Sete Ideias Filosóficas:
que toda a gente deveria conhecer
Desidério Murcho
Editorial Bizâncio
A filosofia é uma área de estudos vastíssima, com uma produção bibliográfica ímpar em sofisticação e quase ininterrupta desde o séc. V a.C. No séc. XX, sobretudo depois da segunda guerra mundial, a filosofia conheceu um incremento muitíssimo acentuado, não apenas na quantidade, mas também na qualidade, precisão e sofisticação dos trabalhos publicados; ao mesmo tempo, expandiu-se imenso, incluindo mais e mais áreas especializadas de territórios cada vez mais díspares — filosofia da economia, da religião e da arte, epistemologia da fé e do testemunho, filosofia da física e da biologia, ética aplicada e filosofia política, lógica filosófica, filosofia da linguagem e metafísica da modalidade (que estuda os modos da verdade: a contingência, a necessidade e a possibilidade).
Apresentar a filosofia ao grande público, em poucas páginas e sem a caricaturar, é um desafio considerável. A solução encontrada foi escolher apenas algumas áreas e apresentá-las com o pormenor suficiente para o leitor as poder ver a uma luz favorável e pensar um pouco por si. Se esse trabalho foi bem feito, o leitor sentir-se-á encorajado a conhecê-las melhor, e a refletir mais profundamente, deitando mão das sugestões de leitura no final do livro.
No meu livro anterior, Filosofia em Directo (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011), resolvi não incluir quaisquer referências históricas; neste, pelo contrário, fiz questão de as incluir. Em ambos, contudo, viso mostrar que o cerne da filosofia é a discussão paciente, criativa e rigorosa de problemas que só filosoficamente podem ser fecundamente abordados.
A ordem dos capítulos não obedeceu à cronologia, mas antes ao grau de abstração dos temas abordados. Assim, começamos com Descartes, recuamos a Sócrates, avançamos para Aristóteles, saltamos para o séc. XX, recuamos a Kant e ao séc. XVIII e terminamos no séc. XI, com Anselmo.
Os primeiros dois capítulos ajudam a esclarecer a natureza da filosofia e põem em causa algumas incompreensões comuns. Os dois capítulos seguintes abordam temas cuja importância é óbvia para qualquer leitor. Depois, os capítulos tornam-se progressivamente mais exigentes, quer pelo grau de abstração do que está em causa, quer pela sofisticação do raciocínio envolvido.
Esta organização cronológica tem a vantagem de contrariar uma leitura comum da história da filosofia, em que se pensa que Kant superou ou ultrapassou Aristóteles, sendo Kant por sua vez superado por Quine, por exemplo. Deste ponto de vista, a história da filosofia é uma sucessão de resultados definitivos, à imagem da história da ciência — ou do que se pensa, algo superficialmente, que é a história da ciência.
Ora, a história da filosofia não é assim. Isto porque não temos em filosofia o gênero de resultados consensuais que temos na ciência. A filosofia é fundamentalmente especulação sistemática e rigorosa, e não apresentação de resultados consensuais. Foi por essa razão que Kant defendeu que não se pode aprender filosofia como se aprende física. Se aprender física for uma questão de aprender os resultados consensuais desta área, então não podemos aprender filosofia como aprendemos física, porque não há em filosofia resultados consensuais; mas podemos aprender a fazer filosofia. Este livro é um primeiro passo nessa direção.
Agradeço a Jorge Reis-Sá a ideia para escrever este livro, e à Bizâncio a disponibilidade para a sua publicação. A Iago Bozza Francisco, Matheus Silva Martins, Luiz Helvécio Marques Segundo, Faustino Vaz, José Carlos Soares, Artur Polónio, Sagid Salles Ferreira, Rodrigo Alexandre de Figueiredo, Aires Almeida e Sérgio R. N. Miranda agradeço a leitura atenta, as objecções e as sugestões, que me permitiram melhorar sobremaneira uma primeira versão do texto.
A Rolando Almeida, além da leitura e dos comentários, agradeço também a preciosa ajuda com as traduções portuguesas citadas, que em dois casos foram ligeiramente adaptadas, para benefício sobretudo dos leitores mais jovens. Agradeço ainda, e muito, os comentários e sugestões de Teresa Mouzinho, que me permitiram introduzir inúmeras alterações que esclarecem, espero, as perplexidades do leitor comum.
Tenho uma dívida de gratidão mais geral para com a Universidade Federal de Ouro Preto e o seu Departamento de Filosofia, que me têm proporcionado um excelente ambiente para estudar e escrever, e onde é um privilégio ser professor. Espero não desmerecer a maravilhosa oportunidade que me é dada todos os dias por este departamento desta universidade e nesta cidade.
DESIDÉRIO MURCHO
Ouro Preto, 14 de Agosto de 2011
Estamos em 1637. Há escassos quatro anos, Galileu Galilei (1564-1642), professor de Matemática na Universidade de Pisa, foi condenado a prisão domiciliária pelo Santo Ofício da Igreja Católica Apostólica Romana — depois de ser obrigado a abjurar do suposto pecado de declarar cientificamente mais adequado o modelo de sistema solar proposto pelo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543), no qual a Terra orbita em torno do Sol e não o inverso. Passaram entretanto quarenta e cinco anos da pérfida denúncia de Giovanni Mocenigo, que acusou de heresia o seu professor, o astrônomo italiano Giordano Bruno (15481600), que por isso foi condenado pelo Santo Ofício à horrível e dificilmente imaginável morte na fogueira.
Há cento e vinte anos, no dia 31 de Outubro de 1517, Martinho Lutero (1483-1546) pôs em marcha a segunda grande cisão cristã. Segundo a história contada por Filipe Melâncton, provavelmente apócrifa, Lutero depositou nesse dia as suas noventa e cinco teses à porta da Igreja do Castelo, em Wittenberg, na Alemanha. Lutero criticava não apenas algumas ideias teológicas, mas também o que via como a corrupção das práticas da igreja católica. Para a cisão terá contribuído o estudo cuidadoso da Bíblia, usando recursos históricos e linguísticos, posto em prática pelo holandês Desidério Erasmo (1469-1536), seguido por outro holandês, mas de origem portuguesa: o filósofo Bento de Espinosa (1632-1677).
Assim, em 1637 o clima cultural europeu era a um tempo opressivo e estimulante. Opressivo, porque nunca se sabia bem, ao publicar um livro ou artigo, se isso seria considerado herético pelas autoridades religiosas. Mas também estimulante, porque novas e promissoras ideias científicas, matemáticas e filosóficas, eram propostas e discutidas. E foi nesse ano que o filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) publicou um tratado constituído por três estudos científicos (dióptrica, meteorologia e geometria), antecedidos por uma introdução filosófica cujo título completo é Discurso do Método de Bem Conduzir a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências. Este tratado foi publicado em francês, e não em latim, a língua académica europeia dessa época, porque Descartes queria ser lido não apenas por universitários, mas também por outros intelectuais que, como ele, não tinham lugar nas universidades.
Católico convicto, Descartes foi um dos grandes inovadores do seu tempo em matemática e filosofia, e ainda hoje as suas contribuições são, num e noutro caso, atuais. São dele as palavras “Penso, logo existo”:
“E notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava”. (Discurso do Método, p. 50)
Mas que quer isto dizer e por que razão algo que parece banal tem sequer importância? O que está em causa?
Conhecimento e ilusão
O que está em causa tem a vantagem de ilustrar uma preocupação filosófica importante. O leitor sabe, ou crê que sabe, várias coisas. Sabe, por exemplo, ou crê que sabe, que a Terra é maior do que a Lua. Mas terá talvez dificuldade em explicar por que razão realmente sabe, em vez de apenas crer que sabe sem saber. Isto porque, nesse caso, o leitor depende do que lhe disseram outras pessoas, oralmente ou por escrito. De modo que temos de perguntar se essas pessoas sabem realmente o que creem saber.
Esta pergunta é menos exótica do que parece. Em muitas circunstâncias o leitor se pergunta se realmente sabe o que parece que sabe, e toma medidas para eliminar, ou pelo menos diminuir, a possibilidade de erro. Por exemplo, lembra-se de ter fechado a porta da sua casa à chave; mas, como não se lembra muito bem, volta atrás e vai ver se realmente a fechou. Fazemos coisas destas todos os dias. Também nas ciências fazemos este gênero de pergunta: será que realmente a Terra está parada, como parece?
A diferença é que em filosofia fazemos uma pergunta mais geral. Perguntamos, por exemplo, se acaso as nossas memórias serão todas falsas, tendo nós começado a existir há cinco minutos. Afinal, se algumas memórias são falsas, por que razão não serão todas elas falsas? E enquanto na física perguntamos se uma certa informação que julgamos obter pelos sentidos é ilusória — como a imobilidade aparente da Terra — em filosofia perguntamos se acaso toda a informação que julgamos obter pelos sentidos será ilusória.
Pôr a pergunta em causa
Se o leitor está a pensar que este gênero de pergunta filosófica muito geral é algo disparatada, não está sozinho. Há quem pense que não vale a pena fazer perguntas, a menos que estejamos já a ver como poderemos responder-lhes. Ora, quando fazemos perguntas muito gerais, não se vê como poderíamos responder-lhes. Por isso, conclui o raciocínio, é algo disparatado fazer essas perguntas.
Este raciocínio antifilosófico, todavia, é curioso. Baseia-se — ironicamente — na ideia bastante geral de que não vale a pena fazer perguntas a menos que estejamos já a ver como podemos responder-lhes. Ora, se este princípio geral fosse seguido sempre, nunca teria surgido a própria ciência. São as perguntas a que ainda não sabemos responder que nos fazem desenvolver a ciência; não é a ciência, depois de constituída, que detém o monopólio das perguntas legítimas.
Além disso, o próprio princípio nega a atitude científica, aproximando-se ironicamente do mesmo gênero de obscurantismo de que foram vítimas cientistas como Galileu. A atitude científica é seguir a nossa curiosidade até onde nos levar e tentar saber, e voltar a tentar, e voltar a tentar. A esta atitude opõe-se o caricatural mestre-escola, que só permite que os seus alunos façam perguntas a que ele sabe previamente responder, sabendo ele responder apenas às perguntas cuja resposta esteja no manual escolar que ele seria incapaz de escrever. Esta atitude é um formidável obstáculo à descoberta precisamente porque parece defender a atitude científica, quando na realidade é incompatível com ela.
Outra maneira de neutralizar as perguntas filosóficas é apoucar a importância das respostas e cantar cantos líricos às maravilhas da interrogação interminável e da pergunta permanente. A sugestão é que as respostas não têm qualquer interesse: o que verdadeiramente conta é a pergunta.
Esta não é uma posição particularmente lúcida. Apesar de podermos estar moderadamente convictos de que não seremos bem-sucedidos ao tentar algo, temos de ter pelo menos alguma esperança, por fraca que seja, de que seremos bem-sucedidos — caso contrário, seria uma tolice não desistir. Assim, quem tiver a convicção céptica de que as respostas filosóficas são inalcançáveis, tem de aceitar também a possibilidade, ainda que remota, de que não são inalcançáveis, para que a sua procura faça sentido. Ninguém no seu perfeito juízo desata a saltar para tentar chegar à Lua se não tiver a mais leve esperança de que é possível chegar à Lua aos saltos, só porque saltar para chegar à Lua, parecendo que não, tem a sua graça.
Além disso, que é possível dar resposta às perguntas filosóficas é algo que está provado historicamente, pois abundam as respostas dadas por filósofos, ao longo da história da humanidade. E se cremos que nenhuma dessas respostas tem valor, ou que são meramente subjetivas, só porque não sabemos quais delas são verdadeiras, se é que algumas o são, teremos de mostrar tal coisa, ao invés de nos limitarmos a pressupô-lo. E a ironia é que ao tentar mostrá-lo já estaremos a filosofar.
O gênio maligno
Muito bem; aceitemos então que não é insensata a pergunta filosófica muito geral “Será que sabemos realmente o que cremos saber?”. Mas o que está em causa?
Quatro anos apenas depois da publicação do Discurso, Descartes publicou — em latim, desta vez — uma obra filosófica mais pormenorizada, cujo título completo é Meditações sobre a Filosofia Primeira, nas quais são Demonstradas a Existência de Deus e a Distinção entre a Alma e o Corpo. Foi nesta obra que Descartes inventou o famoso gênio maligno, ajudando a compreender melhor o que está em causa:
“Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo gênio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse todo o seu engenho em me enganar. Vou acreditar que o céu, o ar, a Terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores não são mais do que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade”. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 113-114)
O gênio maligno é um ser poderoso, mas tão perverso, que nos engana continuamente: sempre que cremos ver algo, estamos a ser vítimas de uma ilusão, de maneira que esse algo não existe ou é totalmente diferente do que nos parece.
Sem dúvida que a hipótese do gênio maligno é esquisita. Não é o gênero de hipótese que consideramos todos os dias. Imagine-se o leitor a justificar a sua falta ao emprego no dia anterior com as seguintes palavras: “Como sabe que realmente eu não estive cá? Talvez um gênio maligno o tenha enganado e, por causa disso, não me viu!” Não seria de espantar que o seu empregador recusasse pagar-lhe, no fim do mês, com o argumento de que no mês passado lhe pagou o dobro, mas o leitor não o viu devido a uma ilusão provocada pelo gênio maligno. E assim por diante.
De modo que a hipótese do gênio maligno pode parecer ociosa. Não é, certamente, o gênero de hipótese que levemos a sério quotidianamente. Contudo, nenhumas interrogações são levadas a sério em quotidianos estéreis, se não forem imediatistas: imagine o que seria o leitor justificar a sua falta ao emprego dizendo que ficou em casa preocupado com a questão histórica lancinante de saber se Nefertari foi realmente a esposa preferida de Ramsés II.
Sem dúvida que a preocupação filosófica com a hipótese do gênio maligno é de maior generalidade. Mas a sua estranheza não resulta tanto da sua generalidade quanto da sua atipicidade, quando comparada com as preocupações dos quotidianos estéreis, pondo-a a par de qualquer preocupação que não seja imediatista. Quem manifestar impaciência com a hipótese do gênio maligno mas não com problemas da história ou da química é por considerar que só vale a pena fazer perguntas a que já sabemos responder. Mas esta atitude, como vimos, não é particularmente recomendável.
A hipótese do gênio maligno torna mais nítido um problema central de uma área da filosofia a que se chama “teoria do conhecimento” ou “epistemologia” (que deriva do termo grego episteme, que significa “conhecimento”). Entre outras coisas, nesta disciplina trata-se de investigar qual é a justificação última das nossas crenças. Mas o que é isso de “justificação última”? E, já agora, o que é uma crença?
Crença e justificação última
Uma crença não é o mesmo que uma crença religiosa. Todas as crenças religiosas são obviamente crenças, mas muitas crenças não são religiosas: são crenças matemáticas, científicas, históricas ou de senso comum. O leitor tem a crença de que está lendo este livro e de que Espanha é maior do que Portugal. Uma crença é apenas uma representação, verdadeira ou falsa, que alguém faz de algo.
Por sua vez, a justificação última é aquele tipo de justificação que não depende de qualquer outra. A maneira mais simples de o leitor entender esta ideia é dar-se conta de que a crença que tem de que está lendo este livro depende da sua crença de que as percepções visuais e tácteis, em circunstâncias perceptivas normais que ainda falta especificar, são fidedignas. Mas então a sua crença de que está lendo este livro depende de duas crenças: primeiro, do princípio geral de que em circunstâncias perceptivas normais as percepções são fidedignas; segundo, da crença de que a circunstância em que está lendo este livro é uma dessas circunstâncias perceptivas normais — o leitor não está, por exemplo, sonhando.
Como vê, a justificação da sua simples crença de que está lendo este livro depende da justificação de outras duas crenças — ambas algo exóticas. Por outras palavras, dizer apenas “sei que estou lendo um livro porque é isso que vejo e sinto” não é uma justificação última. É uma justificação, e não é de modo algum uma má justificação, mas não é uma justificação última — porque depende de outras crenças que, por sua vez, precisam também de ser justificadas.
Se lhe ocorre agora que ao raciocinar dessa maneira nunca conseguiremos parar porque nunca descobriremos justificações últimas, já está pensando filosoficamente. Só que ainda não considerou cuidadosamente se realmente não descobriríamos tais justificações. O melhor a fazer é então responder a esse desafio e tentar descobri-las. Foi o que fez Descartes.
O cogito
Descartes estava convencido de ter descoberto pelo menos uma crença cuja justificação não depende de quaisquer outras crenças: a crença de que ele mesmo existe. Na gíria acadêmica chama-se “cogito cartesiano” a esta crença, devido à expressão latina cogito, ergo sum (“penso, logo existo”), e ao nome latino de Descartes: “Renatus Cartesius”.
O raciocínio de Descartes é que mesmo sob a extravagante suposição de que um gênio maligno me engana sistematicamente, ele não pode enganar-me se eu não existir:
“Mas há um [gênio] enganador, não sei qual, sumamente poderoso, sumamente astuto, que me engana sempre com o seu engenho. No entanto, não há dúvida de que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, nunca conseguirá que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pesado e repesado muito bem tudo isto, se deve por último concluir que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é necessariamente verdadeira”. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 119)
Sempre que creio ver árvores, talvez não existam árvores na realidade; talvez sempre que me lembro de algo se trate de uma falsa memória; talvez quando sinto e vejo ter um corpo com certas características esteja iludido — quem sabe se, de facto, me pareço com lagartixas ou besouros, e não com um símio sem pelos?
Talvez tudo isso ocorra, pensa Descartes, se a hipótese do gênio maligno for verdadeira. Mas para que todas essas ilusões possam existir, para que o gênio maligno me possa enganar, é preciso que eu exista.
A crença de que existo não pode ser falsa em qualquer das circunstâncias em que pondero se existo ou não — ou em que pondero seja o que for. Claro que há muitas circunstâncias possíveis, mas não realizadas, em que não existo — circunstâncias em que os meus pais nunca se conheceram, por exemplo. Mas em nenhuma dessas circunstâncias me posso perguntar se existo ou não. Insistir que talvez eu não exista na circunstância em que pondero se existo seria uma contradição pragmática: como alguém que grita “Não estou a gritar!”
Conclusão
É isto que significa o famoso “penso, logo existo” — que na versão das Meditações perdeu a aparência inferencial e passou a ser apenas “eu sou, eu existo”. A ideia é que a crença de que existo como ser pensante é, por um lado, insusceptível de refutação e, por outro, constitui — por isso mesmo — a justificação última de todas as nossas crenças. Vejamos brevemente este segundo aspecto.
Tome-se uma crença perceptiva, como a de que o leitor está com este livro na mão. Trata-se de uma crença muito diferente das crenças matemáticas. Estas últimas não se justificam recorrendo à experiência, mas antes ao cálculo matemático: ao pensamento puro.
Já no que respeita às crenças perceptivas, faz sentido justificá-las recorrendo à experiência perceptiva: o leitor sabe que está com este livro na mão porque é isso que sente e vê. Mas Descartes considera que esta justificação, apesar de perfeitamente adequada, não é última — pois se formos vítimas do gênio maligno, o facto de parecer que o leitor vê e sente o livro é compatível com a inexistência do livro. O que justifica a confiança nos sentidos terá de ser outro conjunto de considerações que Descartes procura retirar do próprio cogito. Daí que Descartes pense que a justificação última das nossas crenças, incluindo as perceptivas, não repousa nos sentidos.
Deste modo se vê que uma posição filosófica aparentemente absurda — como poderá alguém crer que o conhecimento do que vemos não se baseia inteiramente nos sentidos? — não é, afinal, tão absurda assim. Poderá ser falsa, mas é avisado começar por compreendê-la bem para tentar então defender que o é.
Estamos em 399 a.C. Vive-se na Grécia um período de inovação científica e cultural. Heródoto (c. 484420 a.C.) introduzira na Europa, havia menos de um século, a história científica — isto é, o relato e explicação de acontecimentos do passado recorrendo a documentos e fontes fidedignas, procurando separar o mito do facto. O teatro, a escultura e a arquitetura atingem grande sofisticação e originalidade.
Um século mais tarde, ocorrerá um dos maiores feitos intelectuais dos muitos que marcaram a Grécia Antiga: a sistematização científica da geometria levada a cabo por Euclides, por volta de 300 a.C. Claro que alguns conhecimentos práticos de geometria eram desde há muito usados pelos egípcios — de quem os gregos receberam a disciplina, segundo Heródoto — mas esta não fora objeto de uma sistematização com o grau de generalidade e precisão presentes no trabalho de Euclides. Poucas décadas depois, com base na geometria e muito engenho, Erastóstenes (c. 276-194) calculou a dimensão da Terra, com surpreendente precisão.
Infelizmente, nem tudo é um mar de rosas. A mentalidade grega é imperialista e guerreira, o que dá origem a guerras constantes com os seus vizinhos — os bárbaros, cujo termo grego original significa literalmente “que balbucia”, ou seja, que não fala grego. Como os norte-americanos, muitos séculos depois, a arrogância grega conduzirá a aventuras militares desastrosas. Mesmo depois de se tornarem uma mera província do império romano, persistia a arrogância grega, a que os romanos achavam graça, como talvez os chineses um dia acharão graça à arrogância norte-americana.
Além disso, a vida dos intelectuais não é isenta de perigos. Sócrates é acusado de impiedade e de corromper os jovens, sendo condenado à morte em 399 a.C., com setenta anos, por uma maioria não muito significativa dos 501 concidadãos que o julgaram. Este gênero de perseguição não é a primeira, nem será a última: há uma predisposição popular para crer que os filósofos são ateus. Na comédia As Nuvens (423 a.C.), publicada vinte e quatro anos antes da condenação de Sócrates, Aristófanes retrata-o como um ateu que ofende os deuses perscrutando os segredos dos corpos celestes. Cerca de cinquenta anos antes da condenação de Sócrates, Anaxágoras (c. 500-428 a.C.) fora acusado de ateísmo, sendo obrigado a fugir de Atenas, em grande parte por ter ousado declarar que o Sol — o deus Hélio, na religião grega — era uma massa de metal incandescente um tudo-nada maior do que a região do Peloponeso.
Sócrates
Quando uma sacerdotisa do templo de Delfos declara que nenhum ateniense é mais sábio do que Sócrates, este fica perplexo, pois não defende teoria alguma, pelo menos explicitamente, ao contrário de muitos outros filósofos. Não tem uma teoria sobre a natureza última da realidade, como Heráclito (c. 500 a.C.), Parmênides (c. 515-445 a.C.) ou os atomistas Leucipo (c. 450-420 a.C.) e Demócrito (c. 460-371 a.C.). Não desenvolveu a geometria nem a matemática, que no seu tempo não se distinguia da filosofia.
De modo que Sócrates parte em busca de outros homens (não lhe ocorreu procurar mulheres!) que sejam mais sábios do que ele, para poder apresentá-los à sacerdotisa como refutação da sua estranha afirmação. Mas não encontra senão homens que se julgam sábios quando, afinal, não o são. Sócrates faz, então, a seguinte reflexão, depois de conversar com um deles:
“Sou, sem dúvida, mais sábio que este homem. É muito possível que qualquer um de nós nada saiba de belo nem de bom; mas ele julga que sabe alguma coisa, embora não saiba, ao passo que eu nem sei nem julgo saber. Parece-me, pois, que sou algo mais sábio do que ele, na precisa medida em que não julgo saber aquilo que ignoro”. (Apologia, 21 d)
É desta passagem da Apologia que nos chegou a famosa expressão “só sei que nada sei”. No entanto, Sócrates não diz exatamente o que lendariamente lhe é atribuído. Ainda que possa tê-lo dito, não temos disso qualquer prova documental; o que mais se aproxima da lenda são estas palavras da Apologia. Acresce que esta obra é da autoria de Platão (427-347 a.C.), que tinha vinte e oito anos quando Sócrates morreu, e não sabemos até que ponto reproduz aproximadamente o discurso de defesa de Sócrates, aquando da condenação à morte por envenenamento.
Platão escreveu inúmeras obras filosóficas, sob a forma de diálogo, nas quais Sócrates surge como personagem e muitas vezes protagonista. Dessas obras, e de outros relatos, incluindo os de Xenofonte (c. 430354 a.C.) e de Aristóteles (384-322 a.C.), que nasceu quinze anos depois da morte de Sócrates, é possível ter uma ideia, ainda que não muito precisa, do gênero de conversas que Sócrates mantinha com os seus concidadãos e também de algumas das suas ideias.
Tanto quanto sabemos, Sócrates abordava na rua as pessoas que professavam saber algo e, fazendo perguntas e levantando dificuldades, fazia-as darem-se conta de que afinal não sabiam o que julgavam saber. Como se vê, ao colocar as nossas crenças em causa com a ajuda do seu gênio maligno, mais de dois mil anos depois, Descartes não fará algo incomum em filosofia. Colocar as nossas crenças em causa é recorrente, em filosofia, precisamente porque queremos descobrir a sua justificação última — ou descobrir que não há tal coisa.
Cepticismo
Quem defende que as nossas crenças — em qualquer área ou apenas em algumas — não têm justificação adequada, tem a designação de “céptico”. Este termo é infelizmente ambíguo, hoje em dia.
Originalmente, o termo grego que é a sua raiz significava apenas “investigador”, o que está em harmonia com as ideias defendidas por Pirro (c. 360-272 a.C.), natural da cidade de Élis, o fundador da tradição céptica grega. Não temos qualquer obra de Pirro; conhecemos as suas supostas ideias pela obra de Sexto Empírico (c. 150-225), que escreveu quase quatrocentos anos depois dele. Ora, nos textos de Sexto, surge muitas vezes a ideia de que os cépticos, ao contrário dos filósofos que julgam ter já encontrado a verdade, estão ainda procurando, investigando. Daí o significado do termo grego original.
Contudo, o termo “cepticismo” passou depois a ser usado não no sentido de alguém que investiga, mas antes de alguém que paralisa a investigação precisamente na medida em que põe tudo em causa — quer numa dada área apenas, quer em todas. O termo “cepticismo” passou assim, em filosofia, a significar a paralisia da investigação, e não a atitude de investigar.
Não sabemos bem até que ponto Sócrates era um céptico. Platão não parece tê-lo sido, e Aristóteles certamente não o era. Mas a escola de filosofia fundada por Platão, conhecida como “Academia” — daí o termo ainda hoje usado para falar de universidades — acabou por adoptar o cepticismo, para melhor refletir a suposta atitude original de Sócrates. De modo que “acadêmico” foi, durante muito tempo, sinónimo de “céptico” — significado que voltou a perder mais tarde. O livro Contra os Acadêmicos, do filósofo e teólogo númida Agostinho de Hipona (354-430), é precisamente uma discussão do cepticismo; e o filósofo e historiador escocês David Hume (1711-1776) deu à Secção XII do seu livro Investigação sobre o Entendimento Humano o título “Da Filosofia Académica ou Céptica”, indicando a palavra “ou” duas designações alternativas da mesma coisa.
O termo “céptico” é hoje usado em alguns contextos no sentido grego original de alguém que está investigando, procurando provas e rejeitando ideias inadequadamente justificadas ou sem justificação. Isto provoca alguma confusão porque, em filosofia, desde há séculos que se usa o termo no sentido de alguém que paralisa a investigação e rejeita o empreendimento humano da teorização cuidadosa e sistemática.
Crença verdadeira justificada
Há pelo menos duas perguntas cruciais a fazer perante alguém que afirme só saber que nada sabe. A primeira diz respeito à sua coerência. Não será incoerente afirmar que sabe que nada sabe? Afinal, sabe algo ou não?
A segunda diz respeito não à sua coerência mas à sua possibilidade. Será possível alguém saber apenas que nada sabe? Claro que se for incoerente saber que nada se sabe, será também impossível saber apenas que nada se sabe. Mas mesmo que seja coerente afirmar tal coisa, poderá ser impossível saber apenas que nada sabemos.
É uma boa ideia começar por clarificar o conceito de conhecimento, ou saber. Quem o fez pela primeira vez foi, precisamente, Platão, na obra Teeteto.
É razoável defender que há três condições necessárias para que algo seja conhecimento. Contudo, no diálogo Teeteto, Platão rejeita que estas sejam também condições suficientes, defendendo que há casos em que as três condições se verificam mas não há conhecimento.
De qualquer modo, mesmo que as três condições seguintes não sejam suficientes para que haja conhecimento, é razoável pensar que são necessárias. Essas condições são as seguintes: se algo for conhecimento, então 1) é uma crença (ou seja, uma representação verdadeira ou falsa que alguém tem de algo), 2) essa crença é verdadeira, e 3) essa crença verdadeira está justificada. Mas o que quer isto dizer?
Considere o leitor a sua crença de que Sócrates era ateniense. Esta crença pode ser verdadeira ou falsa. Imaginemos que é falsa. Nesse caso, Sócrates não era ateniense e, por isso mesmo, o leitor não pode saber que ele era ateniense — pode é crer erradamente que o sabe.
Imaginemos agora que a crença é verdadeira. Nesse caso, Sócrates era realmente ateniense. Mas isso não basta para que o leitor o saiba; pois se a sua crença for verdadeira por mero acaso, como quem acerta no totoloto, não é razoável dizer que o leitor sabia genuinamente que Sócrates era ateniense: apenas tinha essa convicção, algo à toa, e por sorte acertou na verdade.
Assim, para que a sua crença de que Sócrates era ateniense constitua conhecimento é preciso que, além de ser verdadeira, esteja justificada. Neste caso, a justificação é que o leu nos livros, por exemplo. Certamente que esta justificação não é última — depende de outras justificações — mas é razoável.
A possibilidade do cepticismo
Afirmar que só sei que nada sei seria obviamente incoerente se a ideia fosse, literalmente, que nada sei — afirmando de seguida que o sei. Isso seria como afirmar que toda a gente é loura, mas eu não: se toda a gente, literalmente, é loura, eu também o sou. Mas esta não é uma boa interpretação da afirmação. Ao invés, a ideia é que há uma e uma só coisa que sei: que nada sei, exceto isto mesmo.
Interpretada assim, esta afirmação parece captar o que o céptico pensa. Ele põe em causa as nossas teorizações acerca da natureza da realidade; põe em causa as nossas convicções morais e as nossas memórias. E ao fazê-lo não é incoerente, porque não afirma nada saber, mas antes que sabe uma e uma só coisa: que não sabemos tudo o resto que julgamos saber.
A primeira dificuldade desta posição é um mero pormenor — mas na teorização os pormenores são muito importantes, podendo fazer a diferença entre uma boa e uma má teoria. A dificuldade é esta: como se conta conhecimentos?
Esta pergunta é estranha, mas considere o leitor o seguinte: há coisas que podemos contar, e há coisas que não podemos contar. Tecnicamente, diz-se que as primeiras são discretas ou contáveis e as segundas contínuas ou não-contáveis.
Por exemplo, as maçãs são contáveis, porque cada maçã é uma unidade. Uma dada quantidade de maçãs é composta por várias unidades, que podem ser contadas.
Já a manteiga não é contável, porque não é composta por unidades. O que podemos contar são porções de manteiga, o que contrasta com as maçãs, que podem ser contadas diretamente, sem formar primeiro porções de maçãs.
Este pormenor é importante porque o céptico afirma que só sabe uma coisa, o que pressupõe que os conhecimentos podem ser contados, como as maçãs. Mas se os conhecimentos podem ser contados, então o céptico não sabe só uma coisa, ao contrário do que afirma. Afinal, para cada crença nossa, o céptico assevera saber que não há justificação adequada para ela. Portanto, em rigor, o céptico sabe pelo menos tantas coisas quantas as que cremos saber: sempre que alguém afirma saber algo, o céptico afirma que não há justificação adequada para essa crença.
Esta dificuldade não é muito significativa, mas sugere outra que o é — constituindo, aliás, uma ilusão cognitiva recorrente. Se o céptico não souber que é preciso haver justificação adequada para que haja conhecimento, nenhum dos seus raciocínios tem qualquer relevância. Os raciocínios cépticos põem em causa as justificações que invocamos a favor das nossas crenças. Mas isto só é relevante se aceitarmos que sem justificação adequada não há conhecimento. Portanto, o céptico tem de aceitar esta tese filosófica quanto à relação entre a justificação e o conhecimento — não pode saber apenas que nada sabe. Para saber que nada sabe tem de saber, além disso, que sem justificações adequadas nada se sabe.
Mas mesmo isto não basta. Se o céptico soubesse apenas que nada sabe e que sem justificação adequada nada se sabe, não saberia que os seus raciocínios estão corretos. Ora, se o céptico não souber que os seus raciocínios estão corretos, não saberá também que os outros não sabem o que julgam saber — pois isso é o que ele conclui com os seus raciocínios.
Conclusão
O céptico professa saber apenas que nada sabe, mas isso é logicamente impossível. Isto porque ou o céptico sabe que sem justificação adequada não há conhecimento e que os seus raciocínios são corretos, ou não o sabe. Se sabe qualquer destas coisas, então não sabe apenas que nada sabe. E se não sabe qualquer destas coisas, não sabe que nada sabe. Ora, se não sabe que nada sabe, também não sabe apenas que nada sabe. Logo, em qualquer caso, o céptico não sabe apenas que nada sabe.
Do mesmo modo que não podemos escrever uma gramática da língua portuguesa sem usar uma qualquer língua — portuguesa ou outra qualquer — também não podemos suspender de uma vez só todas as nossas crenças para pô-las em causa, sem professar quaisquer crenças. A ilusão de que o podemos fazer resulta de estarmos habituados a, ao pôr outras crenças em causa, aceitar inúmeras crenças, sem reparar nelas. Por isso, não reparamos que o céptico faz precisamente o mesmo: aceita inúmeras crenças ao pôr outras em causa. Foi isso que viu Bertrand Russell (1872-1970):
“É claro que é possível que todas ou qualquer uma das nossas crenças possa estar errada, e consequentemente todas devem ser adoptadas com pelo menos um ligeiro elemento de dúvida. Mas não podemos ter razão para rejeitar uma crença exceto com base noutra crença qualquer”. (Os Problemas da Filosofia, p. 87)
Assim, apesar de a lenda atribuir a Sócrates uma afirmação memorável, há fortes razões para pensar que nem ele nem ninguém pode saber apenas que nada sabe.
Talvez devido a críticas deste gênero, o referido Sexto Empírico insiste em distinguir o cepticismo acadêmico do seu próprio cepticismo, chamado pirrônico. Segundo Sexto, são os primeiros que caem na armadilha de afirmar algo — nomeadamente, que nada sabem. E são por isso vulneráveis a algo como a argumentação aqui apresentada contra eles.
Sexto esforça-se então por explicar que não sabe que nada sabe; apenas lhe parece, perante cada afirmação de hipotético saber, que não é saber. Deste modo, Sexto não afirma nada saber, mas apenas que lhe parece nada saber.
Poderá esta diferença bloquear realmente o gênero de argumentação aqui apresentada contra o céptico? Esta é uma pergunta a que o leitor pode tentar responder por si.
Cerca de seis séculos depois da condenação de Sócrates, o cristão Clemente de Alexandria (c. 150-219), padre da igreja, faria uma analogia entre a sua morte e a de Jesus, no debate que grassava na altura sobre se a filosofia e cultura gregas deveriam ser rejeitadas em bloco ou parcialmente absorvidas pelos cristãos. Clemente defendia que a palavra divina só se revelara plenamente com a encarnação de Jesus, mas que o logos grego (termo que quer dizer, entre outras coisas, palavra, mas também razão e argumento) fora uma antecipação do verbo divino. Sócrates, como Jesus, procurara trazer o logos, ou verbo, aos seres humanos.
Contudo, apesar da posição de Clemente, o imperador romano cristão Justiniano acabou por ordenar, em 529, o encerramento das escolas de filosofia gregas. Pôs assim fim a uma tradição intelectual única na humanidade, que começara novecentos e catorze anos antes, com a fundação da Academia de Platão em 385 a.C.
Escolas de filosofia na Antiguidade
Um viajante que se aproximasse de Atenas em 300 a.C., vindo do noroeste, para entrar na cidade pela porta dupla, ou Dipilon, passaria em primeiro lugar pela Academia de Platão, a mais antiga escola de filosofia da Grécia. O nome resultou de esse local ter sido consagrado ao herói ático Academo.
Seguindo em direção à cidade, encontraria logo à sua esquerda O Jardim, escola de filosofia fundada setenta e nove anos depois da Academia, em 306 a.C., por Epicuro (341-270 a.C.), que passou os primeiros trinta e cinco anos da sua vida na Ásia. Nesta escola de filosofia, ao contrário do que acontecia nas outras, as mulheres eram admitidas por regra e não por exceção. Hedonista, Epicuro considerava que só o prazer era um bem em si. Não recomendava, contudo, uma vida de entrega aos prazeres mais frívolos, mas antes uma vida moderada, de contenção e recolhimento, precisamente para ser mais aprazível. Privilegiava a amizade e os prazeres simples, considerando que o principal obstáculo à felicidade humana era o medo infundado, incluindo o medo da morte: na justamente famosa Carta a Meneceu, argumenta que nada há a recear da morte porque, enquanto estamos vivos, a morte não está obviamente presente; e quando a morte estiver presente, não o estaremos nós.
Depois de uma caminhada de cerca de um quilômetro, o viajante chegaria à porta dupla da cidade. Cerca de quinhentos metros depois, junto à praça central de Atenas, a ágora, encontraria a escola de filosofia dos estoicos — cujo nome resulta de se terem estabelecido junto do Stoa Poikile (Pórtico Pintado, em grego). Fundada dois anos antes do Jardim por Zenão de Cítio, em 308 a.C., teve uma influência gigantesca no mundo antigo — no império romano era praticamente a filosofia oficial, tendo mesmo o imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.) sido um dos seus seguidores. Materialistas e partidários da apatheia, impassibilidade perante a adversidade, desenvolveram aspectos cruciais da lógica proposicional — constituindo, até ao séc. XIX, uma das mais importantes contribuições para o desenvolvimento da lógica depois de Aristóteles.
Deixando o Pórtico dos estoicos à esquerda e a ágora à direita, o viajante que quisesse visitar o Liceu, a escola de filosofia fundada em 335 a.C. por Aristóteles (384-322 a.C.), teria de caminhar ainda cerca de um quilômetro para leste. Com quarenta e nove anos, Aristóteles reunira à sua volta um grupo de estudiosos que partilhavam consigo o amor pela descoberta de todas as coisas. Ao contrário da Academia de Platão, não era uma espécie de clube privado: o Liceu estava aberto à participação de qualquer pessoa, e muitas das suas lições eram gratuitas.
Aristóteles
Autor de uma obra prodigiosa que abrange praticamente todos os domínios disciplinares — a própria ideia de domínios disciplinares foi em parte introduzida por ele mesmo — Aristóteles exerceu forte influência nas universidades medievais, até ao advento da ciência moderna. A partir dessa altura, contudo, o seu nome ficou associado a uma certa concepção livresca e não experimentalista nem matemática da ciência. Com a rejeição dessa concepção, os modernos deitaram fora muitos bebês com a água do banho — Aristóteles foi um deles.
Infelizmente, à exceção de alguns fragmentos, não nos chegaram quaisquer obras de Aristóteles a que na altura se chamava exotéricas: obras para o exterior, isto é, para serem lidas por qualquer pessoa, algumas das quais foram escritas na forma então popular do diálogo. O que nos chegou de Aristóteles constitui o que se chamava obras acroamáticas: textos usados por Aristóteles para leccionar oralmente na sua escola. Isto significa que não são textos elegantes, têm muitas repetições e, em certas passagens, parecem ou são mesmo incongruentes.
Uma das áreas onde mais temos a aprender hoje com Aristóteles é a ética. Mas a sua abordagem é tão diferente das abordagens posteriores que não é fácil compreender as suas ideias, nem difícil distorcê-las. Quando pensamos hoje em ética é habitual ter em mente um conjunto de proibições e regras desagradáveis. E a ideia é que se pudéssemos viver sem elas, a vida seria melhor: o que é bom, diz o povo, ou faz mal ou é pecado. Do ponto de vista de Aristóteles, todavia, a ética não é um sistema de proibições e regras que nos dificultam a vida; pelo contrário, é o que nos permite ter uma vida boa.
Temos três textos de Aristóteles sobre ética, e os dois últimos sobrepõem-se parcialmente: Magna Moralia, Ética Nicomaqueia e Ética Eudemiana. Cada uma destas obras, como muitas outras de Aristóteles, está dividida em partes a que se chama livros. Os livros V, VI e VII da Ética Nicomaqueia são iguais aos livros IV, V e VI da Ética Eudemiana.
A razão de ser do título destas duas obras não é inteiramente conhecida, mas não resulta de serem obras dedicadas ao filho de Aristóteles, Nicômaco, e ao seu aluno, Eudemo de Rodes, como enganosamente sugerem os títulos alternativos portugueses (“Ética a Nicômaco” e “Ética a Eudemo”). O mais provável é que o nome resulte de terem sido eles os compiladores originais dos volumes.
Bem, excelência e virtude
A ética, ou filosofia moral, ocupa-se de dois problemas centrais interligados: qual é o bem último e como devemos agir. A resposta a estes dois problemas deverá dizer-nos como será uma vida boa — que é muito diferente da boa vida. A chamada “boa vida” é uma vida dedicada a prazeres frívolos, incapaz de dar lugar a uma vida humana genuinamente feliz, compensadora e realizada.
Mas como poderemos descobrir o que é o bem último? Na abordagem adoptada por Aristóteles, o ponto de partida é muitíssimo modesto: para procurar o bem último começamos por refletir cuidadosamente sobre a natureza dos bens corriqueiros. O que faz uma flauta ser boa, por exemplo, ou um cavalo?
Uma boa flauta é a que cumpre o melhor possível a sua função: produzir sons de flauta. Um bom cavalo é o que tem mais desenvolvidas as características de um equídeo. Estes exemplos são meramente indicativos — não são generalizáveis cegamente. Por exemplo, se usarmos uma moeda para desaparafusar, valorizaremos não as características que fazem dela uma boa moeda, mas antes as que permitem usá-la como uma chave de fendas.
O que realmente conta é a ideia de excelência da função. Não precisamos de admitir que todas as coisas têm uma função natural, mas precisamos de admitir que valorizamos as coisas em termos da função que queremos que desempenhem. Quando queremos que o vinho seja refrescante, no Verão, podemos valorizar aspectos diferentes de quando queremos que seja aconchegante, no Inverno. Mas a valorização das coisas parece conceptualmente ligada à excelência do desempenho da sua função, ou da função que queremos que desempenhe.
Bem, função e excelência são, pois, conceitos profundamente ligados entre si. Acontece que o termo grego para excelência é aretē, que significa também “virtude”. Assim, a virtude de algo é a sua excelência, e algo é tanto mais excelente quanto melhor desempenhar a sua função, ou a função que lhe atribuirmos.
Bem último
A análise preliminar do bem mostra que valorizamos várias coisas, e que, para as valorizamos refletidamente, é crucial considerar a função e a excelência. Mas é óbvio que valorizamos algumas coisas porque são meramente instrumentais, ao passo que outras valorizamos por si mesmas. É natural pensar que pelo menos uma coisa, ou várias, será valorizada por si mesma. Se isso existir, será o bem último, o bem em função do qual os outros existem:
“Assim, se o que fazemos tem algum fim que queremos por si e se tudo o mais que queremos é devido a esse fim; e se não escolhemos tudo devido a outra coisa (porque isto levaria a uma sequência infinita, tornando os nossos desejos infrutíferos e vãos), então é claro que isto será o bem, na verdade, o bem principal”. (Ética Nicomaqueia, 1094a)
Procurar o bem último é fazer dois gêneros de coisas. Primeiro, partimos do que, ponderadamente, valorizamos; depois, refletimos cuidadosamente para saber, em cada caso, se o valorizamos por si ou devido a outra coisa. O dinheiro, por exemplo, só irrefletidamente poderá ser valorizado por si; uma pessoa refletida valorizará o dinheiro apenas instrumentalmente, porque permite obter outras coisas que valorizamos.
Um bem é meramente instrumental quando é valorizado exclusivamente por ser um meio para outra coisa que valorizamos. Mas um bem pode ser instrumental sem ser meramente instrumental, como é o caso da saúde: uma pessoa refletida valoriza-a por ser importante para uma vida feliz, mas também a valoriza por si.
Se houver um bem que nunca seja sequer instrumental, será o mais importante bem — o alvo de todas as nossas valorizações. E ainda sem saber o que é tal bem, ou sequer se existe, podemos ver que, a existir, será completo, no sentido de nada nos faltar se o tivermos. Ora, a felicidade é algo que não valorizamos instrumentalmente e que, se a tivermos, nada nos falta; Aristóteles conclui que a felicidade é o bem último que procurávamos:
“A felicidade, em particular, é considerada completa sem restrições, pois escolhemo-la sempre por si e nunca devido a outra coisa”. (Ética Nicomaqueia, 1097a- b)
Felicidade e truísmo
Aristóteles reconhece que a conclusão de que o bem último é a felicidade — ideia em que John Stuart Mill (1806-1873) irá insistir mais de dois mil anos depois — parece um truísmo. Todavia, é algo que só pode ser alcançado depois de uma análise cuidadosa dos conceitos de bem último e instrumental.
Além disso, aceitar que o bem último é a felicidade implica rejeitar duas ideias: que sem Deus tudo é permitido, e que, se Deus não existir, nenhum valor objetivo existirá.
Para começar pela segunda ideia, se o raciocínio de Aristóteles estiver correto, exista ou não qualquer divindade, o valor existirá objetivamente — incluindo não apenas o valor instrumental, mas mesmo o valor último. Pois o valor último é apenas o que nós valorizamos em si e não apenas instrumentalmente, depois de uma reflexão cuidadosa. E, se não nos enganarmos a raciocinar, esse valor será objetivo no sentido em que é realmente último e não uma ilusão da nossa parte.
Quanto à primeira ideia, se Aristóteles tiver razão, exista ou não qualquer divindade, nem tudo é permitido, no sentido em que nem tudo contribui instrumentalmente para o bem último. Claro que se não houver uma divindade castigadora, não seremos castigados se promovermos o mal e não o bem; todavia, promover o mal e não o bem é, em si, mau. Claro que podemos pensar promover o bem para nós à custa de provocar mal aos outros — mas isto é admitir que não estamos, de facto, a promover o bem, irrestritamente, mas apenas o bem pessoal.
Além disso, Aristóteles não concebe a felicidade como um estado interior e subjetivo, mas antes como uma atividade de acordo com a nossa natureza. Ora, a nossa natureza é tal que precisamos não apenas de satisfazer as nossas necessidades mais elementares, como a alimentação, a diversão e o conforto, mas também as nossas necessidades intelectuais e emocionais. Esta concepção é perfeitamente compatível com a plasticidade dos seres humanos, que tanto podem ser pianistas ou futebolistas, filósofos ou padeiros, professores ou políticos. Mas é incompatível com uma vida dedicada a satisfazer apenas as nossas necessidades físicas, por exemplo — não por um qualquer moralismo provinciano da parte de Aristóteles, mas apenas porque um ser humano não pode sentir-se plenamente realizado se não realizar o seu potencial enquanto ser humano.
Teorização ética
Aristóteles tinha plena consciência do que era desenvolver teorias com elevado grau de precisão. Ele mesmo desenvolveu, com extrema precisão, um tipo de lógica formal a que hoje chamamos “silogística” — da palavra grega usada por Aristóteles e que significa aproximadamente “dedução”. Um par de décadas depois da sua morte, Euclides desenvolveu um exemplo tocante de precisão teórica, baseando-se em parte em trabalhos anteriores — incluindo trabalhos estudados e publicados na Academia de Platão e que Aristóteles conhecia.
Neste gênero de teorização partimos de alguns princípios e construímos uma teoria que nos dá respostas para todos os problemas da área. No caso da geometria, por exemplo, podemos demonstrar qualquer resultado partindo apenas dos dez princípios originalmente usados por Euclides. A física é, hoje, uma teoria deste gênero: partindo de um conjunto limitado de princípios gerais, podemos prever qualquer ocorrência física, com elevado grau de precisão.
Se for possível fazer o mesmo em ética, teremos uma teoria que nos diz, em cada situação da vida, o que é correto fazer. Tem sido assim que se tem entendido a teorização em ética, desde o séc. XVIII. As duas teorias éticas mais debatidas e desenvolvidas entre os filósofos contemporâneos são o utilitarismo, que tem em Mill um dos seus primeiros proponentes, e a ética deontológica (termo derivado do grego deon, que significa “dever” ou “obrigação”), cuja versão mais famosa devemos ao filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Nas suas versões mais habituais, trata-se de teorias que visam estabelecer uma maneira de decidir o que é correto fazer em cada caso.
Muito simplificadamente, o utilitarismo determina que temos sempre o dever de fazer o que tiver mais probabilidades de promover a felicidade do maior número de pessoas afetadas pelas nossas ações. E o deontologismo determina que temos sempre o dever de agir de tal modo que pudéssemos querer que a máxima que orienta a nossa ação fosse uma lei universal.
Aristóteles, contudo, vê a teorização em ética de modo diferente. Logo no início da Ética Nicomaqueia (Livro I, Cap. 3), adverte que não devemos exigir mais precisão, numa dada área, do que o objeto de estudo permite:
“É uma marca da pessoa instruída procurar em cada área apenas aquele grau de precisão que a natureza do tema permite. Aceitar de um matemático afirmações que sejam meras probabilidades é como exigir demonstrações de um retórico”. (Ética Nicomaqueia, 1094b)
Ora, Aristóteles considera que em ética não é possível o grau de precisão que há noutras áreas, porque a realidade relevante é demasiado diversificada: uma dada ação pode ser correta numa dada circunstância, mas não noutra; um princípio moral poderá promover a vida boa em certos casos, mas não noutros. Assim, temos de adoptar uma postura a que hoje chamamos particularismo, que exige que deliberemos em cada caso sem pretender aplicar princípios gerais:
“As esferas de ações e do que é bom para nós, como acontece na saúde, estão longe de ser fixas. Dado que a explicação geral não tem precisão, a explicação ao nível dos aspectos particulares é ainda menos precisa. Pois não constituem uma qualquer habilidade ou conjunto de regras: os agentes precisam sempre de ver o que é apropriado em cada caso, à medida que acontece, como fazem os médicos e navegadores”. (Ética Nicomaqueia, 1104a)
Assim, teorizar em ética é esclarecer o que é uma pessoa virtuosa; será então ela a decidir, em cada caso, o que é correto fazer. Mas a teoria em si não pode dizê-lo diretamente porque a realidade é demasiado diversificada. A virtude está, assim, no centro da teoria de Aristóteles, mas não como um princípio que possa dizer-nos, por si, o que é correto fazer em cada caso.
Educação moral
Aristóteles propõe um guia educativo para a formação de um ser humano virtuoso que, depois de formado, decidirá o que é correto fazer em cada caso. A educação moral consiste em parte em discutir vários casos paradigmáticos de excessos e defeitos: um excesso de coragem é um vício, mas a falta de coragem também o é, por exemplo. Daí que se atribua a Aristóteles, algo irresponsavelmente, a ideia de que no meio é que está a virtude. Mas isto é uma simplificação grosseira, pois Aristóteles não pensa nem que em todos os casos há um meio, nem que a sua teoria tenha por missão estabelecer esse meio.
Aristóteles mostra que em muitos casos podemos errar por excesso ou por defeito, e por isso devemos ter em consideração este aspecto. Mas qualquer simplificação grosseira desta ideia terá resultados inaceitáveis em muitas circunstâncias: matar apenas duas pessoas inocentes para lhes roubar o dinheiro, em vez de quatro ou nenhuma, não é uma ação virtuosa.
Eis o que defende Aristóteles:
“A virtude é um estado que envolve escolha racional, consistindo num meio-termo relativo a nós e determinado pela razão […]” (Ética Nicomaqueia, 1106b-1107a)
A virtude envolve escolha racional: trata-se de escolher ponderadamente, invocando razões. E consiste num meio-termo relativo a nós: ou seja, consiste em evitar o que, relativamente a nós, ao que somos, peca por excesso ou por defeito. Do mesmo modo que a mesma quantidade de alimento pode ser um excesso para uma pessoa e insuficiente para outra, sendo o meio-termo relativo a cada pessoa, também a virtude é relativa a cada pessoa. Por exemplo, para uma pessoa pobre, é virtuoso dar cinco euros para ajudar outra pessoa em dificuldades; mas para uma pessoa muito rica esse não é o meio-termo virtuoso da ajuda, dado dispor de bastante mais riqueza.
Aristóteles defende, pois, que a virtude consiste num meio-termo relativo a nós. Mas como se determina, em cada caso, o que é o meio-termo relativo a nós? Aristóteles defende que esse meio-termo é determinado pela razão — “a razão” acrescenta Aristóteles, “por referência à qual a pessoa de sabedoria prática o determinaria” (idem).
O que isto significa é que a razão que determina o meio-termo não emana da teoria de Aristóteles, mas antes, em cada caso, da pessoa de sabedoria prática. É ela, e não a teoria de Aristóteles, que determina qual é o meio-termo, invocando uma razão ou justificação. E é isso que conta. O contraste com as teorias éticas posteriores, como o utilitarismo ou o deontologismo, não podia ser maior. Estas teorias visam precisamente estabelecer a razão última que fundamenta a correção de uma dada ação. Aristóteles pensa que quem estabelece tal razão é a própria pessoa que age, avaliando cuidadosamente a circunstância em que se encontra.
Numa leitura superficial, a ética de Aristóteles poderia parecer pura arbitrariedade pessoal: cada qual invocaria as suas razões, segundo os seus interesses. Mas isso seria não compreender o que é uma razão. Quando alguém tem uma razão para considerar que cinco mais sete é doze, esta razão é por definição universal e é acessível a todos os que quiserem considerar o cálculo em causa. E cinco mais sete é sempre doze, não variando consoante sou eu que tenho de pagar doze mil euros, ou é outra pessoa que tem de mos pagar a mim. O mesmo ocorre na fundamentação da ação moral: se tenho uma razão para agir de um modo em vez de outro porque cheguei a essa conclusão raciocinando cuidadosamente e não me enganei, essa razão não é uma mera arbitrariedade pessoal.
Assim, o melhor que temos a fazer para sermos virtuosos é desenvolver a excelência das nossas capacidades humanas para o raciocínio prático, responsável por determinar como agir. Num certo sentido, é virtuoso quem se esforça genuinamente por ser virtuoso, desenvolvendo as suas capacidades para o raciocínio prático ponderado, e procurando assim atingir a excelência. Treinamo-nos a nós mesmos para sermos virtuosos moralmente, tal como nos treinamos para ser músicos virtuosos.
Conclusão
Talvez seja possível fazer em ética teorias que determinem satisfatoriamente, em cada caso, o que é correto fazer. Até hoje, parece que não se conseguiu tal coisa — mas talvez surja entretanto uma teoria que consiga fazê-lo. Enquanto esperamos, é avisado levar a sério a hipótese de Aristóteles de que a realidade é demasiado complexa para que isso seja possível. E nada se perde em apostar na educação moral.
A educação moral genuína, contudo, não é o que os políticos têm em mente quando pensam em transmitir, por exemplo, “valores ecológicos” às crianças, ou quando pensam na “educação para a cidadania”. Este gênero de educação é doutrinação, e não educação moral. A genuína educação moral é ensinar a raciocinar em termos de fins e meios, a ponderar razões e a justificar corretamente o que valorizamos — em suma, ensinar a pensar eticamente, e não ensinar a repetir slogans ecológicos, igualitários, nacionalistas, multiculturalistas ou outros.
Estamos em 1971. A guerra fria entre os EUA e o bloco soviético conduzira, dois anos antes, em 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin à Lua — e seis anos antes, em 1965, ao envolvimento ativo dos EUA na guerra do Vietnam, que começara em 1955. Foi também em 1969 que Sir Isaiah Berlin (1909-1997) publicou Quatro Ensaios sobre a Liberdade, introduzindo a importante distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa, e argumentando que é em nome do primeiro tipo de liberdade, ainda que distorcida, que os regimes opressores pretendem justificar os seus ultrajes.
Há apenas um ano, em 1970, Bertrand Russell, filósofo, matemático, prêmio Nobel da Literatura em 1950 e ativista, morrera com a provecta idade de noventa e oito anos — depois de ter ajudado a mudar drasticamente a filosofia do séc. XX, juntamente com G. E. Moore (1873-1958), Gottlob Frege (1848-1925) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Foi nesse mesmo ano que Saul Kripke, com apenas trinta anos, proferiu as famosas palestras de Princeton, “Nomear e Necessidade”, formulando fortíssimas objecções a algumas ideias de Russell e Frege — e introduzindo uma revolução filosófica que só mais tarde começará a tornar-se evidente. Porque Kripke não escreveu as palestras, limitando-se a falar com comovente precisão, foi necessário transcrevê-las a partir da sua gravação. Uma das pessoas que fez esse trabalho foi o filósofo Thomas Nagel (n. 1937). Dois anos depois, em 1972, Nagel publicou o artigo “Guerra e Massacre”, que começa com a seguinte frase:
“Da reação apática às atrocidades cometidas no Vietnam pelos Estados Unidos e seus aliados, podemos concluir que as restrições morais à conduta na guerra inspiram quase tão pouca simpatia entre o grande público quanto a de que gozam entre quem tem a responsabilidade de dar forma à política militar norte-americana”.
Este artigo foi publicado na revista acadêmica Philosophy & Public Affairs, fundada em 1971 especificamente para que matérias de interesse público sejam investigadas e discutidas pelos filósofos. E é nesse mesmo ano que John Rawls (1921-2002), orientador de doutoramento de Nagel, publicou o livro que mais contribuiu para revitalizar a filosofia política: Uma Teoria da Justiça.
Contratualismo
Rawls não aceita o pensamento utilitarista — não confundir com utilitário — que é comum não apenas entre filósofos, mas também na justificação de decisões políticas. O seu argumento principal é que o pensamento utilitarista, ao defender que a ação correta é a que tiver as melhores consequências para o maior número de pessoas, é compatível com a mais completa iniquidade. É compatível, por exemplo, com uma situação na qual, para dar a maior felicidade possível a mil pessoas, se explora dez pessoas.
Rawls reativa então a teoria contratualista. Originalmente formulada pelos filósofos ingleses seiscentistas Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1636-1704), esta teoria foi adoptada pelo filósofo genebrino setecentista Jean-Jacques Rousseau (17121778), e também por Kant.
A teoria contratualista pode ajudar a responder a três problemas de filosofia política: a justificação da autoridade do estado, o problema das mãos sujas e a distribuição justa da riqueza. Rawls está principalmente preocupado com o último, mas nós começaremos pelo primeiro.
Genealogia da moral
Em crianças, não temos plena liberdade para fazer o que nos dá na telha: os nossos pais ou educadores têm autoridade sobre nós. Mas também não a temos depois de adultos: outros adultos, em nome de instituições como a polícia, os tribunais e o parlamento, têm imenso poder sobre nós. Essas instituições fazem parte do estado. O que poderá justificar que o estado tenha tal poder sobre adultos autónomos? Terá a autoridade do estado uma boa justificação?
Thomas Hobbes imaginou o que seria viver sem estado e considerou que uma circunstância dessas seria a guerra de todos contra todos:
“Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”. (Leviatã, Cap. XIII, p. 111)
John Locke era menos pessimista: considerava que sem estado não seria exatamente a guerra de todos contra todos, mas não seria mesmo assim possível desenvolver todas as coisas que tornam a vida humana melhor, como a medicina ou as artes, porque bastariam algumas pessoas mal-intencionadas para se estragar a écloga.
Tanto Locke como Hobbes eram cristãos. Mas o segundo está mais interessado em pensar no que ocorre quando consideramos os seres humanos independentemente de qualquer sentido moral natural que possam eventualmente ter, ao passo que Locke raciocina pressupondo que as pessoas têm, na sua maior parte, um sentido moral natural, a que chama lei da natureza.
As duas abordagens são esclarecedoras: a de Locke mostra que basta que uma pequena minoria de pessoas tenha comportamentos injustos para precisarmos da proteção do estado; a de Hobbes mostra como as próprias ideias de moralidade poderão surgir de uma mentalidade amoral.
Uma explicação hobbesiana da origem da moralidade consiste em começar por considerar um conjunto de pessoas sem qualquer sentido moral. Isto significa que nada impede que uma delas mate, roube ou explore qualquer outra, desde que disponha da força suficiente. Só que qualquer uma das outras pode fazer o mesmo. E, por isso, o resultado é ficarem todas pior.
Assim, é melhor instituir contratos, fazer alianças, criar regras e leis — em resumo, o estado. A moralidade e o estado resultam ambos de simples racionalidade: todos vivemos melhor com regras morais e estados do que sem eles. A experiência mental conhecida como dilema do prisioneiro ajuda a clarificar o que está em causa.
O dilema do prisioneiro
Imaginemos dois prisioneiros amorais — isto é, pessoas que não regem os seus comportamentos por quaisquer considerações morais, mas apenas pelas suas vantagens e desvantagens pessoais. Foram ambos presos em celas separadas, acusados de conspiração contra o governo. Imaginemos que realmente conspiraram, mas que os acusadores não têm como prová-lo sem que o confessem, pelo que propõem o seguinte a cada um dos prisioneiros:
Se você denunciar o outro prisioneiro, fica livre — e ele apanha dez anos de cadeia. A menos que o outro também o denuncie a si, caso em que ambos cumprirão penas de cinco anos. Se nenhum denunciar o outro, só podemos mantê-los presos por seis meses.
Estando o leitor nesta situação desagradável, e relembrando que deve pensar amoralmente, tendo em conta apenas o seu interesse próprio, como raciocinaria? Dado saber que esta proposta foi feita ao outro prisioneiro, e continuando a pressupor que ele também pensa amoralmente, tem de ter isso em conta.
Se o leitor não o denunciar mas ele o denunciar a si, ele fica livre e o leitor terá de ficar dez anos na cadeia. Terrível. É preciso evitar tal coisa; o melhor, pois, é denunciá-lo. Neste caso, tudo vai depender de ele também o denunciar ou não: se não o fizer, é uma maravilha porque o leitor fica livre — e ele cumprirá dez anos na prisão. Mas… é óbvio que ele fez exactamente o mesmo raciocínio, pelo que vai denunciá-lo também. Que chatice! Isto significa que apanham ambos cinco anos de cadeia.
Se o leitor pudesse coordenar a sua decisão com a do outro prisioneiro, o melhor para ambos seria ficarem calados — seis meses de prisão para cada um, em vez de cinco anos. Mas, sem garantias de que o outro irá cooperar, ficar calado é para si muito arriscado — pois se o fizer e ele o denunciar, ele ficará livre e o leitor ficará dez anos na cadeia. E, claro, uma vez mais, o outro prisioneiro está a fazer precisamente o mesmo raciocínio — e também ele não tem maneira de garantir que o leitor irá cooperar. O resultado é que a menos que o leitor e o seu companheiro pensem moralmente, nomeadamente, cooperando, ficarão pior.
A genealogia da moral é agora óbvia, e é isto que Hobbes parece ter em mente. Em certas circunstâncias, pensar e agir moralmente produz melhores resultados do que pensar e agir amoralmente. Não está em questão saber se terá sido essa a genealogia histórica do pensamento moral e do estado, mas antes mostrar a sua genealogia racional.
Imagine-se agora que o leitor e o seu companheiro pensam moralmente. Ambos serão solidários e nenhum confessa. Mas surge um perigo: explorar a boa vontade do outro. Se o leitor for um pulha e puder safar-se sem ser apanhado, será tentado a confessar — pois assim ficará livre, em vez de ficar seis meses na cadeia — precisamente porque sabe que o seu companheiro, por solidariedade, não irá confessar.
Isto significa que sem sistemas de proteção da ação moral — sem a vigilância e o castigo dos prevaricadores — a ação moral é uma estupidez, porque quem age moralmente será sistematicamente explorado por quem não o faz.
A arte de bem governar consiste em fazer leis e fundar instituições públicas que promovam o comportamento moral e castiguem o imoral. Para isso, contudo, é crucial que quem faz essas leis e funda essas instituições esteja genuinamente bem-intencionado. Caso contrário, teremos estados falhados enquanto instituições morais, que acabam por promover a imoralidade e a exploração de quem age moralmente.
O problema das mãos sujas
O filósofo norte-americano Michael Walzer (n. 1935) publicou, em 1973, na referida Philosophy & Public Affairs, o artigo “Ação Política: O Problema das Mãos Sujas”, que deu os contornos e até o nome à discussão contemporânea do que poderíamos designar por “maquiavelismo”.
Nicolau Maquiavel (1469-1527) ficou famoso por ter retratado em O Príncipe (1532) o pensamento amoral dos dirigentes políticos. Mas a convicção de que estes são fundamentalmente amorais, agindo apenas em termos estratégicos, e excluindo quaisquer considerações morais, é recorrente na história da humanidade. É assim que muitas pessoas veem hoje os políticos, com ou sem razão, e era esta a mentalidade existente na Grécia da Antiguidade, a que Platão dá voz e que procura refutar no livro I de A República. Maquiavel, todavia, expôs de modo sistemático essa maneira amoral de pensar — a que hoje se chama por vezes Realpolitik.
Walzer usou a peça de teatro As Mãos Sujas (1948), do dramaturgo e filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), que versa precisamente sobre a possibilidade de governar obedecendo a restrições morais. A ideia subjacente de que não é possível fazê-lo dá origem à expressão o problema das mãos sujas.
O dilema do prisioneiro ajuda uma vez mais a esclarecer o que está em causa. Numa das suas versões mais simples, o dilema constitui um bom modelo não apenas das relações entre pessoas, mas também entre estados.
Nessa versão, o dilema ocorre reiteradamente. Imagine-se que o leitor tem vários hectares de terra e vive da agricultura. Sempre que é tempo de recolher os frutos do seu trabalho, teria muito a ganhar em poder contar com a ajuda do seu vizinho — que, quando chega a altura de fazer as colheitas, precisa também da sua ajuda. Quando o seu vizinho lhe vem pedir ajuda, o leitor poderá ajudar ou não. Se ajudar, está a perder o seu tempo — mas seria ótimo se, na altura própria, ele o ajudasse também. Contudo, será terrível se, chegada a altura, ele não o ajudar. O que fazer? Cooperar ou não?
Este problema do dilema reiterado do prisioneiro foi estudado pelo norte-americano Robert Axelrod (n. 1943), especialista em ciência política. A questão que se colocou foi a de saber que estratégia seria mais vantajosa. Sempre pressupondo que estamos a decidir sem ter em conta considerações morais, qual é a melhor maneira de agir? Evidentemente, cooperar é o melhor — mas como evitar que o leitor seja explorado pelo seu vizinho? O problema é saber como castigar a falta de cooperação e recompensar a cooperação de modo a impedir dois extremos: que a pessoa seja explorada ou que se dê origem a um ciclo de não-cooperação, em que todos ficam pior.
Várias estratégias complicadas foram propostas. A que se mostrou mais vantajosa em muitíssimas situações é tão simples — e intuitiva — que surpreendeu muita gente. Consiste em começar por cooperar, e castigar cada não-cooperação da outra pessoa com igual não-cooperação — mas voltar a cooperar na circunstância seguinte. Portanto, quando o seu vizinho lhe pede ajuda, o leitor ajuda. Se quando chegar a altura de o ajudar a si ele se recusar, você faz o mesmo na próxima vez que ele pedir ajuda. Mas se ele voltar a cooperar, você volta a cooperar também. A estratégia é só isto.
Por que razão funciona tão bem? Três são as razões principais. Primeiro, não permite que o leitor seja explorado pelo seu vizinho. Segundo, não dá origem a ciclos de não-cooperação — em que você acaba em guerra com o seu vizinho, ficando ambos pior. Mas o mais importante é a terceira razão: é uma estratégia transparente, pelo que o seu vizinho vê claramente o que se passa e, portanto, sabe que ficará melhor se cooperar e em maus lençóis no caso contrário.
A descoberta de que esta estratégia, a que se chama “pagar na mesma moeda”, funciona tão bem em algumas circunstâncias é muitíssimo importante. Em primeiro lugar, é uma refutação do princípio cristão de dar sempre a outra face: se cooperarmos sempre, seremos explorados pelos pulhas, e isso dá origem a uma sociedade iníqua. Em segundo lugar, é também a refutação do maquiavelismo: se não formos transparentemente cooperativos, ficaremos todos pior. Aristóteles parece ressurgir aqui: nem Jesus nem Maquiavel, mas antes um meio-termo entre ambos.
Assim, pode ser um erro crer, como Maquiavel, que é vantajoso agir amoralmente quando não há instituições superiores que nos possam castigar, como ocorre nas relações entre os estados. O dilema do prisioneiro mostra que, em muitas circunstâncias, a guerra de todos contra todos entre estados pode ser evitada, com vantagens comuns, e ainda que não existam instituições superiores aos estados: isso consegue-se encetando uma estratégia transparente de pagar na mesma moeda, o que é incompatível com mentiras, jogos de bastidores, desinformação, espionagem e todos os restantes truques de caserna rotineiramente usados por estadistas antigos e contemporâneos.
Justiça distributiva
O Carlos e o seu irmão, Juvenal, gostam ambos de literatura. Estudam dedicadamente, e cedo começam a publicar os seus trabalhos — pequenos contos, primeiro, e depois romances de maior fôlego.
Contudo, o Carlos conquista cada vez mais leitores, o que não acontece com o seu irmão. Com o passar dos anos, o Carlos pode dedicar-se apenas à escrita. Ganha prêmios, incluindo o Nobel. Os seus romances são traduzidos em várias línguas importantes e acabam por ser adaptados ao cinema. O seu abastado nível de vida permite-lhe viajar, passar férias nos melhores hotéis e ter uma casa de sonho, ao passo que o seu irmão se limita a ter uma vida modesta, que não lhe permite sequer passar férias no estrangeiro nem ter mais do que um pequeno apartamento, arrendado, nos subúrbios.
Entretanto, ambos casaram e tiveram filhos. O Carlos tem a possibilidade de pagar as melhores escolas para os seus filhos, em qualquer parte do mundo. O Juvenal só poderá educar modestamente os seus, enviando-os para más escolas públicas da zona onde mora. Assim, mesmo que os filhos do Carlos sejam menos talentosos e honestos, os filhos do Juvenal não têm hipótese de ultrapassar o abismo de oportunidades que os separam. Mas certamente ninguém agiu injustamente: o Carlos seria até um mau pai se não desse a melhor educação possível aos seus filhos; o Juvenal não pode fazê-lo; e as pessoas que preferem os livros de um aos do outro não agem injustamente.
Este é um dos aspectos da injustiça econômica: apesar de ninguém agir injustamente, partimos de uma situação de igualdade e chegamos a uma situação de desigualdade econômica que parece ofender o nosso sentido de justiça. Será injusta uma sociedade que permita que isto ocorra?
Note-se que não se trata de considerar que a riqueza de um é conseguida à custa da exploração do outro. Isso certamente não ocorre no nosso exemplo. A riqueza de um é apenas o resultado de ele fazer algo que muitos milhares de pessoas apreciam, ao passo que o outro faz algo que só poucas pessoas apreciam.
O debate sobre se uma situação deste gênero é ou não injusta ganha clareza com uma experiência mental proposta por John Rawls. Imaginemos que vamos decidir, entre todos, como organizaremos as nossas instituições sociais — vamos instituir um contrato social. Sabemos que na nossa sociedade teremos médicos e futebolistas, estrelas de cinema e historiadores, taxistas e políticos. O que não sabemos é que papel iremos nós mesmos desempenhar nessa sociedade: estamos sob um “véu de ignorância”. Assim, o leitor não sabe se será um modesto taxista ou um famoso futebolista. Nesta circunstância, o leitor decide instituir uma sociedade igualitária, ou não?
Por “sociedade igualitária” entende-se uma sociedade que usa mecanismos para redistribuir a riqueza: os impostos, por exemplo, não serão usados exclusivamente para manter o funcionamento do estado, polícias e exército, mas também para ajudar os mais pobres. Desse modo, os mais ricos, quer queiram quer não, financiam os mais pobres por meio dos impostos.
Rawls considera que na experiência mental descrita, porque estamos sob um véu de ignorância, só é racional escolher uma sociedade que obedeça ao seguinte princípio: só serão aceitáveis as desigualdades em que as pessoas em piores circunstâncias estão melhor do que estariam se houvesse menos desigualdades. Por outras palavras: a sociedade terá de eliminar tanto quanto possível as desigualdades, até ao ponto em que continuar a eliminá-las faria as pessoas mais pobres ficar mais pobres ainda.
Imagine-se duas sociedades: uma com menos e outra com mais desigualdades. As pessoas que vivem pior na que tem menos desigualdades são mais pobres do que as que vivem pior na outra. Como é evidente, a sociedade com mais desigualdades é preferível, mesmo para quem está pior. Mas todas as desigualdades que pudermos eliminar sem provocar esse efeito indesejável de tornar mais pobres ainda os que já são pobres, devem ser eliminadas.
Para eliminar as desigualdades, recorremos aos impostos: o dinheiro dos mais ricos financia assim os mais pobres. Deste modo, os filhos do Juvenal poderão frequentar uma escola melhor do que este poderia pagar, por exemplo, porque essa escola é financiada com o dinheiro dos impostos pagos pelo Carlos.
Rawls considera que, sob o véu da ignorância, seria irracional da minha parte rejeitar que a riqueza dos mais ricos beneficie os mais pobres porque não sei se serei, por exemplo, um famoso romancista ou um romancista pobre. Claro que se eu soubesse que seria um romancista rico, raciocinando em termos puramente amorais, não teria qualquer razão para dar parte da minha riqueza aos romancistas pobres. Só que não sei se serei um ou outro.
Rawls terá razão? Seria certamente irracional, ao instituir um contrato social sob o véu da ignorância, votar a favor de uma sociedade na qual as pessoas com uma dada cor da pele serão discriminadas, não sabendo eu que cor da pele terei. Mas, em contraste com este caso, não parece irracional votar a favor de uma sociedade em que a riqueza produzida por cada um pertence tão-somente a cada um — sendo sobreerogatório (ou seja, indo além do obrigatório) que os mais ricos ajudem os mais pobres. Não parece irracional concordar que é louvável ajudar os mais pobres, ao mesmo tempo que se rejeita que tal ajuda seja obrigatória — mesmo que eu não saiba se serei uma das pessoas a precisar dessa ajuda.
Este aspecto torna-se mais claro se nos pusermos no lugar de Juvenal, o romancista pobre: nesse caso, certamente não consideramos que quem é mais rico tem o dever de nos dar parte da sua riqueza. Pois se o considerássemos, seria difícil explicar a gratidão que sentiríamos quando uma pessoa mais rica nos desse parte da sua riqueza. E se acaso recebêssemos essa riqueza como se de um direito se tratasse, sem mostrar qualquer gratidão, seríamos apropriadamente vistos como ingratos. E não é talvez uma boa ideia fundar uma sociedade na ingratidão.
Compare-se com outro caso: uma pessoa monta um supermercado na sua cidade, e cedo conhece o sucesso. Em cinco anos fica milionária — mas os seus trabalhadores mal conseguem pagar a renda da casa, porque ganham o ordenado mínimo. É óbvio que, sob o véu da ignorância, qualquer pessoa racional quererá legislar de modo a que isto não seja possível — porque essa pessoa não sabe se será o dono do supermercado ou o trabalhador explorado. Mas nos casos em que a maior riqueza não se deve a qualquer injustiça, não é igualmente óbvio que, sob o véu da ignorância, a decisão racional seja tirar-lhe parte dessa riqueza, por meio de impostos, para financiar os mais pobres. Contudo, talvez outras razões a favor da obrigatoriedade de os mais ricos ajudarem os mais pobres sejam mais sólidas.
Conclusão
Um utilitarista não terá dificuldade em argumentar que a justificação contratualista do estado está longe de ser última, ainda que seja adequada. Não é última porque depende inteiramente das consequências: é porque viveríamos supostamente pior sem estado que se justifica a sua existência. Apesar disso, podemos concordar que a abordagem contratualista explica a racionalidade do pensamento moral e permite compreender a justificação do estado.
No caso do problema das mãos sujas, o pensamento contratualista parece militar fortemente a favor da estratégia transparente de pagar na mesma moeda, dando-nos razões poderosas para abandonar o maquiavelismo.
Contudo, no caso da distribuição da riqueza, o argumento contratualista a favor da sociedade igualitária não tem o mesmo grau de persuasão. Parece defensável que a riqueza de cada um a cada um pertence e que, apesar de ser louvável que os mais ricos ajudem os mais pobres, tal como é louvável que sejamos simpáticos com os nossos vizinhos, isso não é de modo algum obrigatório — pelo que é ilegítimo torná-lo obrigatório recorrendo aos impostos.
Estamos em 1783. Passaram apenas oitenta e três anos desde a fundação da Academia Prussiana das Ciências, cujo primeiro presidente foi Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Na Prússia, Frederico I (16571713) criara as condições para transformá-la numa das mais importantes potências económicas, militares e culturais europeias. A língua alemã, que no tempo de Leibniz ainda não era vista como uma língua da filosofia — razão pela qual este filósofo escrevia sobretudo em francês e latim — rapidamente se estabeleceu como uma das mais importantes da Europa: o filósofo, matemático e cientista Christian Wolff (1679-1754) foi um dos seus instigadores, escrevendo vários tratados em alemão, o que contribuiu para estabelecer a solidez filosófica da sua língua. [Agradeceu o leitor por correção de uma versão anterior]
Assim, quando, depois de vários anos de silêncio editorial, Kant escreveu em alemão a sua obra-prima, a Crítica da Razão Pura, esta língua era já vista como um veículo de cultura filosófica. A Crítica viria a ter uma influência tal que mesmo quem a não leu, ou leu sem entender, tende a admirá-la como um monumento do intelecto humano. A sua recepção, contudo, não foi particularmente calorosa, inicialmente, e o que estava em causa ficou por compreender. Kant decidiu então explicar-se melhor, numa linguagem mais simples e, sobretudo, num tratado de menor dimensão, hoje conhecido como Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura (1783), mas cujo título completo acrescenta Que Possa Apresentar-se Como Ciência.
A palavra “ciência” do título completo é para ser entendida literalmente, apesar de hoje poder parecer surpreendente a mistura com a metafísica. No tempo de Kant, contudo, a filosofia e a ciência não tinham conhecido o divórcio que viria a tornar-se a marca de grande parte da filosofia alemã e francesa dos sécs. XIX e XX. Como Wolff, Leibniz e Descartes, Kant tinha simultaneamente interesses filosóficos e científicos. Na verdade, a sua opção pela filosofia ficou a dever-se sobretudo à falta de laboratórios da universidade da sua cidade natal, Königsberg (que hoje se chama Kaliningrado e pertence à Rússia). Mesmo assim, em História Geral da Natureza e Teoria dos Céus (1755), Kant conjectura que o sistema solar se formou a partir de uma imensa nuvem de gás e poeiras — teoria que ainda hoje é considerada correta.
Metafísica
De todas as áreas da filosofia, a metafísica é talvez a mais incompreendida hoje em dia. Originalmente, o termo “metafísica” não era usado pelos mais importantes metafísicos da Antiguidade grega, como Parmênides, Heráclito, Platão ou Aristóteles. Estes limitavam-se a publicar tratados que exploravam temas metafísicos, sem dar a esse estudo qualquer designação especial; Aristóteles chama “filosofia primeira” ao que hoje vemos como uma mistura de temas fundacionais de metafísica, epistemologia e filosofia da lógica e da linguagem; e muitos dos filósofos pré-socráticos davam apenas o título “Sobre a Natureza” aos seus tratados.
Foram os responsáveis pela Biblioteca de Alexandria, e talvez também Andrônico de Rodes (c. 60 a.C.), que deram à obra de Aristóteles em catorze livros o título grego de “o que está depois da física” — expressão que, em grego, inclui as palavras meta physica. Este acaso histórico contribuiu para dar a ideia falsa de que a metafísica é o estudo esotérico de matérias espirituais para lá da física ou da materialidade, relacionadas com a condição humana. O desenvolvimento subsequente da física experimental deu origem a outra ideia falsa da metafísica: como esta procede principalmente por raciocínio intenso e não, como a física, por experimentação, ficou a ideia de que o metafísico é uma pessoa algo tola, que considera ilusoriamente poder fazer qualquer coisa parecida à física, mas sem se incomodar com a experimentação nem a quantificação.
A metafísica, contudo, não é nem um discurso espiritualista sobre a condição humana, ou sobre o reino do além, nem uma rejeição do experimentalismo científico. Em metafísica estuda-se problemas filosóficos sobre os aspectos mais gerais da realidade. Por se tratar de problemas filosóficos, não podem ser tratados experimentalmente, como se faz com os problemas científicos; por se tratar dos problemas mais gerais da realidade, a metafísica não tem grande coisa a dizer sobre a condição humana, pois os seres humanos estão longe de estar no centro da realidade; e dá bastante mais atenção à natureza da realidade física, do que a uma eventual realidade que esteja para lá da física, pela simples razão de que a realidade física já levanta suficientes perplexidades filosóficas.
A física e astrofísica atuais são herdeiras diretas da metafísica, tal como esta era feita pelos filósofos gregos da Antiguidade. Se estes se tivessem inibido de especular metafisicamente, esperando primeiro que a ciência experimental se desenvolvesse, esta nunca teria surgido: foi a curiosidade que levou os seres humanos a desenvolver a ciência experimental, não foi a ciência experimental que determinou em absoluto o rumo da curiosidade humana.
Contudo, com o avanço extraordinário da ciência experimental a partir dos sécs. XVII e XVIII, a tentação de abandonar a metafísica como se de uma infantilidade se tratasse não se fez esperar. Esta atitude não é particularmente sábia, pois muitos problemas fundacionais sobre a realidade — e sobre a própria ciência experimental — são insusceptíveis de estudo científico, se com isso queremos dizer experimental ou matemático. Esses problemas são metafísicos, e só a teorização e argumentação cuidadosa e sistemática poderá ajudar-nos.
Empirismo e racionalismo
Foi nos Prolegômenos que, exagerando talvez um pouco, Kant declarou:
“Desde os ensaios de Locke e de Leibniz, ou antes, desde a origem da metafísica, tanto quanto alcança a sua história, nenhuma ocorrência teve lugar que pudesse ser mais decisiva, a respeito do destino desta ciência, do que o ataque que David Hume lhe montou”. (p. 4:257)
Kant refere-se ao Ensaio sobre o Entendimento Humano, de Locke, publicado em 1690, e aos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, de Leibniz, originalmente redigido em francês, e que data de 1704, apesar de só alguns anos depois ter sido publicado. A segunda obra, escrita sob a forma de diálogo, visa refutar a primeira, livro a livro e capítulo a capítulo. O que está em causa é o famoso conflito, tantas vezes mal compreendido e caricaturado, entre o empirismo de Locke e Hume e o racionalismo de Leibniz.
Segundo a caricatura comum, os filósofos empiristas defendem que todo o conhecimento é a posteriori, ou seja, resulta da experiência, ao passo que os racionalistas defendem que todo o conhecimento é a priori, ou seja, é independente da experiência. Que isto é uma caricatura torna-se evidente quando se considera que um racionalista teria de explicar como sabemos, pelo raciocínio apenas, que está a chover, por exemplo, tendo um empirista de explicar como sabemos, pela experiência apenas, que o número cinco é ímpar. Nenhuma das alternativas é particularmente promissora. Além disso, esta caracterização sugere que a oposição é uma questão de saber qual é a origem do conhecimento; mas o que está realmente em causa é o processo de justificação envolvido.
Na verdade, como vimos no caso de Descartes (Cap. 1), os racionalistas não defendem que podemos saber, pelo raciocínio apenas, que está a chover, por exemplo, o que não seria particularmente judicioso. O que defendem é que só o raciocínio puro constitui a justificação última de todo o conhecimento, empírico ou não. Assim, os racionalistas não negam que só por meio dos sentidos podemos saber que está a chover; mas negam que possamos saber tal coisa pelos sentidos apenas, sem uma justificação independente da experiência.
Por outro lado, os empiristas não têm de negar que a justificação envolvida no conhecimento matemático envolva exclusivamente o raciocínio; mas negam que tal constitua um conhecimento substancial da realidade física. E defendem que sempre que temos conhecimento substancial da realidade física, a justificação envolvida depende inevitavelmente da experiência.
Kant ficou bastante mais impressionado com a defesa do empirismo levada a cabo por Hume do que com a de Locke. Daí que acabe por admitir famosamente que foi o primeiro quem o despertou do sono dogmático:
“Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa”. (p. 4:260)
O sono dogmático
O sono dogmático de Kant é a tese racionalista de que podemos justificar pelo pensamento apenas o nosso conhecimento de aspectos substanciais da realidade física. É contra esta ideia que Hume argumenta, insistindo que um dos conceitos fundamentais para compreender a realidade — e para fazer física — é inteiramente empírico: o conceito de causalidade. Kant ficou impressionado com as ideias de Hume, e viu nelas duas consequências importantes.
Em primeiro lugar, se Hume tivesse razão, as ciências empíricas, precisamente por serem empíricas, nada de estritamente universal ou necessário poderiam dizer-nos sobre a realidade: teriam de ser meras descrições de regularidades contingentes, e não corpos de verdades necessárias e estritamente universais, como a geometria. Isto não parece particularmente promissor, dado que nos obriga a rever a convicção de que a ciência revela aspectos fundamentais da natureza, e não apenas meras contingências. A afirmação científica de que uma dada porção de água é H2O não parece estar ao mesmo nível da afirmação de que essa porção de água está em Lisboa. O mundo tem muitíssimos factos e a ciência não parece uma mera enumeração de quaisquer factos, mas antes uma seleção dos que são particularmente centrais e importantes, reveladores da natureza profunda das coisas.
Em segundo lugar, não seria possível a própria metafísica, tal como era tradicionalmente concebida, pois trata-se de estudar problemas filosóficos sobre a realidade, insusceptíveis de estudo empírico. Se Hume tiver razão, nenhum raciocínio puro permitirá descobrir quaisquer verdades fundamentais sobre a realidade. Na verdade, Hume encerra com as seguintes palavras a sua Investigação sobre o Entendimento Humano, obra publicada trinta e cinco anos antes dos Prolegômenos, em 1748:
“Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadidos destes princípios, que devastação devemos fazer? Se pegarmos num volume de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém ele algum raciocínio acerca da quantidade ou do número? Não. Contém ele algum raciocínio experimental relativo à questão de facto e à existência? Não. Lançai-o às chamas, porque só pode conter sofisma e ilusão”. (p. 165)
Do ponto de vista de David Hume, só há dois tipos de conhecimento: empírico, sobre questões de facto, onde encontramos ciências como a física; e a priori, sobre relações de ideias, onde encontramos a matemática. Nenhum cruzamento entre estes domínios é possível e consequentemente ou a metafísica nada nos diz sobre a estrutura fundamental da realidade — deixando por isso mesmo de ser propriamente metafísica — ou transforma-se em mera ciência empírica, deitando-se às chamas toda a tradição metafísica europeia. Que a própria obra de Hume seria quase certamente lançada às chamas, pelos seus critérios, parece evidente — pois não encontramos nela nem matemática nem física, mas antes especulação filosófica tradicional.
Despertar do sono dogmático é deixar de tomar como óbvio que podemos justificar pelo pensamento puro o nosso conhecimento de aspectos fundamentais da realidade física. Mas se nos limitarmos despertar do sono dogmático, caímos num pesadelo céptico, no qual nem a ciência nem a metafísica, tal como tradicionalmente concebidas, são possíveis. A engenhosa saída de Kant para esta dificuldade foi a responsável, em parte, pela sua fama como filósofo.
Sintético a priori
Hume não distingue, nos seus textos, entre três categorias filosóficas importantes: o necessário, o a priori e o analítico. A tudo isto chama Hume simplesmente “relações de ideias”, que contrastam com as questões de facto, onde também não distingue o contingente, o a posteriori e o sintético. É uma questão de facto que está agora a chover, por exemplo, mas basta relacionar ideias, pensa Hume, para saber que cinco é um número ímpar.
Kant introduziu uma distinção entre o a priori e o necessário, por um lado, e o analítico, por outro. Apesar de continuar a não distinguir com rigor o a priori do necessário, como fazemos hoje, distinguiu cuidadosamente o analítico deste par conceptual. Usando a concepção contemporânea de analítico, que é ligeiramente diferente da de Kant, uma afirmação é analítica quando podemos saber que é verdadeira, ou falsa, com base apenas no significado das palavras que nela ocorrem, e é sintética caso contrário. Assim, “Nenhum solteiro é casado” é uma afirmação analítica, mas “Nenhum solteiro é feliz” é sintética.
Contudo, Kant via a diferença entre o analítico e o sintético de modo algo diferente: considerava que numa afirmação analítica nada se acrescenta na segunda parte da afirmação que a primeira não contenha já, ao passo que é precisamente isso que faz uma afirmação sintética. Assim, dado o conhecimento que temos do que é ser solteiro, já sabemos que nenhum solteiro é casado; mas esse conhecimento não nos diz se os solteiros são felizes. Neste sentido, as afirmações analíticas não seriam informativas, ou ampliativas, ao passo que as sintéticas o seriam.
Quanto ao necessário e ao a priori, trata-se de conceitos que hoje distinguimos claramente, mas que Kant trata como se fossem irmãos gémeos. O a priori é um conceito que diz respeito ao modo como conhecemos: quando conhecemos algo recorrendo exclusivamente ao pensamento, como é o caso da matemática, trata-se de conhecimento a priori; quando conhecemos algo recorrendo pelo menos parcialmente à experiência, trata-se de conhecimento a posteriori.
A introdução deste par conceptual constituiu um desenvolvimento crucial na história da filosofia, e deve-se em parte a Kant. Filósofos como Locke e Descartes usavam ao invés os conceitos de conhecimento inato e adquirido. Ora, apesar de ser razoável defender que não nascemos a saber que cinco é um número ímpar, por exemplo, pelo que este não é um conhecimento inato, sabemo-lo sem recorrer à experiência, raciocinando apenas sobre os conceitos relevantes — ao passo que por mais que raciocinemos sobre os conceitos relevantes, nunca saberemos, raciocinando apenas, qual é a velocidade da luz. Deste modo, quem defender a tese de que há conhecimento a priori pode rejeitar a tese mais implausível de que há conhecimento inato.
Porque Hume não distinguia o par analítico/sintético do par a priori/a posteriori, estava condenado a considerar que tudo o que sabemos a priori é analítico. Mas se considerarmos que as verdades analíticas não são informativas ou ampliativas, torna-se óbvio que a matemática, dado ser muitíssimo informativa, não pode ser analítica nesse sentido, apesar de parecer a priori. Kant defendeu então que há verdades sintéticas que no entanto são conhecíveis a priori e considerou que a tarefa preliminar a toda a metafísica consistia em explicar como era isso possível: como podemos alargar o nosso conhecimento por meio do raciocínio puro?
Explicar como é possível o sintético a priori é também explicar como é possível a metafísica — pois esta é tradicionalmente concebida como uma disciplina a priori que, no entanto, alarga o nosso conhecimento; e é explicar também como podem as verdades científicas fundamentais, apesar de serem obviamente sintéticas, ser necessárias (considerando, como Kant, que o necessário e o a priori são irmãos gêmeos).
A revolução coperniciana
No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, publicada quatro anos depois dos Prolegômenos, em 1787, Kant propõe uma inversão de perspectiva para explicar o que de outro modo parece inexplicável:
“Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica admitindo que os objetos deveriam regular-se pelo nosso conhecimento […]. Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis. Ora, na metafísica, podemos tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição dos objetos”. (p. B XVI-XVII)
Considere-se o caso da geometria. Esta é muitíssimo informativa (ou seja, sintética, na terminologia de Kant) apesar de ser a priori. Mas se a geometria disser respeito à estrutura da realidade física, não parece possível que possamos fazer geometria sem recolher informação empírica sobre tal realidade. Contudo, é precisamente isso que fazemos, à primeira vista. Logo, a geometria não diz respeito à estrutura da realidade física: diz respeito, antes, às nossas estruturas cognitivas, que projetam sobre a realidade como que uma matriz espacial.
Sob esta hipótese, não é surpreendente que possamos fazer geometria a priori, pois estamos a explorar as nossas estruturas cognitivas, digamos. Mas, ao mesmo tempo, este conhecimento é ampliativo, porque não nos limitamos a explicitar conceitos espaciais.
Conhecimento condicional
O caso da geometria é o mais favorável à posição de Kant, mas mesmo aqui se levanta uma dúvida crucial: será mesmo verdadeiro que sabemos a priori qual é a estrutura geométrica da realidade? Claro que fazemos geometria a priori, mas há muitas geometrias; como sabemos qual delas descreve a geometria da realidade a não ser pela observação empírica?
No tempo de Kant só a geometria euclidiana era levada a sério, ainda que algumas alternativas fossem conhecidas; quem apresentou com rigor a geometria não-euclidiana foi o matemático russo Nikolai Lobachevsky (1792-1856), que nasceu quando Kant tinha sessenta e oito anos. Mas mesmo no tempo de Kant se poderia argumentar que tudo o que sabemos a priori raciocinando em termos de geometria é que se determinados postulados forem verdadeiros, então determinados resultados serão verdadeiros; mas não podemos saber a priori se a realidade obedece a esses ou outros postulados. O conhecimento que a geometria nos dá da realidade talvez seja inteiramente condicional.
[Anotação extraída do Google (minha): A principal diferença entre geometria euclidiana e não euclidiana reside no axioma das paralelas. A geometria euclidiana, baseada no trabalho de Euclides, assume que por um ponto fora de uma reta, passa apenas uma única reta paralela à reta dada. Já a geometria não euclidiana, que inclui as geometrias hiperbólica e elíptica, nega essa afirmação, permitindo que existam múltiplas ou nenhuma reta paralela, dependendo do tipo de geometria. A geometria euclidiana é o sistema geométrico que se aplica a superfícies planas e assume a unicidade da reta paralela. Já a geometria não euclidiana, que inclui a geometria hiperbólica e elíptica, se aplica a superfícies curvas e nega a unicidade da reta paralela, com consequências na soma dos ângulos dos triângulos e outras propriedades geométricas.]
Considere-se uma pessoa que não se lembra bem se hoje é quinta ou sexta-feira. Apesar de ela não saber em que dia está, tem o seguinte conhecimento condicional: se hoje for quinta-feira, então é véspera de sexta; e se, ao invés, for sexta-feira, então é véspera de sábado.
Algo análogo pode ocorrer no caso da geometria: sabemos a priori que, se determinados postulados forem verdadeiros, então certos resultados serão verdadeiros. Mas daqui não se infere validamente que sabemos que esses postulados são verdadeiros, pelo que não se infere validamente também que sabemos que tais resultados são verdadeiros.
Para sustentar a teoria de Kant não basta que tenhamos este gênero de conhecimento condicional da geometria; precisamos de saber a priori que os postulados da geometria euclidiana são realmente verdadeiros, isto é, que descrevem a estrutura do espaço. Mas a história da ciência parece contrariar a tese de Kant: aparentemente, só descobrimos a posteriori que os postulados de Euclides não se aplicam ao espaço porque este é curvo e não plano. Claro que sabíamos a priori que se o espaço fosse plano, então os postulados de Euclides seriam verdadeiros. Mas isto é diferente de saber a priori que os postulados de Euclides são verdadeiros.
Assim, a posição de Kant parece implicar que a geometria da realidade é conhecível a priori; mas há razões para pensar que isto não é verdadeiro; logo, há razões para pensar que a posição de Kant é falsa.
Uma dificuldade central
A teoria de Kant enfrenta uma dificuldade mais central, que é tanto mais difícil de nos darmos conta dela quanto mais a sua teoria se parece com algo que todos aceitamos. Todos aceitamos que vemos a realidade de várias perspectivas diferentes, e que essas perspectivas nos dão imagens diferentes da realidade: “o caminho a subir e a descer”, escreveu Heráclito, “é um e o mesmo”, dependendo de onde estamos nós. (A afirmação de Heráclito foi-nos transmitida por Hipólito, um teólogo romano do séc. III, e é hoje conhecida como fragmento DK 108.)
Assim, quando Kant faz a sua revolução coperniciana e afirma que visa explicar o nosso conhecimento fazendo os objetos da cognição depender das nossas estruturas cognitivas, ao invés do contrário, a ideia parece-nos plausível. Parece que tudo o que Kant está a dizer é que as nossas estruturas cognitivas influenciam o modo como vemos a realidade, o que parece bastante pacífico.
Só que Kant não está apenas a afirmar isso. Afirma também que o próprio tempo e espaço são estruturas por nós projetadas sobre a realidade. Isto significa que entre a nossa representação da realidade e a realidade nenhuma relação espácio-temporal pode existir.
Kant está por isso muitíssimo longe da nossa ideia banal de que vemos de maneiras diferentes a mesma coisa: é que esta ideia pressupõe a existência de uma relação causal entre a realidade e a nossa representação dela. A nossa ideia banal é que vemos o mesmo caminho ora a subir ora a descer porque a nossa localização espacial é diferente, relativamente ao mesmo caminho, num e noutro caso; a relação causal entre o caminho e a nossa percepção dele é por isso diferente, nos dois casos.
Segundo a teoria de Kant, contudo, nenhuma relação espácio-temporal poderá existir entre a nossa representação da realidade e a realidade, dado que é o próprio espaço e tempo que são projeções da nossa estrutura cognitiva. Kant fica assim com um dilema desagradável: ou elimina a realidade independente da nossa representação dela, o que ele de modo algum quer fazer, opondo-se veementemente a esta hipótese; ou admite que a sua teoria deixa por explicar o mais importante que teria de explicar: a relação existente entre a realidade e a nossa representação dela.
Afinal, este é o problema de fundo que está em causa no debate entre os racionalistas e os empiristas. Ao passo que os segundos defendem que nada de substancial podemos saber sobre a realidade exceto em resultado do contato causal com ela, os primeiros insistem que podemos ter conhecimento de aspectos cruciais da realidade por meio do pensamento puro. O preço a pagar pelo empirismo é a incapacidade para explicar como poderemos saber algo de fundamental sobre a realidade, como é o caso das leis da física, ao invés de meras contingências que se sucedem entre si sem qualquer real conexão. O preço a pagar pelo racionalismo é a dificuldade de explicar o processo que nos permite ter conhecimento de aspectos fundamentais da realidade por meio do pensamento puro.
A teoria de Kant deixa este dilema filosófico na mesma. Não explica, nem pode explicar, como conhecemos nós seja o que for sobre a realidade em si; e não explica, nem pode explicar, que relação existe entre a nossa representação da realidade e a realidade em si.
Conclusão
Os filósofos empiristas são muitíssimo convincentes na sua defesa da ideia de que só a posteriori podemos ter conhecimento da realidade física. Por outro lado, sobretudo face aos desenvolvimentos científicos atuais, os racionalistas parecem ter razão ao insistir que a matemática, apesar de ser conhecível a priori, nos fornece conhecimento sobre a realidade física. Com o sintético a priori, Kant tentou conciliar os dois pontos de vista. Ainda que a sua tentativa não tenha sido inteiramente bem-sucedida, é um bom exemplo do gênero de trabalho sofisticado que fazem os filósofos para tentar compreender melhor aspectos fundamentais da realidade e da nossa representação dela.
Que coisa mais desinteressante e óbvia poderá haver do que a queda de objetos? No entanto, descobrir como ocorre exatamente e porquê foi crucial para o desenvolvimento da física contemporânea — que, por sua vez, nos deu uma compreensão muitíssimo mais profunda da realidade do que alguma vez tivemos. Analogamente, saber como o nome próprio “Heráclito” refere Heráclito e porquê poderá parecer insípido, mas é crucial para uma compreensão mais profunda da linguagem.
Considere-se como é estranho que o leitor consiga referir Heráclito usando um mero som — que aparentemente não descreve coisa alguma. O leitor refere facilmente uma certa pessoa que morreu por volta de 480 a.C., muito antes do seu nascimento — mas como? Se passasse amanhã por ele na rua não o reconheceria; não o refere, pois, por conseguir identificá-lo se o vir.
Além disso, o nome “Heráclito” não parece referir Heráclito à custa de quaisquer atributos que este tenha e aquele indique. O nome não parece descrever coisa alguma, contrastando com termos como “verde”. Neste último caso, a referência depende do facto de as coisas verdes serem verdes. Mas Heráclito não é um heráclito. Apenas usamos esse nome para o referir. Mas como fazemos tal coisa?
O filósofo e matemático alemão Gottlob Frege não considerava certamente que a referência dos nomes próprios era coisa de somenos importância. Os seus estudos na área viriam a exercer uma influência tal na história da filosofia do séc. XX que só a partir da década de setenta algumas das suas ideias foram seriamente postas em causa.
Modesto professor de matemática na Universidade de Iena, o seu trabalho nunca foi reconhecido pelos seus colegas. Uma exceção foi Bertrand Russell, que o reconheceu desde cedo. Mas quando este o convidou para um congresso em Cambridge, que decorreria em 1912, Frege rejeitou o convite, talvez por estar deprimido com o facto de os seus colegas ignorarem o seu trabalho.
Juntamente com Russell e outros, Frege foi um dos fundadores de uma das lógicas modernas, a que chamamos clássica — apesar de, como a física clássica, não ter sido feita na Antiguidade. As suas investigações versavam principalmente sobre a fundamentação da aritmética — como Russell, defendia que o fundamento das verdades da aritmética era a lógica. Contudo, as suas investigações conduziram-no a reflexões importantes para lá dessa área restrita, abrangendo aspectos cruciais da filosofia da linguagem.
Convencionalismo e naturalismo
Na tragédia Romeu e Julieta (1599), William Shakespeare (c. 1564-1616) escreveu:
“Que tem um nome? O que chamamos rosa
Seria igualmente doce com qualquer outro nome;
Assim, caso Romeu não se chamasse Romeu,
Continuaria a ter a querida perfeição…”
A ideia aqui presente é que os nomes das coisas são meramente convencionais, não tendo qualquer relação com a natureza das coisas designadas. Mas a pura convencionalidade dos nomes (incluindo aqui nomes próprios como “Romeu” e substantivos comuns como “rosa”) nem sempre foi pacífica em filosofia.
Na Antiguidade Grega discutia-se se os nomes eram puramente convencionais ou se, pelo contrário, revelavam a natureza do que referem. No diálogo Crátilo, de Platão, o protagonista homônimo defende esta última posição, a que hoje chamamos naturalismo. Hermógenes, em contraste, defende a posição contrária, a que chamamos hoje convencionalismo.
A discussão não era particularmente profícua, por duas razões. Primeiro, porque é evidente que os nomes são convencionais se com isso queremos dizer que se chama água à água mas poderia chamar-se outra coisa — dado que noutras línguas se chama realmente outra coisa, como water, em inglês, ou eau, em francês. O problema genuíno não pode ser este, mas antes a questão de os nomes referirem descritivamente ou não. Mas que problema é esse?
Um nome refere descritivamente quando refere por meio de descrições de atributos da coisa referida, referindo-a precisamente por ela ter esses atributos. Por exemplo, “satélite natural da Terra” refere a Lua descritivamente, porque a refere em virtude de ela ter os atributos mencionados: é um satélite natural da Terra. Mas o nome “Lua” não parece referir a Lua por meio de quaisquer atributos, pelo menos explicitamente presentes no nome. Assim, o problema é saber se os nomes referem descritivamente, ainda que de modo disfarçado, ou se referem de qualquer outro modo.
Em segundo lugar, na Antiguidade não se distinguia entre substantivos comuns, nomes próprios e adjetivos, nem entre termos singulares e termos gerais. Considere-se o termo singular “Lua” e o termo geral “satélite natural da Terra”. Ambos referem a mesma coisa, mas fazem-no de modo aparentemente diferente. No segundo caso, a referência resulta de a coisa referida ter os atributos descritos: ser um satélite natural da Terra. Os termos gerais referem o que referem deste modo descritivo, abrangendo seja o que for que tenha os atributos descritos.
Em contraste, termos singulares como os nomes próprios não parecem referir descritivamente, nomeadamente porque em muitos casos não parecem descrever quaisquer atributos: que atributos são descritos por “Heráclito” ou “Lua”? Sem dúvida que usamos o termo geral “lua” — com minúscula — para falar de qualquer satélite natural de qualquer planeta, mas, mesmo considerando que esse conteúdo descritivo está presente no termo singular “Lua”, isso não seria suficiente para referir apenas o satélite natural da Terra: referiria qualquer lua, incluindo as luas de Júpiter. Além disso, um dia poderíamos descobrir que a Lua era afinal uma nave extraterrestre muito sofisticada, e não uma lua; mesmo nesse caso, o termo singular “Lua” continuaria a referir essa nave, o que não aconteceria com o termo geral “lua”.
Assim, não é muito avisado discutir se os termos referem descritivamente ou não sem distinguir primeiro diferentes tipos de termos. Isto porque pode ocorrer que alguns termos refiram descritivamente (os termos gerais) e outros não (os termos singulares).
Shakespeare fala indiferentemente do termo geral “rosa” e do termo singular “Romeu”, sem se dar conta das diferenças. No que respeita ao termo geral “rosa”, o aspecto convencional diz apenas respeito ao facto de qualquer outra palavra — nomeadamente, de outra língua — poder referir o mesmo que “rosa”. Mas o termo em si só refere as rosas porque descreve o atributo relevante que todas as rosas têm: são rosas. Contudo, no que respeita ao termo singular “Romeu”, o aspecto convencional não diz apenas respeito ao facto de Romeu poder ter outros nomes. Além disso, o seu nome não parece referi-lo por meio de qualquer descrição de atributos. Mas então, como o refere?
John Stuart Mill
No séc. XIX, John Stuart Mill defendeu que os nomes próprios são meras etiquetas, não referindo por meio de descrições:
“Os nomes próprios […] denotam os indivíduos que se chamam desse modo; mas não indicam ou implicam quaisquer atributos que pertençam a tais indivíduos. Quando damos o nome “Paulo” a uma criança, ou a um cão o nome “César”, estes nomes são apenas marcas que usamos para permitir que tais indivíduos possam ser objeto do nosso discurso”. (Sistema de Lógica, Livro I, Cap. II, § 5)
Porém, há casos em que os nomes próprios parecem descrever atributos. Usando o exemplo de Mill, “Dartmouth” parece descrever algo que fica na foz (mouth, em inglês) do rio Dart. Talvez fosse devido a casos deste gênero que Crátilo argumentava que os nomes captavam a natureza das coisas, não sendo puramente convencionais. Mas Mill tem um argumento contra esta ideia:
“Pode-se dizer, efetivamente, que tivemos de ter uma razão para lhes dar aqueles nomes em vez de outros; e isto é verdadeiro; mas o nome, uma vez atribuído, é independente da razão. […] Uma cidade pode chamar-se “Dartmouth” por estar situada na foz do Dart. Mas não faz parte do significado do nome “Dartmouth” […] que esteja situada na foz do Dart. Caso a foz do rio fique assoreada, ou um terramoto mude o seu percurso, afastando-o da cidade, o nome da cidade não mudaria necessariamente”. (Sistema de Lógica, Livro I, Cap. II, § 5)
Mill defende que podemos dissociar as duas coisas: a razão que nos fez dar um certo nome a algo, e o que faz esse nome referir o que refere. O que faz o nome referir o que refere é independente das razões que eventualmente presidiram à escolha desse nome. Essas razões podem, efetivamente, estar associadas ao que é descrito pelas palavras que constituem o nome. Acontece apenas que não é essa descrição a responsável por esse nome referir o que refere. Afinal, o nome “Organização das Nações Unidas”, por exemplo, refere perfeitamente bem uma instituição na qual as nações não estão de modo algum unidas.
Um planeta com dois nomes
O planeta Vênus é o primeiro corpo celeste brilhante, visível a olho nu, a aparecer pela tarde, ao pôr-do-sol, e o último a desaparecer de manhã, pouco antes do Sol nascer. Hoje sabemos que é o mesmo corpo celeste, mas no passado as pessoas não o sabiam. Então, deram o nome “Véspero” ao corpo celeste que aparece à tarde, e “Fósforo” ao que aparece de manhã — dando, sem saber, dois nomes à mesma coisa.
Se Mill tivesse razão e os nomes próprios fossem meras etiquetas, refletiu Frege, afirmar que Véspero é Véspero e afirmar que Véspero é Fósforo deveria ser igualmente informativo. Mas não é igualmente informativo: a segunda afirmação é uma importante descoberta astronómica, mas a primeira não. Logo, Mill não tem razão.
O problema, a que por vezes se chama “quebra-cabeças de Frege”, é explicar como pode uma das afirmações ser informativa e a outra não. Para o fazer, Frege deitou mão dos sentidos (Sinn, em alemão). A ideia é que os nomes próprios afinal não são meras etiquetas: diferentes nomes têm diferentes significados, chamados sentidos, que são responsáveis pela sua referência — mesmo que refiram a mesma coisa. Daí que seja informativo afirmar que Véspero é Fósforo, mas não que Véspero é Véspero: apesar de estarmos nos dois casos a falar da mesma coisa, Vénus, estamos a falar dela de modos diferentes.
Para desempenhar adequadamente o seu papel, contudo, os sentidos associados aos nomes não podem ser meras idiossincrasias pessoais — caso fossem, o leitor não entenderia o que estou dizendo ao falar de Vénus, pois eu poderia associar a este nome um sentido pessoal diferente do seu. E como, nesta teoria, o sentido determina a referência, o leitor não saberia o que estou referindo se desconhecesse o meu sentido pessoal de “Vênus”.
Assim, Frege volta a introduzir a ideia de que os termos singulares são como os termos gerais: referem por meio de descrições de atributos. Os sentidos dos termos singulares dão-lhes os mesmos mecanismos de referência dos termos gerais. O sentido de “Véspero”, por exemplo, seria algo como “primeiro corpo celeste brilhante a surgir à tarde, ao pôr-do-sol”. O sentido de “Lua” seria, talvez, “satélite natural da Terra”. E assim podemos explicar como consegue o leitor referir Heráclito: porque o sentido do nome deste filósofo descreve atributos que só ele tinha.
Sentidos vagos
Imagine-se que alguém lhe diz casualmente que a Mimi já é mãe. Como o leitor não sabe de quem se trata, pergunta “Quem é a Mimi?” É óbvio que o leitor está a fazer uma pergunta acerca da Mimi — apesar de não fazer a mais pálida ideia de quem está falando. Aliás, não sabe sequer se é um nome de pessoa, cadela ou gata, entre outras possibilidades. É difícil sustentar que quando o leitor usa o nome “Mimi” a referência ocorre por meio de qualquer sentido. Que sentido é esse, público ou não?
Vejamos outro caso. Qual é o sentido — público — que as pessoas comuns associam a Heráclito? Um filósofo da Antiguidade Grega, talvez. Mas isto não é suficiente para referir inequivocamente Heráclito. Aliás, mesmo pessoas com formação em filosofia têm dificuldade em dizer quais são os atributos de Heráclito que o distinguem de outros filósofos.
O que está em causa é que, na teoria de Frege, os nomes referem por meio dos seus sentidos. Mas estes sentidos, para poderem desempenhar esse papel, não podem ser ideias vagas. Quando o leitor ouve falar da Mimi tem a ideia vaga de que será uma pessoa; mas isso não basta para referir a Mimi, segundo Frege. Quando falamos de Heráclito temos ideias vagas sobre quem era esse filósofo; mas isso não basta para referir Heráclito, segundo Frege. A teoria de Frege exige que cada nome tenha sentidos muitíssimo precisos. Mas parece falso que os nomes tenham sentidos com tal precisão. Por isso, a teoria de Frege parece falsa.
Significado e referência
É importante distinguir uma teoria do significado dos nomes próprios de uma teoria da sua referência — o que é tanto mais delicado porque não se via a diferença entre as duas coisas, até muito recentemente.
Uma teoria da referência visa explicar como se dá a referência dos nomes próprios; procura explicar como se estabelece a ligação entre o nome próprio e a coisa que o nome refere.
Uma teoria do significado, em contraste, visa esclarecer o significado dos nomes próprios. Assim, podemos defender, por exemplo, que o significado de “Fósforo” é “o último corpo celeste visível ao amanhecer”. Para que isto seja um resultado correto de uma teoria do significado, a frase “Fósforo é o último corpo celeste visível ao amanhecer” terá de ser uma verdade analítica, como “Nenhum solteiro é casado”.
Historicamente, não se distinguia muito bem as duas coisas porque Frege, como Russell, tinha uma só teoria para o significado e para a referência dos nomes próprios. Frege defendia que os nomes referem por meio dos seus sentidos, constituindo estes o significado dos nomes. Temos assim uma teoria elegante que explica as duas coisas. Perguntamos o que significa “Lua” e a resposta é “satélite natural da Terra”, por exemplo; perguntamos como o nome refere, e a resposta é que refere por meio do seu sentido, que por sua vez descreve os atributos que só a Lua tem, e por isso se aplica apenas à Lua.
Em contraste, se rejeitarmos que os nomes tenham sentidos, porque superficialmente parecem meras etiquetas, precisamos de explicar adequadamente como podemos referir Heráclito, mais de dois mil anos depois da sua morte. Daí que, apesar das dificuldades óbvias da teoria de Frege, esta permanecesse indisputada até muito recentemente. Poderemos nós explicar a referência dos nomes próprios, contudo, sem recorrer a algo como os sentidos de Frege?
Intencionalidade coordenada
Imagine que um dia de manhã o leitor vai à cozinha e encontra escrito no chão a palavra “Mimi”. Fica surpreendido e tenta descobrir quem escreveu tal coisa. Acaba por descobrir que o frigorífico tem uma avaria e o fluido escuro que dele sai formou por puro acaso essa palavra no chão. Pergunta obtusa: quem é a Mimi?
A pergunta é obtusa porque é óbvio que a palavra não refere coisa alguma. Rigorosamente falando, não é sequer uma palavra. É apenas um conjunto de traços no chão, que o leitor interpretou como uma palavra. Mas não refere coisa alguma, porque o frigorífico não tinha qualquer intenção comunicativa.
O que isto significa é que não há fenómenos linguísticos — não há nomes, palavras, frases, perguntas, afirmações — sem intenção. Afinal, a parte física da linguagem — sons, inscrições — são em si objetos tão alinguísticos quanto as árvores e as pedras. O que confere significado a certos objetos físicos são as nossas intenções.
Contudo, há razões para pensar que a intencionalidade não basta. Na obra póstuma Investigações Filosóficas (1953), Ludwig Wittgenstein parece argumentar contra uma concepção da linguagem que a veja como um fenómeno privado. A sua ideia, aparentemente, é que seria impossível constituir as regras de funcionamento de uma linguagem privada porque não haveria garantia de estarmos a seguir as regras adequadamente, sem nos enganarmos.
Por exemplo, uma pessoa sozinha decide chamar “vercinal” a um certo tipo de dor de cabeça que tem por vezes. Mas, porque nunca o diz seja a quem for e porque ninguém pode ver se ela se engana ou não, ela mesma não sabe se ao usar de novo o mesmo termo está a aplicá-lo ao mesmo gênero de dor de cabeça ou não. Isto significa que não conseguiu constituir uma linguagem, pois para haver linguagem tem de haver regularidade: se “vercinal” refere um certo gênero de dor de cabeça, não pode referir seja o que for, arbitrariamente, noutras circunstâncias.
Se aceitarmos a primeira ideia, segundo a qual é necessário haver intencionalidade para haver linguagem, e também a segunda ideia, segundo a qual não há linguagens logicamente privadas, concluiremos talvez que uma linguagem é um sistema de intenções coordenadas. Não basta que uma pessoa, privadamente, tenha a intenção de usar um certo som, ou uma certa inscrição, para falar da Mimi; é preciso que outras pessoas tenham, coordenadamente, a intenção de usar um som ou inscrição do mesmo tipo para falar também da Mimi. Só temos uma linguagem quando várias pessoas com intenções comunicativas coordenam entre si os usos de certos sons ou inscrições.
Cadeias causais
Se este entendimento da linguagem estiver correto, o problema de como um dado nome refere é o problema de como originalmente um certo som ou inscrição foi coordenadamente usado com a intenção de referir e como esse uso coordenado com essa intenção chegou até nós.
No caso do nome “Heráclito”, posso usá-lo para falar de uma pessoa há muito desaparecida, e que eu não reconheceria mesmo que a visse, porque aprendi este nome, com este uso, de outras pessoas e livros. E se formos ver onde essas pessoas e livros aprenderam este nome com esse uso, vemos que é de outras pessoas e livros: uma sucessão que vai dar ao próprio Heráclito, na altura em que na Grécia Antiga alguém, presumivelmente os pais, lhe começou a chamar o equivalente grego de “Heráclito”.
Quem sugeriu esta explicação da referência dos nomes próprios foi o filósofo Saul Kripke, na mencionada série de palestras de Princeton intituladas “Nomear e Necessidade”, que só em 1980 foram publicadas em livro.
Quando explicamos a referência deste modo, voltamos a não precisar de sentidos para explicar como poderá o leitor referir Heráclito, sem estar na sua presença. E podemos aceitar que alguns nomes próprios são introduzidos ou estipulados descritivamente: por exemplo, podemos decidir chamar “Octávio” ao primeiro ser humano que descobrir extraterrestres inteligentes. Mas não só muitos nomes não são introduzidos desta maneira como, mesmo que o sejam, como neste exemplo, as pessoas que posteriormente usarem o nome “Octávio” podem desconhecer a descrição usada para estipular a referência do nome e, apesar disso, referir corretamente o Octávio.
Contudo, como resolver o quebra-cabeças de Frege? Por que razão é informativo dizer que Véspero é Fósforo mas não é informativo dizer que Véspero é Véspero?
Heróis vespertinos e madrugadores
Eis um princípio, muitíssimo abreviado, de uma tentativa de resposta.
Se aceitarmos que um dos aspectos necessários da linguagem é a intencionalidade coordenada, compreendemos como é possível alguém referir a Mimi sem conhecer qualquer descrição da Mimi que seja suficiente para a identificar. Isso é possível porque a pessoa precisa apenas de ter a intenção de referir seja o que for que a outra pessoa, de quem ouviu originalmente o termo, estava a referir. O nome não precisa de incluir qualquer descrição para referir. Aliás, rigorosamente falando, não são os nomes que referem: são as pessoas, usando nomes com certas intenções, quando essas intenções estão adequadamente coordenadas com as intenções de outras pessoas.
Nos casos em que é informativo descobrir que Véspero é Fósforo, a pessoa associa certamente informações diferentes a um e a outro nome. Mas daí não se conclui corretamente que é em virtude dessas informações que ela consegue usar os nomes para referir corretamente. Aliás, a pessoa pode até associar informações falsas aos dois nomes, e mesmo assim a afirmação de que Véspero é Fósforo será informativa, num certo sentido, ao passo que a afirmação de que Véspero é Véspero não o será. Vejamos um exemplo.
Imagine o leitor que nunca tinha ouvido falar de Véspero nem de Fósforo, e que ouve uns amigos a usar estes nomes numa conversa. Por qualquer razão, fica convicto de que se trata de dois heróis de banda desenhada, costumando o primeiro aparecer à tarde, para salvar a cidade, e o segundo pela manhã. Quando ouve dizer que Véspero é Fósforo isto será para si informativo, porque associa informações diferentes aos dois nomes. Contudo, nenhuma dessas informações permite referir corretamente Vénus. Logo, o que torna informativa a afirmação de que Véspero é Fósforo não é o que lhe permite usar os dois nomes para referir Vênus.
Poder-se-ia defender que, na circunstância descrita, o leitor não refere Vénus com qualquer dos nomes, mas antes heróis de banda desenhada. Mas isto é muitíssimo implausível, pois se o leitor disser aos seus amigos, nessa circunstância, que Véspero não passa de uma ficção, estará a dizer uma falsidade sobre Vénus, e não uma verdade sobre um herói de banda desenhada. Mesmo que, no momento em que o disser, um autor tenha acabado de inventar, na sala do lado, dois heróis de banda desenhada chamados “Véspero” e “Fósforo”, o leitor não terá uma crença verdadeira sobre estes heróis da sala do lado, ao crer que são ficções, mas antes uma crença falsa sobre Vénus, que, quando está mais próximo da Terra, fica a quarenta milhões de quilômetros.
Conclusão
O estudo do que parece uma minúcia sensaborona poderá ser encarado como um academismo doentio, visto que a linguagem é muito mais complexa e interessante do que isto.
Sem dúvida que muitas vezes os investigadores — sejam filósofos, cientistas ou historiadores — se perdem em minúcias irrelevantes. Contudo, nem todas as minúcias são irrelevantes: a queda dos corpos é muitíssimo menos excitante do que o Big Bang, mas o estudo proficiente do segundo depende crucialmente dos resultados alcançados no estudo do primeiro. O mesmo acontece no caso da linguagem: queremos compreender os seus aspectos mais profundos, mas dificilmente o conseguiremos se formos incapazes de explicar uma coisa tão elementar como a referência dos nomes próprios.
A história da investigação mostra que o estudo cuidadoso de minúcias pode ser bastante mais enriquecedor, pela compreensão aprofundada que proporciona, do que discursos sedutores sobre generalidades vácuas. É entre o excesso das minúcias irrelevantes e o defeito das generalidades vácuas que está o meio-termo da investigação virtuosa das coisas.
Muitos viajantes se cruzaram certamente com ele, sem fazer ideia da importância que viria a ter na filosofia europeia. Nascido em 1033, abandonou a casa do pai, com quem nunca se deu bem, depois da morte da mãe. E foi assim que em 1056, com apenas vinte e três anos, Anselmo — mais tarde Bispo da Cantuária, canonizado em 1163 — se entregou a uma viagem de mais de setecentos quilómetros, de Aosta, na sua Itália natal, em direção à atual França.
O seu objetivo era algo indefinido, o que não é invulgar quando se tem a sua idade: oscilava entre a atração que sentia pela vida monástica e por uma carreira intelectual. Mas as duas opções não eram incompatíveis: no seu tempo, uma parte importante da vida intelectual ocorria sob a proteção dos muros dos mosteiros, com as suas ricas bibliotecas. E era no mosteiro beneditino de Bec, na Normandia, que estava o italiano Lanfranc (1005-1089), famoso pela sua sapiência e ensino, de quem Anselmo pretendia receber instrução. Pôs, por isso, pés a caminho em direção a Bec e a Lanfranc.
Idade das trevas?
O mundo em que Anselmo vivia era tumultuoso. Sob a aparente complacência dos ritmos feudais escondia-se um conturbado reajuste político entre reis, imperadores e poderes eclesiásticos. Dois anos antes de Anselmo pôr pés a caminho, o papa católico Leão IX e o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, tinham-se excomungado entre si, marcando assim o grande cisma cristão, que dura até hoje, entre a igreja católica e a ortodoxa.
Além disso, há muito que tinham desaparecido os centros de investigação da Antiguidade grega e romana. As escolas de filosofia gregas tinham sido extintas há cerca de quinhentos anos; a Biblioteca de Alexandria, que era igualmente um centro de estudos, e não apenas um repositório de livros, fora destruída há trezentos anos.
Das cinzas da civilização clássica europeia, começavam a despontar os grandes centros de estudo da Europa medieval. A primeira universidade propriamente dita, com diferentes áreas de estudo, foi fundada na Itália, em Bolonha, em 1088, quando Anselmo tinha cinquenta e cinco anos. Seguiu-se-lhe a Universidade de Paris, fundada primeiramente em 1150, e a Universidade de Oxford, pouco depois.
Porque se aceita acriticamente a rejeição da cultura medieval promovida pelos modernos, a investigação filosófica e científica ocorrida desde o tempo de Anselmo até ao despontar do mundo moderno, por volta do séc. XVII, é muitas vezes negligenciada. Em 1328, por exemplo, o Doctor Profundus, Thomas Bradwardine (1290-1349), apresentou o primeiro tratamento matemático do movimento, no Tratado das Proporções ou sobre as Proporções das Velocidades no Movimento; e João Buridano (1300-1358) desenvolveu a teoria do ímpeto, crucial para o desenvolvimento da física. O primeiro modelo heliocêntrico do universo, por outro lado, não é um produto da cultura moderna: foi proposto por Nicolau Oresme (1320-1382). E as cartas de navegação, que teriam sido muitíssimo úteis aos gregos e romanos da Antiguidade, surgiram igualmente em plena idade média, em 1270.
Anselmo em busca da compreensão
Anselmo teve um papel crucial no desenvolvimento da filosofia medieval, sendo considerado o primeiro escolástico — termo que ainda hoje, nas zonas mais débeis da cultura, é entendido pejorativamente, por influência dos modernos. Insistindo na importância da expressão clara e do rigor, Anselmo afastou-se definitivamente do misticismo neoplatónico, na altura dominante, com origem em Plotino (205-270).
Chegado a Bec, em 1059, Anselmo fez os seus votos monásticos e foi como monge que escreveu as obras que viriam a torná-lo influente e famoso durante séculos: Monologion (monólogo) e Proslogion (termo inventado por Anselmo, que afirma significar “discurso apresentado a outrem”).
O estilo das duas obras é bastante diferente, apesar de em ambos os casos se tratar de descobrir as razões a favor da crença em Deus. Porém, enquanto a primeira é uma argumentação direta, sem adornos, a segunda é como que uma oração, uma súplica a Deus para que este permita ao crente compreender a sua fé. Os títulos alternativos das duas obras são reveladores: à primeira deu Anselmo o título “Cânone para meditar sobre as razões da fé”; e à segunda “A fé em busca da compreensão”, uma expressão que colheu de Agostinho.
O argumento ontológico
Os medievais conheciam o argumento a favor da existência de Deus que Anselmo apresentou na segunda das obras mencionadas simplesmente como argumentum Anselmi: o argumento de Anselmo. Mas Kant chamou-lhe argumento ontológico, designação que se tornou comum.
O termo “ontologia” deriva dos termos gregos to on e ontos que significam aproximadamente “o que algo é” ou “o ser de algo”. O adjetivo “ontológico” é usado em filosofia para falar da natureza última das coisas, e o substantivo designa uma subdisciplina filosófica que trata de estabelecer as categorias mais gerais da realidade.
O argumento ontológico tem esta designação porque parte de uma reflexão sobre a natureza última desse ser hipotético a que chamamos Deus, e conclui, nessa base apenas, e sem apelar para quaisquer outros factos sobre a realidade, que esse ser existe. Este argumento contrasta assim com dois outros grupos de argumentos tradicionais a favor da existência de Deus, denominados “argumentos do desígnio” e “argumentos cosmológicos”.
O termo “cosmologia” poderá ser surpreendente neste contexto, se pensarmos apenas na cosmologia científica do séc. XX. Mas a cosmologia, enquanto teoria sobre a estrutura geral do cosmos, existia muito antes da recente cosmologia científica. Os argumentos cosmológicos a favor da existência de Deus pretendem concluir que Deus existe com base em certos aspectos da estrutura geral do cosmos.
Tanto os argumentos do desígnio como os cosmológicos partem de alguns factos sobre a realidade espácio-temporal e concluem que sem a hipótese de Deus não se consegue explicá-los adequadamente. Precisamente porque estes argumentos incluem informações empíricas, são denominados argumentos a posteriori. Isto contrasta com os argumentos ontológicos, cujas premissas podem ser conhecidas exclusivamente com base no pensamento, recebendo por isso a designação de argumentos a priori.
Redução ao absurdo
Há diferentes versões de argumentos ontológicos a favor da existência de Deus. A versão de Anselmo é um tipo de raciocínio já conhecido na Antiguidade grega a que se chama redução ao absurdo, ou reductio ad absurdum, em latim. Raciocinar ou argumentar por redução ao absurdo é partir do oposto do que queremos estabelecer e mostrar que dessa hipótese se conclui corretamente uma contradição: um absurdo. O que fizemos foi mostrar que aceitar tal hipótese obrigaria a aceitar uma contradição. Se agora quisermos rejeitar a contradição, teremos de rejeitar a hipótese de partida.
O cogito de Descartes, que visitámos brevemente no Capítulo 1, pode ser apresentado como uma redução ao absurdo. Aceite-se a hipótese de que todas as minhas crenças são falsas: há um gênio maligno que me engana constantemente. Daqui conclui-se corretamente que é falsa a minha crença de que existo. Mas para o gênio maligno me poder enganar, para que eu tenha crenças falsas, é preciso que eu exista. Logo, é verdadeira a minha crença de que existo. Eis a contradição: fomos levados a concluir que uma mesma crença (“eu existo”) é verdadeira e falsa. Se agora quisermos rejeitar esta contradição, teremos de rejeitar a hipótese de partida: a hipótese de que todas as minhas crenças são falsas, sendo produzidas por um gênio maligno que me engana constantemente.
Eis outro exemplo deste gênero de raciocínio. Imagine o leitor que o seu amigo crê que não há verdades: tudo é ilusão. Perplexo com tal posição, o leitor começa por aceitá-la, procurando mostrar que dela se conclui corretamente uma contradição, para então a negar. E isso não é difícil fazer, pois se não há verdades, é verdadeiro que não há verdades. Eis a contradição: por um lado não há verdades, mas por outro é verdadeiro que não há verdades. Para rejeitar esta contradição, o leitor nega a hipótese de partida, a crença do seu amigo de que não há verdades, e conclui que há verdades.
Refutar o insensato
Anselmo procura mostrar que o insensato bíblico, que diz no seu coração que Deus não existe (Salmos 14 e 53), também se contradiz, como o amigo do leitor. A natureza de Deus é tal que a hipótese da sua inexistência é contraditória. E que natureza é essa? Deus, considera Anselmo, é um ser de tal modo grandioso que não conseguimos conceber outro que seja ainda mais grandioso.
Anselmo formula esta ideia usando uma expressão que ficou famosa: Deus é o ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Contudo, Anselmo não tem em mente a grandeza física, mas antes a grandiosidade, excelência ou esplendor. A ideia é que Deus é o mais excelente dos seres, ou o mais grandioso; tão grandioso, que a hipótese da sua inexistência implica uma contradição:
“Assim, mesmo o insensato tem de admitir que algo maior do que o qual nada pode ser pensado existe pelo menos no seu entendimento, dado que ele o entende quando o ouve, e o que é entendido existe no entendimento. E certamente que aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado não pode existir apenas no entendimento. Pois se existisse apenas no entendimento, poder-se-ia pensar que existia na realidade também, o que seria ainda maior. Logo, se aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado existe apenas no entendimento, então a própria coisa maior do que a qual nada pode ser pensado é algo maior do que o qual algo pode ser pensado. Mas isto é claramente impossível. Logo, não há dúvida de que o maior do que o qual nada pode ser pensado tanto existe no entendimento como na realidade”. (Proslogion, Cap. 2, p. 82)
O texto de Anselmo é maravilhosamente claro, preciso e direto, mas sofisticado. Acompanhemos o seu pensamento, passo a passo, com a mesma solicitude com que Anselmo percorreu mais de setecentos quilómetros em busca da compreensão.
O insensato admite que as pessoas pensam em Deus, ainda que este não exista realmente. Isto significa que Deus existe no pensamento ou entendimento, ainda que não exista na realidade. O mesmo se pode dizer de qualquer ficção: é algo que existe no pensamento ou entendimento do seu criador — um romancista, por exemplo — mas não existe na realidade. E é isto que o insensato pensa que é Deus: uma mera ficção.
Contudo, Deus é por definição aquele ser, seja ele qual for, exista ou não, que é tão grandioso que é impossível conceber outro que seja ainda mais grandioso. E o insensato aceita também esta ideia — apenas continua a insistir que esse ser é uma fantasia, não existindo na realidade.
Ora, é aqui que Anselmo desfere o seu golpe mortal. Se Deus existisse apenas no entendimento, poderia haver outro ser, exatamente como ele, mas que existisse também na realidade. Este ser seria certamente mais grandioso do que Deus, pois teria existência real, o que é certamente uma excelência.
Se virmos bem, chegámos a uma contradição. Isto porque admitimos que Deus é por definição o ser mais grandioso do que o qual nenhum pode ser pensado, e depois pensámos num ser mais grandioso do que Deus. Para negar esta contradição, rejeitamos a hipótese de partida: a ideia do insensato de que Deus, o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado, não existe. Logo, Deus existe.
Duas objecções clássicas
Gaunilo, um monge beneditino da abadia de Marmoutier, contemporâneo de Anselmo, apresentou uma objecção famosa ao argumento ontológico, a que Anselmo responde e que fez questão de ver publicada juntamente com a sua obra. Gaunilo argumenta que com o mesmo tipo de raciocínio alguém poderia defender que existe a ilha mais perfeita, dado que esta pode ser pensada, e não seria a mais perfeita se existisse apenas no pensamento. Mas esta ilha não existe; logo, conclui Gaunilo, perante este argumento “não saberia quem devo pensar que é mais insensato: eu próprio, se lhe conceder tal conclusão, ou ele, se pensar que estabeleceu a existência de tal ilha” (Em Nome do Insensato, § 6, p. 102).
Anselmo, todavia, tem uma resposta para esta objecção: é que nem tudo é tal que seja o mais grandioso do que o qual nada possa ser pensado. Um exemplo torna isto claro: não há um número maior do que o qual nenhum possa ser pensado, pois para cada número podemos sempre pensar num número maior. Do mesmo modo, não há uma ilha mais perfeita do que a qual nenhuma se possa pensar, pois podemos sempre pensar numa mais perfeita do que a anterior. O conceito de Deus, contudo, é precisamente o de o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado. Logo, a objecção de Gaunilo não é tão obviamente bem-sucedida como pode parecer à primeira vista.
Se insistirmos que nada nos garante que Deus seja o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado, Anselmo tem também uma boa resposta: o que está em causa é mostrar que existe o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado, seja ele ou não a divindade cristã. Depois de provada a sua existência, poderemos então tentar descobrir se os atributos do ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado correspondem ou não aos atributos tradicionais da divindade cristã.
Outro gênero de objecção inspira-se em Kant que, na Crítica da Razão Pura, obra publicada pela primeira vez em 1781, procura refutar a versão de Descartes e Leibniz do argumento ontológico. A objecção baseia-se na ideia de que a existência não é um predicado genuíno, como “é grandioso” ou “é ateniense”. Nestes dois casos, trata-se de exprimir uma propriedade que um existente pode ou não ter. Mas a existência não é uma propriedade que um existente pode ou não ter, dado que todo o existente existe; a existência é, ao invés, a condição de possibilidade de toda a predicação. Logo, o predicado da existência não pode conferir grandiosidade, dado não ser sequer um predicado genuíno, no mesmo sentido em que “é ateniense” é um predicado.
Contudo, mesmo que a existência não seja um predicado genuíno (o que está longe de ser pacífico), desta tese não poderá resultar que a afirmação banal “O Pai Natal não existe, mas poderia ter existido” seja destituída de significado. Esta afirmação tem obviamente significado e diz algo muito simples: que, tal como as coisas são, o Pai Natal não existe, mas poderia ter existido se as coisas fossem diferentes. Podemos ter razões para pensar que o Pai Natal não poderia ter existido; mas mesmo para pensar tal coisa temos de aceitar que a afirmação não é destituída de significado. Ora, nesse caso, também a afirmação de que Deus não poderia não existir não é destituída de significado. E isso, como veremos, é tudo o que precisamos para apresentar uma versão plausível do argumento ontológico de Anselmo.
A possibilidade de um ser necessário
Independentemente de as objecções clássicas ao argumento de Anselmo serem bem-sucedidas ou não, podemos hoje reconstruir o seu argumento de um modo que o torne imune a elas. Nesta versão, abandonamos dois aspectos da argumentação de Anselmo. Primeiro, não usaremos um argumento por redução ao absurdo. Segundo, substituiremos o conceito de pensável pelo conceito de possível.
Um existente necessário é algo que existe e não poderia não ter existido. Isto contrasta com os existentes contingentes, como os seres humanos ou os rios: estes existem mas poderiam não ter existido. Ora, Deus é tradicionalmente considerado um existente necessário, e o ateu parece poder concordar com a ideia de que se Deus existisse, seria um existente necessário; acontece apenas que não existe, pensa o ateu. De modo que o ateu parece poder conceder a seguinte premissa: é possível que Deus exista necessariamente. Isto corresponde aproximadamente à ideia de Anselmo de que mesmo o insensato concede que é capaz de pensar no ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado (isto é, tal ser é possível), ainda que não exista.
Se o ateu conceder tal coisa, contudo, está em maus lençóis: pois há razões para pensar que é correto concluir imediatamente, sem usar quaisquer outras premissas, que Deus existe. Esta versão do argumento de Anselmo é incrivelmente simples:
É possível que Deus exista necessariamente.
Logo, Deus existe.
Como responder a este argumento? Será correto? Se o for, e se aceitarmos a premissa, o que à primeira vista parece razoável, temos uma demonstração tão certa de que Deus existe quanto um cálculo geométrico.
Mundos possíveis
Compreende-se e discute-se melhor esta versão do argumento de Anselmo se usarmos o conceito de mundos possíveis, que foi inicialmente explorado por Leibniz. Este conceito tornou-se muitíssimo importante na filosofia contemporânea, tendo recebido tratamentos bastante sofisticados em lógica. Mas a ideia crucial pode ser entendida sem dominar a lógica.
Há várias concepções de mundo possível. Para compreender uma das mais promissoras, considere-se primeiro o modo como as coisas são: Sócrates nasceu em Atenas e ontem choveu numa cidade da Síria. Estes acontecimentos são modos de ser das coisas: as coisas são desse modo.
Quando as coisas não são de um dado modo, mas poderiam sê-lo, estamos a falar do que poderia ter ocorrido mas não ocorreu. Por exemplo, Sócrates poderia ter nascido no Egito, mas não nasceu; ontem poderia não ter chovido numa cidade da Síria, mas choveu. Esses são modos de ser das coisas porque as coisas poderiam ser desse modo, mas não são.
É aos modos de ser das coisas que chamamos “mundos possíveis”, o que inclui o modo como as coisas são e os muitos modos como as coisas poderiam ter sido mas não são.
Ao modo como as coisas são chamamos “mundo efetivo”; aos modos como as coisas poderiam ter sido, mas não são, chamamos “mundos meramente possíveis”. O mundo efetivo é um dos mundos possíveis, só que não é meramente possível: além de possível, é efetivo.
Por “mundo” não entendemos, pois, o planeta Terra, e nem sequer o universo (com tudo o que contém, como árvores e rios, estrelas e átomos), mas antes um modo de ser das coisas. Assim, ao afirmar que Sócrates poderia ter nascido no Egito apesar de ter nascido em Atenas, estamos a falar de dois modos de ser de Sócrates: um modo como Sócrates poderia ter sido mas não é, e um modo como ele é.
Podemos agora traduzir os conceitos de contingência, possibilidade e necessidade na linguagem dos mundos possíveis e vice-versa:
— “Sócrates nasceu contingentemente em Atenas” quer dizer, na linguagem dos mundos possíveis, que no modo como as coisas são, no mundo efetivo, Sócrates nasceu em Atenas, mas há modos como as coisas poderiam ter sido, outros mundos possíveis, em que Sócrates nasceu noutra cidade.
— “Sócrates poderia ter nascido no Egito” quer dizer que há pelo menos um modo como as coisas poderiam ter sido, ou seja, um mundo possível, em que Sócrates nasceu no Egito.
— “Sócrates é necessariamente um ser humano” quer dizer que ele é um ser humano em todos os mundos possíveis em que existe.
— “Sócrates é um existente contingente” quer dizer que Sócrates existe no mundo efetivo, mas não em todos os mundos possíveis.
Assim, afirmar que Deus é um existente necessário é afirmar que Deus existe em todos os mundos possíveis. Deus contrasta com os existentes contingentes — como o leitor e eu. Nós somos existentes contingentes porque, apesar de existirmos, poderíamos não ter existido, ou seja, há vários mundos possíveis em que não existimos.
Ora, parece razoável que o ateu conceda que poderia existir um ser, Deus, que existisse em todos os mundos possíveis, apesar de tal ser não existir. Contudo, se o ateu aceitar isto, o argumento anselmiano conclui imediatamente que Deus existe. Será este argumento correto? Se for possível que algo exista em todos os mundos possíveis, conclui-se corretamente que existe no mundo efetivo?
Note-se que esta última pergunta é diferente da pergunta “se algo existe em todos os mundos possíveis, conclui-se corretamente que existe no mundo efetivo?” Esta última pergunta tem uma resposta banal: sim, se algo existe em todos os mundos possíveis, então existe também no mundo efetivo, dado que este é um dos mundos possíveis.
A pergunta que nos interessa não é esta; o que queremos saber é se da possibilidade de algo existir em todos os mundos possíveis se conclui corretamente que existe no mundo efetivo. Esta é a pergunta que corresponde ao argumento anselmiano.
Reiterações modais
O que está em causa no argumento anselmiano é a reiteração ou repetição do que se chama em filosofia “operadores modais”. Os operadores modais são advérbios como “necessariamente”, “contingentemente” ou “possivelmente”. Ora, no que respeita aos conceitos de necessidade, contingência e possibilidade, ocorre algo curioso com o espírito humano: apesar de nos casos mais simples, mesmo sem qualquer formação filosófica, conseguirmos raciocinar corretamente, nos casos mais complexos ficamos à deriva. É como o que acontece com a multiplicação: toda a gente multiplica quase automaticamente, de cabeça, 5 com 3, mas para multiplicar 237 com 1623 já temos de recorrer ao lápis e ao papel, ou a uma calculadora.
No caso dos operadores modais, é fácil ver que é correto concluir que Sócrates era humano partindo da premissa de que ele era necessariamente humano; e é fácil ver que é correto concluir que Sócrates era possivelmente ateniense da premissa de que ele era ateniense. No primeiro caso, é óbvio que a verdade se conclui corretamente da necessidade; no segundo, que a possibilidade se conclui corretamente da verdade.
Também é óbvio que a necessidade não se conclui corretamente da verdade, nem esta da possibilidade. Isto porque, no primeiro caso, não se conclui corretamente que Sócrates era necessariamente ateniense do simples facto de ele ser ateniense — dado que talvez o tenha sido contingentemente. Quanto ao segundo caso, não se conclui corretamente que Sócrates era egípcio da possibilidade de o ter sido — dado que apesar de ser possível que tivesse nascido no Egito, daí não se conclui corretamente que nasceu de facto nesse país.
Assim, perante alguns raciocínios que envolvem conceitos modais — os conceitos de necessidade, possibilidade e contingência — sabemos dizer, mesmo sem formação filosófica, se acaso são corretos ou não. Contudo, quando reiteramos ou repetimos os conceitos modais ficamos perplexos e sem saber o que pensar. Será correto concluir que algo é necessário partindo da premissa de que é possível que seja necessário? E será correto concluir que algo é necessariamente necessário da premissa de que é necessário?
A reiteração de conceitos modais torna-se mais compreensível recorrendo à linguagem dos mundos possíveis. Afirmar que é possível que Sócrates seja ateniense é afirmar, na linguagem dos mundos possíveis, que há pelo menos um mundo possível, seja ou não o mundo efetivo, em que ele é ateniense; e afirmar que é necessário que seja possível que Sócrates seja ateniense?
Esta última afirmação torna-se mais compreensível quando vemos que é equivalente a afirmar que em todos os mundos possíveis é possível que Sócrates seja ateniense. Mas que quer isto dizer?
Possibilidade relativa
O que está em causa é saber se a possibilidade e a necessidade são relativas aos mundos possíveis. Se não forem, desde que haja um mundo possível em que Sócrates é ateniense, ele será possivelmente ateniense em todos os mundos possíveis; ou seja, em todos os mundos possíveis será verdadeiro que Sócrates é possivelmente ateniense.
Contudo, se a possibilidade e a necessidade forem relativas aos mundos possíveis, mesmo que haja um mundo possível em que Sócrates é ateniense, haverá outros mundos possíveis em que Sócrates não é possivelmente ateniense. Isto ocorrerá se os mundos possíveis em que Sócrates é ateniense não forem possíveis relativamente a todos os mundos possíveis.
É deste aspecto muitíssimo abstrato e de razoável sofisticação e complexidade cognitiva que depende a correção ou incorreção do argumento anselmiano. Pois este argumento afirma que da premissa de que é possível que Deus exista necessariamente se conclui corretamente que existe. Se todo o mundo possível for possível relativamente a qualquer outro, o argumento anselmiano é correto; caso contrário, não o é.
Vejamos em que condições o argumento anselmiano não é correto. Imagine-se que é possível que Deus exista necessariamente. Isto significa que há pelo menos um mundo possível, chamemos-lhe D, no qual Deus é um existente necessário. Por sua vez, isto significa que Deus existe em todos os mundos possíveis que sejam possíveis relativamente a D. Contudo, se o mundo efetivo não for um desses mundos possíveis, a inexistência de Deus é compatível com a possibilidade da sua existência necessária. Assim, caso D seja possível relativamente ao mundo efetivo, mas este não seja possível relativamente a D, o argumento anselmiano não será correto.
Para decidir se o argumento anselmiano é correto, precisamos de saber duas coisas. Primeiro, precisamos de saber se a possibilidade é ou não relativa a mundos possíveis. Segundo, precisamos de saber, caso o seja, se a possibilidade relativa é ou não simétrica. A simetria é uma propriedade que algumas relações têm e outras não. Por exemplo, a relação de ser irmão é simétrica, pois se Pedro é irmão de Maria, esta também é sua irmã; já a relação de ser mãe não é simétrica, pois se Maria for mãe de Rosa, esta não é sua mãe. Se a relação de possibilidade entre mundos possíveis não for simétrica, o argumento anselmiano é incorreto porque o facto de D ser possível relativamente ao mundo efetivo não implica que este o seja relativamente a D.
De maneira que uma questão crucial — saber se Deus existe — depende de uma questão filosófica muitíssimo esotérica, e aparentemente irrelevante, estudada na metafísica da modalidade.
Conclusão
Alguns crentes, perante argumentos complexos sobre questões religiosas, afirmam que a religião está para lá da razão; invocam até o matemático, físico e pensador religioso Blaise Pascal (1623-1662), afirmando que o coração tem razões que a razão desconhece.
Contudo, a ideia de acolher a crença religiosa sem razões — e consequentemente sem compreensão, diria Anselmo — não é pacífica. Em qualquer caso, desdenhar da razão apenas quando desconfiamos que esta não sanciona o que gostaríamos de ver sancionado dificilmente é uma atitude recomendável. Se afetamos desprezar a razão, é incoerente fazê-lo apenas quando não sanciona as nossas crenças mais queridas, aplaudindo-a calorosamente quando as sanciona.
Em busca da compreensão da sua fé, Anselmo percorreu mais de setecentos quilómetros, deixando-nos um testemunho eloquente do que consegue um ser humano que não foge da responsabilidade de pensar arduamente sobre questões que considera de suprema importância. Em comparação, é um esforço relativamente pequeno, da nossa parte, percorrer os caminhos do raciocínio complexo sobre matérias religiosas — sejamos ou não crentes.
PARA QUE SERVE A FILOSOFIA?
À exceção dos capítulos 3 e 4, encontrámos neste livro temas bastante arredados de qualquer aplicação prática; mas nestes dois capítulos abordámos temas de óbvio interesse prático. Assim, a ideia de que a filosofia é inútil porque não tem aplicação prática é historicamente falsa.
Em qualquer caso, muitas das atividades a que nos dedicamos são inúteis: a amizade e os jogos de computador, o futebol e o teatro, a matemática pura e o montanhismo. Dedicamos tantas energias a atividades que não têm aplicação prática porque nos realizam e porque gostamos de satisfazer a nossa curiosidade.
Efetivamente, uma vida vale tanto mais a pena quanto menos tempo somos obrigados a dedicar à nossa sobrevivência ou bem-estar primário. Isto devia ser óbvio; mas, quando se menciona a filosofia, tende a ser esquecido, exigindo-se-lhe uma aplicação prática ausente da maior parte das atividades que as pessoas mais valorizam. É irónico que assim seja, pois a reflexão sobre a vida boa, de que vimos um exemplo, dificilmente poderia ser mais prática.
Os capítulos 1, 2 e 5 mostram a falsidade histórica da ideia de que a filosofia trata de questões humanas — que estuda o Homem, como por vezes se diz, na linguagem gasta do machismo. A verdade histórica é que em filosofia temos estudado, ao longo dos séculos, vários tipos de problemas insusceptíveis de investigação científica, sendo poucos os que têm a ver com os seres humanos.
Os seres humanos são com certeza interessantes, mas há muitas outras coisas interessantes. Queremos saber, por exemplo, se há alguma coisa de comum — a vermelhidão — em todas as coisas vermelhas, e, caso haja, o que é isso; queremos saber se há identidade das coisas ao longo do tempo e, caso haja, como ocorre; e queremos saber se duas coisas diferentes — uma estátua e um pedaço de barro — podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Assim, apesar de ser verdadeiro que em alguns casos investigamos em filosofia problemas relacionados com os seres humanos (capítulos 3 e 4), muitos outros casos há em que isso não é verdadeiro (capítulos 1, 2 e 5); e noutros casos (capítulos 6 e 7) só tangencialmente se trata de problemas relacionados com os seres humanos.
Este livro inclui informação histórica, mas ficou patente que, sem compreender os aspectos teóricos em causa, nenhuns elementos históricos nos permitirão fazê-lo. Os problemas filosóficos, assim como as teorias que lhes dão resposta, surgem certamente em contextos históricos, e poderão até ser motivados por eles. Mas só nos seus próprios termos podemos compreendê-los corretamente. Qualquer redução dos problemas filosóficos, e das teorias que lhes dão resposta, a explicações históricas é uma simplificação grosseira.
O contexto histórico que permitiu o desenvolvimento de lentes e telescópios permitiu também os estudos astronómicos de Galileu, mas as suas teorias astronómicas só podem ser entendidas em termos astronómicos, e não históricos; o mesmo ocorre em filosofia. Se não a entendermos em termos filosóficos, o resultado será o gênero de simplismo caricatural de que se queixava Kant:
“Mais ou menos como se alguém, que nunca tivesse ouvido falar ou nada tivesse visto de geometria, ao encontrar um exemplar de Euclides e sendo-lhe pedido um juízo a seu respeito, dissesse, depois de, ao folhear, ter notado muitas figuras: ‘o livro é uma instrução sistemática para o desenho: o autor serve-se de uma língua particular para dar prescrições obscuras, incompreensíveis, que, no fim, nada mais podem conseguir do que o que cada um pode fazer mediante um bom olhar seguro natural, etc.’” (Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura, p. A204-205)
Kant insurge-se contra a atitude de quem desconhece a filosofia, mas para não o deixar transparecer faz comentários laterais sobre contextos históricos, etimologia de palavras, mitologia grega, etc. — evitando cuidadosamente explicar e discutir os problemas, teorias e argumentos especificamente filosóficos que estão no texto.
Os problemas filosóficos são insusceptíveis de investigação adequada por quaisquer outros métodos que não os filosóficos. Enfrentar a sua complexidade e dificuldade exige o melhor de nós, e a experiência dessa entrega é maravilhosa. Todavia, quando não se vê da filosofia senão simplismos caricaturais, quando não se vê o que os filósofos efetivamente têm feito, e continuam fazendo, torna-se difícil compreender o deslumbramento e realização pessoal que a filosofia pode proporcionar. Pergunta-se então para que serve a filosofia, e sugere-se que não serve para coisa alguma. Mas a pergunta está feita ao contrário porque a filosofia não é como um rio que já existe e acerca do qual perguntamos para que serve; a filosofia é antes como uma casa que construímos para responder às nossas necessidades. Assim, a pergunta correta é por que fazem os filósofos filosofia. E a resposta é que a fazem porque essa é a única maneira de responder a problemas que nos fascinam e que queremos esclarecer tanto quanto possível, mesmo que sejamos incapazes de lhes dar respostas definitivas.
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SOBRE O AUTOR
Desidério Murcho é professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto.
É autor de vários livros, destacando-se Essencialismo Naturalizado
(2002), O Lugar da Lógica na Filosofia (2003), Filosofia em Directo (2011) , Janelas para a Filosofia (2014, com Aires Almeida) e Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (2016).
Traduziu vários livros, incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel, Bertrand Russell, Alvin Plantinga, Susan Wolf, W. O. Quine, Nelson Goodman e Simon Blackburn.
Fundou a revista Crítica e escreveu para o jornal Público.