o líder da greve que desafiou a ditadura 

Reconhecido como forte liderança, Benedito Furtado foi um dos líderes da primeira greve no porto de Santos após o golpe de 1964.  

Vindo da quente cidade de Sobral, no semiárido cearense, Benedito Furtado peregrinou mais de  três mil quilômetros até chegar em Santos. No entanto, as dificuldades começaram bem antes de colocar os pés na estrada. Ainda na inocência, com dois anos, Benedito perdeu a mãe, Francisca Amélia, para um câncer, antes que se desse conta do mundo à sua volta.  


“Como pode um filho não lembrar da mãe, viver com a dor e não ter a lembrança? Conviver com o vazio doloroso e sem a imagem?”,  questiona. 

As noites se tornaram mais longas, à medida que o pequeno chorava no colo de seu pai, Raimundo, clamando de saudade pelo amor materno. 

Poucos anos mais tarde, o pai decidiu pegar o pequeno Benedito e mudar-se para a cidade de Massapê, onde morava o avô do pequeno,  a apenas 20 minutos de distância de Sobral. Novo lar, novos ares e horizontes no nordeste cearense. 

Em 1962, a vida se transformou. Aos 12 anos de idade, deixou Massapê, do baião de dois, da carne de sol com pirão, cuscuz e vatapá, e mudou-se com seu tio Francisco, com quem tinha pouquíssima intimidade para Santos, a terra de lindas praias e do maior porto do Brasil. 

"Eu não conhecia o meu tio Francisco. Ele era irmão do meu pai apenas pelo lado paterno. Na época, ele foi passear lá, se deparou com a situação de agrura em que eu vivia e resolveu me tirar dali. Eu era um menino praticamente de rua. Vivia nas ruas, fugindo", relembra. 

No entanto, o processo para levar o adolescente ao Litoral de São Paulo não foi tão fácil. Por falta de tempo para comprar a passagem de avião para a região praiana, Francisco pediu a Nessy, irmã de Benedito, que estava a passeio com o marido no Ceará, para que levasse o menino a Santos. 

A viagem foi longa, enfrentaram mais de 3 mil quilômetros,  40 horas de ônibus, em busca de uma nova vida, almejando o desconhecido na Baixada Santista. Tio Francisco era um trabalhador de carga e descarga da Companhia Docas, casado com Cecília,  filha de um estivador português, que considera sua segunda mãe. 

Naquela época, Benedito teve seu primeiro contato direto com a vida à beira do cais. Começou a trabalhar assim que chegou. A dificuldade era muita e ele tinha que se virar como podia. Aos 13 anos, iniciou como faxineiro de prédio, na sequência como costurador de saco de café, servente de pedreiro, servente e ascensorista no hospital da Santa Casa. Aos 23 anos, começaram a surgir as primeiras oportunidades no porto de Santos, como estivador eventual, sem jamais deixar o estudo de lado. 

Em 1973, começou a trabalhar na antiga Companhia Docas de Santos, mergulhando de cabeça no mundo portuário e, ao mesmo tempo, ingressou no curso de Comunicação na antiga Facos. Pouco tempo depois, Furtado foi indicado para prestar concurso para encarregado de navio. 

Naquele período, o  Brasil era governado pelos militares e os trabalhadores do porto se articulavam em um movimento de resistência à ditadura. Nesse meio, Furtado começou a se moldar e ter o caráter combativo atiçado. 

Ainda na década de 1970, formou-se jornalista, numa época em que a região era carente de universidades e oportunidades de trabalho, principalmente relacionados à comunicação. Aliás, foi na universidade que conheceu sua esposa Marília, com quem é casado até hoje e constituiu uma família composta pelos filhos Pedro, Fabiano e Bruno.

Erguendo a bandeira em defesa dos direitos do trabalhador portuário, Furtado entrou para o ativismo do movimento sindical e estudantil. Para ele, a antiga diretoria era atrasada e tinha muitas ligações com a ditadura militar. Aos 28 anos, foi eleito secretário do Sindicato da Administração dos Serviços Portuários,e aos 31, presidente da entidade, onde atuou por 15 anos


"Naquela época, quem não rezasse na cartilha, eles cassavam o mandato e destituíam as direções. Fui eleito numa diretoria que, de certa forma, era meio complicada, mas tinha alguns caras que eram combativos", lembra. 

Reconhecido como forte liderança, comandou greves que paralisaram totalmente o porto e entraram para a história de lutas dos trabalhadores. Exemplo dessa combatividade foi a greve de 1980, a primeira no porto de Santos após o golpe de 1964. 

"Com 28 anos nas costas, já tinha uma certa liderança. Vinha dos movimentos estudantil e sindical, já era filiado ao MDB na época, que era o partido que combatia a ditadura, então tinha militância política. Eu me destaquei naquela paralisação. Articulei junto aos demais sindicatos nas assembleias, nas reuniões, enfim, fiz uma bela mobilização. Nunca me esqueço. Foi uma greve histórica aqui na cidade, cinco dias de greve", comenta. 

Poucos anos seguintes, em 1989, apoiado pelos trabalhadores portuários, por quem tanto lutou, o cearense chegou ao ápice da jornada nas terras santistas e voou ainda mais alto: foi eleito vereador de Santos pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), com aproximadamente 2.800 votos. E quem diria, hein? Aquele jovem sonhador que almejava o desconhecido, era agora uma figura representativa na casa de leis. Impossível não imaginar o tamanho orgulho que sua mãe teria do que o filho trilhou e conquistou. Dos calos dos rodos e vassouras na limpeza dos prédios, da enxada do Nordeste e as marteladas nos dedos sujos de cimento das obras, além do cheiro dos sacos de café nas mãos, ao terno e gravata com o nome estampado em uma mesa na casa legislativa.

Em 2002, surgiu um novo sonho: atuar na causa da proteção e do bem-estar animal, junto de sua esposa, Marília. Ouvindo os latidos e miados carentes pelas ruas do centro movimentado e periferias, se compadeceu em defender e lutar pelos direitos dos animais indefesos. 

“Sou menino nordestino. Todos nós fomos criados no meio dos animais, no sertão é assim. Vi que não tinha organização nenhuma quando se tratava de  proteção e do bem-estar animal, nenhuma entidade de proteção. Eu e minha esposa tivemos uma longa conversa e fizemos um desafio para nós mesmos, de transformar Santos em uma referência na causa animal”, explica. 

A primeira lei que proíbe animais de circo na cidade é de sua autoria. Até então, cerca de 30 leis apresentadas por ele foram aprovadas e sancionadas ao longo de oito mandatos.

Marília exerce o cargo de presidente da ONG Defesa da Vida Animal, sem fins lucrativos, localizada no Macuco, cuidando, protegendo, realizando trabalhos de adoção e ajudando tutores de baixa renda ou em situação de rua. No entanto, o maior foco da ONG é no controle populacional de animais domésticos. 

“Quando comecei a trabalhar pela causa animal, eu era motivo de chacota na Câmara. Mas depois que eles viram que deu certo, virou moda. Nós  transformamos os animais em verdadeiros escravos nossos, seja para o afeto, para segurança ou alimentação. Essa é a verdade. Então, temos uma responsabilidade com eles. Fomos nós que os trouxemos para o meio ambiente urbano. Nossa vida gira em torno da entidade”, afirma. 

Aos 74 anos, Benedito Furtado continua em uma rotina agitada e não se restringe à vida na Câmara. “Antes de sair de casa, dou uma olhada nas redes sociais e me atualizo. De segunda a sexta, vou cedo para o gabinete. Assino o que tiver que assinar, dou as orientações para o meu pessoal, acompanho reuniões, audiências públicas, reuniões de comissões e visitas aos bairros, entre outras atividades. O parlamento é o retrato da sociedade. Tem gente que serve e quem não serve’, explica. 

O parlamentar é autor de cinco livros, motivacionais e poéticos autobiográficos, intitulados “Um Pouco de Mim”, “Massapê”, “Doce Cidade”, “Sou” e “Espalhador de Sementes”. Ele concilia as sessões da Câmara com as visitas às comunidades. Seu objetivo é mostrar que não há obstáculos para quem persiste.

“Se eu nasci para não dar certo, qualquer um que vá a luta encarar as adversidades da vida, vai conseguir vencer. Para mim não tem obstáculos. Sou realizado, mas continuo sonhando”, conclui.

AUTORES 

Vinícius Farias
repórter e editor   

Pedro Mendes
  repórter e editor   

 Maurício Massaro
repórter e editor