O ambientalista Ibrahim Tauil, 74 anos, é um homem de vida e aparência simples. No dia da entrevista à Viral, se apresentou vestindo uma camiseta azul sem estampa e boné branco. No que parecia ser o seu “home office”, alguns elementos contam um pouco da sua personalidade, como a porta repleta de adesivos, um deles alerta para o perigo com os dizeres “sólido e inflamável” e no meio de tanta informação visual, uma discreta bandeirinha do Brasil.
Possui vívidas lembranças do tempo em que, ainda bem menino, costumava passear com seu pai por trilhas em áreas preservadas da Mata Atlântica. Uma delas ligava a avenida Nossa Senhora de Fátima ao Rio do Bugre, onde hoje está assentada a maior favela de palafitas do Brasil, o dique da Vila Gilda. Naquela época, ainda não existiam os conjuntos habitacionais Divineia e Dale Coutinho, nem favelas e muito menos o Sambódromo da Zona Noroeste de Santos.
Os passeios incluíam também a Trilha do Boi Morto, uma das poucas áreas de mata nativa existente na Ilha de São Vicente. O garoto ficava encantado com a vegetação exuberante e a diversidade de pássaros que podia avistar ao longo do sinuoso caminho de terra, entre os morros da Nova Cintra, em Santos, e do Voturuá, em São Vicente.
Ibrahim participa de diversos fóruns na Estação da Cidadania, local em que foi realizada a sessão de fotos
Mesmo cansado pela caminhada, Tauil sentia-se revigorado cada vez que chegava a um ponto mais elevado da trilha e podia admirar a paisagem, que lhe permitia ter uma vista panorâmica de boa parte da cidade. Aquele contato com a Mata Atlântica foi tão marcante que a defesa do meio ambiente tornou-se missão de vida dali em diante.
Hoje seu currículo ativista é repleto de batalhas pela preservação do ecossistema da região. Algumas foram ganhas depois de muita luta, outras vão e vêm como os navios no cais do porto. É sabido que nem todas as embarcações trazem turistas, divisas, insumos e tecnologia. Algumas trazem também poluição, contrabando e até ameaças explosivas, como o “navio-bomba”, que tem esse nome assustador não por acaso. Tauil comprou a briga contra as operações do terminal de regaseificação do gás natural liquefeito (GNL) no porto de Santos.
O chamado navio-bomba é um regaseificador atracado ao lado da Ilha de Barnabé, próximo a Alemoa, e que tem, segundo um livro de autores norte-americanos sobre infraestrutura energética intitulado “Brittle Power”, um potencial explosivo equivalente a 116 bombas de Hiroshima. A embarcação tem capacidade para armazenar mais de 200 mil metros cúbicos de nitrato de amônia e transporta o gás pelos 13 quilômetros estreitos do Porto de Santos, uma receita ótima para o desastre. Indignado, Tauil fala que as diversas recomendações dos órgãos ambientais, como os Conselhos Estadual e Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Condema e Consema), foram simplesmente ignoradas.
Ao recordar como tornou-se um militante ecológico, Tauil sempre faz a volta no tempo para acessar o período da infância, quando convivia com cobras e preás e tinha como parceiro um cavalo que pastava próximo de sua casa e que aproveitava para montar e dar um rolê no meio do mato. Seu semblante sorridente ao recordar essa fase da vida quando o contato com a natureza era a sua principal diversão, transforma-se repentinamente em queixa.
O olhar fica sério e até a voz ganha um tom grave quando comenta sobre o surgimento de construções residenciais e especialmente “daquele elefante branco chamado Sambódromo”, que fez com que boa parte da mata nativa ao lado de sua moradia fosse asfaltada e impermeabilizada.
O interesse pelas caminhadas prosseguiu quando foi professor da rede municipal de Santos para crianças na faixa entre 7 e 8 anos. Ele percebeu que as novas gerações estavam se afastando do contato com a natureza e fazia questão de propor atividades diferentes, como levá-los para trilhas ou para as praias de Paranapuã e Itaquitanduva, em São Vicente, ou no Poço das Antas, em Mongaguá. Mas não era apenas se inscrever e ir; ele aproveitava que os pequenos adoravam e sempre ficavam ansiosos pelos passeios para dizer que só ia quem tirasse boas notas. Alertava que iria ver o boletim de cada uma. Na verdade, ele levaria todos, independentemente das médias na escola, mas era uma forma inteligente de fazê-los estudar. Isso deu tão certo que os pais o procuraram impressionados, pois não sabiam o que ele fazia para que as crianças ficassem tão animadas para estudar após as aulas. E sim, as notas de todos subiram consideravelmente.
Outra atividade voltada ao meio ambiente que o professor ensinava era levá-los para recolher resíduos no entorno dos bairros onde moravam, a fim de despertar a consciência sobre a preservação do meio ambiente. Um desses alunos ele lembra com muito orgulho: o jovem cursou Engenharia, mas depois optou por ser guia turístico, influenciado pelos passeios organizados por Tauil.
Tauil é tão apaixonado pelo meio ambiente que contou uma passagem envolvendo seus filhos, que moram nos Estados Unidos. Rindo, ele diz que, certa vez, quando foi visitá-los, lhe pregaram uma pegadinha. Os filhos propuseram um passeio em um shopping, com parada para um lanche no McDonald´s. De pronto ele negou, argumentando que preferia ir para o mato, pedido aparentemente acatado. No entanto, quando chegaram a uma área bastante verde, havia um shopping ali no meio, e era para lá que eles o estavam levando.
Apesar do prazer de estar perto de ambientes naturais preservados, durante muitos anos ele se descuidou da saúde. Trabalhou no período noturno por mais de 14 anos no ramo de importação e exportação em duas empresas portuárias e passava todo o expediente com uma garrafa de Coca-Cola na mão. O trabalho era exaustivo, não havia protocolos de segurança e equipamentos de proteção individual e muitas vezes era preciso lidar com produtos tóxicos. Toda essa falta de disciplina de sono, sem praticar atividades físicas, má alimentação e insegurança no trabalho abalaram sua saúde. Chegou a desmaiar em frente ao Armazém 11 do porto.
Foi ao médico e ouviu um belo sermão: ou mudava seus hábitos ou não iria conhecer os filhos e muito menos os netos. Foi aí que começou a praticar caratê e notou a melhora sensível do seu estado de saúde, decidindo abandonar a área operacional portuária. Na época conheceu o então prefeito Oswaldo Justo, que também praticava caratê, e recebeu logo o convite para trabalhar na Prefeitura como comandante da Guarda Municipal. No entanto, declinou do convite e disse que preferia trabalhar na Secretaria de Esportes, onde atuou com o secretário Paulo Silvares. No final de 1988, com a saída de Silvares, Tauil o substituiu na pasta, já no último ano da administração Justo.
Em 2002, quando foi criado o Fórum da Cidadania de Santos, sob a liderança do sociólogo Célio Nori, a veia ativista de Tauil reacendeu. “Nós entendíamos que o modelo de democracia representativa que perdura até hoje não satisfazia os anseios populares e daí a necessidade da transição para um modelo de democracia participativa, sendo os conselhos municipais as caixas de ressonância da sociedade”, comenta, explicando como a chave da participação política mudou o curso de sua jornada. Ainda assim, ele faz a ressalva:
De uma prosa com esse ambientalista apaixonado pela Baixada Santista é possível se traçar um mapa das questões ambientais mais sensíveis da região. Uma de suas maiores preocupações é a ausência de um planejamento sustentável para a área continental de Santos, levando-se em conta os aspectos econômico, ambiental e social. “Aquela região é a única que poderia iniciar do zero um projeto de fato sustentável, um modelo para o resto do mundo”. Ele lamenta que não se pense em um biodigestor urbano para que os resíduos orgânicos possam ser transformados em fertilizante, adubo e energia através do biogás.
Outra medida que ele propõe para a área continental é o incentivo às hortas comunitárias, cuja produção poderia ser adquirida pela Prefeitura para a merenda escolar, “cumprindo assim o que determina a Lei n° 2859/2012, que proíbe alimentos transgênicos e seus derivados na merenda”.
As críticas de Tauil se estendem à parte insular da cidade “com arborização urbana abaixo da crítica e circulação de caminhões em desconformidade com as normas de emissão de carbono nos escapamentos”. As queixas abrangem o sistema de destinação de esgoto, que ele considera ineficiente para combater os coliformes fecais, situação agravada com a contaminação dos frutos do mar por fibras sintéticas que se soltam das roupas na máquina de lavar. A Lei de Ocupação do Solo também é alvo de muitas críticas, por entender que ela é baseada apenas em uma visão de desenvolvimento focada na expansão do porto, “o que é bastante preocupante”.
Entre todos esses temas, um tem ocupado a mente inquieta de Tauil de modo perturbador. Em sua opinião, alertar a sociedade para os riscos do navio-bomba, é acima de tudo, uma questão de cidadania. Ele conta que há uma determinação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) no sentido de que todos os projetos administrados pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) tenham aval do órgão ambiental do município. Segundo Tauil, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Santos emitiu uma certidão atestando a compatibilidade do navio, sem passar pelo crivo do Conselho do Meio Ambiente e pela Câmara Municipal, coisa que ele denunciou.
Tauil destaca ainda a proibição de regaseificadores pelos Estados Unidos depois do 11 de setembro. Naquele país para não ter o risco de virarem alvos de novos atentados terroristas, a operação foi deslocada para o mar aberto a 70 quilômetros da costa. No caso de Santos, ficará ao lado da Ilha Barnabé, a cerca de um quilômetro do centro da cidade. Para se ter uma noção do perigo, ele aproveitou para lembrar do navio cargueiro que atingiu uma das balsas atracadas, no ano de 2021, o que obrigou a interrupção da travessia por mais de uma hora:
Por fim, ele explica que esse gás também será destinado à Usina Termoelétrica Piratininga, que funciona a diesel e há o planejamento de substituição pelo gás. Em uma discussão do Consema, foi feita uma pergunta ao responsável da usina sobre o risco de explosão, por conta da rodovia e dos conjuntos habitacionais ali próximos. A resposta foi que não, pois o gás não seria armazenado lá, e Ibrahim falou com tom de revolta:
Para impedir isso, Ibrahim está plenamente ativo em todas as batalhas junto com Ministério Público e órgãos ambientais em audiências públicas e fóruns de discussão apresentando diversas denúncias na tentativa de barrar esse grande risco à região.
Ibrahim defende a arborização urbana como uma política de Estado. Ele apresentou uma dessas políticas no Plano Municipal da Mata Atlântica, plano diretor com uma dotação específica para atender todas as demandas de equipes próprias para a confecção de mudas, plantio, compostagem, rega, poda e adubação, tudo com uma equipe própria.
Tauil se considera um pedestre assumido. Ele nunca se deixou escravizar pela comodidade do automóvel ou da motocicleta. No passado teve os dois, mas preferiu vender para aderir ao transporte público e “redescobrir as pernas”, como ele define. Tudo quanto é compromisso que pode fazer a pé, ele faz. O homem mora na rua Oswaldo Cruz, próximo à Universidade Santa Cecília, mas se precisar ir até a Zona Noroeste não hesita em ir até lá caminhando.
João Pedro
repórter e editor
Gabriela Martinez
editora e fotógrafa
Raphaella Santucci
repórter e editora