análoga relativamente aos seus inferiores, dos quais pode ser predicado, não sob a mesma, mas sob diversa razão. Ente é um todo potencial análogo relativamente a todos os gêneros supremos.

O todo atual pode ser subdividido em essencial, que corresponde às partes constituintes da essência, e todo não-essencial aquele cujas partes não são constituintes da essência. O todo atual essencial pode ser ainda físico ou metafísico, segundo as suas partes são físicas ou metafísicas, se são ou não realmente distintas entre si. O todo atual não essencial é ainda entitativo ou não-entitativo se se constitui de partes entitativas (da essência e da existência), ou não. O não-entitativo é ainda integral quando composto de partes integrais (quantitativas), como o homem, que é composto de cabeça, tronco e membros, ou é potestativa, quando se divide segundo diversas potências ou faculdades como alma humana, que pode ser dividida, potestivamente, em alma vegetativa, sensitiva e racional. 

A divisão por acidente pode dar-se: 1) divisão do sujeito na acidência, como a divisão dos homens em brancos, negros, amarelos; 2) divisão do acidente nos sujeitos, como as paixões, que ora são do homem, ora dos brutos e, finalmente 3) acidente nos acidentes, como o amargo, que ora é saudável, ora não.

A divisão fundamental é a do gênero nas suas espécies, que é a divisão chamada essencial, que não só é clara, mas também distinta. A divisão essencial é também chamada de divisão per se, que é aquela cujas partes são propriamente tais por constituírem elas o todo. Assim o homem, como animal racional, é um todo atual essencial metafísico; o homem, como corpo e alma, é um todo essencial físico; como composto de cabeça, tronco e membros, um todo atual não-essencial não entitativo, integral.

Fundamentos e regras da divisão:  O ser humano pode ser dividido segundo diversas razões (ou fundamentos); segundo a cor, em brancos, negros, amarelos; segundo o tamanho, a idade, os caracteres, os temperamentos, as funções sociais, etc. A divisão não pode ser disparatada, deve revelar-se segundo um fundamento. No seu exame das divisões, puderam os lógicos estabelecer uma sequência de regras:

1) Não se deve mudar o fundamento numa divisão Assim seria uma má divisão a que reduzisse os homens a brancos, negros, músicos, engenheiros, etc.

2) O todo deve adequar-se aos membros em que é dividido, tomados simultaneamente Assim ofenderia esta regra o que dividisse a essência corpórea entre homens e animais brutos (pois faltariam as plantas, etc.).

3) Deve ser feita pelos membros que se excluam mutuamente   Má divisão seria a que se fizesse entre seres animados e inanimados e as pedras.

4) Ser breve e não deve multiplicar-se em subdivisões.  

5) Ser ordenada Um gênero é dividido em suas espécies imediatas. Uma má divisão de animal seria a de homens, cavalos, aves, etc., pois animal é dividido em racional e não-racional ou bruto. É importantíssima a divisão na lógica, sobretudo quando examinamos os silogismos disjuntivos, pois muitos erros de raciocínio e muitos sofismas surgem de defeitos na realização daquela. (1)

Todo - Parcial a) A parte componente de uma totalidade pode ser, por sua vez, composta de partes. A essa parte, em relação ao todo, e em relação às suas partes é um todo-parcial.  

b) Na teoria das proposições de Hamilton, diz-se da proposição em que o sujeito é tomado universalmente e o predicado o é particularmente: Todos os S são alguns P. (1)

Todo - Total Na teoria das proposições de Hamilton, é aquela em que o sujeito e o predicado são ambos tomados universalmente: Todos os S são todos os P. (1)

(1) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.


Universal e o Individual  O problema da individuação é um dos temas mais importantes da filosofia. E o é porque implica o seu contrário, o da universalidade, ao qual é contraposto, frequentemente.

Distinguem os escolásticos o universal reflexum, o universal que é apenas o conteúdo de um conceito, como o universal "sabedoria", que não precisa nem desta nem daquela, pois pode conceituar-se por si mesmo, do universale directum, o correlativo correspondente nos objetos a esse conteúdo, o que é real e, neste caso, será objetivo o conceito ao qual correspondem tais correlativos. Costuma-se também chamar universal reflexum de lógico.

A essência homem não é subsistente de per si para os escolásticos porque, do contrário, seria singular, única, e não se poderia repetir nos homens. Corresponde-lhe a universalidade, porque pode referir-se como correlativo a uma pluralidade de objetos. Daí a necessidade de distinguir a individualidade, que é o caráter de ser indivíduo, do ser distinto de formar um todo, uma totalidade, que não pode ser dividida sob pena de deixar de ser o que é. Há uma individualidade numérica e uma qualitativa. É numérica a individualidade que podemos numerar, como este e aquele livro, etc., que poderiam chamar-se livro I, livro II ou livro III... Este livro é nenhum outro. Está aqui, tem heceidade (haecceitas), é singular, inmultiplicável e não pode ser ele e simultaneamente outro. Cada homem é numericamente este homem, mas também o é, cada um, em si, diferenciado qualitativamente, Pedro, João, Paulo, etc., pois todos os seres parecem distinguir-se qualitativamente, embora possa haver seres que se pareçam iguais.

Também a individualidade pode ser vista como absoluta e como relativa. É absoluta quando considerada apenas em si. Cada coisa, considerada apenas em si, é individualidade numérica e qualitativamente tal coisa. Como relativa, salientamos a relação dela com outras semelhantes, como Paulo em face da espécie humana. Todo o indivíduo é uma individualidade relativa dentro da espécie.

Podem os escolásticos disputar entre si sobre o problema das universais em alguns pormenores mas, na verdade, todos estão de acordo em que não se pode dar um universale a parte rei, e que portanto todos os seres existentes estão determinados individualmente. No que toca à individualidade numérica, é certo que não se pode dar um universal separado dos indivíduos, e do qual estes "participem"; porque dita essência universal hipostasiada, por ex.: "homem", seria eo ipso, uma espécie singular, o mesmo que os homens singulares. Além disso, os homens particulares só podem ser constituídos como homens por algo intrínseco a eles e não por uma essência exterior aos mesmos". (Fuetscher)

Todo ser existente, além de numericamente este, é determinado pela sua qualidade, o que se pode atribuir a todo existente. O conceito universal só tem objetividade como ideia, pois falta-lhe a exemplaridade; do contrário, se a tivesse, deixaria de ser universal para ser singular. O eidos no ser supremo (ante rem) não é um individual hipostasiado, mas um pensamento (logos) no e do ser.  

Reconhecem os escolásticos que a nossa mente não só pode separar o que a parte rei está unido, como também pode distinguir o que a parte rei é idêntico. Nesse caso, a distinção se achará, actu e formalmente, só no entendimento; enquanto no objeto só se achará fundamentaliter (fundamentalmente). A fonte última dessa distinção é a finitude das coisas. Um infinito, como tal, exclui a distinção conceptual adequada entre essência e individualidade. A finitude faz também que seja possível uma pluralidade de seres da mesma espécie. E essa pluralidade oferece ao conhecimento comparativo um fundamento para escolher o comum, e prescindir do diverso por mais que ambos elementos não sejam distintos ex natura rei nos diversos indivíduos. Mas essa distinção não é puramente conceitual, no sentido de não fundada nos objetos, "A essência e a individualidade são intencionalmente distintas, mas a parte rei se acham em identidade real", como o expõe Fuetscher.

Além dos escotistas, os suarezistas repelem a distinção real entre a essência e a individualidade. Longa é a polêmica entre os escolásticos para esclarecer, de maneira decisiva, o problema da individualidade. Se Tomás de Aquino considera que é a quantidade que determina a individualidade, os suarezistas, com uma lógica férrea, demonstram que a quantidade já pressupõe a forma individual, portanto não poderia intervir na individuação da forma. Também a argumentação dos tomistas, de que o que individualiza é a quantidade determinada, que recebeu uma "impressão", uma sigillatio, que a marca, tornando-se matéria signata quantitate, também encontra dos suarezistas a mesma argumentação, pois seria uma petitio principii tal afirmativa, segundo eles.

Fuetscher, fundado na oposição de Suarez, conclui que a individualidade se dá na união entre quantidade e a forma, cuja unidade revela propriedades totalmente novas; o que corresponderia à nossa concepção tensional. A distinção entre sujeito e forma, entre essência e individualidade, é atual somente no pensamento diferenciante; não na própria coisa. É este o pensamento escotista. A singularidade pertence à coisa enquanto tal, em si mesma. O ser é singular da mesma maneira que é um, isto pelo simples fato de ser, dizem os tomistas. Mas Duns Scot discorda, pois como poderia um objeto, que é de per si singular, ser apreendido como universal pelo intelecto? A individualidade é, para ele, a ultima actualitas formae, a última atualidade da forma, e a haecceitas surge (haec,  esta, estidade) dos princípios individuantes, que formam as entidades do compositum, é a forma nessa singularidade do composto, fundada nessas entidades. (1)

(1) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.