Filosofia Islâmica
Pensadores Muçulmanos de Todos os Tempos
Thiago Tamosauskas
‘Filosofia de todas as cores” - Livro 3
O italiano Cosme de Médici foi um dos homens mais importantes do Renascimento na Europa. Não foi pintor, nem escultor, nem escritor ou mesmo pensador, foi um banqueiro. Herdou do pai a fortuna, a saúde e o talento para os negócios. Além disso, governou Florença durante muitos anos, e ajudou a torná-la a capital da arte em todo o Ocidente. Isso tudo porque Cosme foi um homem rico que soube fazer bom uso de sua fortuna, quiçá o melhor uso: patrocinar as artes em geral.
Ele também amava livros, e como na sua época não existia internet, enviava diversos agentes pelo mundo afora para tentar encontrar tomos raros. Eram caçadores de cultura. Cosme estava particularmente interessado em obras gregas da Antiguidade, uma vez que mais ou menos após o advento do cristianismo, toda a Europa foi, século após século, se esquecendo do grego, e se apegando exclusivamente às obras em latim. Mas Cosme não estava numa busca às cegas, pois sabia exatamente para onde enviar seus agentes: o mundo árabe islâmico.
Ninguém questiona a importância das obras de Platão para o pensamento ocidental, mas quando Cosme cresceu, poucas eram as obras platônicas disponíveis em latim. Já ao leste, principalmente na junção com o Oriente Médio, a situação era outra. Os bizantinos que conheciam o grego podiam continuar a ler Platão no original. Dessa forma, os filósofos do mundo islâmico desfrutavam de um extraordinário grau de acesso à herança intelectual da antiguidade grega. Por exemplo, na Bagdá do século X, leitores árabes tinham o mesmo grau de acesso às obras platônicas quanto os leitores em inglês nos dias de hoje.
Isto foi graças a um movimento de tradução que se iniciou durante o califado Abássida, começando na segunda metade do século VIII. Patrocinado pelo próprio Califa, este movimento almejou importar a filosofia e a ciência grega para a cultura islâmica. O império deles tinha recursos para tal, não só financeiramente, mas culturalmente também. Desde a antiguidade tardia até a ascensão do Islã, o grego sobreviveu como língua de atividade intelectual entre cristãos, especialmente na Síria. Então, quando a aristocracia muçulmana decidiu ter a ciência e a filosofia gregas traduzidas para o árabe, foi para os cristãos que eles se voltaram. Foi um imenso desafio. Mas, já no tempo de Cosme, grandes obras de Platão, Aristóteles, Plotino, assim como o famoso Corpus Hermeticum, estavam não somente preservadas em seu original grego nos califados islâmicos, como traduzidas para o árabe e outras línguas da região.
Enquanto durante muitos séculos os europeus “se esqueceram” de tais ideias, no mundo islâmico elas eram conhecidas a fundo. Em boa medida, o chamado Renascimento foi mais uma redescoberta das ideias da antiguidade grega. Mas, se tais ideias puderam ser revisitadas, foi porque os islâmicos as salvaram da aniquilação. Quando os agentes de Cosme retornaram à Florença, ele logo deu a ordem para que todas as obras encontradas fossem traduzidas para o latim. E o resto é história: tais obras jamais voltaram a ser esquecidas pelo Ocidente.
Mas, estranho de se pensar: se foi o mundo árabe islâmico que preservou tais conhecimentos, será que também não existiram grandes pensadores do Islã? Será que eles se limitaram apenas a preservar tal conhecimento, sem terem dialogado com ele? E, se existiram grandes filósofos islâmicos, por que nós raramente ouvimos falar deles no Ocidente?
Não cabe a mim responder tais perguntas neste prefácio, mas a quem ficou curioso sobre o tema, o restante desta obra será de grande valia. O seu autor, Thiago Tamošauskas, tem se revelado um investigador incansável de escolas de pensamento mundo afora. Antes de falar da filosofia islâmica, ele também já se debruçou sobre a filosofia africana e a filosofia chinesa. Sua intenção, obviamente, não é descrever em minúcias cada uma das ideias dos pensadores islâmicos, mas antes dar uma introdução geral ao assunto, e deixar que cada leitor busque se aprofundar por conta própria no pensamento dos filósofos que mais chamaram a sua atenção — de preferência, lendo-os no original.
Uma grande vantagem do texto do Tamošauskas é que, ao contrário do seu sobrenome, ele é altamente legível e explicativo, às vezes com uma pitada de humor aqui e ali. Em suma: é algo que informa e diverte. Se tudo correr bem, logo logo você estará buscando pelos outros livros desta série, se é que já não os leu.
Rafael Arrais
Por que um ocidental, em particular um ocidental que não tenha nenhuma intenção em se converter ao islam deveria conhecer o pensamento islâmico? Bom, existem várias boas razões e todas elas estão por trás do que me levou a escrever este livro. O pensamento islâmicos nasceu do Islam, a religião que mais cresce no mundo. Para começar, a bússola moral de 1.8 bilhões de pessoas no mundo é a base política de um quarto do planeta (57 países) do mundo. O modo de pensar islâmico está por trás da origem de diversas ciências modernas e explica boa parte da história universal. Por fim, independente de quanto alargue seu horizonte intelectual, conhecer as principais figuras intelectuais desta civilização é por si só enriquecedor para a compreensão do mundo e de si mesmo.
Embora a mensagem do Islam possa ser considerada universal em muitos sentidos, a forma como os muçulmanos vivem, o Islam se transformou com o passar dos séculos. Aqui de cara vemos o primeiro grande preconceito contra o pensamento islâmico por parte dos ocidentais. Acreditam tratar-se de um pensamento monolítico, quando o que temos é um explosivo fractal de criatividade. Um pouco de conhecimento de história bastará para mostrar que apesar de seguir uma mesma essência existem muitos modelos diferentes dentro do pensamento islâmico. Os muitos nomes que veremos nesta obra falarão por si só.
O segundo grande preconceito é achar que a filosofia islâmica é algo parado no tempo, e portanto estático. Muito pelo contrário, a civilização islâmica se desenvolveu por meio de muitas vidas e mentes que exploraram países intelectuais que nunca haviam sido explorados antes em parte alguma do mundo. Foram muitos os desenvolvimentos artísticos, científicos e sociais. O foco deste livro é o desenvolvimento filosófico e intelectual.
Para fornecer uma visão panorâmica desta civilização e sua filosofia, essa obra percorrerá a própria história islâmica dividida em alguns períodos relativamente arbitrários. As primeiras duas partes serão mais históricas do que filosóficas, mas são importante pois formaram a base de tudo o que se desenvolveu depois.
Muhammad (Maomé): O Selo dos Profetas [571 — 632]
É desafiador falar pouco sobre o Profeta Muhammad (saw) [[1]]. Ele foi grandioso como poucos foram na humanidade. Algumas personalidades da história se destacaram por serem grandes líderes espirituais, outras por serem gênios militares, outras por serem impactantes reformadores sociais. Muhammad (saw) fez estas três coisas. O impacto histórico deste homem é tão grande que o historiador Michael H. Hart em seu livro “The 100: A Ranking of the Most Influential Persons in History” o coloca como primeiro lugar de sua lista das 100 pessoas mais influentes que já existiram.
Em sua vida diária era tão correto que nem seus inimigos se atreviam a acusá-lo de qualquer desonestidade. Mas para muçulmanos do mundo todo, Muhammad (saw) é não apenas o exemplo perfeito de ser humano, mas também o mensageiro de Deus definitivo. Esta mensagem vinha a ele por meio do anjo Gabriel e era direcionada a toda humanidade. A partir dela dedicou todo o resto de sua vida a ensinar um modo de vida baseado no monoteísmo puro.
Sua principal lição está expressa na frase que hoje marca a conversão de um muçulmano: “Não há divindade senão Allah”. Mas ele disse isso inicialmente para um povo que não apenas como tradição mas como centro da vida econômica e política. A cidade de Meca já recebia todos os anos milhares de peregrinos em visita a Kaaba, a casa levantada por Abraão, e que há muitos anos era também lar de mais de 360 ídolos adorados por todos os povos árabes. A peregrinação era tanto a unidade cultural e política como o centro da vida econômica. Não demorou a ser perseguido.
Muhammad ensinou ainda sobre o dia do Juízo Final as pessoas seriam julgadas de acordo com suas boas e más ações. Os bons seriam recompensados com o Paraíso e os maus com o Inferno. Sua mensagem, entretanto, sempre enfatizava Allah como o Mais Clemente e o Mais Misericordioso. Quando o número de seus seguidores cresceu e a perseguição escalou para violência. Ele fugiu com os primeiros muçulmanos de Meca para Medina dando início ao calendário islâmico no ano 622 d.C.
Em Medina fundou a primeira comunidade muçulmana e a mensagem de monoteísmo foi enriquecida com instruções sobre como organizar a sociedade e ordenar a vida humana. Seguindo a mensagem de Gabriel, Muhammad institui orações diárias, o jejum no mês do ramadã, a obrigação de dar esmolas, e que a peregrinação para a Kaaba deveria continuar, mas em adoração a um único deus. Também instituiu leis civis de herança, casamento e resolução de conflitos.
Seu enfoque foi sempre o monoteísmo e o amparo social. Suas leis demonstravam preocupação com a distribuição das riquezas, o cuidado com os pobres, órfãos, viúvas e a libertação dos escravos. Após anos de batalhas e proselitismo, conquistou Meca e unificou as tribos árabes sob a bandeira do Islam.
O Alcorão
A mensagem que Muhammad (saw) trouxe está preservada no Alcorão, um livro monumental em complexidade com instruções sobre metafísica, adoração e religião, mas também sobre economia, política e vida social. Um livro que é ainda hoje a obra prima do idioma árabe e é discutido em cadeiras literárias de universidades do mundo todo. Por meio de Muhammad (saw) os árabes ganharam uma obra de indiscutível beleza poética mas também uma fonte inesgotável de ideias e conceitos que ocuparam a mente dos filósofos nos séculos seguintes.
Em diversas passagens podemos ver estímulos ao pensamento e ao estudo e isso teve um impacto duradouro na civilização. Abaixo selecionados estão apenas alguns trechos selecionados dentre os muitos que estimulam os muçulmanos a buscar o conhecimento e a sabedoria.
“Lê, em nome do teu Senhor Que criou” (96:1)
“Não sigas o que ignoras, porque pelo teu ouvido, pela tua vista, e pelo teu coração, por tudo isto será responsável!” (17:36)
“Que escutam as palavras e seguem o melhor significado delas! São aquelas que Deus encaminha, e são os sensatos.” (39:18)
“Em verdade, não é dado a ninguém crer sem a anuência de Deus. Ele destina a abominação àqueles que não raciocinam.” (10:100)
“E na alternação do dia e da noite, no sustento que Deus envia do céu, mediante o que vivifica a terra depois de haver sido árida, e na variação dos ventos, há sinais para os que raciocinam.” (45:5)
“Embora careçam de todo o conhecimento a esse respeito. Não fazem senão seguir conjecturas, sendo que a conjectura jamais prevaleceu, em nada, sobre a verdade.” (53:28)
No primeiro trecho citado vemos uma ordem de leitura dada por Deus a um adulto iletrado. Sim, o revelador da maior obra literária da língua árabe não sabia ler. Deste momento em diante a alfabetização tornou-se uma prioridade ao ponto de um prisioneiro de guerra ganhar a liberdade caso ensinasse dez muçulmanos a ler.
Os demais trechos são, em ordem, um conselho para não aceitar informação acriticamente, uma sugestão para quando em dúvida, uma exortação aos que extraem o melhor do que escutam, um alerta contra a falta de raciocínio, uma orientação para buscar raciocinar sobre a natureza e uma separação entre as opiniões e a verdade. Esta é apenas uma leve amostra do que podemos encontrar no livro sagrado do islamismo.
Vale mencionar um caso típico que ocorre muitas vezes no Alcorão (exemplos em 2:76, 3:65, 28:60, 11:51 etc....) quando ao admoestar o leitor os versos divinos em vez de dizer “Vocês não acreditam?”, diz ironicamente, “Vocês não raciocinam?”. Por fim, entre os títulos que o Alcorão coloca para si mesmo não encontramos nem uma vez o título “Livro de Fé”, mas encontramos várias vezes (exemplos: 5:15, 6:59, 10:61), o nobre título de “Livro Lúcido.”
Suna, os ditos e feitos atributos a Muhammad (saw)
Muhammad (saw) foi talvez a pessoa mais biografada da história. Basta ver que apenas em sua própria geração temos mais de sessenta biógrafos conhecidos. Durante sua vida, seus seguidores anotavam tudo o que podiam a respeito dele. Da largura de sua barba até com qual pé costumava se levantar de manhã. Também registraram muitos ditos e feitos (chamados hadiths) que compõem a Suna (o caminho percorrido) e que hoje para a maioria esmagadora dos muçulmanos parte da sua revelação divina ao lado do Alcorão. Separei alguns exemplos destas citações. Note que Muhammad (saw) falou sobre muitos assuntos diferentes durante a vida, os ditos aqui selecionados são aqueles que acredito tiveram uma relevância maior na amplitude intelectual do mundo islâmico:
"A tinta do sábio vale mais que o sangue do mártir.”
“A busca pelo conhecimento é um dever para todo muçulmano e muçulmana.”
“O excesso de conhecimento é melhor que o excesso de adoração.”
“Aquele que segue o caminho do conhecimento tem seu caminho para o Paraíso facilitado por Allah.”
“O pior suplício no dia da Ressurreição será o do estudioso que não aproveitou seu saber diante de Allah”“
"Uma hora de estudo é às vezes melhor do que um ano de oração.”
A Consulta
Um costume do profeta muito importante no desabrochar do pensamento islâmico foi a instituição da Shura, a Consulta. A ideia de que uma conversa objetiva entre as partes interessadas é a melhor forma de resolver um problema para o qual não havia nenhuma revelação específica. Nas sessões de consulta todos os interessados expressam suas opiniões e cada pessoa tenta defender suas próprias idéias e refutar a ideia dos outros. Os critérios de sucesso de uma consulta é que, a conversa seja feita de maneira impessoal, que se não houver consenso haja um moderador forte presente capaz de reunir todas as opiniões e adotar a melhor, e que uma vez decidido a solução não pertença a um “lado vencedor” mas que todos se apropriem da decisão e confiem os resultados a Allah.
No Alcorão a Shura é mencionada, por exemplo em 3:159 e 42:38:
"Consulta-os nos assuntos do momento e quando te decidires, confia em Allah, porque Allah aprecia aqueles que nele confiam."
"E aqueles que atendem ao seu Senhor, observam a oração, resolvem os seus assuntos em consulta e fazem caridade daquilo com que os agraciamos"
A Consulta está presente também na biografia de Muhammad (saw). Em uma ocasião em que os muçulmanos precisavam se defender, os anciãos acreditavam que deviam permanecer em Medina e proteger as fortalezas atirando flechas e pedras dos telhados de suas casas. Mas os jovens preferiram enfrentar o inimigo fora da cidade. O Profeta escutou a todos e adotou a segunda visão. Em outro momento, aceitou o conselho de um persa que propôs que uma enorme trincheira fosse cavada evitando acesso a cidade e facilitando a defesa - uma ideia completamente nova entre os árabes.
Muhammad (saw) deu um exemplo claro de Shura em momentos importantes de sua biografia, mas também o fazia de forma cotidiana com sua família e amigos e na vida conjugal. Ainda que fosse o mensageiro de Deus, Muhammad sempre consultava seus companheiros e sua esposa em assuntos e problemas para os quais nenhuma revelação havia sido feita.
Ibn Muflih relatou: Al-Hasan al-Basri, que Allah tenha misericórdia dele, disse: “Na verdade, Allah Todo-Poderoso não ordenou a seu Profeta, que a paz e as bênçãos estejam com ele, que consultasse seus companheiros porque precisava de suas opiniões. Em vez disso, ele pretendia que eles reconhecessem as bênçãos da consulta. ”
Com estes e outros exemplos, muitas vezes o profeta aconselhou seus seguidores a, diante de uma decisão importante, conversarem objetivamente na busca da solução de algum problema. Como resultado, o debate honesto foi elevado ao status de preceito espiritual.
Hoje um quarto da humanidade segue, ainda que de diferentes formas, os ensinamentos de Muhammad (saw) baseados no Alcorão, nos hadiths e quando em dúvida, na Shura. Às artes e às ciências passaram por uma renovação épica. A matemática ganhou novas áreas como a álgebra e a trigonometria. A medicina e a arquitetura progrediram de formas espetaculares e o mesmo ocorreu em áreas filosóficas como na ética, metafísica, política e epistemologia. Hoje um terço das estrelas do céu tem nomes árabes, nas páginas seguintes conheceremos alguns nomes que formaram o céu estrelado do pensamento islâmico.
Abu Bakr: O Primeiro Califa [573 – 634]
Após a morte de Muhammad (saw) os muçulmanos precisaram escolher um líder. A disputa ficou entre Abu Bakr e Ali bin Talib com escolha da maioria dando a vitória para o primeiro, que entrou para a história como o primeiro de quatro “Califas Bem Orientados” a governar entre os muçulmanos.
Abu Bakr foi um dos primeiros árabes a se converter ao Islam. Ele também participou de todas as batalhas e colocou toda sua fortuna pessoal a serviço da mensagem do profeta Muhammad (saw) ao fugir para Medina. Por fim, foi ele que anunciou ao povo de Medina que o profeta havia falecido. Suas palavras dentro da mesquita ecoaram pelo mundo árabe:
"Ó povo, aquele que adora a Muhammad (saw), saiba eis que Muhammad (saw) está morto realmente. Mas, aquele que adora a Allah, eis que Ele está vivo e nunca morre."
E concluiu com um versículo do Alcorão (3:144):
"Muhammad não é senão um Mensageiro, a quem outros mensageiros precederam. Porventura, se morresse ou fosse morto, voltarias à incredulidade? "
Abu Bakr sabia que não era profeta e não recebia ele mesmo mensagens ou orientações celestiais. Sua preocupação portanto foi manter-se fiel aos ensinamentos de Muhammad (saw), no primeiro dia do seu califado ele deixou clara sua posição dizendo:
“Fui eleito para liderar-vos e não sou o melhor dentre vós, se agir convenientemente, ajudai-me, e se errar, corrigi-me. O mais humilde entre vós será poderoso, pois estarei ao seu lado até que lhe seja feita justiça; e o mais influente entre vós será o mais humilde na minha consideração até que eu reprima a injustiça que ele cometer. Obedecei-me enquanto eu obedecer a Deus e a Seu Mensageiro. Se vier a desobedecer a Deus e a Seu Mensageiro, então, eu não tenho nenhum direito a que vocês me obedeçam.''
Foi uma época turbulenta. A rápida prosperidade dos árabes começou a chamar atenção tanto do Império Romano ao oeste como do Império Persa ao sul. Por fim, algumas tribos questionavam os tratados feitos com Muhammad não eram mais válidos agora que ele havia morrido, outras retornaram ao politeísmo e até atacaram Medina para ganhar o controle político da região. Apesar de tudo isso Abu Bakr conseguiu manter a estabilidade política da península.
Isso não foi conseguido sem confronto militar. Aqui Abu Bakr se destaca por ser o grande defensor das leis militares recebidas por Muhammad (saw), incluindo:
● Não matar idosos,
● Não matar mulheres
● Não matar crianças
● Não derrubar as árvores
● Não matar animais a não ser para ser alimento
● Não molestar monastérios e sacerdotes
● Não matar usando fogo
● Não mutilar corpos mortos ou usa cabeças como troféus
● Não matar quem se render
● Não agir covardemente
● Não roubar dos espólios
● Cuidar e alimentar os prisioneiros de guerra.
Este foi um dos primeiros esforços da humanidade em definir regras para amenizar os horrores da guerra seiscentos anos antes de São Tomás de Aquino escrever sobre seu conceito de guerra justa e mais de um milênio antes da Convenção de Genebra criar a definição de crimes de guerra. Do califado de Abu Bakr até Saladino enfrentando os cruzados, estes conceitos não eram apenas uma conduta esperada dos soldados, mas uma obrigação religiosa.
Abu Bakr garantiu a unidade do califado fortalecendo o conceito de Ummah, iniciado por Muhammad (saw). Ummah significa comunidade. Reafirmando e estendendo às alianças iniciadas pelo profeta Abu Bakr fortaleceu a ideia de Nação, ou seja, de uma unidade política autodeterminada. Uma época de fome e escassez de comida em Meca foi sanada pela ajuda de mantimentos enviados da Síria. Um ataque sofrido por uma cidade no Iémen era a mesma coisa que um ataque sofrido em Medina. Algo muito diferente do tribalismo, reinados e impérios que o mudo conhecia até então. Povos de terras distantes enxergavam-se como uma unidade política, econômica e militar.
Apesar da façanha política de enfrentar o Império Romano e a criação de um senso de nação entre os árabes, o grande feito do primeiro de Abu Bakr foi outro. Ocorre que durante estas batalhas muitos recitadores do Alcorão morrerão. Após participar de uma Consulta com outros companheiros do profeta, Abu Bakr foi convencido que de alguma forma a mensagem precisava ser preservada. Ainda existiam muitos recitadores capazes de recitar na íntegra toda mensagem transmitida por Muhammad (saw), baseado nestes recitadores pela primeira vez o Alcorão ganhou a forma de um volume único entre duas capas. O califado de Abu Bakr durou apenas dois anos, portanto a compilação definitiva do Alcorão ocorreu pouquíssimo tempo após o falecimento de Muhammad (saw). Em termos de comparação é como se os apóstolos de Jesus (saw) tivessem escrito e compilado todo o evangelho no dia de Pentecostes.
Omar: O Grande Administrador [584 – 644]
O segundo califa bem orientado dos sunitas têm uma história muito interessante e, em certa medida, semelhante a aquela que no cristianismo vemos em Paulo de Tarso. Estes dois homens eram no início perseguidores da religião que abraçaram depois. Ambos eram poderosos e respeitados em suas sociedades, sabiam ler e escrever e tinham o dom da oratória. Ambos entendiam que as religiões que estavam nascendo eram uma ameaça ao seu modo de vida, A diferença é que enquanto Omar fazia isso Muhammad (saw) ainda vivo. Por essa razão, resolveu matá-lo. Ocorre que ao ir em direção ao profeta Omar soube que sua própria irmã e cunhado haviam se convertido ao Islam. Ao confrontá-los teve pela primeira vez acesso a uma passagem do alcorão.
Isso bastou para que se convertesse. Logo em seguida voltou a procurar o profeta, mas desta vez não para matá-lo e sim para jurar fidelidade a ele.
Omar dedicou então todo o resto de sua vida a sua causa e por fim se tornou um dos maiores califas que o islam já teve. Ao assumir se dirigiu aos habitantes de Medina dizendo:
"Ó povo de Medina, vocês têm direitos sobre mim que deverão sempre ser reivindicados. Um desses direitos é o de que quem vier até mim para pedir deve sair satisfeito. Um outro direito é que vocês devem exigir que eu não use injustamente as receitas do estado. Também podem exigir que eu fortaleça suas fronteiras e não os coloque em perigo. Também é seu direito que, ao saírem para lutar, eu cuide de suas famílias como um pai faria na sua ausência. Ó povo de Madina, permaneçam conscientes de Deus, perdoem minhas faltas e ajudem-me em minha tarefa. Orientem-me no bem e proibam-me o mal. Aconselhem-me em relação às obrigações que Deus me impôs..."
Omar falava sério sobre seu zelo com as receitas do estado. Até a época de Abu Bakr a distribuição do dinheiro recolhido como esmola para os pobres era feita de maneira quase instantânea. No final do califado de Abu Bakr às contas públicas de Medina estavam positivas em apenas 1 dirham. Já Omar entendeu que essa distribuição poderia ser feita de forma mais inteligente. Ele criou a Bayult al-Mal (A casa do dinheiro), instituição financeira responsável por administrar a crescente entrada de impostos recolhidos em terras islâmicas recém convertidas, bem como sua cada vez mais complexa distribuição aos mais necessitados. Omar convocou matemáticos para orientá-lo, estabeleceu salários regulares para os soldados e fez um censo da população no sentido de estipular taxas e distribuições equitativas. Bayult al-Mal foi a primeira forma de Seguro Social da história garantindo a libertação de escravos e a subsistência de anciões, órfãos, viúvas e deficientes físicos.
O califado de Omar prosperou e estendeu às fronteiras da comunidade islâmica para além da Arábia. Sob seus domínios o islam foi abraçado pela Síria, a Mesopotâmia, Azerbaijão, Palestina, Iraque, Egito e uma parte da Pérsia. Esta nova extensão geográfica tornou necessária uma definição mais clara das leis islâmicas que agora eram agora seguidas por povos distantes, que nem sempre falavam árabe.
A centralização, que já era difícil para Abu Bakr, tornou-se inviável no período de Omar. Ele dividiu o território em províncias e territórios autônomos com seus próprios governadores. Para unir todos estes territórios criou a primeira escola de jurisprudência islâmica, ou Fiqh. Anteriormente Muhammad já havia criado uma constituição para a cidade de Medina, chamada “Documento da Ummah” que serviu de base para a nova realidade internacional, particularmente no tocante a boa convivência com outras religiões, em particular os judeus.
O Fiqh de Omar também estabeleceu regras baseadas no Alcorão, deu continuidade às determinações do profeta e criou um método de como extrair da revelação novas leis usando o Qiyas, a lógica dedutiva. De acordo com esse princípio aquilo que não havia sido legislado deve ser inferido racionalmente a partir de assuntos similares. Foi assim, por exemplo, que Omar proibiu o ópio e outras drogas recreativas, pois o álcool já havia sido condenado no Alcorão.
Uthman: O Generoso [573 — 656]
O terceiro califa Uthman assumiu logo após a morte de Omar. Assim como os dois califas sunitas anteriores, ele foi eleito por uma comissão formada por companheiros que haviam conhecido e convivido com o profeta Muhammad (saw). Ele mesmo havia sido marido de duas das filhas do profeta, primeiro com Ruqayya, e após tornar-se viúvo com Kulthum. Por esta razão passou a receber o título de “O Possuidor das Duas Luzes”. Em termos culturais foi um continuador dos projetos de seus antecessores, em especial na distribuição na expansão territorial com a conquista completa da Pérsia. Mas foi o primeiro a ter que lidar com divisões internas dentro da comunidade islâmica.
Em primeiro lugar Uthman foi importante por manter a fidedignidade do Alcorão pelo agora vasto território islâmico. Conforme o Islam se espalhou a pronúncia de algumas frases da revelação começaram a ser pronunciadas com regionalismos. Isso foi observado por Uthman tanto na Pérsia como no norte de África. Para preservar a forma original o califa ordenou que fossem feitas cópias da versão compilada por Abu Bakr, e que essas fossem enviadas aos governantes como a versão fidedigna da revelação. Ainda hoje este é o texto seguido por todos os muçulmanos do mundo.
Seu outro título “O Generoso” pode ter tanto haver com a aceleração da distribuição de recursos aos mais pobres quanto a nomeação de parentes para cargos administrativos. Ele promulgou uma lei que os novos territórios conquistados não fossem mais distribuídos entre os soldados, mas sim ficassem em poder do califado para administrar. Como resultado as receitas se multiplicaram intensamente, permitindo que ele aumentasse em 25% o subsídio recebido pelos necessitados e que as pessoas comuns pudessem fazer empréstimos da casa do tesouro.
Por outro lado, os exércitos mostraram insatisfação e exigiam que o califa renunciasse. Uthman era inflexível neste ponto mas também não fez nada para conter as forças rebeldes. Ele poderia, se quisesse ter facilmente eliminado o problema pela raiz, mas se recusou a enfrentar outros muçulmanos com violência. Em vez disso tentou convencer os revoltosos com gentileza, principalmente porque se lembrava de um dito do profeta Muhammad (saw) que dizia:
"Uma vez que a espada seja desembainhada entre meus seguidores, ela não será embainhada até o Último Dia."
Desta forma o califa Uthman não queria para si a responsabilidade de levantar a espada. Como resultado foi o primeiro a recebê-la. A revolta escalou em uma multidão armada cercando sua casa e tirando sua vida. Diante do caos político e a beira de uma guerra civil, os companheiros do profeta se reuniram uma última vez e elegeram Ali, como aquele que seria o último dos quatro califas bem orientados.
Ali bin Talib: O Príncipe dos Crentes [656 – 661]
Ali bin Talib é hoje uma unanimidade entre os muçulmanos. Foi o primeiro homem a se converter ao Islam quando tinha apenas dez anos (a primeira pessoa foi a esposa do profeta, Kadhija). Era primo mais novo de Muhammad (saw), casou-se com sua filha mais nova, Fátima, e conviveu com o profeta durante toda sua vida. Para os sunitas Ali é o quarto Califa Bem Orientado e tanto Abu Bakr, Omar e Uthman costumavam consultá-lo frequentemente. Para os sufis Ali é o Amir al Muminin, o Príncipe dos Crentes. E para qualquer pessoa que conheça história do pensamento árabe é uma das mentes mais vivas e brilhantes que já existiu.
Ali foi o único ser humano a nascer dentro da Caaba. De fato, um certo grupo de muçulmanos entendia que desde a morte do profeta Mohammad (saw), Ali deveria ser o líder da comunidade islâmica. Este grupo de muçulmanos recebe o nome de xiitas que vem de “Shiat Ali” ou “Partido de Ali” e até hoje contam sobre um episódio chamado Ghadir Khumm, no qual a nomeação de Ali como sucessor teria sido feita pelo próprio Profeta. Para os xiitas, Ali é portanto o primeiro Iman da Ahl al-Bayt, a casa profética de onde nasceriam todos os descendentes do profeta e guias da comunidade islâmica até o fim dos tempos. Nos próximos capítulos falaremos de mais dois destes imans, particularmente importantes no fechamento da era formativa do islam, a saber: Husayn e Jafar.
Além de um grande muçulmano Ali foi também um grande pensador, estudioso do Alcorão e pioneiro entre os árabes nos campos da gramática e da retórica. Seus discursos, sermões e cartas serviram por gerações como modelo de expressão literária apesar dessa personalidade versátil, permaneceu um homem modesto e humilde. Muito erudito, seus sermões e cartas foram reunidos no Nahjul Balaghah (Ápice da Eloquência) a obra-prima da literatura xiita, onde foram reunidas cartas suas tratando de metafísica, administração, ética, epistemologia e arte, além de leis de governança para evitar corrupção e evitar privilégios e abusos das elites.
O Nahjul Balaghah apresenta duas formas de abordagens do conhecimento. A primeira é pela observação da natureza e do mundo sensível como um todo que reflete o conhecimento e a perfeição do Criador. A segunda é o uso de meios puramente lógicos. Desta forma, pelos sermões de Ali temos o início do racionalismo dentro do Islam. Segundo ele “A felicidade do homem é sua razão, se for humilhado será exaltado pela mesma, se cair será levantado, se se desviar será orientado, e se falar será corrigido”. Em outro trecho afirma que “Não há riqueza igual a razão, e não há pobreza igual a ignorância, e a razão é a fonte do bem, a característica mais honrada e a maior beleza.”.
A razão e a observação do mundo tem tamanha ênfase que são dadas por Ali como ingrediente indispensável para manter a fidelidade na crença em Deus:
“Existem quatro causas de infidelidade e perda de crença em Allah: anseio por caprichos, paixão por disputar todos os argumentos, desvio da verdade; e dissensão, porque quem anseia por caprichos não se inclina para a verdade; quem continua discutindo todos os argumentos por causa de sua ignorância, permanecerá sempre cego para a verdade; quem se desviar da verdade por causa da ignorância, sempre aceitará o bem pelo mal e o mal pelo bem, e sempre permanecerá intoxicado sem a orientação correta. E quem cria uma brecha (com Allah e Seu Mensageiro) seu caminho se torna difícil, seus negócios se complicam e seu caminho para a salvação é incerto.”
Algumas de suas máximas ganharam o status de ditos populares e podem ser reconhecidas mesmo em países estrangeiros por onde os muçulmanos passaram. Abaixo uma breve seleção:
— Filosofia é uma árvore que nasce do coração e produz frutos na língua.
— Quer saber onde está seu coração? Veja para onde sua mente vai quando divaga.
— Não siga a maioria, siga a verdade.
— Toda porta tem uma chave, toda noite uma manhã.
— Trabalhe por uma boa vida como se fosse viver para sempre e trabalhe por um bom fim como se fosse morrer amanhã.
— O silêncio é às vezes a mais eloquente das respostas.
— Duas coisas definem alguém: a paciência quando não tem nada e a atitude quando tem tudo.
— O inimigo do seu amigo é seu inimigo.
— O primeiro a se desculpar é o mais corajoso. O primeiro a perdoar é o mais forte. O primeiro a esquecer é o mais feliz
— Nunca tome decisões na ira nem faça promessas na euforia.
— Não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje.
— Pensar nas consequências é a preservar-se do perigo.
— A melhor vingança é melhorar a si mesmo.
— O conhecimento mais útil é o que é posto em prática.
— O rei que não governa a si mesmo não pode governar os outros.
— A língua é mais afiada que a espada
— Nunca faça escondido o que o faria corar se descoberto.
— Nunca bata uma porta que precise abrir depois
— Quem cava um buraco para o outro costuma cair nele.
— O sábio pensa antes de falar, o tolo fala e depois pensa.
— A verdade nasce do choque de opiniões.
— O conhecimento é o chefe dos talentos.
— Riqueza se perde ao ser gasta, o conhecimento cresce ao ser espalhar
— Colha o melhor de cada saber, como as abelhas colhem o melhor de cada flor.
— Não odeie o que você não conhece, pois a maior parte do saber consiste no que você não conhece.
— Quem esconde o que sabe mostra que não sabe nada.
— O religioso sem instrução é como um burro de moinho girando no mesmo lugar.
— Como conhecer algo sem conhecer a si mesmo?
Durante o califado de Ali a ummah já se estendia em três continentes tocando os extremos de Bizâncio, Persa e Egito. Conforme visto no capítulo anterior ele precisou lidar com a questão da morte do califa anterior, Uthman e entendeu que a principal causa da revolta era a influência de governadores corruptos, em especial Amr Bin Al-Aas, o governante do Egito. Desta forma, assim que assumiu ele demitiu todos os governadores anteriores e indicou novas pessoas de sua confiança. Todos, exceto Amr e o governador da Síria, Moáuia, deixaram seus cargos. A situação política ficou tão tensa que Ali saiu do eixo Meca/Medina e mudou a capital administrativa do califado para o Iraque.
Havia ainda um outro grupo de muçulmanos chamado Kharijitas. Eles acreditavam que a era do califado havia acabado e que os muçulmanos não precisavam de líder nenhum exceto Allah. Convencidos disso, os assassinos foram enviados para matar tanto Ali como os governadores. Ali foi morto com uma espada envenenada enquanto orava, mas Moáuia conseguiu se salvar e tomou o poder completo para si. Sem oposição Muáuia conseguiu estabelecer o centro do poder na Síria e capital do mundo islamico mudou para Damasco. A partir de então o poder das terras islâmicas foi exercito pelos descendentes de Muáuia, era o início do Califado Omíada.
Abu Hurairah: O Grande Narrador [603 – 681]
A Suna, como vimos, é uma parte importante da religião islâmica e para a maior parte dos muçulmanos é uma fonte de revelação e instrução que só perde em autoridade para o próprio Alcorão. Três séculos depois da morte do profeta Muhammad (saw) os muçulmanos teriam uma biblioteca enciclopédica dos ditos e feitos do profeta compilada por personalidades grandiosas que dedicaram suas vidas a verificar a autenticidade de cada palavra. Mas antes de todos eles existiu Abu Hurairah.
Abu Hurairah é considerado um dos companheiros do profeta e, assim como os quatro califas, também conviveu com ele por pelo menos dois anos inteiros. Apesar de ser um tempo relativamente curto, isso bastou para fazer de Abu Harairah o mais prolífico narrador dos hadiths (os ditos e feitos do profeta) que atravessaram gerações até os dias de hoje. Ele registrou tudo o que via ou ouvia o Muhammad (saw) fazer, mas também tudo o que os outros companheiros diziam ter visto e ouvido.
Graças a Abu Hurairah sabemos não apenas das virtudes de Muhammad (saw) como uma pessoa honesta, paciente, trabalhadora e caridosa, mas também que ele gostava de gatos, não falava palavrão, usava perfume, dormia virado pro lado direito, lambia os dedos depois das refeições e quando bebia água dava goles curtos, entre muitos outros detalhes. São ainda dos hadiths que os muçulmanos tiram instruções detalhadas sobre como deve ser o jejum do Ramadã, as orações e a peregrinação para Meca. Estes relatos são considerados hoje um verdadeiro tesouro do islam, mas em seu tempo lhe causou alguns problemas.
Sua história começa com ele chegando em Medina no sétimo ano da Hégira na situação de um indigente com outros de sua tribo sem qualquer posse. Ele não tinha terras para cultivar nem mercadorias para comprar ou vender, trabalhava apenas como cuidador de camelos das pessoas que retornavam de viagem, mas usava quase todo o seu tempo para ficar na companhia do profeta e seus companheiros. Não por acaso muitas vezes não tinha dinheiro para comer e confessou:
"Quando a fome me atingia, eu procurava por um companheiro do Profeta e lhe perguntava sobre um versículo do Alcorão e (ficava com ele) aprendendo, porque assim ele me levava à sua casa e me dava comida."
Ele tinha fama de ter uma memória fabulosa. Certa vez colocaram essa memória em teste quando, Marwan ibn Al-Hakam anotou em segredo um hadith particularmente longo. Um ano depois pediram para Abu Hurairah e ele repetiu a história exatamente com às mesmas palavras, sem acrescentar nem retirar nada.
A anotação dos hadiths foi nos primeiros anos da Hégira um assunto controverso. Talvez por receio de não misturar com às páginas transcritas do Alcorão o Profeta Muhammad não se opunha aos relatos orais, mas foi contra o registro escrito dos mesmos. Curiosamente hoje essas mesmas reprovações são encontradas registradas nas coleções de hadiths:
"Não escreva nada de mim, exceto o Alcorão. Qualquer um que escreveu algo diferente do Alcorão deve apagá-lo. Venham falar comigo. Não tenham vergonha."
Sahih Muslim: 3004
Estávamos sentados escrevendo o que ouvimos do profeta, ele veio até nós e disse: “O que vocês estão escrevendo?”, Dissemos: “o que estamos ouvindo de vocês”, o profeta disse: “Um livro além do livro de Deus ?” (…) Eles então coletaram todos os seus escritos e os queimaram.
Jami Al-Sunan: 585
Com o passar dos anos, e principalmente depois de seu casamento, Abu Hurairah ganhou status e uma boa vida dentro da comunidade islâmica. Os primeiros califas entretanto também foram resistentes aos hadiths, mesmo em suas versões puramente orais, A razão talvez tenha sido porque com a morte do profeta o número de hadiths começou a aumentar bastante e muitas vezes não poderiam ser desmentidos. Assim em dado momento após a morte do Profeta, o primeiro califa Abu-Bakr reuniu pessoas e disse:
"Você está relatando sobre o Mensageiro de Deus, narrações inconsistentes. As pessoas que vierem atrás de você estarão envolvidas em discrepâncias mais intensas. Portanto, não relate nada sobre o Mensageiro de Deus, e se alguém perguntar a você, você deve se referir ao Livro de Deus como o árbitro. Você deve, portanto, julgar lícito tudo o que é lícito nele e considerar ilegal tudo o que é ilegal nele. " Tazkirat Al Huffaz — Abu Bakr — parte 1: 1, página 2
Abu Hurairah entretanto entendia que era muito importante preservar a suna por meio dos hadiths e não interrompeu sua prática. Isso gerou um desconforto cada vez maior com o Omar, o segundo califa. Ele disse certa vez:
"Ó gente, ouvi dizer que os livros começaram a aparecer nas vossas mãos. Quanto mais adequados e precisos forem, melhor. Portanto, ninguém deve guardar o seu livro sem trazê-lo para eu verificar. "
As pessoas que escreveram sobre o profeta presumiram que ele queria ver seus livros, então os trouxeram. Ele recolheu os livros e os incendiou, e então disse: "essa foi a minha exigência e a exigência do povo do livro (Alcorão)". Então ele escreveu aos seus trabalhadores dizendo: "quem quer que receba do sunna (ditos e práticas do profeta) alguma coisa, deve arruiná-lo." Tadween Al Sunna - página 5
É evidente que algumas pessoas nunca pararam de escrever coisas sobre o profeta, apesar das políticas, então Omar finalmente começou a ameaçar os desviantes e puni-los, especialmente Abu Huraira que eventualmente foi encarcerado com um grupo de outros propagadores de hadith, e eles não foram libertados até que Omar morreu.
No Califado de Uthman , Abu Harairah retomou sua tarefa de divulgar os hadiths que havia aprendido. Hoje cerca de cinco mil hadiths dos aproximadamente 10 mil hadiths únicos (sem contar às repetições) nos vieram pela boca e memória deste imparável narrador. Considerado grande conhecedor da suna o status de Abu Harairah foi crescente e nos primeiros anos do califado omíada tornou-se o governador de Medina.
Husayn ibn Ali: O Mártir Modelo [627 – 690]
Husayn foi o filho de Filho de Ali bin Talib e portanto é considerado o quinto califa perfeito segundo alguns poucos sunitas, mas mais do que isso é celebrado como o terceiro Imã por todos os xiitas do mundo. Contudo ele nunca governou de fato a comunidade Islâmica. Seu grande legado para o pensamento islâmico não foram suas realizações enquanto administrador, mas sim a inspiração que seu modelo e exemplo perpetuaram. Apesar de seus antecessores Uthman e Ali terem morrido por sua fidelidade ao Islam, foi Husayn quem protagonizou o mais dramático e emblemático caso de martírio da cultura islâmica.
O episódio ocorreu quando Husayn se opôs ao tirano Yazid I, filho de Moáuia e agora líder da dinastia Omíada. O regime de Yazid I usava a estrutura de poder dos califados anteriores mas agora de forma seletiva. Ele instituiu a Shahanshahi, o modelo do imperialismo persa no qual o califa por ser o líder espiritual dava a si mesmo licença para não seguir certos preceitos religiosos.
Com esse modelo Yazi podia liderar às orações e falar nos púlpitos sem largar seus vícios em vinho e jogos de azar. Esta licenciosidade contudo não era a pior parte do seu governo. Um exemplo prático da diferença entre o shahanshaji e do califado é o harém de Yazid. Em árabe harem é simplesmente a parte da casa em que homens que não são da família não podem entrar. Durante a dinastia omíada harém tornou-se uma exibição de poder na qual o califa colecionava concubinas para seu próprio prazer, vigiadas por eunucos e sustentadas com o dinheiro recolhido do povo.
Mais importante do que tudo isso é que o califado omíada ativamente desencoraja a conversão de novos muçulmanos, para que pudesse coletar o máximo do jizia, o imposto pago pelos não-muçulmanos, que nesta época estava inflado e desproporcional. Como resultado no ano de 750 apenas 8% dos súditos do califado eram muçulmanos. O dinheiro não pertencia mais a nenhuma casa de distribuição, mas fazia agora parte do tesouro pessoal do califa. Na prática o califado virou uma monarquia e Yazid I foi um rei cruel.
Assim que tomou o poder Yazid ordenou que todos os governantes lhes jurassem lealdade. Todos se submeteram, exceto Husayn que havia sido indicado por seu pai Ali como seu sucessor depois que seu irmão mais velho Hassan faleceu nas mãos do califado omíada. Ocorre que Husayn recebeu então uma carta do povo de Kufa, uma cidade no Iraque que se comprometeu em ser fiel a sua liderança ainda que todo os outros muçulmanos traíssem a vontade de Ali. Os poucos muçulmanos que ainda estavam do lado de Hussayn partiram com ele em uma caravana para seu novo lar. A viagem era longa e a notícia acabou chegando aos ouvidos de Yazid. E foi então que no meio da jornada, durante o mês de Muharram, Hussayn foi interceptado no deserto de Karbala. Era o dia de Ashura, no qual segundo o calendário islamico Moises e os Israelitas foram libertos do faraó atravessando o mar vermelho. Contudo o que aconteceu em seguida deu um novo significado a data.
Após uma última recusa em jurar fidelidade houve o embate. A caravana de Hussayn possuía pouquíssimos homens capazes de lutar, mas nenhum deles se rendeu. Foi um verdadeiro massacre, sob ordens de Yazid Hussayn e seus seguidores foram mortos pelos soldados. O fato da matança ter ocorrido em completo desacordo com as leis islâmicas para batalha tornam o episódio ainda mais significativo. Quebraram de uma só vez várias das restrições de guerra ao matar também as crianças, mulheres e idosos da caravana. Quebraram também a regra contra mutilação e a cabeça de Hussayn foi levada até a capital do império. Seu filho Ali ibn Hussayn sobreviveu apenas porque foi enviado para Kufa em outra ocasião e assim pode dar continuidade ao imanato.
A mensagem que ecoou pelos séculos foi a de que a luta contra a injustiça deve ser levada até às últimas consequências. Hussayn ensinou a civilização islâmica que é melhor o oprimido morrer defendendo seus direitos do que viver em opressão. Este é um ensinamento que já existia nos ensinamentos trazidos pelo profeta Muhammad. Um certa hadith diz por exemplo que merecem o inferno tanto opressor como oprimido. O opressor, quando oprime, e o oprimido quando se deixa oprimir.
Husayn tornou-se a encarnação deste símbolo da resistência inquebrável contra a injustiça de forças opressoras, mesmo diante da derrota completa. Sua vida foi um testemunho de que a luta pela justiça tem mérito independente da vitória. Sua morte é considerada como o martírio modelo e é celebrado até hoje pelos xiitas como o maior feriado religioso, além de ser tema de diversos sermões, textos filosóficos e obras de arte e literatura.
O ditado popular "Todo dia é Ashura e toda terra é Karbala!" é utilizado pelos xiitas como um lembrete daquilo que Hussayn enfrentou durante os dias de Ashura no deserto de Karbala. Este ditado é um brado contra a tirania onde quer que ela apareça e uma lembrança de que o muçulmano deve estar pronto para oferecer tudo o que tem no combate a injustiça, onde quer que ela apareça.
Ja'far al-Sadiq: O Jurista dos Xiitas [702 – 765]
Ja'far al-Sadiq foi o sexto imam do islam, sendo, portanto bisneto de Hussayn ib Ali. Esse fato é importante porque foi Jaffar que instituiu e formalizou a teologia xiita, na qual os descendentes do profeta são os Imans perfeitos de cada geração. Esta visão afirma que foram os filhos de Abraão que perpetuaram sua mensagem, os descendentes de Moisés que lideraram Israel e que mesmo Jesus, que não deixou filhos, teve Thiago, seu irmão, como principal liderança após sua missão. Da mesma forma a guia e liderança da ummah (a comunidade islâmica) é uma incumbência de certas pessoas da família do profeta Muhammad (saw). Jaffar era ele mesmo o sexto imã em uma contagem que começa com Ali e segue sua primogenitura.
Estes imans são os seres humanos exemplares que Allah envia para que a humanidade não ficasse sem orientação após a morte do último dos profetas. Eles não apenas poderiam governar as comunidades com justiça, mas também seriam capazes de preservar o islam e interpretar os sentidos exotéricos e esotéricos do Alcorão. Assim os imans, juntos de Muhammad (saw) e sua filha Fátima, compõem a Ahl al-Bayt, as "Pessoas da Casa", os guias infalíveis para a humanidade até o dia final. O último destes imans seria uma figura messiânica, o Mahdi prometido e viria junto com o retorno de Cristo para estabelecer um governo definitivo de paz e justiça na terra.
O legado intelectual de Ja'far al-Sadiq é descomunal. Ele foi o primeiro a sistematizar uma jurisprudência islamica, um conjunto de leis baseados na revelação. Jaffar al Sadiq ensinava que as leis deveriam ter como base o Alcorão, os Hadiths e os ensinamentos dos Imans anteriores a ele em um escalonamento de valores no qual, mesmo um hadith deve ser recusado caso contradiga o que o Alcorão disse. Por outro lado era enfático em dizer que as estas leis deveriam ser racionais, visando o bem comum e apoiada pelo conhecimento dos fatos. Um de seus muitos alunos foi Abu Hanifa, fundador da mais antiga escolas de jurisprudência sunita. Para demonstrar que a jurisprudência islâmica deveria levar em conta o estudo do mundo concreto perguntou certa vez a Abu Hanifa:
“Qual você diria que é a multa adequada para quem quebrar os molares frontais de um veado?”
Hanife não soube responder e Jaffar lhe explicou que não se pode legislar sem conhecimento. Veados não tem molares.
Por essa razão assim além de tratados religiosos Jaffar se dedicava às ciências naturais como astronomia, matemática, medicina e química e fo pioneiro em muitos desses campos. Ele ensinou que mesmo o que não estava diretamente revelado podia ser concluído pelo uso da lógica dedutiva (Qiyas) e pelo uso da lógica (Aql) e que o conhecimento da justiça e da verdade deveria ser tal que o povo pudesse resolver suas disputas entre si sem a necessidade de levar todas as questões para os juízes ou os governantes. Em uma de suas frases ele diz:
“O homem de intelecto mais perfeito é o que for melhor em ética.”
Sadiq também ampliou a forma como o Alcorão poderia ser lido. Segundo ele, para cada verso do livro sagrado há quatro interpretações possíveis: a declaração objetiva, o significado implícito, o significado oculto relativo ao mundo suprassensível e as doutrinas espirituais mais exaltadas. Certa vez meditando sobre um verso ele se levantou e se distanciou dos seus discípulos. Eles foram o interrogar e ele disse que havia percebido um significado oculto em um conhecido verso. Pediram então para que o revelasse. Ele se recusou respondendo: “Se eu o fizesse vocês me apedrejariam."
Jaffar não governou os muçulmanos de seu tempo e permaneceu em oculto sabendo que suas ideias não eram bem vistas pelo califado omíada. Dedicou sua vida à adoração e à produção de tratados sobre filosofia, teologia e jurisprudência. Mesmo tentando não chamar atenção foi capturado durante sua migração para Medina. Todo resto de sua vida passou encarcerado primeiro em Medina, depois em Damasco, Basra e por fim em Bagdá. Ironicamente isso deu a Jaffar a oportunidade de espalhar a doutrina do imanato pelos quatro cantos do império.
Quando o califado Omíada caiu e foi suplantado pelo novo califado Abássida a oportunidade de ensinar, ainda que na prisão, terminou. Na tentativa de combater qualquer possível dissidência, o novo califa mandou acabar com a vida de Jaffar que morreu encarcerado, envenenado com a comida da prisão. Seu legado contudo não pode ser eliminado. A filosofia de Jaffar ainda é estudada e comentada em todo mundo islâmico.
Seus ensinamentos superam em volume a soma de todos os hadiths sunitas e shiitas e sua escola de jurisprudência foi a base de onde surgiram todas as outras escolas nos anos seguintes.
Abu Hanafi: o jurista dos sunitas [699 — 776]
Abu Hanifa como vimos foi um dos alunos de Jaffar e como ele criou uma escola de Jurisprudência. A diferença é que Hanafi desejava estabelecer leis que pudessem ser universalmente aceitos pelos muçulmanos, independente de que grupo pertencessem ou que líderes escolhessem. Para fazer isso entretanto teve que romper com seu professor pois logo de cara entendeu ser preciso negar a autoridade dos imans, seja de Jafar ou de qualquer outro anterior. Nenhum califa ou iman teria para ele a autoridade de definir o lícito e o ilícito. Ao criar sua escola de jurisprudência oficializou-se a separação definitiva entre sunitas e xiitas.
Desta forma a base da lei na escola Hanafi de jurisprudência é formada apenas pelo Alcorão e a Sunna. Para o que não estivesse explicitamente revelado os muçulmanos deveriam usar a razão a e dedução por analogia. A escola Jaffari já tinha a razão (Aql) e a analogia (Qiyas) como ferramentas e os primeiros califas já haviam tomado algumas decisões baseadas nelas. Mas foi Hanafi que instituiu Aql e Qiyas como autoridades na definição de leis. Em outras palavras, se a revelação se cala sobre algo, mas este algo é descoberto pela razão como bom, justo e verdadeiro então deve ser seguido, pois a justiça e a verdade foram exaltadas tanto pelo Alcorão como pelo profeta Muhammad. Se por fim restasse dúvidas às leis poderiam ser tiradas do consenso dos juristas, dos costumes do povo ou do bom senso dos legisladores.
O uso da razão para extrair leis do Alcorão e da Suna tornava essa escola perfeita para implementar o Islam entre diferentes povos, climas e cenários, portanto um instrumento legal perfeito para um governo central com um vasto território e população. Suas ideias logo se tornaram muito populares e pareciam uma ótima maneira do novo califado unir a dividida comunidade islâmica, respeitando as diferenças locais e legitimando sua autoridade. Por essa razão o novo Califa, Al’Mansur ofereceu a Abu Hanafi o cargo de Juiz Supremo do Estado.
O jurista recusou o convite em parte para honrar a memória de seu professor Jaffar e em parte porque queria manter sua independência intelectual. Ele redigiu uma cuidadosa carta ao califa dizendo que não acreditava estar à altura do cargo. A carta não adiantou muito para aplacar a ira de Al’Mansur que entendeu a recusa como uma ofensa pessoal e acusou ele de estar mentindo. “Se estou mentindo”, replicou “então minha afirmação é duplamente correta. Você não vai querer um mentiroso como Juiz Supremo do Estado.
Imediatamente uma ordem de prisão foi emitida e eventualmente Abu Hanafi foi preso, torturado e jogado em uma masmorra, onde permaneceu ensinando sua escola de jurisprudência em troca de comida por aqueles que vinham lhe visitar. Quando morreu aparentemente envenenado como Jafar, mais de 50 mil pessoas vieram ao seu funeral. Era tanta gente que a cerimônia teve que ser repetida seis vezes.
Seu aluno Abu Yusuf assumiu o cargo de Juiz Supremo do Estado e com isso sua escola de jurisprudência foi adotada oficialmente não apenas pelo Califado Abássida, mas também pelo Califado Mughal e pelo Império Otomano, os três dos maiores impérios muçulmanos da história. Ainda hoje o hanafismo é considerado a mais liberal das escolas de jurisprudência islâmicas e a que mais ênfase dá no uso da razão. É também dentre todos os sistemas o que é aceito pela maior parte dos muçulmanos do planeta e profundamente arraigado em países como o Egito, Turquia, Síria, Jordânia assim como dos Balcas e do Cáucaso.
A Ascensão e Queda dos Mutazalitas
É provável que a autoridade conquistada pelas línguas e tinta dos juristas como Jafar al-Sadiq tenha sido, pelo menos em parte, responsável pela queda da dinastia Omíada. Isso porque os Abássidas, grupo formado pelos descendentes de Abas bin Abedal, tio do profeta Muhammad (saw) associaram-se temporariamente às doutrinas xiitas para aproveitar o ressentimento geral que o martírio de Hussayn que ainda gerava entre o povo. A estratégia deu certo e um novo centro de poder se formou, e como vimos antes assim que o Califado Abássida se estabeleceu, Jaffar foi definitivamente silenciado.
O califado Abássida se estendeu da Espanha até a Índia e mudou o centro de poder da civilização islâmica de Damasco para Bagdá. Ele inaugura o que ficou chamado como “A Era de Ouro do Islam”, pois a partir daqui há um enorme avanço civilizacional nunca antes visto na história da humanidade. A influência política abássida se estendeu até a China quando, por exemplo mais de 4000 mercenários árabes foram enviados à dinastia Tang para conter os rebeldes.
Ansiosos para provarem que o islam poderia superar toda a herança helenística fundaram em Bagdá a “Bayt al Hikma” (Casa da Sabedoria) uma verdadeira usina de tradução e redação de comentários explicativos dos clássicos gregos, persas, indianos e chineses para o árabe. Foi de dentro da Bayt al Hikma que saíram por exemplo obras como "As mil e uma noites”, compilando os contos persas e os Códices de Platão e Aristóteles até então ignorados pelo resto do mundo.
Graças a Bayt al Hikma houve uma explosão no aperfeiçoamento da astronomia, química, física, biologia e medicina. Neste contexto, entre os séculos 8 ao 10 surgem os Mutazalitas, a primeira elite de cientistas islâmicos da história. Mutazalitas eram mestres em ciências naturais, filosofia, estratégia e matemática. Nessa época, um grande conhecimento científico significava grande status e poder político dentro do califado.
A história dos Mutazalitas entretanto tem um desfecho curioso. Ela mostra como razão em excesso pode levar à irracionalidade. Os mutazilitas eram todos bastante racionalistas, mas foram com tanta sede ao pote que acabaram abortando o que poderia ter sido feito o Iluminismo acontecer setecentos anos antes em Bagdá.
Alguns nomes importantes deste movimento foram Al Zamakhshari, Al Jahiz, Al Ma’mun, e Judge Abdul Jabbar. Eles criaram uma interpretação islâmica focado na lógica e eliminando tudo o que consideravam errôneo ou supersticioso. Desta forma defendiam que além do Alcorão e dos Hadiths a Razão deve também ser considerada fonte de conhecimento sobre o islam. Uma de suas conclusões caiu como uma bomba na ortodoxia: o Alcorão não é a palavra eterna de Allah.
O argumento era simples:
— O Alcorão condena ao inferno certas pessoas nominalmente.
— Os hadiths afirmam que as pessoas tem livre-arbítrio
— Portanto o alcorão não pode ser eterno.
Em outras palavras, para eles primeiro existe Deus, e depois sua palavra. Isso incomodou demais os teólogos que se recusavam a aceitar o argumento. Foi ai que às coisas começaram a dar errado para os mutazalitas.
Quando os mutazilitas perceberam que haveria resistência, criaram a versão islâmica e racionalista da inquisição, o Al'Mihna (O Teste). Quem quer que não concordasse com a visão racionalista - e que o Alcorão não é eterno - era perseguido, preso ou morto.
Mas o tiro saiu pela culatra. Houve tanta pressão sobre quem não concordava com as conclusões dos mutazilitas que a ortodoxia se uniu e formou uma nova força política. Ela soube convencer tanto o povo como a elite que este pensamento racionalista era herético. Em pouco tempo o califa tirou a proteção e o status dos mutazilitas.
Malik ibn Anas [767—820]
Malik ibn Anas foi um dos mais icônicos Mutazalitas e a extensão do seu trabalho ecoa até os dias de hoje. Com o crescimento e solidez das cidades islâmicas surgiram também várias novas disputas, questões e desavenças próprias do contexto urbano. Eram necessárias novas leis para resolver problemas que antes não existiam. Desta forma, Malik ibn Anas pode ser considerado um continuador do trabalho dos juristas anteriores, em particular Abu Hanafi. Seu principal legado na cultura islâmica foi ter enfrentado um novo e perigoso desafio: a proliferação de hadiths deturpados e falsos.
Para isso ele inaugurou um campo inédito do saber dentro da jurisprudência chamado Ilm’Hadith, “Conhecimento dos Relatos”, dedicado a certificar a confiabilidade histórica dos ditos e feitos do profeta Muhammad (saw). Várias gerações já haviam se passado e agora era necessário um filtro racional capaz de diferenciar as tradições autênticas das inventadas.
Malik ibn Anas propôs que um hadith deveria portanto atender os seguintes critérios:
— Toda cadeia de narração, do narrador até o Profeta (saw) ou seus companheiros deve ser conhecida e sem interrupção.
— Cada elo da cadeia de narração deve ter sido muçulmano e ter a biografia conhecida.
— As biografias de cada narrador devem se relacionar com seus antecessores e sucessores.
— Cada elo da cadeia de narração deve ter sido conhecido por sua boa memória (por exemplo, tento decorado a recitação do Alcorão)
Cada elo da cadeia de narração deve ter se destacado como uma pessoa honesta e virtuosa.
— Todas narração da corrente devem ser repetidas palavra por palavra e não apenas no seu significado geral.
— Não pode haver discordâncias na narração feita por contemporâneos.
— O hadith deve estar livre de irregularidades, ou seja não pode contradizer o Alcorão nem outros hadiths comprovadamente autênticos.
Baseado nesses critérios uma narração podia ser então classificada como “Sahir” (auténtica), “Hasan” (Boa), “Da’if (Fraca), ou como foi na maior parte dos casos, simplesmente descartada.
A certificação de um hadith era um trabalho demorado e poderia levar anos. É conhecido o caso, por exemplo, de um pesquisador ter viajado por meses para colecionar um hadith e ao chegar na cidade encontrar o narrador mostrando uma bolsa vazia de feno tentando enganar um cavalo para que andasse. Ao ver isso o pesquisador foi embora, por entender que o indivíduo não era plenamente confiável.
Malik ibn Anas reuniu os resultados de suas pesquisas em um livro que demorou quarenta anos para ser escrito chamado Muwatta (O caminho bem trilhado). Ele foi o primeiro de outros cinco pesquisadores importantes cujo trabalho resultou na coleção chamada Kutub al-Sittah (Os seis livros), contendo:
— Muwatta Malik, pesquisado por Imam Malik
— Sahih Bukhari, pesquisado por Imam Bukhari
— Sahih Muslim, pesquisado por Muslim
— Sunan al-Sughra, pesquisado por al-Nasa'i
— Sunan Abu Dawood, pesquisado por Abu Dawood
— Jami al-Tirmidhi, pesquisado por al-Tirmidhi
Para fazer seu livro Malik peneirou um universo de opções e reduziu os cem mil hadiths que tinha à disposição em uma coleção de apenas mil e novecentas narrações. Outro famoso pesquisador, Imam Al Bukhari elegeu apenas sete mil tradições disponíveis em sua época de uma coleção de mais de seiscentos mil relatos.
O último desses seis livros só foi concluído quinhentos anos depois de Malik. Neste período a ciência do Ilm’Hadith tornou-se ainda mais rígida, incluindo descarte por análise textual e variações estilísticas de forma que hoje o Kutub al-Sittah é universalmente aceito pelos sunitas. Juntas, e excluindo as repetições às seis obras compõem cerca de 16 mil narrações cuja autoridade perde apenas para a do próprio Alcorão.
Al'Ash'ari [873 – 935]
Outro grande nome dentre os mutazalita foi Al'Ashari, que soube como poucos aproveitar a grande abertura cultural ao helenismo promovida pelo Califado Abássida. Segundo os historiadores ele escreveu cerca de 300 livros sobre filosofia e lidou com temas como atomismo, livre arbítrio, epistemologia, lógica e teologia. Até os quarenta anos foi um dos mais proeminente pensadores da escola mutazalita, que defendia o raciocínio como o caminho para a verdade.
Entretanto, após a reação da ortodoxia contada no capítulo anterior Al’Shari também mudou. Talvez para manter o emprego e a vida, talvez para manter a sanidade, em dado momento chegou a conclusão que era impossível estabelecer apenas pelo raciocínio certezas absolutas a respeito de moralidade e da metafísica e com isso deu início a escola asharita de pensamento. Para justificar essa mudança brusca ele conta que sonhou três vezes como profeta Mohammad durante o Ramadã e que nestes sonhos o mensageiro de Deus o orientou.
Seu ponto de partida é que a justiça não é uma realidade objetiva como acreditavam os mutazalitas. É Allah todo poderoso que define o bem e o mal por meio de seus mandamentos e proibições. Ou seja, seus antecessores diziam que Deus envia seus mandamentos porque estes são justos e bons, mas al’Shari dizia que um mandamento só é justo e bom porque foi ordenado por Deus. Alguns atos e decretos de Deus podem parecer injustos, mas isso é porque Deus não pode ser sempre compreendido pelos limitados sentidos e razão dos seres humanos.
A escola asharita se tornou uma oposição perfeita aos mutazalitas se opondo a cada um dos seus principais pontos. Entre eles, negava que o Alcorão era eterno e que Allah pode ouvir, ver e falar como os seres humanos (seus atributos de visão, audição e expressão não podem ser reduzidos a formas humanas).
Se opondo a perseguição intelectual realizada pelos mutazilitas Al’Shari dizia ser imoral qualquer tentativa de impor um ponto de vista qualquer pela violência. Ele ia ao extremo de rejeitar até a oposição violenta aos líderes infiéis, mesmo quando os governantes abertamente desobedecessem os mandamentos da lei sagrada. Isso porque, segundo ele, uma pessoa não pode ser considerada Infiel por conta de atos específicos. Apenas Deus conhece toda a história, o coração e a vida de uma pessoa por todos os ângulos possíveis. Desta forma mesmo um ladrão ou um bêbado podem ser fiéis aos olhos de Allah.
Al’Kindi [873]
Al’Kindi nasceu em Cufa mas fez seu nome em Bagdá. Foi contratado na Casa da Sabedoria para traduzir textos científicos e filosóficos gregos, sendo o primeiro a trazer às obras de Aristóteles para o árabe. Coube a ele ainda harmonizar novamente a razão e a ortodoxia depois do caos criado pelos Mutazalitas. Ele fez isso dando ênfase na Unicidade Allah.
Só Allah é verdadeiramente único e isso o diferencia de qualquer outra coisa. Podemos falar de um corpo, mas esse corpo é dividido em muitas partes. O mesmo não ocorre com Allah que é indivisível. Da mesma forma, podemos falar de um homem mas é sempre um entre muitos outros possíveis. Isso também não ocorre com Allah. A unicidade de Deus significa que ele não pode ser dividido e não pode ser agrupado.
Em outras palavras, Deus é inigualável, um sujeito que não admite predicados. Allah é sem igual e diferente de todas as outras coisas e portanto não pode ser incluído em nenhuma categoria, posto que uma categoria é um conjunto de coisas semelhantes.
Quando falamos que Deus é bom ou grande estamos comparando o ser que transcende toda experiências com nossas experiências mundanas do que entendemos ser bom ou grande. Na prática a semântica fecha às portas da especulação teológica e portanto devemos nos ater apenas ao que Deus diz sobre si mesmo, ou seja a sua revelação.
Em vez de preocupar-se com a ressurreição ou o dia do juízo sobre às quais nada de novo podemos dizer, Al'Kindi sugeriu que os filósofos devem se voltar para a natureza e para a humanidade e sugeriu como caminho a lógica e a experimentação rigorosa. Não à toa tornou-se pioneiro em vários campos como a matemática, medicina e química.
Al’Kindi teve o grande mérito de tornar a filosofia palatável novamente entre os muçulmanos e é conhecido ainda pelo título “O Filósofo Árabe”, mas mesmo assim sua grandiosidade foi ofuscada pela de seu grande sucessor que veremos a seguir.
Al Farabi [950]
Do seu nome e amor pelo conhecimento, surgiu a palavra alfarrábio. Nascido em Damasco Al’Farabi abre a linhagem dos grandes filósofos islâmicos da idade média. Amplamente influenciado por Platão e Aristóteles buscou harmonizar as visões de mundo dos dois sábios gregos usando para isso conceitos do Alcorão. Esta proposta foi tão bem sucedida que ele ganhou em sua época o título de “O Segundo Mestre”, sendo que o “O Primeiro Mestre” era o próprio Aristóteles.
Considerava a filosofia uma vocação dada por Deus e a única rota para o verdadeiro conhecimento. Sua aproximação com a teologia foi sempre por negação. Ele dizia que Allah é o causador, ele não possui causas, portanto não pode ser definido por meios intelectuais de causa e consequência ou divisões dialéticas.
Sendo assim, Al’Farabi seguiu a ênfase de Al’Kindi nos assuntos humanos e naturais e seus principais interesses foram a ética e a política. Ou seja, a busca do indivíduo para a perfeição e a ordenação da sociedade. Estes dois objetivos colaboram um com o outro e nesse sentido a religião poderia colaborar com ambas.
Para Al’Farabi a religião é um instrumento pragmático para aperfeiçoamento geral e não uma esfera de conhecimento para ser ampliada. Uma de suas afirmações mais ousadas é que o filósofo pode chegar às verdades da religião pela filosofia sem a necessidade de uma revelação. É apenas o desinteresse e a preguiça das pessoas que fazem com que a religião revelada seja necessária.
A sociedade ideal, segundo ele, é aquela dedicada à realização da verdadeira felicidade. Assim como as pessoa, as cidades e nações podem ser virtuosas e não-virtuosas. Para Al’Farabi, o filósofo está para a sociedade como um médico está para o corpo e assim como o corpo pode ter sua saúde abalada pelo “desequilíbrio dos humores”, assim também os governos são afetados pelos hábitos morais das pessoas. O papel do filósofo é estabelecer uma sociedade virtuosa, esclarecendo e orientando às pessoas no estabelecimento de uma sociedade justa, e portanto feliz.
Diz também que as autoridades têm a obrigação moral de educar e orientar o povo para uma vida virtuosa. Portanto, as lideranças devem sempre buscar aperfeiçoamento moral pois dela depende não só sua felicidade como as de todos os seus liderados. Uma autoridade corrupta, será responsabilizado não apenas por ter se desencaminhado mas também por ser o mal exemplo que desencaminha às multidões.
Al’Farabi sabia que uma sociedade assim é rara, pois precisa de um conjunto específico de circunstâncias para surgir e se manter. Ele dividiu às sociedades não-virtuosas em várias categorias, sendo que a primeira e mais numerosa é a das sociedades ignorantes. As sociedades ignorantes são aquelas que por qualquer razão desconhece o propósito da existência e seus membros substituem a busca pela felicidade por objetivos inferiores, como a riqueza, a diversão, a sensualidade ou o poder.
Tanto às sociedades virtuosas como às não virtuosas possuem em si “sementes” de seu oposto. Estas sementes são pessoas que podem transformar a essência da cidade. Nas sociedades virtuosas as sementes ignorantes devem ser orientadas. No caso das sociedades ignorantes as sementes virtuosas devem ser estimuladas. Nos dois casos essas são tarefas cabem aos filósofos que devem guiar as pessoas em todas as questões da vida diária e ajudá-las a praticar sua própria religião. Em seu livro Medina al’Fadila (A cidade virtuosa) ele descreve uma Utopia aos moldes da República de Platão, mas governada por sábios filósofos muçulmanos.
Ibn Sina (Avicena) [1037]
O avanço da filosofia deu origem ao que ficou conhecido como Renascimento Islâmico, o ápice da Idade de Ouro islâmica, período de grandes avanços científicos. Ibn Sina é sem dúvida o maior nome desta época. Avicena, como é conhecido no ocidente, seguiu o caminho pavimentado por Al’Kindi e Al’Farabi e mostrou como o Islam pode unir o neoplatonismo com o aristotelismo.
Ele proclamava o "Intelecto Ativo" como um estado elevado da mente que uma vez conectada a Allah poderia desvendar o universo. Segundo ele, o pensamento produz a generalidade nas formas. Os universais existem antes das coisas, nas coisas e depois das coisas. Antes (na mente de Deus), Durante (nas coisas em si) e depois (em nosso pensamento).
O pensamento portanto permite uma ligação com o intelecto ativo, um estado elevado da mente que por ser conectada a Allah poderia desvendar todos os mistérios do universo. O resultado foi uma escola de filosofia voltada para a lógica, a ética e a metafísica e um interesse sem igual pelas ciências naturais.
Avicena foi um dos maiores idealistas da história da filosofia universal. Para ele corpo e mente são substâncias distintas. A mente existe porque sabe que existe e é independente do corpo. Para isso propôs o famoso experimento mental do homem voador. Ele formulava a questão da seguinte maneira:
Imagine um homem flutuando no ar e com a sensação tátil anestesiada. Cego e surdo e tem amnésia. Ele não saberia que tem um corpo... mas saberia que tem uma mente? Apesar de toda a ausência de impressões, ele sabe que existe. Além disso se a mente diz “Tenho uma mão ou tenho um cérebro” então a mente não pode ser nem a mão, nem o cérebro.
Uma de suas propostas mais inovadoras foi o uso teológico dos conceitos de ser necessário e ser contingente, mais tarde também usado por Tomás de Aquino. Usando os conceitos de Aristoteles ele apresentou a classificação dos seres entre:
— Ser possível. Aquele que pode ou não existir, e se existe é porque teve sua existência causada por outro ser. Um exemplo fácil de entender é o filho que só existe por causa de seus pais.
— Ser Necessário. Aquele que não pode não existir e portanto não precisa de uma causa pois se precisasse teria uma causa, uma condição em que não existiria e isso faria dele apenas um ser possível.
O Ser necessário é por definição eterno e infinito, pois finitude e começo e fim seriam condições que fariam dele apenas um ser possível. Avicena, é claro, falava de Allah e usava esta classificação para provar que Deus é um só, pois uma contradição surge ao supor mais de um ser necessário:
— Suponha que exista dois seres necessários A e B
— Se A difere de B por algo que necessariamente deve existir então B também deve possuir esse algo e não podem ser diferentes, são portanto o mesmo.
— Se a diferença resulta de algo não implicado pela necessidade da existência então o fato individualizante seria a causa de A e portanto A tem uma causa e não é um ser necessário
Avicena usa reflexões semelhantes para mostrar que o Ser necessário tem os mesmos atributos de Allah no Alcorão, como inteligência, bondade e onipotência. Este filósofo escreveu centenas de livros sobre os mais diversos assuntos - inclusive a maior enciclopédia médica de seu tempo. Também foi a primeira pessoa a organizar aulas de medicina com residentes dentro de hospitais. Ele influenciou a filosofia islâmica e ocidental em todos os séculos seguintes.
Nizan Al Mulk [1092]
Nizan é responsável pela imagem popular do vizir manipulador, mas foi na verdade o maior filósofo político de sua geração. Antes dele ser vizir era uma posição relativamente irrelevante, mas ele soube fazer o jogo da corte e se tornou o líder de fato de toda Pérsia por mais de 30 anos.
Tudo começou quando o Xá encomendou obras sobre o governo e administração. O trabalho de Nizan al Mulk “Siyasat nameh” (a arte de governar) foi o único aceito e se tornou um clássico da filosofia política oriental. Esta obra rendeu a ele o cargo de vizir com poder o suficiente para fundar a primeira universidade pública da história em Bagdá.
Segundo o livro, o assunto mais importante no governo é a manutenção da Justiça. Nizan recomendava pelo menos dois dias por semana de audiências com o povo para ouvir reclamações. A ideia é que os criminosos e opressores tenham medo da rapidez e severidade das punições.
Se necessário, oficiais e em especial ministros e cobradores de impostos - devem ser investigados secretamente e no caso de irregularidades punidos e removidos do cargo. Isso dá exemplo ao povo e impede o acúmulo de poder paralelo.
O governante deve ter fama de rigoroso nas leis mas generoso com as pessoas. A disputa por sua gentileza e hospitalidade são ferramentas de poder. O exército deve ter soldados de diferentes povos para que concorram entre si por excelência.
Outro assunto importante é a escolha de ministros. Devem ser escolhidos por suas experiências, habilidades e virtudes e não por sua família ou posses. A eles não devem ser dado mais de uma posição para que não acumulem poder. Para cada trabalho seu trabalhador apropriado.
A educação é outra chave do sucesso. Para criar as próximas gerações de oficiais e evitar a formação de seitas o governo deve criar e manter instituições de ensino superior. Cursos de idiomas, história, matemática, filosofia, ciências naturais e principalmente o islam. A idéia é que se o governo não ensinar religião, alguém vai.
Nizam cita uma série de exemplos históricos islâmicos e pré-islâmicos para provar seus pontos. Sua conclusão o rei deve ser temido pelos maus e amado pelos bons e que a definição de bem e mal esteja nas mãos do estado.
Al Sarakshi [1090]
No oeste habitam os cruzados, no leste avançavam os mongóis. Internamente os muçulmanos já estavam divididos em vários califados. Com guerras por todo lado Shams Al’Sarakhsi tentou sistematizar às regras do Jihad. Tomás de Aquino faria o mesmo séculos depois com sua Guerra Justa.
O problema era que o Alcorão, por lidar com muitos contextos diferentes, às vezes prega a paz e às vezes a guerra. O próprio profeta foi historicamente um pacifista e também um guerreiro. Al’Sarakhsi resolveu a questão dizendo que nas relações pessoais o muçulmano deve dar a outra face mas quando sua comunidade está em perigo ele tem o dever moral de defendê-la.
Entre os casos que justificam o jihad estão o ataque estrangeiro, o governo tirânico, o crime organizado e os líderes opressores. Essa defesa deveria seguir 4 estágios:
1. Desobediência pacífica.
2. Argumentação pública.
3. Uso da força na defesa.
4. Ofensiva armada contra o opressor.
O conflito armado em si também deve seguir certas regras baseadas principalmente nos estudos dos habiths:
— Todas as outras formas de resolver o problema já foram tentadas.
— Mulheres, crianças e idosos devem ser poupados.
— Não se deve maltratar os animais nem derrubar árvores.
— Prisioneiros devem ser tratados com justiça.
— Feridos de ambos os lados devem ser tratados após o combate
— Proibição de saques e estupros
— Não se pode matar com fogo ou veneno.
— A guerra deve parar assim que o inimigo se render.
Desde então o combate a injustiça ganhou força dentro das comunidades islâmicas. Neste particular, basta lembrar um famoso dito do profeta que ensinou que "Merecem o inferno oprimido e opressor. O opressor quando oprime e oprimido quando se deixa oprimir."
Al'Ghazali [1058 – 1111]
A dedicação a razão levou Al Ghazali ao ceticismo, o ceticismo a angústia, a angústia a Deus e Deus de volta para a razão. Este pensador enfatizou que não há conflito entre lógica e religião, mas também disse que a lógica não deve influenciar a religião.
Sendo assim a obra e vida de Al'Ghazali pode ser entendida como uma reação a visão puramente racional. Seu livro "A Incoerência dos filósofos" criticou abertamente o avicenismo e contrapôs ao racionalismo a experiência direta com o divino. Al Ghazali usava o termo sufi dhawq ou ‘gosto’ para se referir a percepção imediata da verdade divina atingida pelo verdadeiro místico. Fazendo isso ele começou a abrir espaço para o sufismo, a corrente mística do islam.
Exatamente como David Hume fez depois Al Chazali nega a causalidade como uma necessidade. Ou seja, dizia que a conexão entre o que é habitualmente acreditado como causa e o que é habitualmente acreditado como efeito não é uma obrigatoriedade. Causa e Efeito são apenas padrões de repetição que pode ser quebrado a qualquer momento por Deus.
Al'Ghazali questionava. Que garantia temos que sua confiança na razão não é tal como tua confiança nos sentidos? Ou seja, apenas nos acostumamos a confiar nela e a acreditar em suas histórias. Então deve haver além da percepção e da razão um outro juiz.
Pegue por exemplo duas coisas como o contato com o fogo e o queimar. Eles estão conectados com um decreto de Allah. Se um segue o outro é porque Allah quer assim e não porque uma ligação assim é necessária e absoluta. Allah tem o poder de criar satisfação do faminto sem comida ou morte sem ferimentos ou mesmo a sobrevivência depois que a cabeça foi cortada.
Para Al Ghazali, Allah fez a humanidade dotada de qualidades espirituais e portanto capaz de conhecê-lo. A maioria de nós, ensinava, se inclina ao mundo material e perde esta ligação. Para recuperar esse contato direto devemos buscar uma vida equilibrada evitando comportamentos ilícitos como ira, ganancia, apego. Segundo o modelo de Aristoteles, para ele uma virtude era sempre o ponto de equilíbrio entre dois extremos. A coragem, por exemplo, está entre a Covardia e a Impulsividade.
Al'Ghazali entendia que recuperar essa experiência com o divino era o sentido e propósito de todas as restrições e exigências da xaria e de todas as orações e rituais religiosos.
Ibn Bajja [1085 -1138]
Ibn Bajja foi o primeiro andaluz a abraçar o aristotelismo.
Estudou a natureza do intelecto e escreveu 'A Regra do Solitário', um tratado de filosofia política e especulações metafísicas onde expressa um protesto moral contra o materialismo e a vida mundana das classes dominantes da época. Afirma que, dada a corrupção da sociedade, o filósofo que compreender a sua verdadeira condição deve ficar à margem dela, pelo menos isolado com o pensamento.
Distingue entre três níveis no homem: 1. A massa que como animais só sabe das coisas materiais. 2. Os racionais, homens da ciência que abstraem leis universais para aplicá-las a várias circunstâncias. 3. Os filósofos que abandonam por completo o espaço, o tempo, o singular e o material, para contemplarem unicamente os seres espirituais, os inteligíveis puros, subministrados pelo "Intelecto Agente supraracional", intermediário entre Deus e o material.
A união e fusão absoluta em Deus, com a felicidade suprema, ocorre "nesta vida", pondo assim em perigo um conceito corânico, a imortalidade na outra vida, e perdendo a individualidade pessoal no trânsito para o paraíso.
Contudo, para Ibn Bajja, este último nível é dificilmente atingível, devido a que as circunstâncias da vida em sociedade põem todo tipo de travas para a sua consecução. Portanto, Ibn Bajja, pela primeira vez na história, e numa ideia que será muito próxima às de Kierkegaard ou mesmo Nietzsche, propõe o apartamento da sociedade política na que vive para que possa cumprir esse último destino.
Ibn Tufayl [1110 – 1185]
Outro andaluz de grande destaque desta época foi Ibn Tufayl. Ele propôs uma leitura das obras de avicena com um tempero místico. Escreveu "O Filósofo Autodidata" onde tenta provar que a filosofia não pode ser nem proibida, mas também não pode ser imposta.
Não pode ser proibida pois questionar e buscar respostas é algo inerente ao ser humano. Mesmo que todo registro filosófico fosse destruído ele inevitavelmente ressurgiriam mesmo se só houvesse uma pessoa na terra. Aliás, especialmente se só houvesse uma pessoa na terra pois, segundo Ibn Tufayl, a vida em sociedade afasta os pensamentos elevados.
Dizia também que a filosofia não pode ser imposta também pois às pessoas não podem ser obrigadas a serem mais do que são. É por isso, dizia este pensador que os filósofos costumam ser agredidos, pois são eles que agridem primeiro.
No livro "O Filósofo Autodidata" um homem sozinho em uma Ilha chega por si mesmo a contemplação filosófica, mas falha ao tentar levá-la para outras pessoas.
Esta é uma obra muito importante da filosofia islâmica. É nela, antes de qualquer lugar que vemos assuntos completamente novos surgirem como ecologia, bioética e direito dos animais, e até mesmo o direito das plantas.
Ibn Rushd (Averrois) [1126 – 1198]
Conhecido também por seu nome latino Averrois foi talvez o pensador islâmico que mais influenciou o ocidente. Ele também foi a grande resistência contra a exclusão da filosofia pela ortodoxia islâmica que avançava em sua época.
Jurista defendia que a filosofia não apenas é permitida mas obrigatória para quem tiver os meios.
Há uma única verdade, mas há (pelo menos) dois caminhos para alcançá-la: através da filosofia e através da religião; Insistiu que o Corão pode ter várias interpretações. Uma mesma passagem pode ser lida de forma óbvia, mística, teológica e científica, e estas podem entrar em desacordo umas com as outras. No caso de conflitos devemos considerar as passagens de forma alegórica. Foi o início da concepção do conhecimento religioso como sendo relativo.
Tornou-se célebre no Ocidente por traduzir e preservar as obras aristotélicas, o que lhe deu o título de "O Comentador".
Averróis divide a inteligência em duas partes uma:
— Intelecto potencial é a inteligência individual de cada ser humano, de cada indivíduo, e ele é potencial porque pode ou não se desenvolver, da mesma forma que podemos ou não ver as cores dos objetos dependendo se temos ou não luz. Forma nossa imaginação, memorias e personalidades.
— Intelecto ativo: A luz que vai possibilitar o intelecto potencial desenvolver suas capacidades, é uma emanação divina e nele se ligam todos ou outros intelectos. É provada porque podemos compartilhar dos mesmos universais. Ela é única e partilhada por todos os indivíduos um único e mesmo intelecto (nous)
Dessa forma, a razão é eterna e não pode perder os seus componentes essenciais. Se todos os matemáticos morressem a raiz quadrada de 25 ainda seria 5. Esta consciência é como o sol que ilumina todos os outros conhecimentos humanos. Os indivíduos com suas criações, conhecimentos e filosofias podem morrer, mas o intelecto pensante por trás de tudo isso em si não morre, porque é universal e está conectado com todos os humanos.
Paraíso ou Inferno e ressurreição devem para ele ser entendidas de forma alegórica. Todas as religiões são criação humana equivalentes e por conveniência pessoal e pelas circunstâncias escolhemos uma.
Ibn Al-Arabi [1164 – 1240]
Ibn Al-Arabi é o grande mestre do pensamento sufista escrevendo mais de trezentas obras sobre a via mística do Islam. Para ele nem a teologia nem a a filosofia eram o bastante e apenas o contato direto com o Deus poderia dar acesso a Realidade, pois a realidade é Deus.
Ele formulou uma explicação teológica para o islam que une o panteísmo emanente ao monoteísmo imanente.
Ou seja, Allah é onipresente mas vai além do mundo.
As coisas que consideramos reais são como espelhos que refletem um ângulo específico da realidade divina e que portanto não podem existir por si mesmas. Quanto mais limpo estiver este espelho mais vai conseguir refletir a glória divina e mais próxima estará da perfeição.
A realidade é Deus, que é o Todo, o Uno mas a realidade divina se revela como uma multiplicidade de coisas que a sua maneira também são reais. Essa tensão é resolvida por ibn Arab pelos Nomes de Deus. Na verdade Deus tem infinitos nomes mas apenas alguns deles foram revelados a nós. É por estes nomes e apenas por eles que podemos falar de Deus. O enigma neoplatônico é resolvido pois é fácil entender como uma única coisa pode ter vários nomes enquanto mantém sua unidade.
Na criação o que mais se aproxima disso é o ser humano, mas mesmo entre nós esse reflexo é mais ou menos espelhado conforme o grau de distorções e impurezas que acumulamos, como poeira sobre o espelho. Por meio da religião, da auto-observação e auto-realização podemos limpar a superfície de nossos espelhos individuais e manifestar os nomes de Allah em nosso mundo.
Ibn Al-Arabi ensina que o profeta Muhammad foi esse reflexo perfeito sendo portanto a manifestação mais alta dos princípios cósmicos da verdade e do amor puro.
Rumi [1207 – 1273]
Seu nome era Jalaluddin Muhammad Balkhi, mas no ocidente o conhecemos simplesmente como Rumi e no oriente, em especial no Irã e na Turquia, ele é conhecido pelo título "Mawlana" que significa "Nosso Mestre".
Ele nasceu em 30 de setembro de 1207 d.C na província de Balkh, Afeganistão, extremidade oriental do Império Persa. Rumi descendia de uma longa linhagem de juristas islâmicos, teólogos e místicos, incluindo seu pai, que era conhecido pelos seguidores de Rumi como "Sultão dos Eruditos". Quando Rumi ainda era jovem, seu pai liderou sua família por mais de 2.000 milhas a oeste para evitar a invasão dos exércitos de Genghis Khan. Eles então se estabeleceram na atual Turquia, onde Rumi escreveu a maior parte de sua obra e viveu a maior parte de sua vida.
Na adolescência, Rumi foi reconhecido logo como um grande espírito pelo poeta e professor Fariduddin Attar, que lhe deu um exemplar de seu próprio Ilahinama (O Livro de Deus). Quando seu pai morreu em 1231, Rumi tornou-se o chefe da Madrasah, a comunidade de aprendizagem espiritual.
O filho mais velho de Rumi, Sultan Velad, conseguiu salvar 147 cartas íntimas de Rumi para a posteridade, que nos fornecem hoje informações sobre o poeta e como ele viveu. Rumi freqüentemente se envolvia na vida dos membros de sua comunidade, resolvendo disputas e facilitando empréstimos entre nobres e estudantes. As cartas possuem versos de poesia espalhados por toda parte.
Em 1244, Rumi conheceu seu mestre Shams Tabriz, que fez um voto de pobreza. O encontro deles é considerado um evento central na vida de Rumi, e Rumi acreditava que sua verdadeira poesia só começou depois que conheceu Shams. Até então Mawlana, aos 37 anos, era um professor islamico tradicional, mas com Shams conheceu a tradição dervish e o caminho místico. Lembrando de seu primeiro encontro Rumi escreveu: "O que eu pensava antes como Deus, hoje encontro no ser humano"
Uma das particularidades dos dervish é sua Sama, a adoração pela dança rodopiante. Esta mesma dança ainda é praticada pela ordem sufi Mevlevi, que tem em Rumi um de seus grandes mestres. Em seus giros os dervixes visam desprender-se do eu e alcançar Deus, abandonando seus egos e desejos pessoais, concentrando-se nos atributos divinos e girando em círculos.
Shams e Rumi foram amigos íntimos por cerca de quatro anos. Ao longo desse tempo, Shams foi repetidamente expulso pelos discípulos ciumentos de Rumi, incluindo por um dos seus filhos, Ala al-Din. Em dezembro de 1248, Shams desapareceu para sempre; acredita-se que ele foi expulso ou morto. Rumi deixou a Madrassa em busca de seu amigo, viajando para Damasco e outros lugares.
Foi nesta época que ganhou o apelido Rumi, pois vinha da Turquia, no Sultanado de Rum na Anatólia que antigamente fazia parte do Império Bizantino. "Rumi" significa "Romano" em árabe. E foi assim que seus novos contatos o chamavam. Eventualmente, Rumi fez as pazes com sua perda e voltou para sua casa.
O luto de Rumi pela perda de seu amigo levou ao derramamento de mais de 40.000 versos líricos, incluindo odes, elogios, quadras e outros estilos de poesia islâmica oriental. A coleção resultante, Divan-e Shams-e Tabrizi ou As Obras de Shams Tabriz, é considerada uma das obras-primas de Rumi e uma das maiores obras da literatura persa. Em sua introdução à tradução deste livro, Coleman Barks escreveu:
"Rumi é uma das grandes almas e um dos grandes mestres espirituais. Ele nos mostra nossa glória. Ele quer que estejamos mais vivos, para acordar ... Ele quer que vejamos a nossa beleza, no espelho e umas nas outras. "
Nos últimos doze anos de sua vida, começando em 1262, Rumi ditou um único poema em seis volumes para seu escriba, Husam Chelebi. A obra-prima resultante, o Masnavi-ye Ma'navi (Versos Espirituais), consiste em sessenta e quatro mil versos e é considerada a obra mais pessoal de ensino espiritual de Rumi. Rumi descreveu o Masnavi como "as raízes das raízes das raízes da religião (islâmica)", e o texto passou a ser considerado por alguns sufis como o Alcorão em língua persa.
Com um talento especial para poesia e metáforas Rumi ensinou:
1.Allah está dentro de cada um. Mas para darmos espaço a ele precisamos liberar nosso coração de distrações egoístas, desejos mundanos e preocupações materiais através do controle dos desejos e do serviço amoroso.
2. A alma não é puro intelecto mas também sentimento. Por isso a dança, a música e repetição dos nomes de Allah podem ajudar a focar mais plenamente em Allah
3. Allah está presente em tudo. O universo e tudo o que há nele -incluindo o homem - são um fluxo de vida infinito. Nada morre ou nasce de verdade mas tudo é uma contínua transformação de formas.
4. Quando o ego dá espaço para Allah e a presença de Allah é percebida em tudo surge não apenas o respeito e tolerância mas real admiração por todas as outras formas de religião, ou melhor pela unidade por trás de todas elas.
O principal tema de seus poemas é o amor, como exemplifica os poemas abaixo:
"Venha! Venha ! Seja você quem for, venha! Pagão, idólatra ou adorador do fogo, venha! Mesmo que você negue seus juramentos cem vezes, venha! Nossa porta é a porta da esperança, venha! Venha como você for!"
Rosto que ilumina meu rosto, sua inteligência giratória nessas partículas que eu sou. Seu vento estremece minha árvore. Minha boca tem um gosto doce com o seu nome nela. Você me faz dançar ousado o suficiente para terminar. Chega de timidez! Deixar cair a fruta e o vento virar minhas raízes para cima No ar, feito com espera paciente.
Em sua introdução a uma edição em inglês de Versos espirituais, o tradutor Alan Williams escreveu: "Rumi é um poeta e um místico, mas antes de tudo um professor, tentando comunicar o que sabe ao seu público. Como todos os bons professores, ele confia que, no final das contas, quando os meios para ir mais longe falham e sua voz silencia, seus alunos terão aprendido a entender por conta própria.
Rumi adoeceu e morreu em 17 de dezembro de 1273 C. E., em Konya, Turquia. Seus restos mortais foram enterrados adjacentes ao de seu pai, e o Yeşil Türbe (Tumba Verde) foi erguido acima de seu local de descanso final. Hoje o museu Mevlâna, o local inclui uma mesquita, salão de dança e alojamentos para dervixes. Milhares de visitantes, de todas as religiões, visitam seu túmulo a cada mês, homenageando o poeta de lendária compreensão espiritual.
Ainda hoje o legado de Rumi é imenso e não conhece fronteiras. Embora tenha morrido a mais de setecentos anos sua mensagem universal encontra eco em seguidores do mundo todo. Artistas tão diversos como Madona, Deepak Chopra e Goldie Hawn fazem referências diretas em suas obras e seus livros de poesia frequentemente estão nas listas dos mais vendidos tanto no ocidente como no oriente.
Ibn Khaldun [1332 – 1406]
Criou uma teoria simples mas poderosa para explicar a ascensão e declínio de impérios, califados e civilizações, considerado pai da sociologia.
Segundo ele, a força de um grupo político está em sua asabiyya, termo que pode ser traduzido como solidariedade, espírito de time ou identidade de grupo. O fervor relógio e tribal são ingredientes que podem intensificar este sentimento.
É mais do que religião, tribo ou nacionalidade pois às pessoas continuam tendo essas coisas quando asabiyya acaba. É o que dá estamina e direção a um grupo. Uma mistura de fervor, propósito e senso de pertencimento.
Asabiyya torna o grupo invencível no campo de batalha, incansável na produção econômica e irresistível na produção cultural. Assim esse grupo chega ao poder pela conquista militar e cultural de outros povos decadentes.
Ao chegar atingir a vitória passam a vez para a geração seguinte que consolida o poder. Mas a facilidade de recursos e o gosto por prazeres leva a um novo declínio. O grupo então se torna decadente e é ultrapassado por um novo grupo sedento de dominação e inspirado por seu próprio asabiyya.
Ibn Khaldun duvidava que era impossível chegar ou manter poder em uma população dividida pois este poder seria inevitavelmente desestabilizado pelo asabiyya racial, religioso ou tribal desses grupos de identidade.
Sadr Aldin Al'Qunawi [Cerca de 1274]
Um dos mais influentes sábios Sufis. Seus ensinamentos sobre epistemologia podem ser entendidos como uma síntese entre o misticismo de bin Arab e o pensamento lógico de Avicena.
A linguagem é o veículo primário para conceber as experiências mais profundas. A linguagem revela o sentido objetivo (o céu é azul) ou imaterial (ela está feliz). O problema é que sempre que falamos ou pensamos em algo caímos no irredutível abismo da separação sujeito-objeto.
Por exemplo, em “o céu é azul” é necessário saber o que significa azul e céu. Da mesma forma se digo que alguém está feliz você vai entender isso baseado nas suas próprias experiências do que é felicidade.
Apenas a pessoa que sente uma dor pode tentar descrevê-la com precisão e mesmo fazer isso cria uma separação entre si mesmo e a tristeza que sente. Mesmo quando observamos ou pensamos em nós mesmos criamos uma separação entre o eu observador e o eu observado. Quando digo sou moreno ou sou honesto o que estou dizendo na verdade que uma parte minha — meu cabelo — é morena ou uma parte minha — meu caráter — é honesta.
Como se isso não bastasse nossas próprias limitações de linguagem e pensamento criam ruídos no que é dito e entendido. Devido a essa distinção sujeito-objeto e as limitações de nossas próprias faculdades como podemos conhecer a "realidade das coisas" ou o próprio Allah que é a Realidade Última?
Al'Qunawi diz que somente Allah é sujeito e objeto de si mesmo. Assim o entendimento de Allah sobre si mesmo deve ser a raiz de todo conhecimento. Allah é aquele que conhece tudo e é em última instância tudo o que há para ser conhecido. Por isso é central a auto-revelação divina, que desdobra o "livro da realidade" na forma de discurso. A própria realidade é uma série de ramos que se desdobram da essência divina por suas muitas qualidades.
Todo conhecimento é assim uma espécie de unidade entre o conhecedor e o conhecido, mas a radical diferença entre o que conhece e o que é conhecido torna toda unidade impossível. Entretanto unidade pode ser viável em um sentido didático pela noção de consonância entre duas realidades. Ou seja, só é possível conhecer algo se o sujeito tem em si algo que corresponda ao objeto. Para entender a felicidade do outro é preciso ter alguma felicidade dentro de si. Isso significa que de certa todo conhecimento é pré-existente. Toda cultura, ciência, filosofia e teologia de alguma forma já está dentro de nós e nós dentro de Allah.
Abu al Barakat [Cerca de 1100]
Existe um mito de que a filosofia islâmica entrou em decadência depois das cruzadas. Já deu para ver que não é verdade. Os filósofos islâmicos não pararam de falar depois do século XII, fomos nós que paramos de ouvir. Al Barakat é um bom exemplo disso
Apesar de nascer e se formar em território muçulmano, Al Barakat era judeu e só se converteu ao islam no leito de morte por questões de herança da filhas.
Como seu mestre, Avicena, Al barakat questionava as autoridades tradicionais e adotava novas e inovadoras ideias quando estas pareciam mais apropriadas. Nesse sentido, Al Barakat foi um grande seguidor de Avicena pois se permitiu questionar o próprio mestre com suas próprias armas.
Foi um dos primeiros filósofos a questionar ideias científicas estabelecidas ao sugerir a experimentação repetida como confirmação e validação de qualquer teoria. Assim ele provou que a força é proporcional à aceleração e não a velocidade como propunha Aristóteles. Também provou a existência do vácuo que Avicena dizia impossível.
A parte dos avanços nas ciências naturais questionou também o que significa ser um eu.
Para ele, nosso self ou alma não é o conjunto de capacidades como raciocinar ou imaginar, mas sim é aquele que faz tudo isso. Nossa alma não é nossa memória, mas é a consciência que a acessa.
Dizer que há uma faculdade para ver e outra para imaginar é, segundo ele, como dizer que há uma faculdade para ver azul e outra para ver o amarelo. Nesse sentido nossa alma é semelhante a Deus, uma, mas com vários atributos.
Outro ponto interessante é que defendia que o tempo pode ser medido mas só existe na mente. Assim definiu tempo como uma medida do ser e não do movimento ou seja mais metafísico do que físico, antecipando assim algumas ideias de Kant.
Surawardi [cerca de 1170]
A luz é uma metáfora poderosa. Podemos encontrá-la entre os filósofos gregos, os sábios indianos e dentro do Alcorão. Os judeus falam de Luz para falar de verdade, beleza bondade e sabedoria. O sufi Surawardi dizia que isso não é apenas uma metáfora, mas sim uma verdade metafísica.
Para Surawardi Luz é Consciência; são uma coisa só. Cremos na mente como cremos no Sol. Não porque os vemos quando acordamos mas porque através deles vemos tudo ao nosso redor.
Sarawardi perguntou: quem é o mestre que faz a grama ficar verde? O que faz uma coisa ser diferente de outra? Uma forma de responder isso é pelas suas diferenças particulares, este é o caminho dos intelectuais. Outra forma de responder é que aquilo que faz duas coisas iguais é justamente aquilo que as distingue. Só sabemos que uma maçã é verde e outra vermelha quando às duas refletem uma luz em comum. Da mesma forma apenas a consciência pode distinguir a grama pálida da grama verde.
A visão de mundo de Sarawardi é uma espécie de neoplatonismo com pitadas de zoroastrismo que descreve Allah como a Suprema Luz das Luzes (Nur al-Anwar). E toda a criação é uma emanação cada vez mais rude dessa luz em camadas cada vez mais sombrias. A sombra surge no universo quando a luz se torna opaca para que possa refletir a si mesma.
Suarawardi também entendia que existem duas formas de se obter conhecimento: pela racionalização abstrata e pela experiência direta. O problema é que em geral a racionalização precisa de uma base geralmente vinda da experiência direta a racionalização portanto não traz conhecimentos novos. A experiência direta por sua vez é geralmente sensorial, sabores, cores, dores e os sentidos podem ser enganados.
Sarawardi dizia que a forma mais elevada de conhecimento, que realmente transforma às pessoas e a humanidade é uma terceira forma ainda muito rara: a percepção direta mental conhecida como intuição. A percepção direta da luz que emana do alto é a força motriz da verdadeira filosofia e da verdadeira religião, surjam elas onde surgirem.
O Império Safavita tinha basicamente o mesmo território que hoje tem o Irã e se formou no séc XVI ao norte do Império Otomano com quem teve vários arranca rabos. Os safavitas concentraram os pensadores shiitas assim como os otomanos os sunitas. A rivalidade se manteve e se concentrou.
Um dos primeiros foi Alama Al'Hilli e ele fez uma pergunta moral que toda pessoa religiosa deveria se fazer:
Uma ação é boa porque Deus a ordena? Ou algumas ações são intrinsicamente boas e por isso Deus a ordena?
Se você não é religioso isso pode parecer uma bobagem, mas Al'Hilli pela primeira vez no mundo islâmico estava falando da possibilidade de uma ética secular.
Al'Hilli argumentou que qualquer agente que age ou age sem querer ou age por uma razão. Deus não pode agir sem querer portanto tudo o que faz tem uma razão. Deus sendo bom então suas razões são boas. Desta forma ele tem uma boa razão para ordenar o que ordena.
Outra ideia interessante dos Safavitas é a da 'criação perpétua' de Mir Damad.
Ele concorda com Avicena ao dizer que Deus é a única causa necessário para que o universo exista. A palavra 'única' é importante aqui pois isso significa que havendo Deus há universo. Não é necessária nenhuma condição ideal nem mesmo a vontade de Deus, pois sua vontade não muda. Como Deus não tem causa então o universo deve ter sempre existido.
Damad explica isso fazendo uma diferença entre Eterno, Perpétuo e Finito. Eu e você somos finitos. O Universo é Perpétuo pois é infinito no passado e no futuro. Mas Allah é Eterno pois está além do tempo que ele mesmo criou.
Desta forma Damad faz uma diferença importante entre causualidade e temporalidade.
Por exemplo, se eu falo "Matheus pôs a roupa e saiu" posso apenas concluir logicamente que ele saiu e que pôs a roupa mas não que ele se vestiu antes de sair. Estritamente falando a frase inicial pode estar certa e ele saiu pelado e se vestiu na rua porque estava com muita pressa.
Mula Sadra [1572 – 1640]
Mulla Sadra pode ser considerado o filósofo islâmico mais relevante dos últimos 400 anos.
Ele tentou resolver a disputa entre ‘o primado essência’ vs ‘o primado da existência’. Sendo que essência é o mundo das ideias e a existência o mundo dos fenômenos. Uma casa por exemplo antes de ser construída existiu como projeto. A ideia de triângulo existia antes de que qualquer triângulo ser desenhado? É a velha disputa Platão x Aristóteles.
Os existencialistas europeus colocaram o ser humano na jogada. É claro que existe a ideia de martelo antes de existir um martelo. Mas e quanto aos seres humanos? Segundo Sartre e outros existencialistas primeiro existimos e depois buscamos nossa essência (propósito, definições, razão de ser). Isso já é complicado, mas Mula Sadra faz algo pior: ousou questionar a essência de Deus. Isso porque se tivesse uma essência teria uma causa e não seria a causa primeira. Portanto Deus é a própria existência. Realidade em árabe é "Al-Haq", um dos nome de Deus no alcorão.
Mula Sudra concluiu que se em um nível ontológico a existência vem antes da essência então o que chamamos de essências nascem das formas e são apenas conceitos que usamos para diferenciar uma coisa da outra - ponto para Aristóteles.
Contudo, sem essências para diferenciar uma coisa da outra, tudo o que existe é uma unidade de existência. Mulla Sadra resolve isso com uma releitura do conceito de gradação da luz da escola iluminacionista de Surawardi — ponto para Platão.
Ainda que não haja nada além da existência em si as coisas diferem em termos de intensidade de existência. Tudo além de Deus possui algum grau de não-ser ou privação. Pense em um círculo que é uma limitação de um espaço no papel ou do próprio papel que tem como limitação nos cortes de suas bordas.
A existência é como uma pedra que esculpe a si mesmo e se tolhe e se diminui para dar forma a todas as coisas. O universo é como um imenso buraco dentro de Deus, mas este buraco possui buracos em um inimaginável fractal de ausências e nós somos uma delas. Deus é o Todo brincando de não ser Nada e o homem é um nada que acredita ser alguma coisa.
Por sermos ausência às vezes entendemos o mundo ao contrário. Por exemplo apenas o silêncio é eterno. Músicas e barulho são rasgos temporários do silêncio que ocorrem em bolhas como o planeta terra — ou nossas cabeças. Mas independente deles, antes, durante e depois o silêncio permanece existindo. Há paz mesmo onde há guerra.
Somos estalactites de gelo que contemplam nossas próprias sombras e arco-íris projetados da luz que vem de fora, mas derreteríamos no instante que saíssemos da caverna. Nossa única opção é continuar dentro e gotejar até a morte.
Outro aspecto importante da filosofia é que tudo muda não só as coisas mudam em quantidade e qualidade mas mudam sua própria substância pois tudo é uma variação de uma mesma a única coisa existente. Se podemos dizer que existe uma única substância essa substância é Deus e todas as outras coisas são variações que ficam sempre mudando umas nas outras
Katib Çelebi [1609 – 1657]
Talvez o maior divulgador científico do Império Otomano.
Enquanto os líderes religiosos diziam que derrota para às Cruzadas e os Mongóis foram devido ao afastamento da religião. Çelebi teve a coragem de argumentar que foi justamente o contrário. O problema foi o excesso de fanatismo por parte dos muçulmanos.
Para ele a proibição de alguns estudos científicos e da filosofia tornaram os muçulmanos estrategicamente fracos e o domínio estrangeiro foi só uma consequência do afastamento dos estudos e das pesquisas.
Çeleb fazia questão de apontar que o domínio da ciência permitia os infiéis da Europa roubarem terras e riquezas do Islam. Isso significava que a Ciência é como um cavalo, dá poder a quem quer a domine. Seja crente ou bárbaro. Portanto o muçulmano tem obrigação de dominá-la.
Ele mesmo se dedicou a diferentes campos da ciência, era um enciclopedista, escreveu um dos primeiros livros sobre a História Universal e criou um dos mais completos mapa mundi de sua época.
Também advogou maior tolerância do estado com os vícios pessoais como café, tabaco e nova mania de cumprimentar apertando as mãos. Dizia não fazer sentido gastar recursos do estado tentando proibir algo não claramente proibido no Alcorão e que as pessoas fariam de qualquer forma.
Propôs ainda reformas estruturais no governo como o imposto proporcional a renda e a formação de um grupo de elite no exército. Dizia ser fundamental que o sultão fosse cientificamente bem informado sobre o mundo e a natureza para poder tomar boas decisões.
Ficou tão famoso no Império Otomano que deu origem a palavra Celebridade em várias línguas. Graças a ele os otomanos se tornaram poderosos o bastante para durar até a 1ª Guerra Mundial.
Ele mesmo se dedicou a diferentes campos da ciência, era um enciclopedista, escreveu um dos primeiros livros sobre a História Universal e criou um dos mais completos mapa mundi de sua época.
Ibn al-Wahhab [1703 – 1792]
O beduíno erudita Ibn al-Wahhab acreditava que tolerância religiosa do Império Otomano acabou afastando os muçulmanos do Islam. Ele via costumes como a peregrinação ao túmulo de líderes muçulmanos ou comemoração do aniversário de Muhammad (saw) como inovações humanas que poluíam a mensagem divina e deviam ser combatidas. Dançar, escutar música e fumar haxixe eram práticas populares e sintomas de que os muçulmanos haviam perdido o rumo.
Sua solução era purificar o Islam e voltar a vivência da fé, eliminando tudo o que não existia durante a vida do profeta Muhammad. Foi a origem do puritanismo islâmico que entendeu que as várias outras correntes islamicas como o sufismo e o xiismo eram apóstatas e outras religiões como heréticas.
A ideia não foi popular de início. Mas ao ser expulso do vilarejo onde morava e buscar refúgio na cidade vizinha conheceu Muhammad Ibn Saud, um guerreiro competente e ambicioso. Ibn al-Wahhab viu em Saud a chance de disseminar suas ideias e Saud viu em Wahhad um instrumento de poder. Juntos iniciaram um processo de domínio e expansão militar que fez frente ao poderoso Império Otomano e culminou com a origem do reino da Arábia Saudita.
Nas terras dominadas Saud e Wahhad instituiram o Mutaween, o conceito de polícia religiosa que devia vigiar e punir a população em caso de desvios. Hoje o wahabismo é a vertente islâmica dominante da Península Arábica, onde estão os principais locais sagrados do Islam.
Bahá'u'lláh [1817-1892]
Bahá'u'lláh retomou a ideia de revelação progressiva mas nunca se colocou como filósofo antes dizia ser um profeta, o mensageiro para a nova era da humanidade. Ele levanta algumas bandeiras que parecem estranhamente modernas. Sua filosofia pode ser resumida como “A terra é um só país e seu humano seus cidadãos.”
Baha'u'llah retomou a ideia de revelação progressiva de Dara Shikuh com a diferença que colocou a si mesmo como um profeta de Deus. É assim o fundador da Fé Baha'i que hoje possui cerca de 5 milhões de adeptos. Sua filosofia central é universalista e é expressa por sua frase "A Terra é um só pais e seus humanos seus cidadãos.".
Baha'u'llah ensinou que existem vários caminhos para se adquirir conhecimento. Dentre eles quatro se destacam: Razão, Observação, Intuição e Tradição. Cada um com suas vantagens, particularidades e limitações.
A Razão é particularmente exaltada porque confere um conhecimento seguro e universal e por evidenciar as causas e relações das coisas. Sua limitação é depender sempre de bases iniciais com as quais trabalhar. Essa base pode vir da observação, intuição e tradição.
A Observação nos dá conhecimento novo sobre o mundo mas não tão seguro quanto a razão. Os sentidos podem ser enganados e a observação pode fornecer apenas conhecimento sobre casos particulares e sobre efeitos e formas materiais e sensíveis.
Razão e Observação não bastam para o progresso do conhecimento. É preciso que a Intuição guie nosso interesse e nos ajude na formulação de hipóteses. A Intuição revela conhecimento sobre o mundo interior de onde nascem os sonhos e as grandes ideias. Mas não pode ser universalizado pois retrata sempre uma verdade interior e subjetiva.
A tradição por fim nos traz conhecimento acumulado do gênio legado das gerações anteriores. Assim não precisamos descobrir nem inventar tudo de novo a cada geração. Por outro lado a tradição sozinha é facilmente deturpada e vira superstição.
Nenhum destes caminhos são perfeitos por si só mas são complementares. O próprio método científico é uma união desses meios. É preciso intuição para lançar hipóteses, razão para criar teorias, observação para validar modelos e tradição para passar e receber conhecimento entre às outras pessoas e às próximas gerações.
Nesse sentido, ele chega a afirmar que o advento do método científico marcou a maioridade intelectual da humanidade.
Além destes quatro caminhos Baha'u'llah fala de um quinto: a Revelação Divina, disponível através de grandes personalidades pela história e segundo Baha'u'llah principal fator de progresso civilizatório da humanidade pois é em si a própria luz e o conhecimento.
Mas a Revelação Divina é ela mesma passada pela Tradição e para não ser distorcida deve ser validada pela razão, observada em seus frutos e aceitável às intuições do coração. Assim um dos pontos chaves da epistemologia bahai é a "busca individual pela verdade". Baha'u'llah portanto se coloca contra qualquer tipo de intermediário entre Allah e nós como padres, pastores, rabinos ou sheiks.
No campo da ética Baha'u'llah afirma que “A melhora do mundo é possível por meio de ações puras e boas de conduta louvável e digna." Assim, o comportamento ético tem um fim: a transformação social do mundo em um lugar melhor. Para isso às ações devem ser boas tanto em suas consequências como em suas intenções. Tanto o deontologia como o utilitarismo são incompletos.
A fonte para a conduta perfeita é a Revelação Divina. Entretanto devido às razões expostas em sua epistemologia é reconhecido que pessoas de qualquer religião ou mesmo sem nenhuma religião possam descobrir e praticar o bem por si mesmas, pois as duas bases da ação ética são a veracidade e a justiça.
Na prática a ética bahai defende a ‘eliminação de todas as formas de preconceitos’, seja religiosa, racial, nacional, de gênero, ou de qualquer espécie. Baha’ullah proíbe qualquer uso de força ou violência para fazerem valer estes valores, seja pelas autoridades seja dentro da família. Em vez de qualquer imposição a boa conduta deve ser espalhada pelo exemplo “Sejam atos e não palavra vosso adorno”.
A política de Baha'u'llah é baseada em um conceito islâmico relativamente esquecido, a Shura. Shura significa consulta e se refere às várias vezes que o Profeta Mohammad consultou seus seguidores sobre o É melhor curso de ação. É uma conversa em grupo voltada a tomada de decisões e resolução de Problemas.
A ideia é que se os profetas — que o possuem canal direto com Allah — usam a Consulta então com certeza fara bem para os demais humanos usarem. Baha'u'llah sistematizou algumas normas para que a Sura seja bem conduzida:
● Grupos pequenos de número ímpar. Ideal 9 participantes.
● Desapego. Ninguém é dono de uma ideia.
● Todos os participantes devem ser ouvidos.
● Todos devem ser tratados com respeito
● Consenso como objetivo, caso contrário vale o voto da maioria.
● A decisão una vez tomada pertence ao grupo e não só a quem votou a favor
● Nenhuma decisão é definitiva e pode sempre ser alterada ou revertida em nova consulta.
Dara Shikuh [1615 – 1659]
No Império Mogal duas coisas colaboraram para a coexistência de duas religiões tão diferentes quanto o monoteísmo islâmico e politeísmo hindu. A primeira foi o trabalho incansável do filósofo Dara Shikuh. A segunda foi o fato dele ser o filho mais velho do imperador.
Versado em sufismo e Jnana Yoga, Dara Shikuh não apenas traduziu o Upanishad para o persa mas se casou com uma hindu garantindo que ela continuasse com sua religião. Ele escreveu um enorme glossário mostrando que conceitos islâmicos e hindus como Dunnya/Maya ou Ishq/Arishadvarga são idênticos. Encontrou também um mantra correspondente a cada um dos 99 nomes de Allah.
Essa proximidade fez hindus e budistas serem elevados a categoria "povos do livro" antes exclusiva a judeus, cristãos e zoroastras. Buda e Krishna foram reconhecidos como profetas e o Vedas como o mais antigo dos livros revelados.
A ideia de que todas às principais religiões são igualmente boas não era nova, esse conceito já existia no sufismo há séculos. A novidade de Dara Shikuh foi uni-las em um modelo único e afirmar que a verdade religiosa é relativa. Para ele cada época, povo e tribo possui seu mensageiro que trouxe dois tipos de ensinamentos:
1. Ensinamentos eternos e imutáveis (sobre virtudes, caridade, reverência, etc..)
2. Ensinamentos contextuais (como rituais, regras de higiene, jurisprudência, etc.)
Sempre que o contexto mudasse ou um povo se desviasse dos ensinamentos universais Allah (ou Vishnu) envia novamente seu mensageiro.
Como era de se esperar Dara Shikuh foi executado por heresia assim que seu pai perdeu o trono. Mas a semente estava lançada. Hoje ainda o islamismo é a segunda religião da Índia e muitos deles consideram Muhammad (saw) um dos avatares de Vishnu, o Deus supremo. Além disso o conceito de revelação progressiva permanece viva em novas formas de fé universalistas como o Sikhismo, na Comunidade Ahmadi, a Teosofia e principalmente na Fé Bahá'í.
Muhibballah Al'Bihari [1587 – 1648]
A filosofia hindu-arábica não vive só de teologia. Muhibballah Al'Bihari escreveu um famoso tratado de lógica chamado Sullam al Ulum que serviu de texto base para toda uma nova geração de instituições de ensino do Império Mogal.
Sullam al Ulum trouxe Aristóteles e Avicena para os hindus. Além de tratar de silogismos, epistemologia e retórica, Al'Bihari destacou pelo menos três grandes inovações islâmicas no campo da lógica:
A lógica modal temporal
A lógica indutiva.
O silogismo hipotético
Na Lógica Modal Temporal, Al'Bihari mostrou certos paradoxos podem ser resolvidos com modificadores lógicos como "sempre", "geralmente" e "às vezes". Os seres necessários ou contingentes de Avicena deram origem a uma nova forma lógica, dedicada não a determinar se a sentença é verdadeira ou falsa mas também se é necessária ou possível. Quando Descartes disse "Penso Logo Existe" ele está dizendo que quem pensa sempre existe, ainda que a existência apenas às vezes resulte em pensamento. Afinal, pedras existem mesmo sem pensar.
Na Lógica Indutiva busca extrair verdades gerais de casos particulares. Para isso são propostos meios bem mais avançados que a mera observação da repetição com uso de métodos de concordância, diferenciação e concomitância.
No silogismo hipotético temos a validação de regras, exemplo:
Se os gatos são roxos, a lua é feita de queijo.
Se a lua é feita de queijo, os porcos tem asas.
Portanto, se os gatos são roxos então os porcos tem asas
Note que mesmo com premissas falsas a declaração é verdadeira
Como se não bastasse, é aqui na escola de lógica islâmica que se propõe pela primeira vez uma ciência da citação. Então se você também tem algum problema pessoal com a ABNT pode jogar parte da culpa em Al'Bihari, Avicena e companhia.
Se Deus não muda então tudo que pensa sempre existiu eternamente nele como ideia. Esta ideia não é vaga pois a mente de Deus é infinita portanto é uma ideia perfeita e existimos exatamente como agora por toda eternidade na mente de Deus. Esta é a ideia da criação perpétua.
Mulla Mahmud Jaunpuri [1606 — 1651]
Mulla Mahmud Jaunpuri é considerado um dos mais importante filósofos do Império Mogol por ter refutado a ideia de que o universo é eterno. Mas há uma outra contribuição que acho muito mais interessante... ele chegou a ideia de inconsciente 200 anos antes de Freud nascer.
Em Risalah Jabr wa ikhtiryar, um tratado sobre Determinismo e Livre arbítrio ele parte da ideia Aviceniana de seres necessários ou contingentes. Um ser necessário é o que existe por si só, portanto necessariamente existe. Um ser contingente precisa ser levado a existência e portanto pode ou não existir.
Mulla Jaunpuri também definiu que o Livre Arbítrio depende de duas coisas para existir: Vontade e Poder.
Precisamos querer fazer o que podemos e poder fazer o que queremos. Mas é a vontade o mais determinante pois está mais em nosso controle. Acontece que a vontade também é contingente: surge, some e muda, e portanto depende de algo além dela para existir.
Para que possamos ser responsabilizados por nossas ações — como o Alcorão diz que seremos — este algo da onde nasce a vontade não pode ser externo a nós. Mulla Jaunpuri identificou esse algo com Nafç, a alma. É tolice portanto tentar controlar suas ações, pois elas são frutos do seu mais profundo eu, em vez disso deve-se focar em transformar a nós mesmos.
Em análise mais profunda Mulla Jaunpuri disse que devemos suplicar a Allah que mude nossa essência pois todos os acontecimentos do universo estão ligados por uma cadeia de fatos que em Allah se inicia. A ocorrência de um ato acontece quando esta relação existe e é impossível quando esta relação não existe.
Mulla Jaunpuri entendeu que nem sempre fazemos o que queremos e nem sempre queremos o que fazemos. Não roubar hoje é apenas um represamento do inevitável se sua natureza é a de um ladrão. A solução é orar a Allah para nosso Nafç seja com lhe apraz e para que assim queiramos o que lhe agrada.
Muhammas Abdu [Egito – 1849]
Após as guerras mundiais, os Impérios Islâmicos se dividiram em uma série de novos Estados-Nações. Os próximos nomes da filosofia surgiram então em contextos nacionais em diversos países diferentes.
Muhammas Abdu além de muçulmano era egípcio e maçon. É considerado um neo-mutalazita ou seja alguém que quer resgatar o racionalismo. Seu tema principal é a modernização do Islam e sua ideia base é que, uma vez que a modernidade é baseada na razão, então o Islam deveria ser completamente compatível a ela.
Trabalhou pela aproximação tanto de sunitas e shiitas e de outras religiões, mas acreditava em uma verdade una, eterna e universal. O que muda como tempo e costumes é segundo a capacidade humana de chegar a essa verdade. Assim cada geração deve se esforçar para compreendê-la e não apenas imitar às gerações anteriores e repetir suas conclusões.
No tocante a lei moral Muhammas Abdu apela num primeiro momento ao senso comum. Ele diz que o homem ordinário não tem nenhuma dificuldade em reconhecer às ações boas como alimentar os famintos e ações más como torturar inocentes.
Ele pondera que talvez se ações são auto-evidentes boas ou más então a religião é desnecessária. Mas ele reconhece depois que ações mais complexas exigiriam muito do homem comum que não conseguiria acompanhar filosofia platônica ou lógica aristotélica. A ênfase da religião na simples ira ou na graça de Deus tem um impacto muito maior e eficaz nas pessoas.
Além disso a religião torna acessível conceitos complexos da alta filosofia como quando fala de uma vida no além e de realidades não físicas. Nesse sentido ele concorda com Nietzsche que diz que “cristianismo é platonismo para às massas.” mas vê isso como um elogio.
Gokalp
Gökalp foi o pensador por trás do movimento dos Jovens Turcos que buscou modernizar o Império Otomano transformando-o em um estado secular. Ele dizia que religião e tradição não precisam ser necessariamente a mesma coisa e que o grande perigo de um povo é deixar a tradição desencorajar ou impossibilitar a inovação.
“A Rússia começou a avançar quando Pedro, o Grande a forçou a inovação. Este fato histórico é a causa da ascensão da civilização ocidental: a falta de inovação é o que está por trás da ausência de progresso da civilização oriental.”
Mas modernizar para Gokalp não é simplesmente imitar a Europa, mas sim tomar a iniciativa da própria cultura. Ele demonstrou grande admiração pelo Japão por conseguir se modernizar sem perder sua própria identidade cultural. Sua ideia era a Turquia se modernizar sem perder o Islam.
O estado moderno só sobrevive, defendeu Gokalp, se fornecer um sentido homogêneo de identidade. É essa unidade cultural que cria a solidariedade social por meio de uma "consciência compartilhada". Sem isso a nação não sobrevive ou vira mera colônia de nações mais fortes.
Ele criou a ideia de “turquismo” e chegou a afirmar que os turcos são o super-homem de Nietzsche. Uma das razões dele ser indiretamente responsabilizado pelo Genocídio Armênio.
Mas a verdade é que Gokalp nunca defendeu o racismo. De fato o refuta diversas vocês:
"É verdade o homem deseja mais viver entre aqueles que têm o mesmo idioma e religião do que aqueles com quem dividir o sangue. Pois a personalidade humana vem mais do da alma do que do corpo."
"Em resumo pedigree é para cavalos. Raça tem grande importância para os animais uma vez que a sua excelência baseada no instinto e hereditariedade. Mas é um grande erro pedir o pedigree dos humanos porque a raça não tem nenhuma influência no trato social".
Para isso ele redefiniu o que é uma nação. Não mais um grupo étnico, geográfico e nem político. Também não como uma associação em que se escolhe ou não pertencer. Uma nação é um conjunto de indivíduos que compartilham uma mesma linguagem, metafísica, moralidade e estética. Ou seja, que recebem a mesma educação.
Mas se uma nação é um grupo de pessoas que recebem a mesma educação...quantas nações temos hoje no Brasil?
Muhammad Iqbal [Paquistão – 1877]
Pai espiritual do Paquistão com estátuas e feriado em seu nome e reverenciado como seu maior filosofo e poeta. Suas ideias podem ser descritas como a filosofia do Khudi, o Ego, o Si-Mesmo, a Consciência Pessoal.
O ser humano evoluiu da sim matéria mas possui em si o Khudi sopro de Allah, a centelha divina. Todo o cosmos existe e progrediu para a emergência do ego humano. É por conter esta centelha que Allah ordenou os anjos a se prostrar diante de Adão. Adão marca não a queda, mas o início da autoconsciência humana a transição do estado primitivo animalesco para uma mente livre capaz de conhecimento e deliberação.
Em Iqbal existe também um certo materialismo. Diz que a humanidade não foi criada para viver em paraísos sobrenaturais no além e sim para morar e prosperar aqui no mundo. O propósito da vida é desenvolver este Eu, pois a evolução humana não chegou ao fim. Nosso destino é ir superar o atual estado humano para outro 'além das estrelas'
Um ser imortal pode expandir o Khudi muito mais do que um mortal. Assim o “homem completo” deve não é apenas conquistar mais liberdade mas também a imortalidade. Na interpretação do Iqbal do Alcorão “a imortalidade não é nossa por direito mas pode ser alcançada por esforço pessoal. O homem é apenas um candidato a ela."
Essa imortalidade pode ser alcançada pelo contato e relação pessoal do Khudi de cada um com sua fonte o ‘Eu Absoluto’ Allah. Nesse sentido às orações tem grande importância no processo. Nosso Khudi é um diamante que deve minerar e lapidar a si mesmo. Sua motivação é o amor pela expansão desse Khudi. A crença em um único Deus dá a humanidade liberdade de todos os senhores na terra.
Portanto tudo o que fortalece o Eu é bom e tudo que o enfraquece é mal.
Apatia, indiferença são erros. Assim iqbal critica todo tipo de misticismo que negue a expressão do Eu. A passividade da alma, a inatividade, a tolerância e o perdão irracional, a absorção passiva do divino são erros inventados pelos povos escravos para subjugar seus senhores. São repulsivos os modelos dos padres, monges, faquires e mendigos. Em vez de imitá-los os muçulmanos devem buscar os modelos dos cientistas, dos artistas e guerreiros.
Em contrapartida, Iqbal sonhou com o "homem completo" que cria desejos e impõe sua vontade ao mundo. Um Eu superior auto-realizador, guerreiro, artista que conquista o mundo dando expressão aos seus próprios talentos ocultos com amor, disciplina, autocontrole e perseverança. Alguém que não se submete a nenhum mestre humano ou criado pelos homens mas apenas a Allah, o Eu absoluto. O Profeta Muhammad (saw) é o melhor exemplo que temos desse “homem completo”.
Sua filosofia foi escrita em forma poética e inspirou uma renovação do movimento islâmico no subcontinente indiano que mais tarde deu origem ao Paquistão. Mas ele criticou tanto o secularismo e nacionalismo europeu quanto a teocracia estagnada do islam medieval. Sua ideia não era criar um país novo mas sim estabelecer províncias autônomas islâmicas dentro da Índia sem um governo central.
Este modelo ele chamou de "Democracia Espiritual" pois se basearia no Islam mas ninguém seria obrigado a viver em seu território. Para proteger o Islam das “fantasias medievais dos teólogos” as fatwas (declarações jurídicas) feitas por uma única autoridade religiosa seriam substituídas pelo “ijmā” (consenso legal) votado em uma assembleia legislativa de devotos.
Para que atinja seu potencial máximo e para que isso ocorra é essencial possuir conhecimento.
Há duas formas de conhecimento: a consciência interior e o mundo natural exterior.
Iniciando pela intuição do Eu o ser humano se torna consciente do Não Eu. Este confronto com o outro é um constante desafio. Mas a natureza não confronta Deus como confronta a humanidade pois é uma faceta da consciência de Deus. Deus é imanente e transcendente pois compreende todo universo mas está também além dele.
Toda vida é individual e há uma escala gradual de autoconsciência que vai da matéria inerte até Deus o Eu Absoluto.
Existem dois tipos de Eu, o eficiente e o apreciativo. O eficiente está preocupado e é parcialmente formado pelo mundo físico. O apreciativo é mais profundo e só é alcançado em momentos de meditação e oração profundas quando o eu eficiente não está dominando para assim alcançar realidades não físicas.
No eu apreciativo cada experiência permeia o todo e a multiplicidade de seus elementos é diferente daquela apreciada pelo seu eficiente. Os elementos se interpenetram de forma não linear, não local e não temporal e movimento e mudança se tornam indivisíveis.
Khalil Gibran [Líbano – 1883]
Khalil Gibran foi um poeta com uma filosofia e não um filósofo que escrevia poemas. Nunca se preocupou em sistematizar seu pensamento de forma que não é tarefa fácil resumi-lo. Mas é muito fácil identificar seus temas centrais: o despertar espiritual e o amor.
Para Khalil "O despertar espiritual é a coisa mais essencial da vida humana, o único propósito do ser." Todas as outras coisas consideradas importantes como trabalho, prazer, leis ou sagradas como religião, casamento e a própria bondade só são boas na medida em que colaboram com este despertar. Mas o que é esse despertar?
Para ele despertar espiritual é a conscientização de que a realidade humana é espiritual e não material. A eternidade coloca em nova perspectiva todas às coisas e muito do que parece importante se torna pueril. A vida é um sonho e o grande e definitivo despertar espiritual é morte. “A alma é um embrião no corpo do Homem, e o dia da morte é o Dia do despertar, pois é a Grande era de trabalho e a rica Hora da criação.”
“A Realidade da Vida é a própria Vida, cujo começo não está no ventre e cujo fim não está no túmulo. Pois os anos que se passam não são mais do que um momento na vida eterna; e o mundo da matéria e tudo isso é apenas um sonho comparado ao despertar que chamamos de terror da morte.”
Ele sugere uma relação entre este despertar e a felicidade humana, uma felicidade capaz de transcender qualquer prazer terreno e superar qualquer dor do caminho:
“Vão são às crenças e ensinamentos que ensinam o homem a ser miserável, e falsa é a bondade que os leva a tristeza e ao desespero, pois o propósito do homem é ser feliz nessa terra e seguir o caminho da felicidade e pregar seu evangelho onde for.”
“Cada coisa que existe permanece para sempre, e essa própria existência da existência é prova de sua eternidade. Mas sem essa percepção, que é o conhecimento do ser perfeito, o homem nunca saberia se existia ou não existência. Se a existência eterna é alterada, então ela deve se tornar mais bela; e se desaparecer, deve retornar com uma imagem mais sublime; e, se dorme, deve sonhar com um melhor despertar, pois é sempre maior em seu renascimento”.
Gibran foi um imigrante libanês da América e teve contato com diferentes ideologias, era portanto ciente da pluralidade de perguntas e respostas que encontramos. Ele não se considerava muçulmano nem tão pouco cristão mas foi sem dúvida influenciado pela tradição sufi. Diante disso ele propõe o Amor como a bússola mais segura.
“Quem não vê o reino dos céus nesta vida não verá na próxima. Não somos nessa vida, mas chegamos como criaturas inocentes de Deus para aprender como adorar seu santo e eterno espírito e buscar os segredos em nós mesmos da beleza da vida.”
“A verdadeira luz é aquela que emana do interior e revela os segredos do coração e da alma tornando-o feliz e contente com a vida.”
“O amor é meu único artista, cantando músicas de felicidade para mim à noite e me acordando ao amanhecer para revelar o significado da vida e os segredos da natureza.”
“O amor é um raio mágico emitido do núcleo ardente da alma e iluminando a terra circundante. Permite-nos perceber a vida como um belo sonho entre um despertar e outro ”.
“Quando o amor vos fizer sinal, segui-o; ainda que os seus caminhos sejam duros e escarpados. E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos; ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir.”
A obra de Khalil Gibran é bastante acessível no Brasil e seu principal livro, "O Profeta" pode ser encontrado sem dificuldade.
Khomeini [Irã – 1902]
Desde o século XX o mundo está dividido entre quem odeia o comunismo e quem odeia o socialismo. Ayatollah Khomeini odiava os dois. Para ele, capitalismo e socialismo são duas faces de um mesmo problema chamado modernismo e que tem sido usado como desculpa pelas nações colonizadoras para dominar o islam com suas ideologias.
Sendo Khomeini era versado em teologia, filosofia em geral, mas seu lado mais impactante foi sem dúvida na jurisprudência islâmica.
O shiismo ensina que o governo islâmico pertence ao Imam divinamente apontado descendente do Profeta Muhammad. Entretanto o 12º IMam desapareceu em 929 no que os shiitas chamam de ocultação, deixando os muçulmanos sem um líder infalível por quase mil anos.
Na ausência do Imam os eruditos aceitaram a ideia de líderes não-religiosos como sultões, reis, e chás. Para Khomeini esse foi o erro. Esta fraqueza foi aproveitada pelas potências colonizadoras para contaminar os muçulmanos com ideologias como o quietismo religioso, o nacionalismo e mais recentemente o socialismo e o liberalismo.
Como líder religioso Khomeini proferiu uma série de palestras públicas criticando o governo e o Xá como um corrupto fantoche estrangeiro. Nessas palestras ele também começou a desenhar um novo modelo político que chamou de República islâmica.
A base deste modelo é a inseparabilidade entre política e religião. Disse ele que o Islam não é só sobre orações e jejum. Também existe nele instruções quanto a administração pública, economia, leis civis, leis penais, leis trabalhistas, assistência social, finanças públicas e até relações internacionais e políticas de guerra.
Mas ele sabia que também não podia voltar aos modelos medievais — o imanato é impossível e a monarquia se provou incapaz — então na República Islâmica eleições democráticas. O voto é secreto e opcional para qualquer pessoa acima de 18 anos independente de qualquer etnia ou religião. Os cidadãos elegem os líderes do executivo, legislativo, bem como uma assembleia de peritos religiosos que atuam como um poder moderador. Os peritos elegem entre si um líder religioso supremo que é também o chefe de estado. Este líder religioso tem um cargo vitalício, mas pode ser destituído pela mesma assembleia que o escolheu.
Todo este sistema foi defendido com base em argumentos do Alcorão, da suna e dos ensinamentos do Ahl al’Bayt (os 12 Imans Infalíveis). Suas críticas não foram bem recebidas e perseguido pelo governo teve que se exilar no Iraque.
Mas o governo do Xá demonstrou inabilidade em lidar com as questões de inflação, escassez de trabalho e violação dos direitos humanos que varreram o país durante a Segunda Guerra Mundial. De longe Khomeini coordenou a oposição da revolução Iraniana. O Xá foi derrubado, às eleições gerais ocorreram, e a assembleia de perito escolheu Khomeini como líder do país.
Jamīl Sidqī al-Zahāwī [Iraque – 1863]
O que seria da filosofia sem uma boa dose de crítica social? Esta foi a especialidade do jornalista, professor, filosofo e poeta iraquiano Al'Zahawi.
Al'Zahawi foi um crítico feroz de diversas práticas comuns em seu país e nos países vizinhos como casamentos com menores de idade e anti-semitismo. Na verdade quase todas às críticas modernas feitas hoje pelo mundo a certos países islâmicos já haviam sido identificadas por elei. Central nessa crítica é a questão dos direitos das mulheres. Casamentos forçados, violação de menores, desigualdade legal, injustas, uso compulsório de véu. Nada escapou de sua pena. Como membro do Conselho de Educação de Bagdá estava claro para ele que a opressão contra às mulheres era resultado direto da exclusão sistemática delas na educação formal. Em um artigo publicado em massa exortou às mulheres a protestarem por uma revisão das leis de divórcio removendo seus véus. Isso bastou para que sua casa fosse cercada semanas seguidas por uma multidão de homens indignados. Para aplacar a multidão ele perdeu seu cargo e em seguida mudou-se para o Egito.
Mas Al Zahawi nunca gostou do termo Reforma Islâmica, que considerava um erro conceitual. Basicamente por três razões:
1. Ignora que a responsabilidade ética é das pessoas não das teorias
2. Ignora que a batalha da Reforma x Contra Reforma cristã foi sangrenta e sofrida
3. Ignora que justamente os mais intolerantes são os que se dizem reformadores, salvadores do Islam.
A grande crítica de Al Zahawi era contra a exclusividade na interpretação do Alcorão e da Suna. Seu alvo era a arrogância daqueles que dizem ser os únicos praticantes do verdadeiro Islam e que qualquer um que não concorde 100% é um infiel.
Em particular foi um grande opositor do wahabismo, a vertente radical do sunismo. Ele foi uma das primeiras pessoas a identificar o perigo do fundamentalismo que mais tarde se desdobraria em grupos como Talibã, Irmandade Islamica, Al'Qaeda, Isis e Boko Haram.
Al Zawahi tinha o mesmo objetivo que os demais pensadores islâmicos modernos, mas sua postura era outra. Para ele o Islam não precisa de reforma, são os muçulmanos que precisam de autocrítica.
Hamka [Indonésia, 1908]
Ao pensar no Islam lembramos de árabes e persas e geralmente esquecemos que ¼ dos muçulmanos do mundo têm olhos puxados e vivem no sudeste asiático. Foi lá na Indonésia - país com mais muçulmanos no mundo - que nasceu e viveu Hamka, um dos grandes reformistas islâmicos do século XX.
Hamka escreveu centenas de livros bem sucedidos muito populares por toda Ásia Islâmica, incluindo uma coleção de 30 volumes de comentários do Alcorão. Para Hamka liberdade é uma precondição necessária ao Islam.
Ele foi um dos grandes responsáveis pelo que ficou conhecido como “Islam cosmopolita” presentes na Indonésia, Malásia, Singapura e Brunei e que é praticamente o oposto do Islam fundamentalista que o ocidente aprendeu a temer.
A obra de Hamka busca escancarar a falsa dicotomía entre estar em paz com sua própria identidade cultural e conviver com outras culturas. Que é possível ser um muçulmano devoto e defender uma sociedade pluralista.
Para isso apostou na ideia da unidade na diversidade por meio da ênfase em valores universais que podem ser encontrados em todas as tradições e costumes como a compaixão e a justiça para garantir o interesse público.
Os escritos de Hamka levaram muçulmanos de todo sudeste Asiático a uma postura de abertura do tipo "viva e deixe viver" entre muçulmanos de diferentes denominações e entre os praticantes de outras fés.
Um bom exemplo da “penetração pacífica” do islam cosmopolita na Ásia é como ocorreu a adoção do hijab. Não existe lei obrigando o uso do véu. Tão pouco é imposto como obrigação religiosa. Em vez disso eles mostram que o hijab pode ser parte integrante da cultura.
Para Hamka cultura não é apenas o que herdamos dos pais, ela é dinâmica, maleável e pode ser reimaginada. Lá muitas mulheres hoje usam hijab principalmente no trabalho, mesmo as não muçulmanas. A razão é que véu passa hoje a imagem de profissionalismo ao mesmo tempo em que é eficiente e prático (não é preciso pentear o cabelo).
Michel Aflaq [Síria – 1910]
Michel Aflaq é um filósofo sírio conhecido como o pai do baathismo, uma modelo político baseado no pan-arabismo em princípios de uma ideologia puramente árabe que prosperou em países como Iraque, Síria, Líbia. O Baathismo levanta a bandeira do secularismo na região mas reconhece o brilho da religião. Aflaq negava qualquer raiz real nos conflitos religiosos das religiões abraâmicas pois todas elas nasceram no oriente médio. São os europeus e americanos que são alheios a seu caráter e história.
Aflaq foi cristão mas reconhecia que o islam era a imagem mais brilhante da linguagem e literatura árabe e até então a parte mais grandiosa. Mas para além do Islam via uma força espiritual transcendente permeando a história e via a nação pan arábica forte e unida como o próximo capítulo deste desenvolvimento.
Não foi o Islam os que modelou os povos árabes, foram os povos árabes que modelaram o Islam. O lema do baathismo é "Unidade, Liberdade, Socialismo", um lema facilmente mal compreendido pelos ocidentais graças a seus vícios culturais.
Unidade é a unidade de toda nação árabe, do Nilo ao Eufrates. A Nação árabe vai além da raça e das fronteiras geográficas impostas pela política. É considerada por Aflaq não como como um fato transcendente na história que e pré-islâmica e para além do islam.
Liberdade não é sinônimo de democracia nem de liberalismo econômico mas sim liberdade da opressão em geral e da colonização em particular. É a liberdade de se autodeterminar sem interferência, de pensar e se expressar.
O Socialismo não é o marxismo ocidental mas o socialismo particularmente árabe caracterizado não com o controle do capital pelos estado mas pela importância que Mohammad e outros líderes árabes deram ao amparo e justiça social. Não abolindor a propriedade privada mas evitando seus abusos.
"Unidade, Liberdade e Socialismo". O baathismo tornou-se uma nova e poderosa força política. Baath quer dizer partido. Ele tomou rumos tão diferentes quanto em Saddam Hussein, Bassar al-Assad, sendo um verdadeiro ponto de virada na história da nação árabe.
Taha Abdurrahman [Marrocos – 1944]
Uma das maiores vozes da filosofia islâmica contemporânea. Seus campos de estudo são lógica, linguística e ética.
Seu ponto de partida é a dissociação entre a filosofia e a identidade ocidental. Ou seja, ele defende que a pós-modernidade industrial e existencialista do ocidente não é a única possível. Portanto qualquer cultura pode desenvolver sua própria filosofia e sua própria modernidade.
Um segundo ponto importante é que diz ser racional a separação entre teoria e prática, entre a experiência ética é as teorizações filosóficas. Para ele o pensamento e a experiência são duas faces da mesma moeda e portanto ele critica tanto o pensamento ocidental atual por sua falta de bases éticas como o pensamento islâmico por sua falta de rigor lógico/teórico.
Consequentemente para Abdurrahman é imperativo construir um sistema que una o melhor dos dois mundos. Um Modernismo Ético e um Islam Racional. Um sistema capaz de confrontar tanto às posições amorais do ocidente como as irracionais da teologia oriental.
Para ele o sistema que melhor faz isso é a Ética Islâmica Sistematizada que lê o Alcorão deve à luz da razão e do humanismo. Mas Taha aceita que não é irracional escolher outros sistemas desde que suas posições filosóficas sejam racionais e se expressam na vida real em vez de se perder nas teorias.
Fetullah Gulen [Turquia – 1941]
Fethullah Gulen é um dos mais influentes eruditos islâmicos da atualidade. Este sunita moderado condena o terrorismo e é favorável ao diálogo inter-religioso entre judeus, cristãos e muçulmanos. É o fundador e inspirador da organização cívico-social conhecida como Hizmet, que em árabe significa algo como Serviço altruísta para o bem comum" .
O Hizmet, as vezes chamado Movimento Gulen é uma iniciativa transnacional voltada para a disseminação do Islam e funciona como uma rede de promoção mútua, onde os membros tem uma mentalidade missionária e um forte sentido empresarial. Seus seguidores são incentivados a buscar posições de liderança e destaque social e devem doar tempo, dinheiro para a organização.
Além de diversas instituições de ensino, empresas, organizações humanitárias e meios de comunicação ao redor do mundo o Hizmet possui membros e influência na política e nas forças armadas da Turquia. Sua estratégia é implementar uma sociedade islâmica gradualmente e transformar o sistema de dentro para fora. Hoje estimasse que o movimento Gulen tenha de 8 milhões a 10 milhões de integrantes.
Edip Yuksel [Turquia – 1957]
Este intelectual curdo-americano é considerado umas das figuras mais controversas do reformismo islâmico proposto pelo movimento quranista. O Quranismo descreve uma forma de entender e praticar o Islam que aceita apenas o Corão como revelação divina e rejeita a autoridade das tradições sunitas e xiitas. Edip defende que a mensagem do Corão é clara e completa e que portanto pode ser entendida sem o suporte dos hadites. Ele advoga que os hadites foram forjados e só começaram a entrar em uso cerca de dois séculos após a morte do profeta Muhammad (saw). Para Edip Yuksel o Corão quando lido por si só revela um monoteísmo racional, progressista e humanista.
Edip também é o maior divulgador do que chama de Milagre Matemático do Alcorão, descoberto pelo programador egípcio Rashad Khalifa. Segundo ele o livro árabe possui em si um intrincado código numérico baseado no número 19 que é estatisticamente impossível de ser alcançado por mero acaso e ao mesmo tempo não pode ser replicado por seres humanos. Este mesmo código, defende ele, garante sua integridade do livro e é a única garantia que temos que o Corão atual é exatamente o mesmo revelado pelo Profeta.
Ele também advoga a evolução teísta como alternativa ao criacionismo, a evolução não-teísta e a teoria do design inteligente. Por suas posições não convencionais é considerado apóstata e herege por diversos tradicionalistas, incluindo seu próprio pai.
Sua postura não-ortodoxa o fez ser condenado à morte em trinta e oito países e por diversas organizações islâmicas, além de ser alvo de diversas ameaças de morte anônimas. Fugido para os Estados Unidos naturalizou-se americano em 1993.
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Conheça também a segunda obra da coleção “Filosofia de todas as Cores":
Filosofia Africana: pensadores africanos de todos os tempos
Filosofia Chinesa: pensadores chineses de todos os tempos
Muito obrigado!
[1] Respeitando a tradição Islâmica, sempre que o nome do profeta for mencionado será feita uma referência a súplica “sallallahu alayhi wassalaam” para que a honra e paz de Deus sempre esteja com ele.