Viver a bordo de navios pode ser extremamente gratificante por diversos motivos. Entre os pontos positivos, destaca-se a oportunidade de conhecer vários países, ganhar em dólar e interagir com pessoas e culturas de diferentes partes do mundo.
No entanto, esse tipo de trabalho apresenta desafios, como a distância de casa, a saudade da família, o trabalho exaustivo e sem folgas e o estresse de dividir uma cabine com pessoas desconhecidas.
Essa mistura de recompensas e dificuldades criou trajetórias únicas para Eliseu de Oliveira Filho e Leandro Franciscano de Paiva, enriquecendo a vida de ambos com experiências inesquecíveis em alto-mar.
Cada jornada combina momentos de alegria e dificuldades superadas, que contribuem para o crescimento pessoal e profissional dos indivíduos que escolhem viver essa aventura.
A melodia da vida do músico Eliseu, mais conhecido como Lee, ecoou por uma década em grandes cruzeiros. Dos 50 anos de carreira musical, Lee passou dez a bordo, se apresentando em navios da MSC Cruzeiros.
Segundo Lee, sua carreira em alto-mar começou abruptamente, ao encontrar um antigo amigo. “Cláudio já fazia esse trabalho na Europa; um dia ele me encontrou pela rua e perguntou se me interessava embarcar por uma boa quantia para tocar, mil dólares na época. Aceitei na hora", disse.
A oportunidade o levou a visitar diversos países em cruzeiros, passando pela Itália, Espanha, Inglaterra, Malta, Noruega, Portugal, Escócia, Gibraltar, Holanda, Ilhas Canárias, Argentina, Uruguai.
No Brasil, Rio de Janeiro, Salvador, Ilhéus, Porto Feliz, Arraial do Cabo, Búzios e Ilha Grande foram destaque dentre as tantas cidades litorâneas.
Atividades artísticas nos cruzeiros têm desafios únicos, como a rigidez das regras a bordo e a constante vigilância ao longo das viagens.
"Além de me sentir observado o tempo todo, a carga horária era de quatro a cinco horas por dia. Mas quando tinha festas na piscina ou brincadeiras, fazíamos hora extra", explica o músico.
Dos 12 meses do ano, de quatro a sete ele estava embarcado. Esses períodos prolongados afetavam sua vida pessoal e social em terra firme, especialmente na profissão.
Durante esse período, perdeu alunos nas escolas de música onde lecionava e também compromissos com suas bandas, que sabiam de sua ausência nos períodos finais do ano até depois do Carnaval.
Além disso, as diferenças culturais também impactavam as apresentações. Para o público estadunidense, a música tocada era diferente de quando os passageiros eram europeus, que curtiam músicas mais conservadoras.
Outra diferença que chamava a atenção dele era o volume das músicas. Os europeus gostavam mais de um som ambiente, do que a música alta.
Aqui, o ritmo era de muita animação, com samba e forró. e os brasileiros pediam para aumentar o som o máximo que pudesse.
A interação com outros membros da tripulação variava. Existia o chefe dos músicos que cuidava de todos.
“Nos reunimos às vezes no salão ou para comer pizza de madrugada. Havia grupinhos distintos, como a mesa dos animadores e dos músicos." relembra.
Uma das partes favoritas desse trabalho para Eliseu era estar em lugares incríveis praticamente de graça e trabalhar com uma banda talentosa.
A convivência intensa durante meses exigia um psicológico forte para evitar estresse no ambiente de trabalho.
Outra experiência interessante era lidar com diferentes audiências, como alterar o repertório para agradar o público local.
"Europeus adoram dançar e são elegantes. Felizmente, eles também gostam muito da música brasileira, especialmente bossa nova e chorinho”, desabafou.
Lee deixou os navios por diversos motivos. A mudança na direção artística da MSC Cruzeiros foi um dos fatores.
Além disso, ele se casou e tinha compromissos com sua própria carreira musical no Brasil, especialmente ligados à sua banda de rock progressivo, Recordando o Vale das Maçãs, e posteriormente com as bandas Lee Recorda e Lee Recorda Duo.
Ele foi convidado por uma cantora com quem trabalhou em seu último embarque, mas já estava comprometido com ensaios e datas de shows com suas bandas no Brasil, e optou por não deixar seus músicos na mão.
Assim, a decisão de não embarcar mais foi uma combinação de mudanças pessoais, profissionais e artísticas.
Assim como Lee, Leandro Franciscano de Paiva, nascido em Santos, começou sua carreira marítima em um navio de cruzeiro. Aos 35 anos, ele acumula uma série de histórias e experiências que moldaram sua vida. Sua trajetória a bordo começou no dia 10 de setembro de 2009.
Sua primeira experiência em alto-mar foi com o cruzeiro MSC Opera. No início, Leandro trabalhou no setor de limpeza geral, mas logo realizou um curso de hotelaria e passou a trabalhar como camareiro, limpando e organizando as cabines dos passageiros.
Porém, após alguns desentendimentos, ele optou por abandonar o cargo no cruzeiro faltando um mês para completar a temporada.
Mas não parou por aí; logo após voltar à “terra firme”, Leandro já se inscreveu para a próxima temporada e foi chamado, dessa vez por outra empresa.
"A Pullmantur foi onde realmente encontrei meu lugar. A maioria da tripulação era brasileira, e isso fazia toda a diferença. Sentia-me mais em casa", lembra.
Durante essa fase, Leandro também enfrentou um relacionamento complicado com uma colega de trabalho.
"Tentei manter um relacionamento com uma colega, mas a vida a bordo é muito difícil para namoros.
No fim, acabamos nos separando, mas as amizades que fiz valeram a pena", comenta o ex-tripulante.
Leandro valoriza a formação contínua e por isso se dedicou a aprimorar suas habilidades com os idiomas.
"Fiz um curso de inglês oferecido pela Prefeitura de São Vicente.
Todo sábado tínhamos aula, e isso foi crucial para meu desenvolvimento profissional.
Outro curso chamado 'Tripulantes do Futuro' também me preparou para a vida embarcado".
O dia a dia de trabalho nos cruzeiros era intenso, mas Leandro encarava com determinação. "Trabalhávamos de segunda a segunda, dez horas por dia", relembra.
"Não tinha folga, era bem puxado, mas a rotina se tornava parte de quem você era. Lembro-me de sempre manter a barba feita, e minha cabine sempre em ordem, era uma regra rígida exigida", completa.
Durante sua carreira, Leandro navegou por diversos mares, visitou 25 países e mais de 50 cidades. "Conheci lugares que nunca imaginei, como Jamaica, Croácia, Grécia, e muitos outros. Cada porto tinha suas histórias e encantos ", diz.
A vida a bordo também incluía momentos de lazer e convivência. "A gente fazia festas, tinha piscina, lojas, academias e áreas exclusivas para a tripulação.
Já morei em cabines de duas, três e quatro pessoas. Morei com mexicanos, indianos, guatemaltecos e brasileiros. Às vezes era tranquilo, outras vezes nem tanto", relata Leandro.
A saudade da família, no entanto, era parte da bagagem de bordo. “No período em que ficava fora, consegui ver minha mãe apenas quatro vezes. Quando ela e meu irmão podiam me visitar no trabalho, ficaram encantados”, lembra emocionado.
Após seis longas temporadas, Leandro Paiva precisou largar a vida a bordo para cuidar de sua mãe, que teve problemas de saúde, mas agora se encontra bem.
Atualmente, ele é entregador no iFood e faz “freelas” como motoboy em restaurantes, mantendo contato com amigos do tempo dos cruzeiros.
“Embora a vida seja bem diferente agora, as histórias e as lembranças das viagens são inesquecíveis. Cada momento valeu a pena, e espero voltar ao mar em breve, para acumular mais aventuras", conclui.
Ana Clara C. Dias Antonio
editora
Ana Beatriz Ubrig Coelho
reporter e escritora
Giuliana Gottzent Tiberi
reporter e escritora