Em quase 30 anos de profissão, o caminhoneiro Fernando Baltazar reconhece a importância de saber a hora de sair da estrada e voltar para o lar
O relógio toca às 5h30 da madrugada. Na surdina, com meia-luz no quarto, o caminhoneiro Fernando Baltazar, arruma suas coisas para mais uma jornada de trabalho. O destino: Espírito Santo, três dias de viagem, sem a certeza de um caminho seguro. Ele parte pensando na volta, no reencontro com a família.
No cômodo ao lado, Graziela, de cinco anos, aguarda ansiosa. Sentada na cama com a mochila rosa no colo e tênis que acende quando pisa nos pés, ela espera poder acompanhar o pai. Com aperto no coração, fazendo o menor barulho possível para não alertar a filha, Fernando pega as chaves, a carteira com algum dinheiro e documentos e sai pela porta dos fundos rumo ao porto de Santos.
“Era muito difícil. Eu saía cedo e chegava tarde, não via muito meus filhos. Já teve vezes que falei para ela ir arrumar suas coisas e aproveitava para sair nesse tempo”, relembra Fernando.
Fernando seguiu os passos do pai e entrou no ramo dos caminhoneiros
Hoje em dia, Baltazar administra sua própria frota de caminhões
À medida que o sol vai nascendo, a luz reflete na lateral do carro. No rádio, “Enquanto houver sol”, dos Titãs, embala o trajeto em direção ao pátio onde centenas de caminhões estão perfilados aguardando a ordem do dia. No portão 5, o caminhoneiro carrega a caçamba com dezenas de toneladas de açúcar e soja, prontas para serem entregues.
São lembranças de uma rotina vivida por 29 anos. Ao longo de sua jornada, ele enfrentou desafios que testaram não apenas sua habilidade ao volante, como sua coragem e determinação. Ele recorda com amargura os momentos de insegurança que permearam sua trajetória, como o assalto sofrido na via Anchieta, que o fez repensar a segurança nas estradas, que conhece como a palma de sua mão.
“A minha sorte foi que eu já havia descarregado o caminhão. Lembro que fui abordado e levei o veículo até o acostamento da pista. O ladrão entrou e saiu com ele. Um tempo depois, passou o carro da Polícia Rodoviária. Eles me levaram até o posto deles, liguei para o meu pai e ele foi me buscar lá”, detalha Fernando.
Em dias de chuva, o perigo aumentava, mesmo para quem se acostumou a trafegar por rodovias com sinalização deficiente, buracos e depressões na pista, animais que atravessavam repentinamente no meio dos veículos.
FAMÍLIA EM PRIMEIRO LUGAR
Do primeiro encontro ao altar, o tempo voou. Três filhos, Fernanda, Cadu e Graziela, selaram a união, enchendo a casa de risos, choros e memórias que se entrelaçam como fios de uma tapeçaria mágica. E, para completar, vieram os netos, trazendo mais movimento e alegria. Seu lar, embora marcado pela saudade em suas ausências, é o porto seguro onde ele encontra descanso após longas viagens.
A atenção precisava ser redobrada, olhos sempre bem abertos por causa dos carros com motoristas negligentes, apressados, que teimavam em cruzar a faixa dupla ou que faziam manobras arriscadas ao volante. Por vezes, a viagem varava a noite, e aí o cansaço batia forte, tornando as viagens mais tensas. Em noites mal dormidas na cabine do caminhão estacionado em postos de gasolina, Fernando enfrentou as noites frias e os dias escaldantes com a coragem de um verdadeiro guerreiro das estradas. E em cada amanhecer, quando o sol rompia o horizonte, ele renovava sua determinação, impulsionado pela lembrança dos sorrisos daqueles que ele amava.
Essas lembranças dos tempos de partidas e chegadas ainda povoam os pensamentos de Fernando, hoje com 48 anos. Nascido em uma família onde o ronco dos motores era uma sinfonia cotidiana, ele herdou dos seus antecessores não apenas o ofício, mas também a paixão pelo caminho, pelo chão da estrada que leva ao ganha-pão, ziguezagueando entre perigos, recompensas e memórias que ficarão gravadas para sempre. Seu pai e tios já trilhavam os mesmos caminhos poeirentos transportando cargas a granel do porto de Santos para os pontos mais afastados do Brasil.
Nesse olhar pelo retrovisor da vida, Fernando lembra também que foi no caminho para mais um dia de trabalho, ao parar no posto para o desjejum rotineiro, café com leite e pão com manteiga na chapa, que conheceu Marli, o amor de sua vida. Com um sorriso acolhedor, ela o aguardava para servir seu café. Entre o aroma do café fresco e o burburinho dos colegas de profissão, o destino começou a tecer sua trama.
Em uma relação tão próxima, Fernando Baltazar, caminhão e Porto de Santos se tornam uma figura só. Desde criança, via seus familiares falarem da paixão pelas estradas na frente dos volantes. Quando cresceu, seguiu os passos deles e hoje dá a razão da sua vida pelo caminhão.
“Cara… eu não sei o que eu seria, não. Foi com ele que consegui minha casa, minhas coisas. Eu não sei o que faria sem o meu caminhão”, concluiu.
Atualmente, Fernando segue fazendo o que ama, mas já não enfrenta as estradas diariamente. Administra sua empresa, gerindo motoristas, caminhões e cargas a serem despachadas. Entende que ficar com a sua esposa não tem preço ou viagem que supere. Ele não para de trabalhar, muito pelo contrário, é possível encontrá-lo no posto ao lado do pátio dos caminhões, conversando com os trabalhadores, hoje quase família, quebrando um galho para um amigo de profissão, aproveitando um dia de cada vez.
A empresa possui três caminhões com um caminhoneiro para cada veículo. Fernando ainda mata a saudade dos volantes quando tem pedido de entrega para Cubatão, por ser um trajeto curto e com bom pagamento. Em viagens desse tipo, ele consegue até 1.500 reais brutos.
Nessa nova função, os perrengues aumentaram. Agora como gestor, precisa estar na linha de frente para fazer com que os caminhões tenham capacidade de fazer as entregas. Mesmo com a manutenção dos veículos em dia, houve uma noite em que Fernando recebeu a ligação de um dos seus motoristas. Ele estava em um posto, por conta do caminhão ter dado um curto circuito e pegou fogo. Em minutos, as chamas consumiram todo o veículo.
“Ninguém se feriu e foi só um susto mesmo. Não perdemos a carga, mas não conseguimos aproveitar nada do caminhão. Saímos no prejuízo. Eu fui até lá resgatar o motorista e suspeitamos que foi uma falha no sistema do ar, fazendo o caminhão pegar fogo”, relembrou Fernando.
AUTORES
Vinicius Figo
Repórter
Luíza Martins
Produtora de Imagens
Giovanna Veiga
Escritora