Carlos Rubens Cruz tem duas personalidades bem distintas. O Carlão mecânico de manutenção e estivador, com mais de 30 anos de experiência no porto de Santos, e o Seu Carlos, aposentado, bisavô orgulhoso, trabalhador avulso na estiva e frequentador das melhores rodas de samba da cidade.
Macacão, botas, capacete e luvas são parte do tradicional uniforme que Carlão se acostumou a vestir por mais de três décadas todos os dias. Mas para receber a reportagem da Viral em seu modesto apartamento, na Ponta da Praia, o blusão branco acinzentado com detalhes multicoloridos e shorts jeans acompanhado de uma joelheira foram a escolha do estivador aposentado de 71 anos. “Só não repara na bagunça”, já adianta logo ao abrir a porta.
Com seus um metro e setenta e poucos de altura, pele retinta, corpo rechonchudo e voz doce, Seu Carlos senta em um banquinho ao lado da porta entreaberta. Em um rápido vislumbre em seu apartamento é possível observar uma decoração discreta, com guias de umbanda penduradas na porta, santas na prateleira e uma garrafa de guaraná vazia sobre a mesa da cozinha. Na TV, uma antiga série de policiais forenses é reproduzida, enquanto o ventilador trabalha incansavelmente para amenizar o clima abafado daquela tarde de quarta-feira, calor atípico para a metade de abril.
Talvez por já ter trabalhado de manhã, ele esbanjava um sorriso cativante. Afinal de contas, estava de folga pelo restante do dia, mas aceitou reservar seu tempo livre para contar um pouco das experiências de quando ainda fazia parte do desgastante trabalho no porto, e sobre as conquistas pessoais que acumulou ao longo dos anos. Como um avô paciente, ele costuma começar as frases da seguinte maneira: “Menina, deixa eu te contar…”, “Menino, sabia que…” é assim que o simpático idoso sempre dá início aos seus relatos do passado.
Aposentado há oito anos da lida dura da estiva, quando chegava a carregar vários sacos de 50 quilos ao longo de uma jornada de trabalho, ele resolveu voltar para o cais do porto, onde ainda hoje faz serviços eventuais. Foi o modo que encontrou para manter a cabeça ocupada.
O trabalho braçal realizado pelo aposentado durou só até 2016. Atualmente, ele prefere exercer funções mais tranquilas, conhecidas como “filés”, entre os estivadores. Enquanto exibe um sorriso de orelha a orelha, ele explica o termo:
“Escolho os trabalhos onde não há nenhum esforço físico, nos quais não tenho que fazer nada. Nesses aí, eu vou em todos”, comenta às gargalhadas.
Mas na estivagem, o que é “não fazer nada”? O embarque de celulose, por exemplo, necessita de apenas seis estivadores. Não significa que cada um coloque a carga no ombro e saia andando por aí. Enquanto quatro homens auxiliam o guindaste a movimentar a carga, ele e o parceiro ficam ali só observando, e, por meio do sistema de rádio, comunicam aos operadores onde a carga tem que ser armazenada. Esse é o “filé” do Carlão.
Se a idade avançada é um dos motivos para trabalhos menos cansativos? A resposta é sim, mas existem outros fatores para os “filés” serem tão procurados. Pelo menos é o que sugere um item “decorativo” da sala de visitas do seu apartamento, uma muleta canadense pendurada no rack da sala. Seu Carlos não é PCD, mas tem alguma dificuldade ao caminhar, consequência dos navios frigoríficos, pandemia da Covid-19 e muito sereno nos churrascos em Uberaba, no interior de Minas Gerais.
Vamos por partes: O estivador já usou muito capacete, macacão de lã, botas e luvas para encarar as operações de estivagem em navios frigoríficos, mas a climatização glacial das embarcações não respeita nem a indumentária dos trabalhadores. Seu Carlos acha que o frio recorrente pode ter afetado a sua saúde óssea, daí hoje ele ter de lutar com as dores da artrose.
Quando a pandemia de covid-19 deu as caras por aqui, Seu Carlos tinha 68 anos. Passar oito meses trancado em casa, principalmente para os idosos, pesou na balança, literalmente. Teve também, os deliciosos churrascos que aconteciam em Uberaba – quando ele aproveitava o tempo como aposentado, sem fazer nada, e beliscava uma carne assada acompanhada de uma cervejinha. O resultado foi que Seu Carlos chegou a pesar 135 kg. Atualmente baixou para 119 kg, o que ainda é muito para alguém com pouco mais de 1,70 metro.
Com tudo isso, o estivador desenvolveu artrose nos dois joelhos. É aí que a muleta dá uma força, ajuda a manter o corpo reto, melhora o equilíbrio. Para exemplificar o seu andar, ele se levanta e faz um breve desfile pela sala acanhada. O passo desequilibrado, desengonçado, e de certa maneira fofinho, lembra remotamente o de um pinguim caminhando nas ilhas subantárticas. O uso da muleta e a procura pelos “filés” da estiva estão mais do que justificados.
Mas, por que um aposentado e com certa dificuldade para se locomover ainda trabalha na estivagem? É simples. A estiva é a sua paixão. De acordo com ele, nós criamos paixões conforme vamos vivendo. E esse afeto era tão imenso que, quando passou uns tempos com a família em Uberaba, em busca de aproveitar a vida de uma maneira mais leve, Carlão simplesmente não conseguiu.
Não passava uma semana sem ir para o pronto-socorro, vítima de gota nos joelhos e pés. Seu corpo estava tão acostumado com a rotina de trabalho que não suportou a moleza da aposentadoria. Uma relação tóxica com a estiva? Nem pensar. Para ele, o nome disso é amor. Mas um amor que só viria depois de muitas experiências.
Carlos Rubens Cruz nasceu no bairro Campo Grande, em Santos, e se mudou com 14 anos para o BNH, onde só pensava em jogar vôlei. Naquela época, as ruas do conjunto habitacional do bairro Aparecida eram de terra. Ele e o irmão mais velho passavam a semana inteira limpando o local para poderem se divertir. Mas ser jogador de vôlei não era o sonho de Carlos.
Seu pai trabalhava na antiga administradora do porto, a Companhia Docas, e mesmo assim não conseguiu pagar o estudo de todos os filhos. Enquanto o irmão mais velho foi para a faculdade, Carlos foi trabalhar. Começou na Cosipa, mas não gostou muito de lá e seguiu o caminho do pai nas atividades portuárias e por ali ficou. Na mesma época, enquanto trabalhava no porto, formou-se técnico em mecânica pelo Senai.
Um fato curioso é que por conta de seus anos como mecânico de manutenção, o aposentado padronizou sua escrita em letra de forma. Isso porque, quando se trabalha em obras, o engenheiro dá um desenho com instruções em letra de forma, mas a maioria dos “peões” não entende. Como ele não era burro nem nada, começou a estudar os desenhos feitos pelos engenheiros e se tornou o elo com os operários. Essa adaptação lhe rendeu o cargo de encarregado geral de obras.
Os anos foram se passando e Carlão fez seu nome entre os peões e engenheiros. Certa vez, em uma obra realizada para montar guindastes no Guarujá, ele enviou seu currículo, foi selecionado e quando foi se registrar, um peão o reconheceu e disse aos engenheiros que agora sim a obra iria andar. Esse é o tamanho do nome de Carlão, o “carrasco” das obras.
Carrasco? Isso porque, quando os engenheiros passavam uma meta para ele, não importava o tempo de descanso. Se fosse preciso, Carlão dormia na obra, mas no menor tempo possível iria completar o pedido. “O pessoal ganhava dinheiro, eu ganhava e hoje tenho um nome. Aquilo era o meu sonho”, relembra.
Mas infelizmente, na área das obras, o país estagnou. Isso era no final dos anos 1980, a chamada década perdida. Foi quando Carlão viu o jornal A Tribuna anunciar que a Vale Fértil estava recrutando um mecânico de manutenção. Mesmo processo, mas dessa vez, ao chegar na entrevista, encontrou um amigo de longa data. Contratado. Então, montou sua própria equipe com trabalhadores vindos de Duque de Caxias, Dias d’Ávila e Cubatão, entre outras cidades. O modus operandi era sempre o mesmo: aliciar.
Carlão oferecia um salário, ajudava na mudança de cidade e pagava o aluguel de seus contratados por dois anos. Apesar de estar se dando bem como encarregado, ele decidiu mudar de profissão quando um conhecido o avisou da distribuição de senhas pelo Sindicato da Estiva. “Foi aí que comecei a pensar em retornar a Santos”.
Em 1989, Carlão estava de volta à Baixada Santista, vindo de Uberaba, interior de Minas Gerais. Passou no concurso da Prefeitura de Santos para trabalhar como mecânico de manutenção – lugar que foi seu último emprego com um patrão –, e só em 1991, é que finalmente Carlão se tornaria um estivador. “Era uma ambição muito louca. Naquela época, um estivador ganhava uma fortuna. Então, a estiva era o sonho de todo mundo. Mas, primeiro você tinha que conseguir o documento que era uma senha. Meu tio era estivador e tinha amigos. Através deles, eu consegui”, explicou. Carlão se tornou estivador de fato, direito e senha já beirando os 40 anos.
A perspectiva de futuro mudava de acordo com sua evolução. Com um sorriso no rosto, ele conta:
“Sonhar é um direito nosso. Eu falo para os meus filhos que quando eu morrer, eles vão olhar o caixão e ver uma fisionomia de felicidade. Tudo nessa vida que quis fazer, eu fiz”.
O Carlão teve a vida que tanto quis. Mas, e o Seu Carlos? Bom… Ele ainda vive os seus sonhos todos os dias. Por mais que ele tenha as marcas do tempo no corpo, ainda assim é uma alma jovem. Por quê? Ao mesmo tempo em que trabalhava para construir um futuro para sua família como estivador, Carlos dava aula de dança de salão, coisa que ele adorava fazer. Inclusive, nunca mais casou-se após sua separação devido às inúmeras sextas-feiras à noite fora de casa, mas precisou interromper essa rotina para cuidar dos filhos, Júnior e Patrícia, dos seus netos e do bisneto, seus maiores orgulhos. Algo que Seu Carlos nunca se cansa é de atender o telefone e ouvir seu bisneto dando tchau para ele. Além disso, coleciona inúmeras memórias de seus netos “roubando” seu uniforme e o imitando no trabalho do porto.
Mas os laços familiares são só a cereja do bolo. Quando não está no porto, ou com seus familiares, ele está sambando. Segundo conta, na estiva existem diversos grupos. Tem os boleiros, os evangélicos e os cachaceiros. O Seu Carlos é uma exceção. Não faz parte de nenhum deles. Constantemente é chamado por seus colegas de trabalho para beber no bar, mas sempre nega o convite. “Trabalho e lazer não se misturam”, filosofa.
Quando quer beber, Seu Carlos pega o coolerzinho, enche de cerveja, coloca uma cadeira na praia – que fica a 100 metros de sua casa –, e fica por lá, apreciando a paisagem e a mulherada. E o samba? Bem… No mesmo dia em que nossa conversa aconteceu, Seu Carlos nos disse que iria rolar um samba no Estuário.
As rodas de samba são uma constante no seu dia a dia. Ele encerra o turno de manhã, chega em casa, come, espera o tempo passar um pouco e define sua noite: geralmente o samba na quadra da X-9, a escola pioneira de Santos, no Macuco. Ele vai para dançar, tirar uma onda e encontrar velhos amigos. Sua rotina no samba até deixa certas pessoas incrédulas. Foi durante um samba em Vicente de Carvalho, enquanto dançava com uma moça, que Seu Carlos foi questionado por um colega como tinha tanta disposição para cair no samba toda semana.
Apontando para sua cabeça, Seu Carlos explica: “Você não pode envelhecer aqui. Se a velhice entrar na tua cabeça, acaba a tua vida”. A resposta perfeita para explicar a juventude de um aposentado.
Seu Carlos tem um grupo muito grande de amigos para o samba e viagens. Algum tempo atrás, estava com sua turma da “melhor idade” no Quintal dos Prettos, espaço tradicional do samba em São Paulo. Em outra oportunidade, vai à Comunidade Samba do Maria Zélia, também na Capital, para prestigiar o Grupo Arruda. Esses são os fatores que rejuvenescem a alma de Seu Carlos.
Mas nem o samba nem a estiva vão mudar um objetivo crucial na vida do idoso. Após finalizar todos os seus compromissos no porto – algo que ainda não tem data prevista –, Seu Carlos irá voltar para Uberaba, construir um puxadinho num terreno que pertence à família e viver lá. Para fazer o que exatamente Seu Carlos? “Para não fazer nada”, responde com um largo sorriso.
Beatriz Lima
Repórter, fotógrafa e editora
Guilherme Chinarelli
Editor
Lucas Mendonça
Repórter, escritor e editor