A volta por cima 

Mudança de carreira: "Corretora de imóveis encontra o seu destino dentro do Porto"

Antes de chegar ao trabalho no terminal de contêineres (Tecon) da Santos Brasil, na margem esquerda do porto de Santos, Érica Pereira Matias já retocou a maquiagem discreta, com batom cor de boca e uma camada suave de blush. Brincos pequenos, cabelos bem escovados e unhas cor de vinho contrastam com o macacão de faixas reflexivas. 

Ela sai da sua casa e pega a barca dos funcionários na Ponta da Praia. Na entrada do Tecon, ela pega o equipamento de proteção individual e se apruma para mais um dia de trabalho. Com 1,61 metro e 57 quilos, Érica enfrenta diariamente o medo de altura para escalar 121 degraus, equivalente a 21 metros, até acessar a cabine de controle do RTG (Rubber Tyred Gantry). 

O equipamento é um guindaste móvel que pesa 41 toneladas. Ele conta com 8 pneus de borracha e serve para empilhar contêineres e içá-los para carretas. Apenas duas mulheres são habilitadas para comandar o equipamento na empresa e Érica é uma delas. 

Para chegar até ali, ela passou por um momento de reflexão e virada de chave. Em 2008, com a crise provocada pela bolha imobiliária nos Estados Unidos, Érica teve de repensar a carreira de corretora de imóveis. Entre casas e prédios, seu escritório balançou com o colapso ocorrido naquela época. A insegurança e a cautela recalcularam a rota de Érica.

Em busca da estabilidade, os olhos voltaram para o porto. A notícia de mais mulheres trabalhando nos terminais privados a motivou para uma nova empreitada. Já no ano seguinte, com a CNH na mão e habilitada na categoria D, concluiu o curso de empilhadeira e passou na seleção para ingressar na Santos Brasil. Ao tomar conhecimento de que teria que operar o RTG, inicialmente ela hesitou. Devido ao salário compensador e a estabilidade que procurava, ela decidiu enfrentar o medo de altura.

Passados 15 anos de atividade, hoje Érica encara os 121 degraus com naturalidade, inclusive subindo e descendo a longa escada durante as seis horas de expediente. Na cabine de comando de 3 metros quadrados, toda envidraçada, a operadora controla a máquina utilizando o joystick para conduzir o spreader (dispositivo de içamento) e movimentar os contêineres empilhados para os caminhões e vice-versa.  Apesar de não ser fluente, ela aprendeu a ler as informações em inglês no painel de controle das operações. Ela se comunica com a central de operações por rádio adotando códigos específicos na conversa. 

Aos 24 anos, tudo que almejou na crise de 2008, o esforço de Érica trouxe: salário fixo mensal, férias remuneradas e o 13º salário. Pouco tempo após ser admitida no Tecon Santos, a operadora levou ao RH da empresa o currículo de seu irmão José Elton Pereira, que acabou sendo contratado. A conexão entre os dois era reconhecida pelos colegas da empresa. Mas, pouco tempo depois, um abalo sobreveio na saúde de Elton, que recebeu diagnóstico de câncer. Elton passou por uma internação e, durante o período, Érica assumiu o papel de irmã e tomou todos os cuidados. Ela dormiu no hospital, preparou os banhos, alimentou, enxugou as lágrimas e acompanhou o declínio gradativo na saúde do irmão.

Após sofrer a perda de Elton, a operadora teve de se restabelecer e voltar ao cotidiano.  Foi quando o coração da operária do Tecon se inclinou para o mundo dos pets.

Depois da Santos Brasil, a faculdade na Unimonte tornou-se a terceira casa de Érica. EAD? Negativo. A profissional do porto matriculou-se em medicina veterinária, na modalidade presencial, e a sua rotina ficou ainda mais intensa.  ainda mais intensa. Para ela, ter rotina é inimaginável e um malabarismo se inicia ora com livros, ora com contêineres. 

Lidar com animais é estímulo de Juliana, sua amada. A companheira de Érica, além de professora, é médica veterinária e as duas, logo pela manhã, seguem seus caminhos em busca do ganha-pão. Os percursos são diferentes: Juliana cumpre a jornada em Praia Grande e Érica segue para o Guarujá. As duas não medem esforços para obter as suas conquistas. Além disso, em 2019, a determinação de Érica trouxe o diploma de medicina veterinária. A recém-formada, com 10 de anos de atuação no Porto, mirou no apartamento, no carro e, lógico, na estabilidade financeira. Ela acertou em cada alvo.

No entanto, um plano ainda estava pendente: os encargos da maternidade chegarem ao casal. Érica encarou os procedimentos para a fertilização in vitro. Theo chegou em junho de 2023 para alegrar a família.

No combo do cuidado, novas tarefas. As duas se planejam em prol da vida materna e dos cuidados com a casa. Os turnos da profissão são incluídos na lista. Durante a semana, na cozinha ninguém trabalha. As mães do Theo são aliadas da praticidade e, sendo assim, Juliana almoça no trabalho e Érica prepara marmitas no sábado e domingo. De segunda a sexta, o berçário é a casa do Theo em período integral. Lá, as educadoras realizam os afazeres com ele. 

Todo dia, depois das seis horas no comando do RTG, Érica corre para apanhar Theo na escola. O relógio biológico avisa que chegou a hora da mamada da tarde. Quando consegue sair mais cedo, passa em casa primeiro para adiantar a faxina. As duas mães se revezam, se complementam e  fazem todo esforço possível para estarem mais próximas do pequeno. O melhor momento em família é sempre aquele permeado por brincadeiras e pelas alegrias em acompanhar os aprendizados e descobertas de Theo. 

Atualmente, a funcionária do porto é feliz por estar exatamente onde planejou chegar. Érica é hoje um espelho para muitas mulheres que atuam na área portuária. A profissão trouxe a realização. Quando perguntada sobre a empresa, a operadora da Santos Brasil compartilha novidades tecnológicas e diz que não tem do que reclamar. 

Hoje, com 39 de idade, a mãe do Theo esclarece que a verdadeira sorte vem para os que se esforçam e aproveitam as oportunidades. Érica, radiante e sorridente, conclui que os passos arriscados de 15 anos atrás valeram a pena. 

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