A Religião de Platão (Notas do Livro)

GOLDSCHMIDT, Victor. 

A Religião de Platão. 

Tradução de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira. 

São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970




O historiador deve se ater à história. Exige que o intérprete se faça discípulo fiel, ainda que provisório, com ausência total de preconceito e dogmatismo.

Introdução — As Aspirações Humanas

I — A Procura da Verdade

Todo o indivíduo tem o desejo natural de ver e de saber. Para tanto, há que se considerar o aspecto material (visível) e o aspecto espiritual (invisível)

Desde sua “aurora”, a ciência grega procurou proteger o conhecimento contra a dispersão, a hesitação e o erro, e assegurar-lhe um objeto um no seio da multiplicidade das coisas, estável através de sua mudança real por trás de sua aparência.  A substância primordial responde a essa tripla condição. Única, inalterável e permanente.

As Formas são incorporais e invisíveis. As Formas reduzem o múltiplo à unidade.

A multiplicidade das diferentes Formas é unificada no Bem, Forma Suprema.

Há vários tipos de cama, mas o modelo “cama” é único.

Há vários tipos de cadeira, mas o modelo “cadeira” é único.

O conhecimento impõe-se à nossa vontade, e não mais somos livres diante do erro. A procura da verdade faz-se obediência ao Bem.

II — O Desejo do Bem

Todo ser humano deseja ser feliz. O desejo do Bem é o desejo de ser feliz. Não quer se apoiar em coisas transitórias, na aparência, mas na realidade, na verdade dos fatos.

Nesse caso, o único bem é a ciência e o único mal a ignorância. Não é possuir, mas saber usar.

As necessidades de nossa condição de encarnados obrigam-nos a procurar, sem trégua, as “coisas boas” fugidias e portadoras de uma parcela, apenas, de felicidade instável, de uma felicidade na medida de nossa condição mortal.

III — O Amor do Belo

A felicidade, como já vimos, é a única coisa que o homem realmente deseja.

Platão chama amor o sentimento que inspira esses sentimentos generosos.

No ato do conhecimento, o princípio imortal da alma encontra as realidades eternas e restaura, tanto quanto é possível na nossa existência presente, a condição pré-empírica, onde a alma saboreava, em presença das Formas, uma felicidade permanente.

O Verdadeiro, o Bem e o Belo são três aspectos da mesma realidade suprema, da qual derivam todos os valores. A Forma do belo, contudo, é o modelo por excelência.  

A filosofia, chegando até as Formas e, além das Formas, até o Bem, atinge o objeto que é, ao mesmo tempo, verdadeiro, bom e belo.

A filosofia é essencialmente submissão libertadora a uma realidade e a uma vontade do alto.

O papel da filosofia é descortinar-nos a verdade afastando-nos do erro.

As realidades divinas se deixam apreender, mas elas existem, mesmo que não houvesse nenhuma alma para aspirar a elas.

Capítulo I — Deus

I — As Formas

1. A posição das formas

Já nos antigos, a obscuridade do “Bem de Platão” era proverbial e fornecia matéria para zombarias, abundantemente explorada pelos poetas cômicos.

O problema é saber se a felicidade os ignorantes e dos inimigos das Formas é, verdadeiramente, uma felicidade sólida e inocente. O ensino somente pode ser inscrito numa alma consciente de sua ignorância, e é por esse motivo que, na maior parte da sua obra, Platão antes nos ensina a duvidar das coisas sensíveis que a conhecer as Formas.

Nenhum diálogo começa por “pôr” Deus, o Bem, ou as Formas... não há nenhuma pesquisa dialética que não tenha sido, no começo, uma simples conversação.

Quando está em jogo nosso interesse e nosso valor somos refratários à mudança. Aqui não mais podemos, uma vez convencidos de erro, mudar de opinião, embora permanecendo nós mesmos; somos estreitamente solidários com as convicções que nos traduzem a nós mesmos.

Apegamo-nos tão fortemente às nossas convicções (que são nossas e, a bem dizer, que são nós mesmos) que toda convicção oposta deve confirmar-nos mais ainda nas nossas. Se os argumentos faltam, outros meios, mais eficazes, apresentam-se: o ridículo lançado sobre o adversário, as injúrias, e, entre nações, a guerra, “razão última”.  

A contradição que provoca o despertar é entre a pretensão e a exigência, entre nós e os valores, entre nosso desejo e a vontade das Formas.

Esta contradição desperta aqueles que são dotados de uma boa natureza e convida-os a dirigir seus olhares para a realidade das Formas, da qual eles reconheceram e proclamaram as exigências.

O fundo dessa experiência transtornante é a insatisfação em relação ao mundo em que vivemos e a nós que nele vivemos.

O pessimismo nunca pode, sem inconsequência, ir até ao fim de si mesmo. Se a educação, a política, a religião caíram nas mãos de ignaros, de inspirados, de impostores, existem, em outras matérias, técnicos competentes. Se existem maus em grande número, deve-se reconhecer, no entanto, que existem homens de bem, mesmo que os queiramos supor pouco numerosos.

Pôr as Formas é, se se pode assim dizer, fazer um ato de fé científico.

Toda religião tende ao conhecimento do Ser que nos ultrapassa e em relação ao qual experimentamos um sentimento de “dependência absoluta”, é preciso dizer que na religião de Platão se confunde inteiramente com a dialética. (Cf. a fórmula de Brunschvicg: "a dialética intelectual é indivisivelmente dialética moral e política, dialética religiosa". [Le Progès de la Consciense t. 1. pág. 26])

2. O reinado das Formas

Qualidade e Essência — Pode-se dar, de toda pessoa viva, um número infinito de pinturas, de desenhos, de caricaturas — e talvez de caricaturas somente. Todas essas cópias imitam, nenhuma é o modelo.

A matéria é um “porta-marcas” onde nascem, vivem e se apagam obscuras imagens enviadas pelas Formas.

A distinção entre qualidade e essência. A essência de tal Forma não está presente em tal objeto sensível senão a título de qualidade.

A Forma é eterna (enquanto as coisas sensíveis nascem e perecem). A Forma é essencialmente o que é (enquanto as coisas sensíveis jamais são).

A dialética pode definir-se como a arte de descobrir as semelhanças e as diferenças entre as Formas; ela “consiste em apreender o que “quer” a ideia que se examina, em obedecer ao que se vê nas noções”.

3. O conhecimento das Formas

Todo sábio estuda partes do Ser, sem fazer, por causa disso, obra de crente. — Ora, se a dialética não se confunde com as outras ciências, é porque estas não consideram senão partes do Ser, e elas “são obscuras”, porque, ignorando o Ser, nem mesmo poderão conhecer claramente suas partes. Como elas, a dialética parte, primeiramente, em busca de uma Forma particular, mas ela jamais pode terminar o estudo desta se não atinge, antes, a Forma do Bem, a fim de compreender como se liga ao Ser universal esta Forma de ser da qual ela empreendeu a definição.  

Jamais coisa alguma pode depender de nós, é por isso que a dialética é uma ciência, não moral, mas religiosa, e que ela é a ciência do Ser.

Por seu entrelaçamento de exigências e argumentos, a dialética parece misturar constantemente a razão e a fé. Em cada afirmação essencial, aprendemos, diretamente e “em si”, a Forma que lhe concerne; o raciocínio, percorremos as vias de processão, ligando tal Forma a tal outra, depois tal Forma ao Bem.   

O conhecimento do Bem, do “objeto mais alto do conhecimento, deveria renunciar, parece, à dialética combinatória, e não recorrer senão à intuição.

O Bem é apreendido por uma visão, que custa a vir, e que não se obtém senão com dificuldade.

Nenhum diálogo tenta o conhecimento do Bem. O Bem ilumina toda pesquisa dialética; ele não é visado, diretamente, por nenhuma.

As Formas, sob a orientação do Bem, são constituídas num conjunto coerente. E, além disso, tanto quanto o Bem, o sistema das Formas não é buscado de uma só vez. Mas, o conhecimento, para nós, nunca está acabado; o filósofo aplica, “perpetuamente”, seus raciocínios à “Forma do Ser”. O Fedão coloca no além o cumprimento. Unicamente a alma separada do corpo e libertada das servidões da Caverna, verá as Formas face a face. Talvez seja por isso que o platonismo é antes um método que uma doutrina.


II — A Processão

1. Causalidade das Formas

As Formas são a causa da geração e da corrupção. A vontade da Forma reclama uma obediência fiel do artesão que quer imitá-la, ela não o obriga a querer imitar.

Por que Sócrates prefere a morte à evasão?

“Há um bom tempo, imagino, que estes ossos estariam do lada de Mégera ou da Beócia, transportados pela opinião do melhor, se minha opinião não tivesse sido que era mais justo e mais belo submeter-me ao julgamento da Cidade, qualquer que fosse ele, do que fugir e evadir-me”.

Impossível conhecer a Forma do Bem sem imitá-la. Nem mesmo se deve atribuir a “submissão ao julgamento” à alta moralidade de Sócrates. Porém em relação ao Bem, ela é sujeição absoluta e exclui toda escolha.

2. A Matéria

A ação do Bem sobre a alma de Sócrates é irresistível. É preciso o processo e o julgamento, é preciso, numa palavra, a situação concreta na qual Sócrates se encontra. É preciso que haja matéria para a ação, uma situação e materiais, onde se possa inscrever a imitação. Sócrates não é livre para esquivar-se à vontade do alto.

Segundo Platão, a dominação das Formas não é absoluta; a Necessidade não se deixa persuadir inteiramente.

3. O Demiurgo e a Alma

É preciso a alma de Sócrates para que o Bem seja conhecido. É preciso o artesão para que a Forma da Cama seja imposta aos materiais. É preciso, para que nasça o Universo, uma alma ou um artesão. O mito (que é o único a poder aventurar-se à descrição do Devir), ao referir o nascimento do mundo ora a uma Alma, ora ao Demiurgo, significa sempre a mesma causa, posta ao serviço das Formas.

O artesão divino modela o Universo à semelhança do Modelo. Mas, em outro contexto, ele aparece como “o pai” do Universo e quer que “as coisas nasçam o mais possível semelhantes a si próprio”.

É sempre a alma que é “o princípio do movimento”, quer se mova ela própria quer ponha em movimento um corpo.

A alma é, como as Formas, invisível, inteligível, divina.

4. A Bondade divina

Nem mesmo se deve dizer que o Modelo existe, qual um plano de criação, a fim de ser executado. O Modelo existe em si, ele é Ser que se basta, como o Bem se basta. A inteligência que conhece o Bem, que conhece o Modelo, se basta, no seu conhecimento. E já nesses níveis se afirma a bondade divina: o Ser é bom, e a inteligência do Ser é boa.

Em todas as instâncias do real, encontramos essa bondade que é fundada no ser e que, originariamente, não implica nenhum matiz afetivo (Igualmente em Santo Tomás “a bondade ... não é a benignidade, qualidade do coração, mas é a perfeição idêntica ao ser, a bondade ontológica)

O problema do Mal. O Universo é ora governado, ora abandonado por Deus.

“Tudo o que nasce está sujeito à corrupção”, a Cidade ideal, as plantas, os animais.  

Entretanto, jamais serão dissolvidos, porque a “vontade” divina sustém sua imortalidade. Tampouco aqui não é esta vontade o capricho nem de um tirano, nem mesmo de um benfeitor. Deus é bom; e “querer dissolver o que está perfeitamente harmonizado e bem feito, isto só cabe a um malvado. Ora Deus não pode nem ser nem querer ser malvado. Sua bondade (ou sua vontade, é uma coisa só).

Tampouco a matéria é “má”. Ela é “ausência de Deus” e é ignorância de Deus. A ignorância no homem torna-se esquecimento. É pelo esquecimento que se altera a Cidade ideal, que as almas se condenam à Encarnação, que o Universo do mito se encaminha para o “oceano de diferença”.

A Processão. — num sentido mais preciso, entendemos por processão, não somente o processo intemporal em virtude do qual os seres saem do Ser, mas a mudança de aspecto que sofrem certos valores, como a bondade ontológica que, em relação a nós, se torna benevolência, ou a Imutabilidade que se torna Justiça incorruptível, ou a exigência dos movimentos regulares que se traduz, para a alma humana, por todos os imperativos concretos da vida política e moral.

Capítulo II— O Homem

I — O Vivente Mortal

O homem é um vivente mortal, composto de um corpo e de uma alma.

Entre o astro e o animal vive o homem. Tem um corpo mortal, um corpo precário cujos elementos são tomados a expensas do corpo do Universo, ao qual deverão, um dia ser restituídos.

II — A Alma e o Corpo

O homem é um vivente mortal, composto de um corpo e de uma alma. Porém, este vivente mortal encerra uma alma imortal, uma alma que viveu e que viverá sem corpo, uma alma cuja origem é supraterrestre e cuja vocação a orienta para um destino divino. É preciso, portanto, modificar nossa definição e, agora, então, dizemos que o homem é somente a alma.

“O ser real e realmente imortal que somos, chama-se alma”. E esta alma não é qualquer sopro espiritual, qualquer princípio impessoal que a metafísica faz que nos sobreviva; somos nós mesmos que sobrevivemos a isso que se chama morte e que é, na verdade, a separação da alma em relação ao corpo. Não se deve dizer que é a alma de Sócrates que sobrevive; é Sócrates mesmo, e com toda a sua consciência.

O corpo é uma imagem que acompanha cada um de nós e, com razão, diz-se que os cadáveres são simulacros dos mortos”.

Amar um homem é amar a sua alma, independente dos traços físicos.

O corpo é proposto à alma como uma matéria que ele deverá incessantemente modelar à sua própria semelhança, depois que ela própria tiver imitado as Formas.

“Não é o corpo, por perfeito que seja, que torna a alma boa por sua virtude; é a alma boa que, por sua virtude, dá ao corpo toda a perfeição de que ele é capaz”.

Assim como a imagem mais acabada corre o risco de ocultar-nos o modelo, a imagem corporal corre o risco de encobrir a alma que imita.

Imagem imperfeita, o corpo, é, sobretudo, o instrumento d alma.

Tudo se resume, por conseguinte, em tornar esse instrumento o mais perfeito possível por exercícios cotidianos: 1) a alma deve cuidar de si mesma; 2) a alma está encarregada do que é desprovido de alma.  

O exercício efetivo do poder nada acrescenta ao valor do político. Ao contrário, sabendo que nunca se governa segundo a perfeição da ciência, o filósofo não aceitará o poder senão a contragosto.

Para evitar de “cuidar” e amar o corpo em demasia, ela se limitará a cuidar primeiramente de si própria.

III — Castigos e Recompensas

Desde os poemas homéricos, os gregos não cessaram de meditar na Providência e justiça dos deuses. Consideravam a existência como um mal.

Platão recusa-se a considerar a nossa atual existência como um mal.

A única questão que preocupa Platão é a justiça. A felicidade vem por acréscimo.

Fazendo o mal, a alma faz mal a si própria. Os tiranos que se reencarnam em corpos de lobos, têm a infelicidade de ver atendido seu desejo do mal.

Metamorfose e castigo isolam a falta e a manifestam. A metamorfose torna visível para todos a feiura do vício; o castigo torna a alma sensível a sua maldade. A metamorfose concretiza a maldade e a liga à alma; enquanto o castigo a apresenta à alma como num espelho e provoca assim a “reflexão” e a correção.

A alma encarnada que hauriu sua felicidade unicamente na prática da filosofia e da justiça é digna de uma única recompensa: a visão permanente das realidades eternas. O culpado será confrontado com suas faltas; a alma purificada será posta em presença das realidades às quais ela se tornou semelhante.

De que serviria o gozo, mesmo dos maiores prazeres, se, privados de inteligência, memória e de ciência, nem mesmo soubéssemos que os estaríamos gozando?

Para ver melhor a ação dos castigos e das recompensas sobre as almas, é preciso lembrar que Platão distingue dois males na alma: a maldade, que é como uma doença, e a ignorância, que é como um feiura.

Ora, das almas que o ciclo dos nascimentos arrasta novamente, só a más aproveitaram de sua estada no além, curadas que foram de sua maldade pelo castigo; ao contrário, os prêmios oferecidos aos justos não são verdadeiramente um bem, para eles, visto que não os tornam melhores. 

IV — A Escolha das Condições

Depois de ter recebido o salário de sua última existência, as almas, segundo uma ordem fixada por sorteio, deverão escolher sua próxima condição terrestre. “Modelos de vidas”. O instante da escolha é chamado “instante crítico”, porque toda a nossa existência depende dele.

A escolha das condições é deixada à inteira liberdade das almas: ninguém poderá, pois, reclamar delas à divindade, que, quanto a ela, está “alheia ao assunto”.

Mas as duas partes da alma determinam duas vontades, uma que obedece ao Bem, a outra arrastada aos caprichos da causa errante.

Pode-se dizer, portanto, que tudo o que acontece à alma depende, no final das contas, dela mesma, e que ela própria depende da razão.

Mas, se a diversidade das condições depende das almas, de onde provém a diferença entre as almas?

V — A Individualidade das Almas

Uma vez posto em marcha, o mecanismo das reencarnações satisfaz a todas as exigências da justiça e da razão.

Tal é o primeiro nascimento, “idêntico para todos”, que produz seres apenas diferenciados, indistintamente bons. Depois, assim como na “Cidade ideal”, esta sociedade primitiva evolui e se desenvolve no sentido de uma diferenciação que vai dar nascimento às desigualdades de caracteres, às virtudes e aos vícios.

É, portanto, no decurso de suas encarnações que as almas se individualizam e se fixam em caracteres.  

VI — A Alma e o Universo

VII — O Culto Espiritual

VIII — Destino do Homem

Nem a salvação nem a perdição estão ligadas a decisões ou a atos irrevogáveis. O que se poderia chamar de revelação, no platonismo, jamais produz uma “conversão” definitiva, e a inspiração, a iluminação “brusca”, a sabedoria que nos “advém de si mesma” e que “cai não sei de onde”, não têm emprego nesta ciência da salvação que é a dialética.


Capítulo III — A Cidade

I — Cidade e Universo

Toda a cosmologia do Timeu é o primeiro ato de um drama que devia representar os altos feitos dos atenienses lendários, cidadãos da Cidade ideal.

A origem e o destino da Cidade estão ligados às alternâncias cósmicas. Nascida no curso do ciclo retrógado, em que a Necessidade cega está em luta contra a Inteligência divina.

A origem da Cidade é atribuída, primeiramente, às necessidades que constrangem os homens isolados a pôr seu trabalho em comum.  

Para que o Universo possa subsistir sem prejuízo, todas as suas partes devem harmonizar-se exatamente, de maneira que o Todo seja unificado e que possa dizer-se “dotado de um amor suficiente para consigo mesmo”.

Todas as “paixões” estão orientadas, o mais possível, para o bem comum, a fim de não atentarem contra a unidade do Estado.

Assim como o Universo visível, a Cidade “ideal” não se confunde com seu “Modelo erguido no céu”.

Obras da Razão” versus “obras da Necessidade”.

Precedido de um “preambulo” e seguido de uma sanção, o enunciado de cada lei é uma vitória que a Razão conquista sobre a Necessidade; persuasiva ou coercitiva, a lei, “coisa divina e admirável”, interpreta, frente à causa errante, as exigências da Razão,

II — A Religião na Cidade

1. A tradição

Mesmo quando o Universo do mito vai à deriva, ele não está inteiramente “abandonado” por Deus, uma vez que consegue lembrar-se, por pouco que seja, das “instruções de seu Demiurgo e Pai”. Deus não esperou o legislador filósofo para organizar a vida política. É à divindade, não a homens, que se deve atribuir o estabelecimento das leis antigas”.

Na tradição dos tempos, recuados ou na fonte, sempre a jorrar, do oráculo de Delfos, a Divindade revela-nos os processos pelos quais a Razão persuade a Necessidade e lhe impõe uma ordem estável.

Entre as tradições, as mais veneráveis concernem a Religião. Já a República, entretanto construída unicamente segundo as exigências do Bem, fez o estabelecimento da religião depender, não da dialética, mas da tradição e do oráculo de Delfos.  

A aceitação da tradição, tão pouco conforme ao espírito dialético, que rejeita toda a autoridade, tem um lugar importante na “religião de Platão”; não somente, o que é obvio, na religião tradicional das Leis, mas nas exigências essenciais e nos mitos em que se apoia a dialética.

2. Culto e sentimento religioso

Como a República, as Leis reservam o conhecimento da Realidade suprema a uma íntima elite.

O legislador proclama que “para o homem de bem, o meio mais belo, melhor e mais eficaz para alcançar uma vida feliz consiste em fazer sacrifícios e em permanecer em relações constantes com os deuses pelas preces, oferendas e pelo conjunto do culto.

É em favor da religião que se opera aqui a transmutação dos Valores que a dialética produz na alma humana.

A música e a dança são os lazeres que reclama o “brinquedo sério” da dialética.

Combater o amor de si mesmo, e fazer-lhe adquirir as virtudes filosóficas.

O culto oficial, a educação cívica e a vida política inteira concorrem assim para livrar os cidadãos de sua falsa individualidade e para libertar neles essa parte que se não reconhece senão em face de Deus. A religião das Leis realiza, para cada um dos cidadãos, uma obra exatamente análoga àquela que a dialética opera na alma dos filósofos.  

3. Religião e Política

A Cidade antiga vivia e morreu com seu culto oficial. Ela já agonizava na época de Platão e, se as Leis restabelecem as tradições religiosas e querem reanimá-las por sentimentos de piedade, é porque era o único meio de manter viva, com a religião, a mesma Cidade.

O X livro das Leis prevê e pune três formas de impiedade: duvidar da existência dos deuses, crer que os deuses se desinteressam dos assuntos humanos, considerar os deuses suscetíveis de ser corrompidos por preces, sacrifícios, práticas de magia. Essas medidas inspiram-se da tradição, que elas prolongam.

Lembrando Sócrates. Ora a dialética é uma pesquisa em comum. Impossível discuti-la se um dos interlocutores pretende deter a verdade e recusa, de vez, ser refutado. A razão adere à verdade, enquanto a paixão se atém à sua verdade. Não tendo com quem discutir, a pessoa discutirá consigo mesma.

Por que respeitar uma opinião cujo valor ou não-valor a discussão deverá precisamente mostrar? E sabe-se que Sócrates não aceitava discutir com qualquer um.

Uma única coerção é permitida ao dialético: é a de obrigar seu parceiro à pesquisa e à sinceridade.

Os cidadãos que se recusam à pesquisa e à sinceridade serão encerrados na “casa de reflexão”.

III — Destino da Cidade

Excetuada a tirania, cujo grau de corrupção não pode ser ultrapassado, todas as outras constituições, por pouco que deem prova de alguma estabilidade, devem ser mantidas a qualquer custo. 

A Cidade, cuja causa material reside nas necessidades, na impotência dos indivíduos para se bastarem a si mesmos, na Necessidade cega, não parece ser de uso no além. Não há, em Platão, o equivalente da "Cidade de Deus". 

A Cidade está integrada no Universo e ela é dominada pelas alternâncias cósmicas. Ela não tem nem um lugar nem um equivalente no seio do Ser puro, de que unicamente a alma individual consegue nutrir-se. 

Sócrates afirma sua esperança de ir para junto de "deuses bons" e de "companheiros" 

Conclusão

Embora soldado corajoso, Laqués não consegue formular uma definição satisfatória da coragem. Tal é a situação do homem em relação a Deus. "Entre todos os seres vivos, é o homem que mais venera a divindade". 

O conhecimento de Deus, que não se pode separar da imitação de Deus, dá à conduta humana sua significação e seu termo. Antes de Pascal, Platão ensinou que toda a vida moral depende da justa opinião que podemos ter sobre a divindade.

Para afastar o perigo de o homem confundir o seu interesse com a vontade divina, as Leis interditam os cultos privados. A dialética multiplica as precauções contra o arrebatamento e o dinamismo do eu. 

De fato, por sua inversão de valores, a dialética proclama que somente a ciência de Deus, não as ciências do homem, merece "preocupar-nos". 

A supremacia da razão é afirmada contra a inspiração e contra o iluminismo sob todas as suas formas; mas, no entanto, a razão acolhe o mito. , 


Tempo Histórico e Tempo Lógico na Interpretação dos Sistemas Filosóficos

Parece que haveria duas maneiras distintas de interpretar um sistema; ele pode ser interrogado, seja sobre sua verdade, seja sobre sua origem; pode-se lhe pedir que dê razões, ou buscar suas causas. Mas, nos dois casos, considera-se ele, sobretudo, como um conjunto de teses, de dogmata. Os métodos são: dogmático e genético.

O método dogmático é eminentemente filosófico: ele aborda uma doutrina conforme à intenção de seu autor e, até o fim, conserva, no primeiro plano, o problema da verdade; em compensação, quando ele termina em crítica e em refutação, pode-se perguntar se mantém, até o fim, a exigência da compreensão.

O método genético, buscando as causas, arrisca-se a explicar o sistema além ou por cima da intenção de seu autor; ele repousa frequentemente sobre pressupostos que, diferentemente do que acontece na interpretação dogmática, não enfrenta a doutrina estudada para medir-se com ela, mas se estabelecem, de certo modo, por sobre ela e servem, ao contrário, para medi-la.



GOLDSCHMIDT, Victor. A Religião de Platão. Tradução de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970