A Filosofia a Partir de seus Problemas
Didática e Metodologia do Estudo Filosófico
Mario Ariel González Porta
Edições Loyola
São Paulo, Brasil, 2002.
Para facilitar a leitura, estabelecemos alguns critérios com respeito aos destaques e referências usados no texto:
a) termos que designam conceitos-chave para o trabalho são escritos em negrito na primeira vez em que são empregados no contexto no qual são relevantes.
b) títulos de obras e palavras estrangeiras aparecem sempre em itálico.
c) as remissões a outras partes do texto foram assinaladas com o número da Parte, seguido dos números do capítulo e da seção (por exemplo: 1a, 1, 1.1).
Finalidade do livro
Este livro se propõe um fim essencialmente prático, e será por sua utilidade que terá de ser julgado; se ajudar aqueles aos quais se dirige, terá cumprido o seu objetivo. É claro que pressuposições teóricas de todo tipo e natureza estão presentes no que se segue, sendo discutíveis enquanto tais. A fim de evitar que as propostas degradassem em receitas rígidas, não pude deixar de explicitar tais pressupostos em alguma medida, sobretudo enquanto se referiam à ideia de filosofia. Não obstante, não está no centro do meu interesse neste texto discuti-los, fundamentá-los ou polemizar com outros pontos de vista, senão, simplesmente, por um lado, expô-los e, por outro, exemplificá-los. Em nenhum momento me propus a oferecer uma "teoria" dos temas tratados, mas apenas uma reflexão, que, ao tematizar uma práxis efetiva, possibilitasse seu partilhamento. Creio, contudo, que o exposto não é tão polêmico a ponto de não suscitar uma aprovação, ainda que parcial, de um leitor de boa vontade que possua conhecimentos filosóficos não-escolares.
Meu objetivo não foi escrever uma "introdução à filosofia" para pessoas que nunca tiveram contato com essa disciplina, e que procuram uma primeira aproximação a ela. Certamente, o presente livro não é compreensível por qualquer leitor. Trata-se de um livro "básico", mas não de uma "introdução" de utilidade universal. Ele pressupõe um contato já presente com a filosofia (seja autodidata ou acadêmico) bem como, correlativamente, a experiência de uma certa frustração na busca de um acesso à "ingrata" que nos exige tanto esforço e nos recompensa com tão pouca generosidade. Quando o escrevo, tenho em mente um aluno de graduação que já sobreviveu a seus decisivos primeiros anos, um de pós-graduação cônscio de uma formação inadequada ou até um professor que experimenta desconforto com os resultados obtidos. Para esse grupo heterogêneo de leitores, as linhas que seguem podem poupar algum tempo e esforço.
Este livro tampouco é um "manual" que tenha por objetivo oferecer uma síntese ou sistematização de informações fundamentais. O que aqui se propõe uma perspectiva de acesso à filosofia, centrada em explicitar de modo instrumentalmente efetivo como podem ser melhorados o estudo e o ensino dessa disciplina. Uma vez que ensino e aprendizagem são correlatos, é possível entender as linhas que seguem tanto como uma metodologia do estudo filosófico quanto como uma didática do ensino da filosofia, ainda que, ao mesmo tempo, também sejam muito menos do que isso. Aqui não se responde a todas as perguntas, nem se toma posição com respeito a todos os assuntos usualmente compreendidos pelas disciplinas mencionadas. Em nenhum momento me propus a escrever um "tratado" (nem de didática, nem de metodologia filosófica), mas apenas esboçar uma abordagem acerca das duas questões. Trata-se, unicamente, tanto num caso como no outro, da fixação primeira e provisória de uma perspectiva básica, a respeito da qual se diz tanto quanto necessário e tão pouco quanto possível, optando-se por explicitá-la mediante à sua aplicação a casos concretos.
O princípio que rege a perspectiva proposta (e do qual todo o resto são variações) é extremamente simples, tanto que, por momentos, creio que é por isso que tende a ser passado por alto. O objetivo primordial do ensino e da aprendizagem da filosofia é "entendê-la". Ora, ela tem fama de difícil, obscura e, inclusive, arbitrária. Pois bem, grande parte das dificuldades usuais em sua compreensão deve-se ao não entender o "problema" do qual a filosofia trata[1]. Por tal motivo, proponho-me a oferecer uma opção à didática e metodologia do estudo filosófico com base no seguinte princípio: a compreensão do problema deve constituir o núcleo essencial, o eixo, tanto do ensino quanto da aprendizagem da filosofia. Não é possível "entender" filosofia se não se entende "o problema" abordado por um filósofo. Entretanto, o "problema" tende a ser pressuposto ou simplesmente ignorado, sem que se dedique esforço específico algum para esclarecê-lo. Não poucas vezes, no lugar da sua explicitação aparece um rótulo vazio ("o ser e o devir" etc.).
Estrutura temática
Este texto contém duas partes claramente diferentes. Na 1ª Parte (seis capítulos) explicita-se a ideia central proposta e se estabelece reflexivamente o princípio básico já mencionado (sem pretender, repito, argumentar ou provar suas implicações teóricas); na 2ª Parte (três capítulos), oferecem-se três exemplos que procuram evidenciar como tal princípio pode ser operacionalizado em casos singulares. Como este é um livro que não versa primariamente sobre certos conteúdos, mas sobre o método de sua aquisição, é claro que ele possui uma flexibilidade temática intrínseca, a qual, não obstante, tampouco é sinônimo de absoluta arbitrariedade.
O capítulo 1 da 2ª Parte oferece o exemplo de um pensador que, ao mudar o problema filosófico fundamental, muda também a própria ideia de filosofia. A escolha de Kant, para tanto, tem secundariamente por objeto evidenciar que é de fato possível explicar de modo simples "o problema" de um autor tradicionalmente considerado difícil, abrindo, a partir de tal explicação, caminho a um estudo posterior gratificante. Uma vez escolhido Kant como exemplo de pensador "clássico", optou-se por continuar, no capítulo seguinte, com um outro autor que tivesse como pressuposto a virada crítica, de forma a poder exemplificar o caso, extremamente comum, de um problema construído sobre os supostos de uma tradição. O escolhido foi um neokantiano: Ernst Cassirer. Novamente aqui existe um motivo complementar na escolha. Cassirer não tem fama de incompreensível como Kant. Todos "entendem" seu texto. Lamentavelmente, todos entendem coisas diferentes. Essa situação não é, de fato, tão-só culpa de seus leitores. Cassirer possui um estilo literário envolvente e fluido, porém impreciso do ponto de vista conceitual, proporcionando, por tal motivo, uma excelente oportunidade para o exercício do nosso método. O estudo do "caso Kant" e do "caso Cassirer" evidencia, como princípio geral, que em filosofia não há autores "fáceis", senão que há aqueles difíceis de ler e aqueles difíceis depois de lidos. O capítulo 3 da 2ª Parte, finalmente, mostra em forma sucinta como se aplica a perspectiva proposta à história da filosofia em geral. Com tal fim, parto do que suponho sabido pelo leitor e o confronto com uma forma de ordenação um tanto diferente da que creio lhe seja usual. O ganho ali será possibilitar uma visão unitária da filosofia contemporânea.
A forma de tratamento dos exemplos oferecidos nos capítulos 1, 2 e 3 da 2ª Parte obedece ao critério de qual seja o mínimo necessário para que alguém com inteligência média, e certa familiaridade com a disciplina, possa entender um determinado problema filosófico. Isso não quer dizer, contudo, que eles sejam "fáceis" e não exijam ser lidos com atenção, atenção que deve ser tanto maior quanto menor for a formação do leitor. Trata-se, certamente, de textos "introdutórios", mas não simplificadores; de textos "básicos", mas não triviais. Trata-se, assim mesmo, de textos propositalmente enxutos, que respeitam com rigor o princípio de reduzir a exposição a um mínimo essencial. Essa brevidade mostra que é possível explicar problemas filosóficos não só de modo claro, mas também "econômico".
"O problema da Crítica da razão pura" foi inicialmente publicado pela revista Integração (USJT), com o título “Uma aula sobre Kant", e constitui uma versão sem alterações de uma palestra oferecida no ano de 1999 no curso de "Introdução à Filosofia" do Cogeae da PUC-SP, encontrando intensa difusão através da versão html da referida revista. O texto sobre Cassirer foi publicado na revista Ethica, da Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro. Uma versão substancialmente mais extensa e complexa do texto sobre a unidade da filosofia contemporânea foi publicada pela revista Reflexão, da UNESP.
1.1. Ensinar filosofia e ensinar a filosofar
É bem sabido que Kant, em citadíssima passagem, afirma que não se pode ensinar filosofia, mas apenas ensinar a filosofar. O filósofo de Königsberg quer dizer outra coisa do que geralmente se lhe atribui; assim, por exemplo, ele jamais entenderia por filosofia "história da filosofia" (algo que hoje seria para nós uma primeira identificação). A oposição que lhe interessa é entre uma ciência constituída como um conjunto de verdades e uma atividade da razão. Como a filosofia não é a primeira, mas propriamente a segunda, não há aqui o que ensinar no sentido de uma transmissão de conteúdos.
É um mérito kantiano o haver chamado a atenção sobre a diferença entre "ensinar conteúdos filosóficos" e "ensinar a filosofar"[2]. Sem embargo, sua distinção introduz mais problemas que soluções. Kant supõe que é possível ensinar a filosofar, ainda que, a partir de seus pressupostos, não seja óbvio que isso possa ser "ensinado" e em que sentido o seja. Por outro lado, a pergunta principal fica de pé: se o ensinar filosofia nos remete ao ensinar a filosofar, o como se filosofa e o como se ensina a filosofar ainda estão por ser esclarecidos.
1.2. As diversas relações possíveis com a filosofia
Filosofar não é a única relação que se pode manter com aquilo que chamamos de "filosofia". Por tal razão, devemos distinguir as seguintes perguntas:
1. Como se "filosofa", ou seja, como se produz filosofia "original"?
2. Como se pensa "filosoficamente", ou em que consiste the philosophical way of thinking ("o modo filosófico de pensar")?
3. Como se investiga em filosofia com os critérios acadêmicos de rigor?
4. Como se investiga em história da filosofia?
5. Como se ensina filosofia?
6. Como se estuda filosofia?
7. O que é, propriamente, "ensinar filosofia"?
8. O que é, propriamente, "estudar filosofia"?
É óbvio que a forma de responder às perguntas acima depende, em última instância, da forma de responder à pergunta básica:
9. Afinal de contas, o que é "filosofia"?
No que se segue, nossa análise se concentrará em 5, 6, 7 e 8; algumas reflexões a respeito de 1, 2, 3, 4 e 9 serão, todavia, imprescindíveis.
"Filosofar" é um verbo que indica tanto uma atividade como seu produto. Consequentemente, há dois sentidos para a pergunta "como se filosofa?". Em um deles, trata-se de determinar como se tornar um filósofo original, apontando-se um certo resultado; no outro, como podemos nos apropriar do philosophical way of thinking, e alude a uma forma específica de proceder intelectual.
Agora, se por "filosofar" entendemos produção de "conhecimento filosófico 'original"" e, inclusive, "de qualidade" (seja lá o que isso signifique), tal dádiva está certamente reservada a poucos mortais. "Como se forma um filósofo?", nesse sentido, é uma pergunta tão pouco suscetível de resposta quanto a de como se forma um pintor ou um poeta. Talvez a única coisa que se possa é estabelecer de modo empírico algumas condições prováveis.
Se a primeira pergunta permanecerá sempre sem ser resolvida, é possível dar uma resposta concreta à segunda. Deixando de lado a valoração acerca da qualidade, não apenas os filósofos filosofam, mas também outros que jamais produziram um pensamento "original". Comum a ambos é o exercício de um tipo de atividade intelectual que chamamos "filosófica". Todas as formas de relacionar-se com a filosofia supõem em última instância (para serem frutíferas) a presença deste tipo de atividade. Isso nada tem a ver com ditos usuais como o de que todo homem é por natureza um filósofo ou que as crianças filosofam. Refiro-me a um sentido mais exigente. Trata-se da capacidade de uma reflexão sistemática, metódica e (em maior ou menor medida) autônoma sobre certos problemas. Sem ela, jamais há filosofia em nenhum sentido, nem sequer no mais despretensioso de entender um texto.
Existem diferentes tipos de trabalho filosófico, modos heterogêneos de relacionar-se com a filosofia. No entanto, não estão desvinculados, pois há entre eles uma identidade básica no "modo de pensar", de forma tal que constituem um contínuo que se direciona a um grau crescente de "criatividade". Entre investigação e docência, trabalho acadêmico e produção filosófica, filosofia e história da filosofia, não há — necessariamente — um hiato absoluto nem, muito menos, uma contradição. Mas em que consiste o philosophical way of thinking presente em todos eles?
2.1. A primeira imagem da filosofia
Para quem não se dedicou a um estudo sistemático da filosofia e tem um contato primário com essa disciplina, a impressão de um certo caos é inevitável. A filosofia é vista como um espaço onde reina o capricho, podendo cada um dizer o que quiser. Seu caráter não-empírico é entendido como pura arbitrariedade, quando não como confusão crônica. Porém, essa impressão é falsa: a filosofia não é um caos de pontos de vista incomensuráveis, nem consiste simplesmente em possuir certezas. Trata-se de ter opiniões sobre certos temas bem definidos e sustentá-las em algo diferente de uma convicção pessoal; mais ainda, o núcleo essencial da filosofia não é constituído de crenças tematicamente definidas e racionalmente fundadas, senão de problemas e soluções.
2.2. "O problema" como momento essencial do pensar filosófico (tema, problema, questão, pergunta)
Se o público em geral não entende o que os filósofos fazem e crê que cada um simplesmente diz o que quer, isso se deve, em grande medida, ao fato de que não entende o problema ou, mais ainda, não toma consciência da existência de um problema. Esse o dado da equação que tende a faltar e o motivo essencial da impressão de arbitrariedade. O que o filósofo diz é tomado como "mero dizer", como "irresponsável afirmar", passando-se por alto seu originário caráter de "solução". No entanto, a filosofia possui problemas, sendo a unidade dinâmica interna desses problemas o que está na base da multiplicidade e da mudança de temas e opiniões. Quando não há problema tampouco há filosofia.
A lista dos problemas filosóficos está sempre incompleta e submetida a constante revisão. Não existe, por assim dizer, um catálogo deles fixado por uma instância externa à própria filosofia, e do qual ela poderia se servir. Os problemas da disciplina e — isso por sua própria natureza — não estão ali prontos, esperando simplesmente que o pensador os tome. A sua construção (e não tão-só e em primeira linha a sua resposta) é parte essencial do trabalho filosófico.
O primeiro passo para entender filosofia é sempre estabelecer o problema. Diante de um filósofo particular, devemos começar pela pergunta "qual é o problema por ele proposto?" e, eventualmente, "por que ele o formula dessa maneira?". Entender um autor é ver sua filosofia como resposta "ao" problema que ele se coloca. Isso vale para qualquer filósofo, sem exceções. Do mesmo modo que pergunto qual é o problema de Husserl nas Investigações lógicas, devo perguntar qual é o problema de Heidegger em Ser e tempo, ou qual é o problema de Nietzsche em Assim falou Zaratustra[3]. Às vezes os filósofos colocam diferentes problemas em diferentes obras. Geralmente, quanto mais os entendemos mais percebemos que problemas à primeira vista desconexos são apenas aspectos de um só[4]. Por isso não devemos só nos perguntar qual é o problema de Heidegger em Ser e tempo, mas também qual é "o" problema de Heidegger.
A compreensão do problema opõe-se à mera reunião de informações. Por "informações" não entendo unicamente dados biográficos e/ou históricos, mas também "saberes" acerca do que o filósofo "diz". Estudar filosofia não é possuir um conjunto de "saberes" a respeito do autor. Posso ter muitos "saberes" sobre Kant, Hegel ou Wittgenstein (saber, por exemplo, que Kant afirma que espaço e tempo são intuições, que Hegel nega a existência das coisas em si, ou que Wittgenstein defende a teoria pictórica da proposição) e, não obstante, não ser capaz de fixar o problema desses autores; nesse caso, apesar de todos os meus esforços, simplesmente não os entendi. O estudo da filosofia não deve se dirigir a "saber" o que os filósofos "dizem", mas a entender o que dizem como solução (argumentada) a problemas bem definidos.
Se nossa tese é correta, então o conceito de uma filosofia puramente descritiva é uma contradição de termos. É certo que (como, segundo dizem, alguma vez alguém disse) toda filosofia deve estar referida à "experiência". Outra questão, no entanto, é se o mero descrever a experiência alguma vez constituiu uma filosofia. Existem de fato filosofias que pretenderam ser puramente "descritivas", como, por exemplo, a fenomenologia. A análise husserliana da intencionalidade apresenta-se como não sendo mais que uma espécie de "inventário" de um certo estado de coisas. É, todavia, uma "feliz casualidade" que tal análise solucione tantos problemas, sem se propor problemas que se evidenciam como tais, quando observamos as dificuldades do conceito brentaniano de intencionalidade e sua discussão subsequente? Que a "teoria" da intencionalidade, assim como qualquer outra "teoria" filosófica, também é solução a problemas, põe-se de manifesto se observamos que há critérios para se estabelecer o que são boas e más teorias sobre o fenômeno intencional. Isso não significa que o descrever adequadamente não seja um fator decisivo na "solução", reformulação e, inclusive, dissolução do problema original. Certamente, ele pode desempenhar um papel preponderante em vários sentidos; o que não pode é eliminar o problema enquanto tal (reduzindo, assim, uma tese filosófica a uma mera descrição). A filosofia não é um discurso descritivo. Toda descrição é para ela apenas um eventual problema a ser desenvolvido.
O não atentar ao problema degrada o ensino ou o estudo filosófico a um contar ou escutar histórias, Tal tendência é tão forte que se assemelha a um vírus contra o qual parece não existir campanha preventiva eficaz. É comum, quando se pergunta aos alunos em que consiste a contribuição decisiva de Hume ao problema da causalidade, obter-se como resposta que é o derivar a causalidade do hábito. Aqui temos um bom exemplo de redução de uma filosofia a uma tese, na qual não se considera o problema. A afirmação de que o nexo causal surge do hábito é uma resposta que esqueceu sua pergunta. O aporte de Hume se reduz, por conseguinte, ao ter "visto" (e descrito adequadamente) algo que outros pensadores não viram. Descrever um fenômeno, contudo, não é resolver um problema. Hume parece ser "um rapaz sem problemas". Obviamente, isso está muito longe de ser verdade. Hume descobre o caráter não-racional do princípio de causalidade, ou seja, que ele não é suscetível de demonstração. Uma vez que isso fica claro, então, já que de fato dispomos de tal princípio, aparece a pergunta: de onde ele surgiu? Para responder a esta pergunta é que é elaborada a teoria do hábito, a qual ocupa, portanto, um lugar sistemático subordinado: ela substitui o inviável embasamento racional por uma explicação psicológico-causal.
Os exemplos poderiam multiplicar-se. A dificuldade em se entender a diferença entre a priori e inato e a tendência a continuar reduzindo um ao outro, mesmo quando se é advertido de sua radical heterogeneidade, evidenciam outros modos de se apresentar a mesma questão básica (decorrente, em última instância, do esquecimento do problema): reduzir a um discurso descritivo um outro tipo de discurso absolutamente diverso. A filosofia não pode (mais precisamente, não deve) ser "contada"; ensinar filosofia não é "contar histórias". Existe uma diferença categorial entre a história dos três porquinhos e o Discurso do método. Nem Descartes é uma espécie de "Prático", nem o gênio maligno uma espécie de "lobo mau".
O problema de uma teoria filosófica é algo diferente tanto de seu tema como de toda "questão". O tema é aquilo do que ou sobre o que o autor fala. Contudo, o autor fala sobre algo e diz alguma coisa a respeito, a saber, sua tese. Distingamos, então, aquilo do que fala daquilo que diz a respeito; por exemplo, posso falar do conhecimento ou da verdade, e dizer que a verdade é o evidente ou que consiste no acordo entre pensamento e realidade etc. Em ambos os casos, trata-se apenas de "informações" que não determinam problema algum. Em português é fatídico o hábito acadêmico de falar da "questão". Na linguagem comum, uma "questão" não é senão uma pergunta; um "questionário", uma lista de perguntas. Em seu uso acadêmico, porém, o termo perde seu caráter interrogativo e se torna extremamente vago. Em algumas (poucas) ocasiões, "questão" é usada como sinônimo de conceito: a "questão" do belo em Kant pode significar o conceito do belo em Kant. Na maioria dos casos, entretanto, "a questão" faz referência propriamente ao tema, um tema que, em tal caso, por sua vez, não é fixado, mas apenas aludido. Assim, por exemplo, se diz que Kant trata da "questão da metafísica" e Heidegger da "questão do ser". Mas em que consiste "a questão da metafísica" e em que medida considerá-la pode nos ajudar a entender Kant? Se, à primeira vista, parece que Kant toma algo preexistente (e claramente definido) de um certo "reservatório", uma mínima análise deixa patente que o clichê oculta aqui a mais absoluta vaguidade. Com a "questão do ser" o estado de coisas é ainda mais grave: os autênticos problemas desaparecem em uma nebulosa.
Uma vaga vivência de insatisfação, por mais intensa que seja, não basta para que tenhamos um problema filosófico. Ela pode ser o primeiro passo (e geralmente é), mas o que define o filósofo é o fato de que ali onde o entendimento comum se contenta com tal insatisfação (e crê, eventualmente, que ela, enquanto pura "resistência", já é o pensamento de um problema) o filósofo a conduz à forma de uma pergunta explícita bem definida e, por tal motivo, suscetível de resposta.
Por consequência, o critério mínimo para decidir se estamos ou não diante de um problema é a possibilidade de formulá-lo como uma pergunta gramaticalmente completa. Isto não quer dizer que toda pergunta:
a. é uma pergunta filosófica;
b. fixa o problema enquanto tal (sem degradá-lo a um novo saber);
c. fixa o problema suficientemente[5];
d. e que nem sequer basta prestar atenção à pergunta que um autor explicitamente se faz em um texto para entender seu problema.
2.3. Existem "problemas filosóficos"?
Propusemos uma metodologia de estudo e uma didática da filosofia centradas na ideia de problema. Ora, afirmar que a fixação do problema constitui o momento essencial do trabalho filosófico supõe dar como concedido que ele é efetivamente tal. Porém, isto está longe de ser óbvio. Com efeito, diz-se que a tarefa da filosofia não é responder perguntas, mas sim dissolvê-las, evidenciando que elas, em última instância, carecem de sentido. Esta tese possui uma sólida fundamentação e sua análise nos obrigaria a ir muito além da questão limitada que agora discutimos. Não pode ser esse nosso objetivo. Apenas um ponto deve ser ressaltado, a saber, que, na dimensão restrita da qual aqui nos ocupamos, o que à primeira vista se apresenta como uma alternativa excludente se estabelece no seio de uma coincidência básica: se o sem-sentido em questão não é meramente o das teses filosóficas, senão o dos próprios problemas, pelo menos no que concerne ao significado decisivo do problema, para definir o que a filosofia seja, há coincidência com o que temos afirmado. Mais ainda, uma vez que a filosofia, redimensionada mediante a crítica que consideramos, não é propriamente "teoria", mas uma "atividade esclarecedora", tampouco aqui é necessário assumir uma alternativa excludente.
2.4. A tese
Diferenciaremos a seguir "proposição", "proposição afirmada", "tese", "hipótese", "tese a ser refutada" e "definição".
A proposição é um enunciado capaz de ser declarado verdadeiro ou falso. No conjunto das proposições, podemos diferenciar dois grupos, o das afirmadas e o das não-afirmadas. Nem toda proposição é necessariamente afirmada. Entre as proposições afirmadas situamos a tese. Uma hipótese é um candidato a tese. A tese pode, eventualmente, se apresentar, de início, como uma hipótese que se confirma pela ulterior argumentação. Dependendo do caso, o autor pode dedicar relativamente pouco espaço à sua tese, concentrando-se nas alternativas a serem negadas. Distinguir entre tese e definição merece cuidado especial: a maioria das definições são meramente nominais e, portanto, nem verdadeiras nem falsas, não tendo sentido concordar ou discordar delas. Baseados no que foi dito anteriormente, afirmamos agora: ser uma proposição é uma propriedade que o enunciado possui "em si"; ser uma tese, hipótese ou definição é uma função que ele assume ou não conforme o contexto.
No caso do que poderíamos chamar de "teses filosóficas", elas cumprem, além das condições mencionadas, inerentes a toda tese enquanto tal, uma terceira, a saber: elas são solução de um problema. O estabelecimento da tese principal de uma determinada obra depende, portanto, da correlativa fixação do seu problema básico.
O que foi dito é muito simples, mas tudo indica que está longe de ser óbvio. Não é incomum situar a tese em um lugar privilegiado do saber filosófico, centrando nela o estudo do autor. Querer entender a tese filosófica sem o problema é, contudo, algo assim como querer entender a resposta sem a pergunta. A tese filosófica é, originária e essencialmente, resposta; ela só pode ser entendida em correlação com a pergunta à qual responde. O ser-resposta não é parte de seu entorno pragmático contingente, mas de sua natureza lógica intrínseca; não é um acidente, algo que casualmente lhe acontece, senão que lhe é hermeneuticamente constitutivo.
A atividade filosófica primária não é a afirmação ou negação de "teses em si", mas sempre em seu vínculo com o problema[6]. A aparência de que o afirmar proposições é a atividade básica em filosofia é muito forte e se deve a que, inclusive para o próprio filósofo, o problema é dado como parte do legado histórico do qual ele nem sempre é plenamente consciente ou que, por ser-lhe óbvio, não considera necessário explicitar.
A atenção ao problema não é necessária apenas para entender um filósofo em particular, mas também para perceber a dinâmica própria do movimento filosófico ao longo da história. Se nos atemos apenas à tese, o devir filosófico se torna uma mera sucessão de opiniões cujo caráter essencial é o não poder decidir valores de verdade (um modo de ver que, como já indicamos [1ª 2, 2.1], é quase onipresente ao iniciante). Entretanto, não se pode entender filosofia se a reduzimos a uma sequência de pontos de vista diversos, já que a exata fixação do problema é elemento essencial para precisar o sentido da própria tese.
Como regra geral, em filosofia não se contrapõe simplesmente uma tese a outra. Quando o movimento filosófico é interpretado dessa forma, cria-se uma compreensão epidérmica dele. Ali onde, à primeira vista, parece haver uma mera oposição de teses, uma análise mais acurada mostra, não poucas vezes, uma mudança na própria pergunta. Com muito menos frequência do que se tende a acreditar, teses contraditórias são soluções do mesmo problema. Mais do que simplesmente negar uma tese e a contrapor a outra, o movimento filosófico característico é a explicitação dos supostos tanto da tese quanto do problema, a qual termina conduzindo, não poucas vezes, à reformulação destes últimos.
O devir filosófico contém uma certa continuidade, um certo sentido, algo assim como uma sedimentação conceitual. O pensamento anterior nunca é simplesmente negado ou esquecido; ele "superado" e "integrado" no sempre posterior. O devir não suprime, mas supõe o anterior, e constrói sobre sua base de formas diversas[7]. É certo que muitos grandes filósofos pretenderam apagar tudo e começar do zero, mas sempre se tratou de pura ilusão. Caso tal fato prove alguma coisa, é só que grandes filósofos podem ser pequenos homens. A consideração da unidade que tese e problema compõem permite ver naquilo que, a princípio, parecia puramente descontínuo uma dinâmica interna e, inclusive, uma certa direção constitutiva daquilo que a filosofia é. Que o trabalho filosófico essencial ao longo da história se concentra na inter-relação tese/problema, existindo nele uma continuidade e até uma direção, tem a ver com a própria natureza desse tipo de discurso: explicitar supostos é a forma primária na qual se manifesta o movimento reflexivo, característica básica do modo particular de racionalidade presente na filosofia (1ª, 3, 3.4).
Alguns exemplos talvez ajudem a iluminar diferentes aspectos do que foi dito:
1. Geralmente se estabelece o vínculo entre Kant e Frege a respeito da natureza da aritmética como se o segundo simplesmente negasse uma tese que o primeiro afirma e afirmasse uma tese que o outro nega. Assim, enquanto para Kant os juízos aritméticos são sintéticos a priori, para Frege tais juízos são analíticos. O simples opor de teses encobre aqui, todavia, o que é o verdadeiro assunto e que só pode ser adequadamente fixado no contexto de uma coincidência básica: tanto Kant como Frege aceitam que os juízos aritméticos são "informativos". Contudo, dado o conceito kantiano de analiticidade, um juízo analítico não pode ser informativo. Daí surge o problema crítico: em que se sustentam os juízos aritméticos já que, por não serem analíticos, não podem fazê-lo na lógica? Daí, por outro lado, a solução kantiana mediante o recurso à "intuição pura". Daí, finalmente, o problema de Frege: como um juízo analítico pode ser informativo? Colocando as coisas desta forma, vê-se com clareza que Frege não está meramente afirmando o que Kant nega, mas sim revisando seus supostos, supostos que, mediante o conceito de analiticidade, remetem, em última instância, à teoria da proposição e, por meio dela, à própria concepção de lógica.
2. Entendida como "mera" tese, a negação da mudança por parte de Parmênides parece ser mais uma daquelas excentricidades tão peculiares aos filósofos. Todo aluno de graduação "sabe" que, "obviamente", Heráclito "está certo". O que falta aqui é a adequada compreensão do problema do eleata e, sobretudo, a consciência de sua importância. Haver explicitado a própria ideia de Razão ao descobrir o princípio de identidade como o seu elemento primeiro e definidor e, inversamente, haver entendido o dito princípio como exigência básica de toda inteligibilidade, é justamente o aporte parmenidiano decisivo. Uma vez que se toma consciência disso, surge o problema de que todo tipo de mudança e alteridade constitui algo irracional. A solução de Parmênides é, por consequência, não as reconhecer como reais. Dado que, por outra parte, os sentidos nos informam da existência de ambas, eles não podem nos brindar mais que pura aparência.
2.5. O argumento e a fundamentação
A tese é uma solução ao problema e implica um optar em que outras alternativas são descartadas. Tal optar parte da exigência de que a resposta seja "pertinente", o que limita em boa medida toda arbitrariedade. Entretanto, é óbvio que isso ainda não basta. Às vezes há várias respostas igualmente "pertinentes" para a mesma pergunta. Por que, então, o filósofo se decide por uma e não por outra? É aqui que os argumentos desempenham um papel essencial. O que legitima a opção por uma determinada tese são os argumentos. Convém, portanto, determo-nos no conceito de "argumento" e precisar o sentido no qual ele é um elemento essencial do philosophical way of thinking.
Entre filósofos de procedência analítica, costuma-se dizer que o discurso filosófico é "argumentativo". No entanto, afirmar que a filosofia é discurso argumentativo pressupõe que ela é "solução de problemas". O prioritário na ordem lógica é o estabelecimento do problema. Ele é suposto essencial tanto da tese como dos argumentos que conduzem à sua aceitação ou ao seu rechaço.
Todavia, se por "argumentar" entendemos algo preciso, então ele consiste em uma inferência de valores de verdade. Uma vez aceita a definição anterior, segue-se que a ideia de "argumento" não esgota nem caracteriza suficientemente a racionalidade filosófica. Existem modos de "fundamentação" que não podem ser reduzidos a "argumentos" em sentido estrito. A diferença essencial entre ambos reside no elemento de reflexividade radical, necessariamente presente em um caso, mas não no outro[8]. Um desses modos mencionados é a explicitação, a qual consiste em clarificar e precisar conceitos, teses, problemas e supostos de todos os tipos e gêneros. A análise linguística ou semântica é um caso particular de explicitação[9].
A ideia do filosofar como "discurso argumentativo" é uma boa descrição do que, de fato, muitos analíticos produzem como filosofia, ou seja, partem irrefletidamente de problemas "dados" e refutam outros com um certo refinamento técnico. A filosofia, contudo, é algo diferente de um jogo de engenho. Ela não se limita a desenvolver consequências de pontos de partida pressupostos.
A fundamentação (e argumentação) da tese nem sempre tem um caráter linear e facilmente reconstruível; às vezes ela assume formas muito refinadas. Em algumas ocasiões, entre os argumentos, encontra-se a derivação de consequências. Toda tese contém consequências e também elas têm que ser verdadeiras. Teses são rechaçadas muitas vezes não por si mesmas, mas por suas consequências, outras vezes aceitas pelas consequências de sua eventual negação, porque se descartou toda outra alternativa etc. Não é incomum, por outra parte, que o principal "argumento" passe por uma explicitação dos supostos da tese rival, ou seja, aqueles que dão sentido ao problema, caso em que a argumentação da tese e a reformulação do problema terminam confluindo.
2.6. Questões de sistematicidade intrafilosófica
A filosofia possui, por sua própria natureza, um anseio de totalidade. "Totalização", porém, não é necessariamente sinônimo de unificação intra-sistêmica. O "sistema" não é momento essencial do pensar filosófico (e muito menos o é a pedante exaustividade). Não obstante, boa parte do esforço de alguns filósofos está dirigida a ajustes na estrutura do edifício que constroem e daí, em tal sentido, à solução de um certo tipo de problemas que poderíamos denominar "imanentes". Esta tendência se intensifica nos períodos "epigonais", quando as grandes ideias perdem sua força e potencial criativo. Ora, todo trabalho intra-sistemático não tem sentido em si mesmo, supondo, em última instância, um problema que, ainda que não livre de supostos, é extrínseco à própria sistematização.
2.7. Resumo: resultados e perspectivas
Resumamos os resultados alcançados até agora. Qualquer que seja o autor, sempre temos que fazer três perguntas:
a) qual é o problema? (e, dado que todo problema se formula em uma pergunta, qual é, pois, a pergunta do autor?);
b) qual é a solução ou resposta? (ou seja, qual é a tese ou conjunto de teses que ele propõe?);
e) quais são os argumentos e fundamentos? (por que ele escolhe uma resposta e não outra?).
Entre estas três perguntas, a primeira é a decisiva e a que dá sentido às duas restantes. A questão intra-sistemática, enquanto derivada, não haverá de ocupar mais nossa atenção a partir de agora.
Afirmamos que a filosofia "tem problemas", que é momento essencial do trabalho filosófico formulá-los e que, por tal motivo, tanto sua didática como sua metodologia de estudo devem concentrar-se neles. Destacaremos agora, na direção inversa, que se a fixação do problema é o objetivo primário da aprendizagem e do estudo da filosofia, isso ocorre porque ela é essencial para a própria filosofia.
3.1. Introdução
A forma de entender o ensino e a aprendizagem da filosofia remete a uma fixação do philosophical way of thinking. Os momentos fundamentais deste dependem, por sua vez, de como se concebe a filosofia. Pois bem, afinal de contas, o que é "filosofia"? Se, retomando o resultado do capítulo anterior, partimos da base que o problema é momento essencial da atividade filosófica, as próximas perguntas são:
1. Por que ele ocupa esse lugar preponderante no pensar filosófico? Por que o fazer perguntas é para a filosofia e, em particular, para o seu devir, mais fundamental que (ou pelo menos tanto quanto) o respondê-las?
2. Existe algo que caracterize os problemas filosóficos enquanto tais, algum traço inerente a eles?
3. Por que os problemas filosóficos não são simplesmente "dados"? Por que é necessário que sejam "construídos"?
A filosofia não é outra coisa que a consumação plena da racionalidade. Uma razão que não culmine em filosofia é uma razão mutilada; um discurso filosófico irracional, uma contradição de termos. Ora, o que é "racionalidade"?
3.2. O conceito de racionalidade
Se a filosofia é originariamente discurso racional, é imprescindível fixar em que ele consiste. É óbvio que a questão proposta não é suscetível de ser seriamente tratada em poucas linhas; o que podemos, no atual contexto, é somente sublinhar alguns pontos de relevância prioritária:
a. Discurso (ou pensamento) racional não é sinônimo de discurso (ou pensamento) "lógico".
A razão, certamente, não se opõe à lógica[10], nem entra em conflito com ela, mas tampouco se identifica com ela. A lógica explicita a legalidade da razão, mas não a esgota, nem, portanto, consegue reduzi-la a um conjunto de regras. Diante de toda regra, a razão segue estando "além". Ela não pode ser "mecânica". Todo algoritmo, na medida em que desenvolve consequências a partir de supostos dados, não passa de um proceder "técnico".
b. Racionalidade é "esclarecimento"
O discurso racional é esclarecedor; ele contém em si um movimento rumo ao esclarecimento. Razão significa transparência, e a presença do opaco só pode ser razoavelmente indicada a partir do limite desta transparência. Aquele que apela ao opaco para limitar a "arrogância da razão" mostra a própria arrogância na sua (implícita) pretensão de ser capaz de chegar ao limite da transparência. Seu dogmatismo não é de modo algum menor do que aquele do qual acusa seu oponente. Ele não faz outra coisa que substituir um absoluto por outro, a saber, o absoluto da Razão pelo absoluto da não-Razão, sem assumir de modo consequente, entretanto, o ponto de vista da finitude e sua imanência constitutiva. Pretender chegar ao limite da Razão não é outra coisa que uma forma rancorosa de negar a própria finitude. A aspiração à transparência só tem sentido como "ideia" na acepção kantiana: um ser finito é sempre realização parcial da racionalidade.
c. Racionalidade é intersubjetividade
A intersubjetividade não é um atributo da razão, mas um momento integrante de seu conceito. Um discurso racional que não seja em princípio intersubjetivo (e, do mesmo modo, um discurso intersubjetivo que não seja em princípio racional) é uma contradição de termos. Agora, se racionalidade implica intersubjetividade, um discurso intersubjetivo é, em seu limite ideal, estritamente universal.
d. Racionalidade é reflexividade
"Reflexividade" é qualidade primária da razão. Discurso racional, diferentemente de discurso algorítmico ou "intra-sistêmico", é discurso reflexivo. A função esclarecedora da razão exige explicitar e tematizar todo suposto, o qual implica um princípio de reflexividade radical que inclui a própria autorreflexão.
3.3. A filosofia como culminação da racionalidade
3.3.1. Filosofia e esclarecimento
A filosofia é um esforço para pensar com clareza, para lançar luz na penumbra. O que diferencia o filósofo da maioria dos mortais não é que ele pensa mais coisas ou outras coisas, ou que as pensa de um modo especial[11], mas sim que ele pensa, simplesmente, de um modo mais claro. Essa clareza não é um dom dos deuses, senão que resulta de árduo trabalho intelectual. O filósofo pensa de um modo mais claro porque aprendeu a pensar de forma disciplinada e precisa. Se a clareza é o objetivo, a diferenciação e a delimitação são seus instrumentos. "Pensar racionalmente" é, em boa medida, separar, distinguir, diferenciar[12].
Porque a filosofia é um discurso "esclarecedor", a clareza não é uma propriedade meramente desejável dele, mas parte essencial de seu próprio sentido. Uma filosofia vaga ou nebulosa é, simplesmente, filosofia de má qualidade. Um discurso confuso não é profundo, é apenas confuso. Confusão e vaguidade só podem ser admitidas como primeiro estágio no caminho rumo a uma transparência ainda a ser alcançada. "Profundidade" é transparência. O niilismo conceitual, o vazio elegante, o impressionismo imagético, o apelo sinestésico, o malabarismo estetizante ou simplesmente oco: tudo isto não é filosofia. Onde há verdadeira filosofia — e não somente moda cultural de feuilleton — o conteúdo está presente e, com ele, a necessidade de sua clarificação.
A tarefa esclarecedora não é privativa nem da epistemologia, nem da lógica (e ainda menos da análise da linguagem), mas inerente à filosofia enquanto tal; ela é própria também da estética e da teoria política. Nem o discurso filosófico sobre arte é artístico, nem o discurso filosófico sobre a política é político; ambos são filosóficos: arte e política são seus objetos, não seus meios.
3.3.2. Filosofia e intersubjetividade
A filosofia é de princípio "compreensível"; ela não supõe intuições especiais, aptidões extraordinárias ou uma inteligência fora do comum. Todo ser humano, enquanto ser racional, pode entender o discurso filosófico se reúne os pressupostos necessários para isso, ou, pelo menos, tem a paciência necessária para reuni-los[13].
A intersubjetividade de princípio do pensamento filosófico não está presente apenas no seu resultado, mas também no seu percurso construtivo. Ao contrário do que se tende a crer, o pensamento filosófico é uma atividade coletiva, não individual; a filosofia, um modo de práxis essencialmente social.
3.3.3. Filosofia e algoritmo
A filosofia não é um discurso nem puramente inferencial nem puramente algorítmico. A redução da racionalidade ao "lógico" assemelha de tal forma a filosofia a outros modos de pensar, que chega a ameaçá-la com a perda de sua especificidade. Todo modo de racionalidade não-filosófico contém algo de inercial: ele "aplica" a Razão. Na filosofia, pelo contrário, a Razão não é apenas aplicada, é "construída"; não há nada "mais alto".
3.3.4. Filosofia e reflexividade
Por ser um discurso originariamente reflexivo, a filosofia é encarnação radical da razão. Diz-se que filosofar é pensar sem supostos. Essa tese é em si falsa, ainda que contenha um núcleo de verdade. Existem boas razões para crer que não possível pensar sem supostos, e que nem sequer a filosofia o consegue. Porém, o que é certo é que o pensar filosófico possui com a ideia de supostos uma relação sui generis: parte principal de sua tarefa é explicitá-los. Poder-se-ia dizer que a filosofia não ilumina aquilo que está em nossa frente, senão aquilo que fica a nossas costas.
Nossas crenças mais básicas são ao mesmo tempo as mais difíceis de explicitar. A dificuldade específica de compreensão da filosofia, dificuldade que, paradoxalmente, reside em boa parte na extrema simplicidade de seu modo de pensar, começa com o reconhecimento de que seus problemas são efetivamente tais. The philosophical way of thinking é tão difícil por ser tão simples. Em um certo sentido, o filósofo se ocupa com a explicitação do óbvio. Na medida em que ele descobre o suposto como suposto, tematiza e problematiza o óbvio, descobrindo que neste se encerra uma dificuldade. Agora, se a filosofia é explicitação do óbvio, ela não é certamente uma coleção de trivialidades. A tomada de consciência do óbvio encontra-se nos antípodas de toda ingenuidade. A essencialidade do problema na filosofia não é um mero fato a ser constatado, senão uma necessidade funde suas que raízes na própria natureza do que a filosofia seja. Ela é a consequência do caráter primariamente reflexivo do discurso filosófico.
Se a existência de um problema é condição mínima do filosofar, nem todo problema faz um grande filósofo. Com respeito à relevância de um problema, há algo assim como critérios objetivos. Os grandes filósofos são os grandes problematizadores: eles descobrem um problema decisivo ali onde não se percebia nenhum.
A explicitação de supostos efetuada pela filosofia consuma a reflexividade radical inerente à razão, sendo por intermédio desta que ela constitui seus problemas. O pensamento filosófico é originariamente reflexivo. O filósofo jamais perde de vista o mundo; porém, isso é diferente de um permanente refazer a filosofia a partir da sua consideração direta ou de ignorar que ele só está dado ao pensamento como objeto a ser refletido. É por esse motivo, por derivar da reflexão, que o problema filosófico não é simplesmente dado, mas tem de ser "construído". A explicitação de supostas (e não apenas da tese, mas inclusive do problema anterior) é o que conduz ao novo problema.
Descartes muda o conceito aristotélico de substância. Uma vez estabelecido seu novo conceito, ele se pergunta que substâncias há no mundo. Responde dizendo que há duas substâncias que são absolutamente heterogêneas: alma e corpo e, coloca assim a ulterior dificuldade de explicar como se relacionam. Tentar superar a mencionada dificuldade será o próximo movimento. Spinoza, radicalizando o conceito cartesiano, afirmará que só há uma substância e que alma e corpo não são mais que dois de seus atributos, entre outros; Malebranche, por sua vez, dirá que Deus cria permanentemente o mundo e, nesse sentido, a cada instante coloca de modo direto as substâncias em relação; Leibniz, insistindo na unidade como elemento definitório da substância, vai afirmar que existe uma harmonia preestabelecida entre elas; Berkeley, que só há uma substância, o espírito; Lamettrie, que só há uma substância, o corpo etc. Visto retrospectivamente, o que se opera ao longo desse movimento é uma exploração sistemática de possíveis soluções às dificuldades do dualismo cartesiano. Se observamos mais detidamente, em todos os casos a nova tese não apenas se opõe à anterior, mas passa por uma revisão do próprio conceito de substância. A validade deste, não obstante, permanece fora de toda dúvida. O passo decisivo neste ponto será dado por Hume quando, em vez de tentar uma nova resposta para o problema do vínculo entre as substâncias, estabelece um questionamento de princípio quanto à legitimidade do próprio conceito de substância. Não se trata já de corrigi-lo, mas de abandoná-lo. Purgada por Hume, a questão alma- corpo deixa de ser metafísico-ontológica e passa a referir-se de forma exclusiva aos fenômenos. Contudo, ela não desaparece totalmente, pois, ainda que neguemos o conceito de substância, físico e psíquico parecem ser incomensuráveis. Rebelando-se contra toda redução do segundo ao primeiro, mesmo aquela que pretende aceitar entidades psicofísicas, Brentano afirmará a especificidade irredutível do físico e do psíquico enquanto fenômenos (com independência da questão de seu status substancial ou não). É óbvio que, em tal Contexto, a dificuldade de dar conta da sua relação subsiste. Porém, se, retomando a inspiração spinozista, partirmos da unidade do físico e do psíquico (considerados agora enquanto fenômenos), parecerá então que tal dificuldade torna-se superável. Primeiramente Mach, sobretudo Natorp e, posteriormente, Scheler e Cassirer procurarão nessa direção. Teremos, agora sim, alcançado a solução definitiva do problema cujos estágios temos esboçado? De modo algum. Na realidade, a única coisa que fizemos foi reformular, em um novo nível, a dificuldade básica de todo "monismo": não a união do diverso, mas a divisão do homogêneo. Se partirmos de uma unidade primitiva, os problemas não desaparecem, antes se deslocam para explicar como "do mesmo" surge "um outro". A unidade fenomênica, portanto, longe de haver eliminado todo problema, simplesmente criou um novo. Na filosofia nunca chega o momento de dizer: "... e viveram felizes..."; para o trabalho reflexivo não há "redenção".
3.4. Filosofia, cultura e sociedade
Porque a racionalidade é sempre tomada de consciência, a filosofia é essencialmente libertadora. Ela não dá novos grilhões. Uma cultura que não possua filosofia ou uma educação que não a ensine (e que, não obstante, pretendam valorizar o "espírito crítico") não são mais que uma incoerência. A filosofia cumpre uma função imprescindível no conjunto da cultura e, por isso, no seio da sociedade. Alguém tem que assumir essa função. Se não queremos que seja a filosofia, podemos lhe dar outro nome; o estado de coisas fundamental não se altera por isso. Isto implica, por outro lado, claro está, que quando o filósofo renuncia à sua tarefa, deixando de ser guardião da racionalidade, ele perde sua função social e a filosofia, sua legitimação como momento necessário e irredutível da cultura.
4.1. Como se lê um texto filosófico?
Existem duas perspectivas possíveis sobre um texto — leitura e produção — sendo que uma percorre o movimento inverso da outra. A produção de um texto tem como ponto de partida uma estrutura lógica que tenta se realizar numa forma literária. Produzir um texto é proporcionar uma formulação literária adequada a uma certa estrutura lógica; ler um texto é efetuar o movimento inverso, ou seja, partir de uma certa estrutura literária e tentar chegar a uma estrutura lógica[14]. Os manuais de metodologia filosófica concentram-se na primeira perspectiva. Um manual de aprendizagem e ensino da filosofia deve se concentrar na segunda (1ª, 4, 4.3.1).
Há uma interação — embora esta não signifique identidade ou implicação necessária — entre como se lê e como se produz um texto. Bons hábitos de leitura se refletem em uma produção satisfatória de texto, assim como vícios de produção são quase sempre também de leitura. Dois deles são extremamente comuns: o "periodismo filosófico" e o "literaturicismo".
1. Um texto filosófico não é uma narração na qual se contam coisas, porém não é nada fácil perceber que não o seja. Podemos ler a "dedução transcendental" como um passeio pelo bosque no qual, em vez de árvores, se descrevem "estruturas transcendentais". O que está errado aqui a "antecipação hermenêutica", a própria categorização do que estamos lendo. Um texto filosófico não contém "notícias", pois sua finalidade não é transmitir "informações"[15]. Consequentemente, a sua leitura tampouco pode consistir em informar-se ou a respeito do texto ou daquilo que ele diz, nem em informar-se com o autor, nem em informar-se sobre o autor (o autor fala de..., diz que...). Ao texto lido como "fonte de informações" devemos opor o texto como "objeto de análise".
2. Ler ou produzir um texto filosófico é algo essencialmente diferente de ler ou produzir um texto literário. Assim como muitas leituras não passam de uma apreensão puramente literária do texto, muitos textos "filosóficos" não são outra coisa que meras peças literárias. Eventualmente, eles são textos "bem escritos", "oportunos", ou o que se queira, mas não efetuam uma verdadeira contribuição no âmbito da pesquisa ou do aprofundamento conceitual. A formulação literária não é em filosofia a finalidade, mas apenas uma ferramenta de comunicação. Elegância de estilo é desejável, porém não é essencial, sendo aquilo que, caso necessário, deve ser sacrificado. A elegância de estilo, não poucas vezes, se constitui em inimiga do rigor e da precisão. Fragilidades, saltos, carências e lacunas podem ser mascarados literariamente.
Nível literário e nível linguístico do texto não são a mesma coisa. É provável que não exista pensamento sem linguagem e que aquilo que temos chamado de estrutura "lógica" esteja essencialmente vinculado à estrutura linguística. De qualquer forma, isso é diferente de dizer que a expressão literária é prioridade para o pensamento filosófico (e, muito menos, que a filosofia seja um gênero literário). É óbvio que um mesmo pensamento pode encontrar formulações literárias diversas igualmente adequadas, assim como ordem de exposição e estilo, que são opções pessoais. Deveria ser óbvio, também, que um pensamento pode ser acabado, sutilmente elaborado e, não obstante, não lograr uma formulação literária satisfatória. Simples notas são capazes de conter ideias filosóficas decisivas.
4.2. A compreensão do texto
Ainda que seja possível diferenciar, em princípio, entre os modos de abordagem do estudo da filosofia e do texto filosófico, existe entre ambos um vínculo estreito. A ideia condutora será aqui, novamente, a de problema.
O objetivo da leitura do texto filosófico deve ser, primordialmente, "entender"[16]. Isto não é óbvio, já que, de fato, há outros objetivos possíveis, como "informar-se", "tomar conhecimento" ou "assumir posição" em relação ao escrito. O importante é que qualquer outro objetivo pressupõe compreender o texto, o que, como consequência, sempre é a finalidade básica, parte analítica do próprio conceito de "leitura de um texto filosófico". No entanto,
1. O que é "entender" um texto?
2. O que é o "entendido"?
3. Por que às vezes não entendo e que devo fazer quando isso acontece?
4. Quais são os critérios para saber se entendo ou não do modo correto?
4.2.1. O que é "entender" um texto?
O termo "entender" possui um sentido subjetivo e um objetivo: no primeiro, ele é um sentimento de saber do que se trata, de não ter dúvidas; no segundo, uma habilidade intersubjetivamente acessível e controlável, que pode assumir diferentes formas em função de sua complexidade intelectual:
a) Entender é "compreensão literal", é ser capaz de repetir o texto.
b) Entender é "parafrasear", ou seja, ser capaz de efetuar a reprodução não-literal do texto, substituindo alguns termos dele por sinônimos e equivalentes. Isto é o que usualmente se chama de "dizer com minhas próprias palavras". No fundo, continuamos diante de uma repetição, na qual apenas foram introduzidas, de modo aleatório, algumas mudanças puramente literárias.
c) Entender é assimilação das regras que possibilitam a reprodução de estilo. Tanto na repetição textual como na paráfrase, não se produz nada novo. Existe, contudo, um terceiro sentido do entender objetivo que conserva essa característica de um modo "refinadamente perverso". O leitor não pretende, neste caso, tão-só reproduzir o texto enquanto peça literária, mas elaborar um novo discurso que atinja o próprio conteúdo. A pretensa novidade, no entanto, é um engano ou uma ilusão. Muitos textos que, presumivelmente, estão destinados a falar de um autor, na realidade, falam "como" ele. Seu resultado efetivo não é entender o texto, mas imitá-lo. Do mesmo modo que diferenciamos entre "tema" e "problema", temos de diferenciar também entre "problema" e "estilo". O objetivo da análise filosófica não é falar "como", mas falar "de" Heidegger ou "de" Hegel, entendendo o que eles dizem como resposta a seus respectivos problemas. Também Heidegger ou Hegel têm um problema; também Ser e tempo ou A ciência da lógica são resposta. É simplesmente uma desculpa preguiçosa dizer que a doutrina de um autor não admite nenhuma outra formulação literária que aquela que ele efetivamente emprega. Se fosse assim, então só se poderia falar "como" Heidegger ou "como" Hegel, em alemão, que não é o que de fato se faz.
d) O verdadeiro entender em sentido objetivo jamais se limita a reproduzir a literalidade do texto, senão que supõe uma independência em relação a ela, situando- se, por tal motivo, além de toda mera repetição, paráfrase e imitação. Entender é "traduzir"; ter entendido um texto é ser capaz de poder oferecer uma "tradução" dele. No entanto, não é qualquer tradução que constitui um entender. Para que o seja, ela deve representar um ganho em relação ao original; deve ser mais explícita e, inclusive, se possível, mais clara e até mais precisa, que aquele. Justamente porque na tradução se explicita o texto, todo texto tem, em princípio, infinitas traduções, não existindo uma que seja definitiva. Finalmente, é minha capacidade de traduzir o texto o que me permite "explicá-lo" a outros, ou seja, fazê-lo compreensível para Maria e João.
Se entender é traduzir, uma verdadeira tradução é capaz de "tornar comensurável", dito de outro modo, de recodificar um texto escrito em uma linguagem para outra ou, eventualmente, para uma terceira linguagem comum a ambas, de forma tal a possibilitar a tematização de similitudes, identidades, diferenças etc. Traduzir implica a possibilidade de retraduzir. Isto não quer dizer que exista algo assim como uma linguagem última, mas apenas afirmar que sempre são formuláveis linguagens comuns. Os mesmos problemas reaparecem de um lado e do outro do Rubicão, ainda que vestidos em trajes diferentes. Fazer filosofia é poder mostrar as continuidades e identidades entre Frege e Husserl, não menos que entre Wittgenstein e Heidegger. No mundo das especializações é essencial não perder de vista que a filosofia foi e segue sendo uma. A razão desse fato é que a reflexão radical não pode ser "monádica" (compare-se 1ª, 3, 3.3.2 e 3.3.4).
"O entendido" é o sentido do texto. Tal sentido nada tem a ver com intenções subjetivas do autor, senão que constitui uma unidade objetiva[17]. O autor ingressa no texto unicamente como "fator de finitude" que delimita a parte do universo da significação presente nele. Da perspectiva de um acesso finito a esse universo, o elemento da facticidade nunca pode ser desconhecido, porquanto é a partir dele que é possível fixar a significação "realizada"[18]. Entretanto, entender não é explicar (nem histórica nem psicologicamente) o texto: é explicitar o seu sentido; não o porquê, mas o que dito.
O sentido do texto nunca está oculto ou para além do texto, mas presente nele, ainda que nem sempre de um modo explícito. O que o autor "queria dizer", ele o disse.
4.2.2. Por que às vezes não entendo, e o que devo fazer quando isso acontece?
O não-entender sempre superável; não há um não- entender que seja "de princípio" e remeta a uma espécie de incompetência "crônica". Este fato, certamente, possui um aspecto encorajador: devemos confiar sempre em nossa capacidade de vencer as eventuais dificuldades de leitura. Ora, não se trata de promover no leitor uma espécie de "heroísmo intelectual" que não desiste diante do adverso. Trata-se de algo diferente. O não-entender sempre é superável devido a que ele sempre tem um porquê: quando não se entende, não se entende por alguma razão.
Em geral, o que se faz quando não se entende é simplesmente voltar a ler. Este procedimento é, sem dúvida, recomendável quando a dificuldade surgiu de uma mera falta de atenção. Não obstante, em outras situações extremamente comuns ele cego. A atitude certa é sempre determinar com toda a precisão possível o que não entendo e, em segundo lugar, o porquê não entendo.
Uma importante causa do não-entender não diz respeito à filosofia, mas à falta de conhecimentos adequados da própria língua. Não é esse não-entender que nos interessa agora. O não-entender de natureza propriamente filosófica é, em geral, a consequência de que algo não está explicitado no texto, ainda quando constitua sua premissa, ou, em termos mais genéricos, de que, em realidade, não possuímos os pressupostos necessários. Em tal caso é recomendável suspender de modo provisório a leitura do texto até possuir uma formação adequada. Ninguém ousaria tentar entender um tratado matemático sobre cálculo sem conhecer as regras elementares da aritmética. Porém, algo assim é o que muitas vezes se pretende em filosofia. É pura perda de tempo insistir na leitura de textos para a compreensão dos quais ainda não se possui os pressupostos necessários. Se, mesmo assim, por um motivo contingente qualquer, não podemos deixar de procurar entender um texto específico, então não há outro caminho que reunir, de alguma forma, o conhecimento prévio imprescindível.
Toda compreensão é sempre "autocompreensão". O esforço pelo entender tem uma boa dose de luta contra o egocentrismo, contra o tácito impor ao autor aquilo que, desde sempre, nos pareceu razoável. O que impede a compreensão são, não poucas vezes, nossas próprias crenças, tão óbvias para nós, que não temos consciência delas como meras opções. Estas podem ser de ordens muito diversas: ou referir-se a nossa forma mais geral de ver o mundo e a existência (sendo extremamente pontuais) ou referir-se àquilo que, com a maior certeza, acreditamos haver entendido do texto em questão. Já que não só o texto, mas também nós temos pressupostos, o movimento de explicitação deve atuar em dois sentidos: o explicitar o texto é sempre correlato de uma explicitação de nossos próprios pressupostos[19].
Seria um otimismo digno de um Pangloss pedagógico acreditar que o não-entender é um tropeço casual. Na realidade, ele é um momento inerente ao estudo filosófico, não havendo forma de evitá-lo de princípio. A única tarefa razoável de uma didática e metodologia é dizer o que fazer diante dele. Entretanto, se o não-entender não é totalmente eliminável, tampouco seria desejável que o fosse, dado que ele cumpre duas funções positivas:
a) Nem sempre ele é sinal de uma limitação intelectual, mas muitas vezes de perspicácia, constituindo um eficaz antídoto contra toda ingenuidade. Há formas de não-entender são mais profundas que todo entender, assim como há formas de "entender" que são apenas sintomas de superficialidade.
b) O não-entender é uma fonte inesgotável de problemas e, por tal razão, parte essencial da própria filosofia, e não apenas de seu estudo. A única atitude filosoficamente possível diante de certas colocações confusas, vagas ou absurdas é não entendê-las. Nem tudo em um texto filosófico é compreensível. Além das dificuldades subjetivas de compreensão, como as consideradas até agora, existem outras que são de natureza "objetiva", que estão realmente "no texto" e não meramente “em nós”. Ainda que à primeira vista pareça paradoxal, há um não-entender "correto". Um bom índice dele é que não sejamos os primeiros a perceber a dificuldade.
4.2.3. Como sei se entendi "corretamente"?
Quando não entendo, percebo que não entendo. Contudo, quando creio ter entendido, ainda resta a dúvida de se estou entendendo bem ou mal, correta ou incorretamente. Como saber quando o que eu entendo é efetivamente aquilo que o texto diz?
É uma praxe acadêmica sumamente comum o falar de "minha leitura", como se fosse possível que várias pessoas que leem o mesmo texto entendessem coisas diferentes e, não obstante, igualmente válidas. Isto não existe: se tivermos duas "leituras", uma é correta e a outra não[20]. O que pode acontecer (e de fato muitas vezes acontece) é que, em um processo de compreensão coletivo, diferentes leitores colaborem com a visão de aspectos diferentes. Porém, se há contradição propriamente dita, um tem razão e o outro não.
Ora, diante de duas leituras contraditórias, como saber qual é a verdadeira? São possíveis critérios para diferenciar leituras corretas e incorretas? Certamente sim, e, mais ainda, é mais fácil estabelecê-los do que o principiante imagine. Uma boa leitura de texto:
a. toma em conta as regras gramaticais e jamais contradiz a sua literalidade;
b. esgota os recursos de compreensão oferecidos pelo texto;
c. concede-lhe a maior unidade possível (sem deixar arbitrariamente passagens de lado);
d. não lhe atribui contradições, considerando as que julgue encontrar (até explícita prova do contrário), produtos de erros de compreensão;
e. o apreende como intrinsecamente "fluido" (mesmo quando, de fato, alguns textos apresentam descontinuidades, estas só podem ser estabelecidas como fracasso de toda tentativa de conexão; a princípio, sempre há um vínculo entre cada frase, parágrafo ou capítulo com o seguinte e com o anterior);
f. é "antecipatória", ou seja, vai sendo confirmada pelo desenvolvimento do texto e é capaz de "prever" o seu próximo movimento (se ele é inesperado, ainda que não propriamente contraditório com nossa expectativa, não estamos de posse do "fio condutor" do texto);
g. dá conta do todo pela parte e da parte pelo todo (princípio do círculo hermenêutico).
Os expostos até agora são, apenas, critérios secundários. O critério realmente decisivo é que toda boa leitura é "óbvia", ainda que nem por isso seja trivial. Trivial é o que todo mundo vê com apenas olhar; óbvio, aquilo que podemos olhar sem ver, mas que nem podemos deixar de ver uma vez que nos é indicado o modo como devemos olhar. Nossa reação usual, em tais casos, é um: "Mas é isso! Como não o vi antes!" Uma leitura duvidosa é aquela que, pelo contrário, permanece não imperativa depois de indicada; ela não se impõe espontaneamente a partir do texto e, apesar de todo esclarecimento, nunca deixa de merecer "reparos". Dificilmente uma boa leitura é "original" ou "inédita". Ela não vê algo diferente das demais, senão que vê o mesmo em forma definida. Por dizê-lo de algum modo, ela centra adequadamente o "foco", fazendo de linhas confusas uma figura definida. Em tal sentido, podemos comparar a tarefa de leitura com a visão no microscópio: o que se vê é sempre "o mesmo", mas há um ponto de fixação da lente que nos permite ver com nitidez.
O conceito de "focalização é um conceito-chave para entender tanto o que seja a filosofia como o que seja o trabalho filosófico. É por isso que ele também constitui um princípio básico para guiar o seu ensino e estudo. A maioria dos "saberes" filosóficos são aprendidos sem ser corretamente "focalizados", levando consigo uma margem de desajuste "crônica". Problema comum em filosofia é o saber muito, de modo impreciso. O estudo filosófico, porém, não deve orientar-se a saber muitas coisas, senão a possuir conceitos claros e sólidos, a "situar adequadamente o foco". Que a essência do corpo, segundo Descartes, é a extensão, todo mundo "sabe"; que isso possibilita a aplicação da geometria à física e, mais ainda, conduz à formulação de uma física estritamente geométrica é passado por alto.
Um recurso básico para focalizar adequadamente é atender à contraposição fundamental que orienta o texto. É uma ideia comum em certas semânticas contemporâneas que o sentido de um termo não pode ser estabelecido de modo isolado, pois remete a um sistema de oposições. Muitas perguntas hermeneuticamente improcedentes, mesmo quando legítimas em sentido lógico-abstrato, surgem deste desajuste. A determinação de uma tese só pode ser estabelecida em relação ao sistema de alternativas no qual o autor de fato trabalha (seu particular "universo do discurso") e não com respeito à totalidade do logicamente possível.
4.3. A análise do texto
O entender não é uma "intuição" e sim o produto de um esforço que passa pelo não-entender. Para entender um texto precisamos "analisá-lo"; o entender é o resultado, a análise o meio. Já oferecemos certos critérios para avaliar o resultado. Ainda não dispomos, porém, de nenhuma indicação de como chegar a ele. Os professores pedem a seus alunos que "analisem" textos; lamentavelmente, nem sempre dão indicações muito concretas sobre em que consiste esta tarefa. Via de regra, se supõe sem mais que se aprende a analisar observando como outros analisam. Isto não é de todo falso. Mas não poderíamos oferecer uma orientação mais explícita ou, por que não, algumas diretivas básicas do que de fato se faz quando se analisa um texto exitosamente? Para cumprir tal tarefa temos de retomar algumas ideias já expostas (1ª, 4, 4.2.1) e situá-las em um novo contexto: a análise do texto pode ser disciplinada metodicamente como um processo de sucessivas traduções.
4.3.1. Retradução semântico-gramatical: explicitação exaustiva dos recursos puramente linguísticos
A atenção à estrutura gramatical do texto certamente não é suficiente, mas é absolutamente necessária para sua adequada leitura. Nenhuma interpretação pode contradizê-la (1ª, 4, 4.2.3). Da desatenção à estrutura gramatical derivam erros triviais e facilmente evitáveis. A primeira tarefa é conduzir o texto a sua forma gramatical mais simples, reduzindo-o a uma sucessão de frases sujeito-verbo-predicado. Isto implica a "desconstrução literária"[21] do texto, tarefa para a qual, em princípio, basta o domínio do idioma. Alguns procedimentos simples no sentido da tarefa indicada são:
a) identificar termos da própria língua que não me são conhecidos, cujo sentido não me é totalmente presente ou cujo uso, em casos específicos, não corresponde ao habitual;
b) identificar pronomes, em particular os relativos e demonstrativos, e explicitar sua referência efetuando em continuação a substituição sistemática dos primeiros pelos segundos;
c) eliminar em geral as orações subordinadas substituindo-as por principais;
d) eliminar conectivos;
e) eliminar conjunções dentro de frases;
f) identificar advérbios e construções adverbiais.
O resultado do aplicar os procedimentos indicados não será mais um mero "repetir", mas uma primeira "tradução" que, com certeza, possui uma extensão muito maior que o original. O texto obtido é correto do ponto de vista gramatical, embora, talvez, literariamente insuportável. Na medida em que já não se trata de uma mera reprodução, surgem agora dificuldades hermenêuticas objetivas; por exemplo, aquilo a que um pronome relativo se refere pode ser gramaticalmente ambíguo, exigindo-se em tal caso observar critérios semânticos etc.
Excurso
Quando estabelecemos a finalidade do presente livro, declaramos não nos haver proposto a escrever um manual de "metodologia científica" para filósofos. A partir do exposto no tópico anterior surge, porém, a possibilidade de algumas considerações sobre um tema usual em tais manuais: a redação de textos técnicos e, como caso particularmente angustiante para o aluno de pós-graduação, de seu objeto de desejo: a tese.
Conforme já foi dito (1ª, 4, 4.1), há uma interação entre como se lê e como se produz um texto. Contudo, não existe aqui identidade ou implicação necessária: é possível "ler bem" e, não obstante, escrever mal. Por tal motivo, não é demais chamar a atenção para o fato de que as técnicas de leitura propostas valem também, com as devidas reformulações, para a escrita: o texto não é agora lido, senão produzido, mediante tais técnicas[22].
O maior problema dos escritos escolares e acadêmicos em filosofia não é filosófico, mas gramatical, concentrando- se em boa medida no uso inadequado das regras de construção e pontuação. Corrigir tais insuficiências supõe, claro está, conhecer e aplicar a gramática da língua. Daí, três conselhos:
a. Aprenda gramática!
b. Produza seu escrito respeitando de modo rigoroso as regras gramaticais! Tenha claro que escrita filosófica não é literatura e que se apartar das regras gramaticais é uma liberalidade reservada aos romancistas e poetas, não aos filósofos.
c. Corrija seu escrito! Considere o que você costuma chamar de "texto pronto" meramente um rascunho ou uma primeira versão. Leia e releia seu escrito com distância temporal e como se fosse o texto de uma outra pessoa.
4.3.2. Retradução técnica: substituição de definições
O segundo passo no processo de análise do texto será identificar os "termos técnicos" e substituí-los pelas respectivas definições. A filosofia, como a física ou a medicina, tem um vocabulário próprio no qual as palavras possuem significados específicos. Contudo, ao passo que as disciplinas mencionadas usam expressões criadas para tal fim e "incomuns" na linguagem cotidiana, os termos filosóficos, via de regra, são comumente empregados nesta. É por tal motivo que, enquanto no caso de um informe médico temos consciência de que não entendemos porque desconhecemos a terminologia, isso não acontece com os textos filosóficos. Nossa familiaridade com os termos empregados neles produz a ilusão de que sabemos do que se está falando. Nem desconfiamos que uma palavra de uso corriqueiro pode ter em filosofia um outro sentido. O termo "liberdade", por exemplo, está associado na linguagem comum a um "poder": ter a liberdade de fazer algo significa poder fazê-lo. Do mesmo modo, "necessidade" está vinculada ao "ser necessário que": a algo que precisa ser feito. Estes usos predominantes tendem a passar despercebidos ao leitor iniciante, que os projeta irreflexivamente no texto que pretende ler. Porém, quando em filosofia se fala de "liberdade" ou de "necessidade", entende-se outra coisa. Suspeitemos sempre, em consequência, de que em um texto filosófico as palavras não estão usadas naquele sentido que nos é comum, e estejamos atentos a nossa "associação privilegiada". Em geral, mais do que usar os termos em um outro sentido que o usual, a filosofia os emprega de modo mais preciso ou conceitualmente elaborado. O prestar atenção ao fato de que os termos da linguagem comum muitas vezes têm sentidos múltiplos, vagos e imprecisos é um fator decisivo para entender ou não entender um texto.
A capacidade de identificar termos técnicos supõe muito mais que uma habilidade linguística, não sendo possível reduzi-la a um conjunto de regras que nos imunizem a todo erro possível. Porém, só o fato de superar a ingenuidade já constitui um avanço decisivo. Um critério que pode ser útil (mas que está longe de ser infalível) é o atentar àqueles termos que se repetem no texto e que já temos observado com frequência em escritos filosóficos.
Uma vez que suspeitamos de que um certo termo é um termo técnico, vejamos os indícios que o próprio texto oferece para o seu esclarecimento e, eventualmente, verifiquemos se não há em outras passagens do próprio texto definições (implícitas ou explícitas). O índice temático do livro pode ser de grande ajuda. Se nossa busca se frustra, podemos continuar nossa indagação fora do texto, servindo-nos para isso de bons dicionários específicos da disciplina.
Imaginemos agora que sabemos que um certo termo é filosófico, e que um dicionário nos informou sobre seu sentido. Ainda assim resta saber qual é seu sentido para esse autor em particular. Se, por exemplo, sabemos que "substância" é um termo filosófico e o aprendemos no contexto do estudo da filosofia de Aristóteles, é possível, não obstante, que em um outro filósofo tenha um sentido diferente. Isso não acontece por mero capricho: as alterações terminológicas denunciam, em geral, mudanças na forma com que pensamos o mundo.
Uma vez identificados os termos técnicos e de posse de definições adequadas, vamos retraduzir o texto analisado substituindo nele os termos técnicos por seu sentido específico. Obviamente a nova versão será ainda mais extensa que a anterior, mas será também mais explícita.
Ao focalizar a terminologia, passamos da análise sintático-gramatical para a semântica. No entanto, ainda não ingressamos no conteúdo do texto propriamente dito. Este será nosso próximo passo.
4.3.3. Taxonomia semântica: tipologia dos conteúdos presentes no texto
Sabemos que há três momentos primordiais do estudo filosófico: problema, tese e argumento (1ª, 2, 2.2 ss.). Mas estes também são os três momentos primordiais que devem orientar a leitura de textos filosóficos. Porém, nem todos os tipos de conteúdo presentes em tais textos podem ser reduzidos a uma dessas três categorias. Em consequência, é necessário completá-las com outras. A lista que vamos oferecer talvez não seja completa, mas isso só pode ser provado na medida em que se afirme a utilidade para a análise de introduzir uma nova categoria. São elas:
a) tese (hipótese);
b) argumento;
c) consequência;
d) objeção — contra-argumento;
e) respostas à objeção e ao contra-argumento;
f) exemplo;
g) definição (explícita ou implícita);
h) aplicação a caso ou casos particulares;
i) explicitação de supostos[23].
Contudo, dando por concedido que a lista oferecida anteriormente é completa, a ideia básica que desejo propor é que, embora não seja necessário que em todo texto se encontrem presentes cada um dos elementos indicados, toda passagem de um texto pode ser classificada em uma e só uma das categorias citadas.
Do categorizar um texto com base em critérios semânticos não resulta uma nova retradução, mas um texto "sublinhado" de modo heterogêneo na forma da taxonomia semântica descrita.
A tipologia dos conteúdos cumpre quatro funções:
a. Quando entendemos um texto, a identificação dos tipos de conteúdo se efetua "automaticamente". O texto é compreensível porque, entre outras coisas, percebemos o exemplo como exemplo, a tese como tese etc. A não-compreensão de um texto, pelo contrário, pode depender de uma errônea categorização implícita.
b. Até agora o texto se apresentava como um bloco uniforme; a partir de agora, começam a delinear-se nele momentos diferenciados e, sobre tal base, certas passagens se deslocam ao primeiro plano, estabelecendo-se uma hierarquia entre elas.
c. Um entender que aponte a uma tradução explicitadora tem de ser seletivo, fixando diferenças de importância.
d. Finalmente, é por meio da categorização semântica que se dá a primeira aproximação ao conteúdo do texto com base em critérios que exercem um controle metódico, evitando assim que o próximo passo seja um salto no vazio.
4.3.4. Retradução lógica
Tendo fixado o tipo de conteúdo de cada momento do texto e estabelecido uma hierarquização entre eles, estamos em condições de efetuar um decisivo avanço no processo de compreendê-lo mediante sucessivas retraduções. Denominamos retradução lógica o procedimento pelo qual transformamos o texto em uma sequência estritamente lógica, começando (caso possível) com o problema, fixando a tese principal e eventuais subordinadas, desenvolvendo a sua estrutura de relações com os seus argumentos, contra-argumentos e consequências. Característico dessa nova retradução é que:
a. O texto é liberado de tudo o que lhe era logicamente inessencial, purificando-se dos elementos literários e recursos psicológicos que ainda subsistiam nele, Sem estes, ele sem dúvida seria ininteligível; porém, uma vez alcançada a sua compreensibilidade primária, podemos prescindir daquilo que eram apenas meios auxiliares.
b. Com o desaparecimento de tais recursos, altera-se de forma radical a aparência e, em particular, a ordem do texto. Do ponto de vista literário, ele perde sua fluidez; do ponto de vista lógico, contudo, torna se "ordenado".
c. Pela primeira vez obtemos uma versão do texto mais breve que o original, podendo nos centrar naquilo que é prioritário do ponto de vista filosófico. Justamente por tal motivo, saltos argumentativos e/ou temáticos são agora identificados com facilidade. A simplificação do texto pode às vezes eliminar parágrafos inteiros; outras, tão-só "colocá-los entre parênteses". Assim, "colocamos entre parênteses" os exemplos e outras derivações da linha principal, que ocupam comumente boa parte do texto, e os usamos apenas quando chega seu momento como exemplo ou como derivação, conforme o caso. Cumprido seu papel, voltamos a passá-los para um segundo plano.
Para traduzir logicamente o texto é imprescindível a identificação prévia do problema e da tese principal. Eles constituem uma unidade da qual dependem todos os momentos restantes. Se são fixados corretamente, estes haverão de configurar-se em uma totalidade única. Os cuidados que devemos levar em conta (e que já foram apontados por outros motivos e em outros momentos) são:
a. o problema nem sempre está presente de modo explícito no texto (1ª, 5, 5.1 e 5.3);
b. nem toda proposição afirmada no texto é uma tese (1ª, 2, 2.4);
c. nem toda tese é tese principal;
d. a tese principal só pode ser fixada em relação ao problema (1ª, 2, 2.4);
e. o argumento é sempre argumento de uma tese; o contra-argumento, contra-argumento de um argumento; o exemplo, exemplo de uma tese, de um argumento ou de um contra-argumento etc.
4.3.5. Modalização veritativa da tradução alcançada
Neste novo passo não vamos obter como resultado uma nova tradução, e sim uma "modalização veritativa" da tradução anterior. Vejamos por quê. Todo aluno novato quer começar por discutir a verdade da tese do texto, por "dar sua opinião", a qual, entretanto, só é legítima depois do entender o texto, nunca antes. Se ela for precipitada não só será ingênua, como se tornará um obstáculo para a correta compreensão. Há um certo momento, contudo, em que a "tomada de posição" passa a ser um valioso recurso no processo do entender. Esta segunda tomada de posição, claro está, só em aparência assemelha-se à anterior: se aquela era essencialmente espontânea, esta é dirigida. De modo algum se trata de abrir espaço agora para o jogo da "minha opinião", mas sim de um posicionar-se "metódico" (em um sentido de "metódico" tal qual a dúvida cartesiana o é) com uma finalidade não propriamente filosófica, mas pedagógica.
Se, do ponto de vista lógico, o sentido de uma proposição é independente de seu valor de verdade, do ponto de vista psicológico nem sempre é assim. Só entendo realmente quando tomo consciência que o entendido pretende ser verdadeiro e isso acontece, por regra geral[24], quando percebo que se opõe a uma de minhas crenças (1a, 4, 4.2.2). O movimento do entender só é possível se, ao mesmo tempo, é acompanhado de um movimento de explicitação de minhas crenças. Se essas permanecem sem ser tematizadas, atuam como larvas que "apodrecem" a compreensão. Toda compreensão está ameaçada por uma certa "esquizofrenia". O leitor não vincula, mas mantém o que ele crê e o que o filósofo afirma em compartimentos estanques. Ele "compreende" que, segundo Kant, a física supõe princípios a priori. Não obstante essa compreensão, ele não situa a tese crítica em relação a sua crença (que se mantém incólume) de que a física é uma ciência "empírica" e que, como tal, se baseia unicamente na "percepção". Só quando deixamos por um instante Kant de lado e "obrigamos" o nosso leitor a tomar consciência do que ele crê, é que ele percebe que propriamente não havia entendido o ponto de vista crítico sobre a questão. Entendê-lo não implica abandonar a própria crença e sim tornar-se consciente de que ela é incompatível com a tese kantiana (e quiçá tão problemática quanto ela). É muito comum deformar para entender, fazer dizer ao autor algo que possa ser aceito por nós sem maiores conflitos. O aparecimento da questão da verdade "em concreto", como referida às minhas crenças mais firmes, me "desperta" de minha "tolerância monadológica" (a qual, em realidade, não é fruto da benevolência, mas do egocentrismo). É aqui que deixo de ler o filósofo como um delirante e tomo consciência de que o que ele afirma contradiz algo que considero verdadeiro. É agora que o discordar já não é um obstáculo incômodo à compreensão, mas um momento dela.
Em princípio, a análise não tem como objetivo decidir se o que o texto diz é verdadeiro ou falso, mas explicitar seu sentido. No entanto, em um plano radicalmente diferente do considerado até agora, podemos dizer que, já que a verdade do texto depende da forma em que o lemos, discutir tal forma pode ser um poderoso instrumento para nos aprofundarmos na sua compreensão. O fato de que algumas afirmações se tornem verdadeiras se entendidas em um certo sentido e falsas se entendidas em outro pode ser decisivo para privilegiar um modo de compreensão em relação aos demais.
4.3.6. Entender e interpretar: para uma nova versão do texto
Com o exposto até agora finalizamos o que bem poderia ser chamado o nível "escolar" de leitura. A análise de texto por um principiante deve terminar aqui. Isto não significa, contudo, que tenhamos esgotado seus momentos possíveis. Podemos ainda avançar a um nível "crítico" enquanto diferenciamos o "entender" (ou "compreender") (1ª, 4, 4.2, nota 3) do "interpretar" um texto. Entender é explicitar o sentido de um texto; interpretar é completar tal sentido em alguma direção.
É necessário ir além do texto para compreendê-lo, e isso em vários sentidos e de várias formas. É óbvio que toda boa leitura o respeita, pretendendo explicitar o seu sentido sem deformá-lo, sem lhe acrescentar nem subtrair nada. Uma boa leitura, no entanto, não é jamais um mero espelho do texto. Existem diferentes maneiras de "estar no texto". Há muitas coisas que "estão" nele ainda que não sejam propriamente "ditas" (e, em consequência, não possam ser, em sentido literal, lidas). Elas só são acessíveis na medida em que, distanciando-nos do texto, assumimos uma posição ativa diante dele.
É o desenvolvimento natural do próprio explicitar o texto o que obriga a assumir tal posição. Esta nova atitude "suspende" sua mera leitura para possibilitar, assim, refletir sobre ele. A reflexão sobre o texto e a sua leitura não são sinônimos. A primeira supõe atividades que não são strictu sensu de leitura: deixamos de "ler" para passar a "dialogar" com ele. Este diálogo, justamente porque é diálogo com o texto, não o abandona, porém o transcende.
Já observamos, em um outro momento (Introdução, "Estrutura temática"), que nenhum filósofo é "fácil” e que a diferença entre eles está no modo em que não o são: existem aqueles que são difíceis de ler e aqueles que são difíceis depois de lidos. Pois bem, podemos agora acrescentar que aqueles que são difíceis "depois", são aqueles com os quais é difícil "dialogar"[25].
É no diálogo com o texto que aparece a necessidade de desenvolver e precisar suas ideias. Todo texto é incompleto e suscetível de ser precisado e desenvolvido. A interpretação não é uma violência que se faz com ele, mas parte de sua própria natureza. A aparência de arbitrariedade que ela possui é mera aparência. "Interpretação" só é possível a partir de uma significação "dada" e como complemento que esta exige.
Em um poema, a forma literária é essencial; se algo nele é mudado, perde-se "esse" poema. O texto filosófico, ao contrário de um poema (ou de uma obra de arte em geral), remete a algo fora de si (e não apenas a algo anterior, mas inclusive a algo posterior). Ele remete, obviamente, a suas referências explícitas e implícitas, a seus supostos lógicos e, além de tudo isso, a um horizonte de significação. Todo texto filosófico, ao mesmo tempo em que fixa uma totalidade hermenêutica, abre perspectivas sobre um universo que ele mesmo não desenvolve.
Por tal motivo, ele é e permanece tão-só "fragmento", pois sua explicitação jamais será finalizada. Há, portanto, uma indeterminação objetiva do sentido de um texto que tem a ver com a natureza do significado e com nossa finitude. O homem, como ser finito, produz (ou aspira a produzir) sentido infinito. Assim como, dado um conjunto de axiomas, ninguém pode apreender, a partir de uma simples intuição, a série total de seus teoremas, do mesmo modo, dada uma unidade de sentido, ninguém consegue captar ao mesmo tempo todas as unidades de sentido da qual essa pode fazer parte. A interpretação continua o trabalho da compreensão, considerando não apenas as alternativas que o texto desenvolve, mas também aquelas que ele omite.
A exigência de uma leitura direta dos textos não pode levar ao exagero de desconhecer os comentadores clássicos, sob pena de voltar a redescobrir eternamente as mesmas dificuldades hermenêuticas básicas. Quanto mais se conhece a bibliografia secundária de um autor, mais se percebe que o sentido é sempre aberto e que há várias formas de precisá-lo e/ou completá-lo. A opção por uma ou outra gera as polêmicas entre os intérpretes. Muitas vezes, no entanto, é o próprio texto que não é concludente com respeito a certas questões. Limitar-se a indicar a impossibilidade de resolvê-las com base nos materiais dos quais se dispõe pode, em certas ocasiões, ser a única posição justa.
Os problemas objetivos de interpretação são uma verdadeira ponte pela qual se passa, de um modo quase imperceptível, do comentário à reflexão autônoma. Em certas ocasiões existe uma continuidade tal entre o escrito do filósofo e o de seu crítico, que a linha divisória entre texto e comentário pode chegar a ser muito tênue. A Idade Média em seu conjunto oferece um grandioso exemplo no sentido da passagem gradual do comentário ao trabalho sistemático-criativo. Nesse contexto, um autor como Suárez oferece uma situação extremamente interessante. Se grandes comentado res efetuaram contribuições decisivas para o avanço da filosofia, grandes filósofos são, não poucas vezes, grandes comentadores. Não é incomum, também, que um filósofo interprete outro (Heidegger a Kant, Habermas a Heidegger) [26], ou que um novo desenvolvimento se origine em uma interpretação ou, inclusive, que uma polêmica surja a partir de uma interpretação (Arnauld-Malebranche).
Um texto compreendido nunca é apenas lido; ele é interlocucionado ativamente e, em certo sentido, até "produzido". O intérprete é sempre um coautor. Seria irresponsabilidade dizer a um aluno de primeiro ano que quando interpretamos um texto na realidade o estamos "produzindo"[27]. Com certeza, o efeito imediato seria abrir as portas para qualquer arbitrariedade. Contudo, creio que isso é essencialmente certo e que quem refletir sobre a própria experiência nessas questões não se escandalizará com o que foi dito.
5.1. Texto e contexto
Existe um vínculo intrínseco entre a noção de texto e a de leitor; mais ainda, todo texto se dirige a um determinado leitor. A ideia de um leitor universal é um contra- senso: é simplesmente impossível dirigir um texto a tal leitor. Os filósofos escrevem textos; estes, porém, não são escritos para historiadores, professores ou estudantes, mas para outros filósofos que são seus contemporâneos. Textos são dirigidos a interlocutores, não a intérpretes. Tal observação é essencial para se tomar consciência e entender por que os elementos oferecidos pelo texto, por regra geral, não são suficientes para a sua compreensão.
Esse fato nos obriga a transcender o texto nos dirigindo a algo que o engloba e o contém como momento: o contexto. Fixar o contexto é uma condição imprescindível da compreensão do texto. Na realidade, texto e contexto não constituem um agregado, mas uma estrutura, uma indissolúvel unidade hermenêutica. No entanto, a noção de contexto nos remete à história, ao processo mesmo do devir. Contra toda aparência provocada pela inércia do pensar irreflexivo, a historicidade do contexto e sua integração estrutural com o texto não se contradizem, senão que, pelo contrário, se requerem de modo necessário. Um estruturalismo radical (ou simplesmente consequente) só pode ser histórico; um verdadeiro historicismo, estrutural (1a, 5, 5.2). Sendo o pensamento essencialmente histórico, também as suas estruturas possuem tal caráter. O conceito de uma "estrutura histórica" não contém nada de estranho ou problemático. Para evidenciar pelo menos a plausibilidade deste conceito, basta observar, por um lado, que aceitamos sem esforço a ideia de estruturas temporais em nível perceptivo e, por outro, que toda rígida oposição entre estrutura e gênese está obrigada a ignorar a existência de fenômenos inegáveis como, por exemplo, o da música. Em consequência, se em nível perceptivo temos estruturas temporais, por que em nível intelectual não poderiam existir estruturas históricas?
5.2. A historicidade do pensar
Já observamos que a formulação dos problemas é parte essencial do fazer filosofia. Ora, o a-historicismo, em todas as suas variantes, é decorrente da pressuposição de que os problemas filosóficos estão ali prontos e basta tomá-los; historicidade e hermenêutica, pelo contrário, tendem a exigir- se de modo recíproco. A natureza de tal exigência não é fácil de ser estabelecida, sobretudo porque o atentar à historicidade do pensar não precisa ser "historicismo" (1a, 5, 5.3.2). Evidenciar a "construção" hermenêutica presente no problema supõe afirmar a relevância da dimensão histórica, ainda que não por isso situar o acento em alguma modalidade de reducionismo ou relativismo[28].
Talvez a história seja um reino de pura contingência: a história da filosofia, certamente, não o é. A filosofia não é possível sem atenção à sua própria história: esta é momento necessário daquela, a consequência do desenvolvimento sempre parcial da racionalidade de um ser finito e, portanto, tão pouco prescindível quanto o caráter finito desta racionalidade. Para uma racionalidade finita o pensamento é sempre "histórico", já que a totalidade é só tarefa, o "dado", unicamente momento parcial. "História" é a porção da finitude realizada, o aspecto "efetuado" do todo infinito da significação. Se tivéssemos acesso a esse infinito por meio de algo assim como uma intuição, então certamente poderíamos fazer filosofia prescindindo de sua história. Mas esse não é o caso. Precisamos da história porque nunca deixamos de estar diante de uma totalidade parcial do universo infinito da significação.
É tal totalidade (repito: parcial) o que dá sentido tanto ao nosso perguntar enquanto tal como ao seu conteúdo no caso específico. Não existe uma interrogação absoluta, uma pergunta que não pressuponha nada. A pergunta só tem sentido na dinâmica do saber e do não saber. Se não se sabe nada, nada se pode perguntar; se se sabe tudo, a pergunta não tem sentido. Que perguntemos é o signo de que temos acesso unicamente a uma porção do universo do sentido, que reformula seu limite de forma contínua (1ª, 4, 4.2.1).
Alguns filósofos opõem de modo radical filosofia e história da filosofia, negando, inclusive, toda relevância filosófica à segunda. Esta posição é simplificadora e deformante. É certo que se pode fazer da "história da filosofia" uma cronologia, uma mera sucessão de nomes e obras; que isso é filosoficamente irrelevante e cumpre, no melhor dos casos, uma função informativa, está fora de dúvida. Todavia, uma coisa é o caráter eminentemente histórico da filosofia e outra são as "histórias da filosofia". Toda "história da filosofia" só é história da filosofia (e não meramente "história") por ser filosófica.
A oposição radical entre o filosofar e a história da filosofia é, na maioria das vezes, uma oposição entre a história da filosofia mais e menos recente. O que pretensos filósofos que questionam o valor filosófico da história da filosofia de fato efetuam é história da filosofia mais recente. Filosofia mais recente, contudo, não é, eo ipso, nem sequer filosofia "contemporânea". Se o fosse, publicado neste instante seria mais contemporâneo do que o publicado há meia hora e, em tal caso, para decidir questões de "contemporaneidade" bastaria comprar um bom cronômetro. Entretanto, a noção de "contemporaneidade" não é uma noção meramente temporal, mas de "vigência". Ninguém duvidaria que Wittgenstein é um pensador contemporâneo, mesmo sendo Jesus o único a ter ressuscitado. Tomar posição diante de um artigo do último número do periódico Mind não garante estar fazendo filosofia contemporânea.
A temporalidade do pensamento não é a da sucessão de instantes descontínuos, senão que (assim como a da subjetividade) não pode ser pensada sem a noção de "extasis". Em cada instante se retém o anterior e se antecipa o seguinte. O presente não é uma espécie de relâmpago de eternidade; também ele é temporal. Pensamento contemporâneo nunca é "simultâneo", senão que compreende o passado e o futuro sem excluí-los, de modo tal que por ser "contemporâneo" não deixa de ser histórico. Toda compreensão é histórica; também a do presente.
5.2.1. O status quaestionis
Conta-se que, em uma certa ocasião, um membro de uma banca examinadora começou sua análise dirigindo-se ao candidato com a seguinte observação: "Sua tese contém muitas coisas novas e muitas coisas boas... O único problema é que as coisas novas não são boas e as coisas boas não são novas...' Se deixamos de lado a crueldade da observação mencionada, ela expressa de forma extremamente aguda o problema básico de boa parte das teses acadêmicas. É muito difícil escrever em filosofia coisas "boas e novas". Não há outro caminho para isso que a fixação do status quaestionis.
Que é o status quaestionis? Literalmente ele é o "estado da questão", ou seja, a situação objetiva (independente de qualquer gosto ou capricho) na qual se encontra a discussão filosófica ou a pesquisa acadêmica sobre um determinado assunto (problema, autor, obra, aspecto de uma obra, período histórico, escola etc.). O status quaestionis é o resultado sedimentário do trabalho intelectual de gerações de pensadores e investigadores que já exploraram sistematicamente caminhos e perspectivas possíveis.
A correta fixação do status quaestionis constitui tanto a primeira e decisiva dificuldade de toda forma de trabalho filosófico (seja sistemático, seja histórico) quanto um momento imprescindível de toda investigação que tenha êxito. Do fracasso de seu estabelecimento surgem inúmeras "pesquisas" ingênuas que permanecem antes do problema. Produz-se, então, mais um escrito sobre o assunto, tão supérfluo e pouco significativo quanto muitos outros[29]. Só há produção de novo conhecimento a partir da adequada assimilação do status quaestionis. Produção filosófica, não menos do que pesquisa acadêmica, supõe como condição negativa mínima o seu conhecimento. É ele que estabelece a necessidade, a pertinência e, inclusive, o sentido de certas tarefas. Dizer algo relevante sem tê-lo em conta é como acertar no escuro. Toda novidade real só é possível com base no anterior e em continuidade com ele.
O que chamamos status quaestionis está vinculado ao que comumente se denomina "bibliografia" ou "literatura sobre o tema". Porém, esses dois conceitos não devem ser confundidos. Por bibliografia nem sempre se entende (como se deveria) a "bibliografia ideal", composta pelos clássicos e todas as contribuições decisivas, mas um certo recorte dela motivado por razões contingentes (tais como disponibilidade das obras, domínio de idiomas etc.[30]). Por outro lado, o conhecimento da bibliografia ideal é apenas condição necessária, mas não suficiente da adequada fixação do status quaestionis. A bibliografia ideal não só deve estar presente e ser corretamente entendida: ela também deve ser avaliada de modo adequado em seu conjunto[31].
5.2.2. A recepção
Acreditar que posso filosofar de costas para a história não é senão ingenuidade com respeito ao papel que jogam, em todo pensamento, tradição e recepção. Não há pensamento sem recepção. "Recepção" nada mais é que sinal de finitude. Assim como a totalidade infinita não pode ser "dada", tampouco a "datitude" finita pode ser objeto de negação absoluta. Não assumir a recepção é filosofar sem se atrever a questionar aquilo que se pressupõe, ou seja, não é propriamente filosofia mas, no melhor dos casos, exibição de habilidade "técnica".
Não existem gênios. Mesmo a filosofia mais original supõe recepção e é unicamente possível com base na assimilação da anterior. Pouco importa se o filósofo estudou ou não "história da filosofia"; é suficiente, por exemplo, que tenha seu Christian Wolff, seu Franz Brentano ou seu Bertrand Russell. Filosofar não é assunto das musas. Os filósofos não escrevem "coisas" depois de noites de trágica insônia e em manhãs de fulgurante inspiração. "Originalidade" em filosofia é sempre consequência de uma adequada percepção de qual é o próximo movimento possível (ou necessário).
A filosofia é uma atividade coletiva; nela há uma "divisão social do trabalho", na qual centenas de "colaboradores" efetuam um amadurecimento gradual de problemas, soluções e argumentos, dando assim uma contribuição que provavelmente jamais figurará nas histórias da filosofia. Este fato tende a ser ocultado tanto pela sobrevivência das quimeras românticas de "gênio" e "inspiração" como pela distorção provocada por nos ocuparmos, quase exclusivamente, com os momentos culminantes do pensar filosófico e deixarmos de lado os períodos intermediários. Desse modo, claro está, a distância de um filósofo para outro aumenta, sendo interpretada de forma errada como algo que é integralmente mediado pelo último. Isso não é certo: a filosofia é um trabalhoso tatear no qual até as ideias mais revolucionárias contêm sempre um importante componente de "trabalho intelectual socialmente acumulado"[32]. Se, como indicamos, não se produz sem receber, esta recepção nada mais é que um apropriar-se da compreensão sedimentada através da história.
5.2.3. O "avanço direcionado" da história da filosofia
Existe no devir filosófico uma "continuidade" ou, mais precisamente, um "avanço direcionado". Com este conceito não se pretende de maneira alguma fazer ressurgir a ideologia do progresso positivista ou uma das diversas formas de otimismo histórico dos séculos XVIII e XIX. O conceito proposto tampouco está vinculado a algo assim como a revelação de uma "Razão absoluta" através da história, ou a uma variante qualquer de uma "filosofia da história" de cunho especulativo. Ele não implica, também, a crença em uma aproximação qualitativa à verdade ou um acúmulo quantitativo de verdades no tempo. Trata-se tão-só de chamar a atenção para o fato de que o trabalho filosófico tem, por sua natureza histórica e social, um caráter acumulativo (1ª, 3, 3.3.2). Depois de refletir sobre certos assuntos durante séculos aprendemos a pensar neles de um modo mais claro e diferenciado, embora muitas vezes se produzam interrupções, esquecimentos e redescobrimentos.
A direção mencionada é um avanço justamente por ser um retrocesso, dado pelo aprofundamento nos problemas, pelo descobrir no problema anterior pressupostos que conduzem a novos problemas. O avanço-retrocesso referido resulta tanto mais óbvio quanto mais abrangente é o ponto de vista assumido (atingindo inclusive, em seu sentido mais geral, a própria ideia de filosofia), mas se torna menos evidente na medida em que nos aproximamos de temáticas mais e mais concretas (2ª, 1, 1.1-1.3).
A filosofia possui algo que poderíamos chamar de "coluna vertebral". Embora nela haja muitas coisas que "posso" não saber, há outras que não posso deixar de saber. A esta categoria do imprescindível pertence a existência de mudanças decisivas, de um verdadeiro fio condutor composto por Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel e, talvez, Wittgenstein, Dilthey, Husserl e Heidegger. Assim como devemos "focalizar", devemos "hierarquizar". A "hierarquização" mencionada remete, em última instância, a uma certa ideia precisa de qual seja a direção do "avanço regressivo" característico do devir filosófico. Não se trata de saber muitas coisas "sobre" Descartes ou Platão; trata-se de saber por que Descartes é Descartes ou Platão é Platão.
5.3. A reconstrução do problema
Observamos em vários momentos que só é possível compreender textos filosóficos a partir da seus problemas (Introdução, "Finalidade do livro", final) e que esses, por sua vez, não estão simplesmente aí esperando ser tomados, mas que sua "construção" é parte essencial da atividade filosófica (1a, 3, 3.2 e 3.5; 3.3.4; 5.2). Contudo, se o problema supõe uma construção, compreendê-lo só é possível no seio de uma reconstrução. Ainda que nosso vínculo com o problema seja mediado pelo filósofo que o formula, nem por isso este é suscetível de ser apropriado mediante um simples tomar. Existem dois motivos de diferente ordem para isso, a saber, que o filósofo nem sempre tematiza seu problema e que, ainda que o faça, dificilmente evidencia de modo suficiente como ele se constitui (1ª, 5, 5.1).
Reconstruir o problema é momento imprescindível de sua compreensão. Problema compreendido é sempre problema "reconstruído". Esta reconstrução é mais necessária que a da tese e do argumento. Se estes podem ser lidos no texto, o problema, por regra geral, tem de ser reconstruído a partir dele. Quanto menos indicações dá um texto sobre seu problema, mais difícil ele é.
A reconstrução do problema possui duas dimensões: a reconstrução histórica e a reconstrução racional[33]. Muitas vezes se tende a ver entre ambas uma oposição, mas elas não são excludentes senão, pelo contrário, complementares. Apenas mediante seu trabalho conjunto é possível um resultado satisfatório. Cada uma delas, por si só, é insuficiente[34]. Para poder integrar ambas as reconstruções num projeto único, joga um papel essencial o fato de que o conceito de reconstrução se aplique ao problema. Esta aplicação muda a dimensão originariamente anti-histórica da reconstrução racional, assim como a anti-racional da histórica[35].
5.3.1. A reconstrução racional do problema
O conceito de reconstrução racional engloba, como caso particular, a retradução lógica do texto, da qual já falamos (1ª, 4, 4.3.4). Ela pode, assim mesmo, referir-se tanto a um argumento singular como a uma tese, ou à totalidade de um sistema filosófico, estabelecendo a forma mais sólida de sua estrutura lógica e liberando-o de inconsequências, vaguidades etc. O que nos interessa agora, sem embargo, não é essa dimensão genérica da reconstrução, mas evidenciar a necessidade, o sentido e função de uma reconstrução racional do problema. Não apenas uma tese ou a estrutura de uma teoria podem ser reconstruídas racionalmente, mas também o problema. Uma reconstrução racional do problema consiste em restituir à pergunta seu caráter de pergunta racional, sua inteligibilidade enquanto interrogação, e isso enquanto se explicitam os seus supostos específicos e seu entrelaçamento lógico (1ª, 5, 5.2).
A reconstrução racional tem seus limites que tornam necessário completá-la com a histórica. Mesmo indicando textos concretos e estruturando um bom argumento sobre a sua base, é um "fato lógico" inegável que a mesma tese pode ser fundada em diferentes supostos. A reconstrução racional não consegue, por si mesma, a passagem do possível para o real. Ela só pode mostrar que de p, q e r, segue-se t, mas não que t tenha sido efetivamente derivado de p, q e r. O que vale para a tese vale, mutatis mutandis, para o problema. A inteligibilidade de uma pergunta pode ser o resultado de diferentes supostos; podemos ser conduzidos à mesma interrogação por meio de percursos diversos.
Quem trabalha de modo puramente sistemático e não se preocupa em nada com a história da filosofia muitas vezes afirma impossíveis. Ainda que "fatos" jamais possam ser fundamento de interpretações, eles podem ser (e muitas vezes são) as suas condições negativas necessárias. Saber se Kant lia ou não inglês, se existia ou não uma tradução de Hume em alemão e, eventualmente, de que obra, pode ser decisivo para corrigir a ideia de que, na famosa passagem em que Kant afirma que Hume o despertou de seu sonho dogmático, o filósofo de Königsberg está se referindo ao princípio de causalidade. A necessidade de princípios sintéticos já antes do contato de Kant com Hume, uma ideia presente no horizonte kantiano por meio de Crusius. O que Crusius não percebeu foi a relação específica de tais princípios com a ciência físico-matemática e, sobretudo, que não podemos nos limitar a postulá-los, senão que o "como" sejam possíveis constitui a próxima pergunta necessária.
5.3.2. A reconstrução histórica do problema
A reconstrução do problema supõe um conhecimento do contexto e, em última instância (dada a historicidade imanente a todo pensar), sua inserção na história da filosofia[36]. A historicidade que está aqui em questão é a do pensamento mesmo, e não a de acontecimentos sociais, políticos ou econômicos. Reconstrução histórica é algo diferente de toda explicação reducionista que remete o pensamento a fatores externos e incomensuráveis com ele. Nada muda se esses fatores são o fato de certas crenças. O fato como fato, inclusive o fato da crença, nunca é elemento de inteligibilidade, mas apenas de explicação causal. Por tal motivo, a mera indicação de tal fato é insuficiente. Precisamos que a crença (e seu vínculo com outras) possa ser vista como sendo em algum sentido racional, pois somente assim ela deixa de ser causa para ser "razão".
A consideração histórica não deve degenerar em "epoquismo genérico", ou seja, na tendência a remeter-se de forma vaga "à época" para dar conta daquilo que nos resulta estranho ou absurdo. No "epoquismo" a incompreensibilidade permanece e é simplesmente solicitado um ato de fé de que ela seria superável se aceitássemos um outro modo de pensar vigente naquele momento, que não é ulteriormente precisado. Um exemplo do que dissemos poderia ser o tratamento que muitas vezes se reserva à física medieval. Sua sempre ressaltada "contradição com a experiência" não desaparece porque vagamente se mencione que aqueles homens pensavam de modo diferente do moderno. O quanto de racional e, inclusive, de empírico (e não meramente "epocal") encontrava-se nesse modo de pensar diferente se evidencia lendo o próprio Galileu: seus problemas são, uma vez aceitos certos supostos, absolutamente inteligíveis. Concedida a dificuldade racional das ideias de mudança e alteridade, concedido que o movimento como tal deve ser tornado inteligível (tanto que o repouso, assimilado à identidade, não contém esse problema), concedido portanto que todo movimento tem de ter uma causa (ou razão) etc., tanto o conceito como o problema da vis impresa são legítimos. Ou por acaso o princípio de inércia é evidente "em si"?
O que se procura na reconstrução histórica não é pôr de manifesto a dimensão histórica do problema, mas justamente resgatar, ao se tomar em conta a história, o seu caráter de problema. O apelo à historicidade não procura anular senão, pelo contrário, restituir uma inteligibilidade cujos supostos (obviamente lógicos e não fatuais) nos são estranhos. A explicitação deles torna a pergunta "racional", resgata-a de passado para devolver-lhe "vigência"[37]. A reconstrução histórica não é reconstrução do passado em seu caráter de "sido", mas um torná-lo presente em sua vigência enquanto nos fazemos seus contemporâneos[38]. Justamente por isso, o trabalho da reconstrução histórica precisa ser completado pelo da reconstrução racional.
6.1. A noção de "texto": texto e escrita
Está fora de discussão o fato de que uma parte significativa do trabalho filosófico consiste em ler "os" textos de modo direto e minucioso. No entanto, admitido o que chamaríamos de "condição mínima do texto", o que devemos entender por "texto"? Não nos mantemos em um círculo vicioso quando dizemos que lemos "o texto" e que "o texto" é justamente aquilo que lemos?
Sem dúvida, em um certo sentido, é isso que acontece. Existe, no entanto, um ponto no qual atentar para a relação texto-leitura, posto que, longe de nos condenar a um mero círculo vicioso, permite que se precise de modo decisivo o próprio conceito de texto. Texto e escrita não são sinônimos: se o texto é certamente escrita, nem toda escrita é "texto". Toda escrita é tal para todos, inclusive para seu autor, podendo existir escrita sem "leitor"; textos, por sua vez, jamais existem para seu autor, mas apenas para e por seu leitor. Em um certo sentido, o autor produz escrita, o leitor produz textos ou, mais precisamente, o texto se constitui como tal em sua leitura (ou inclusive, em sua análise)
Mesmo tendo em conta a distinção introduzida, não estamos nem perto de haver fixado de modo suficiente o conceito de "texto". Ainda é possível entender como texto pelo menos seis coisas diferenciáveis:
1. O que usualmente se chama "o (texto) original" não é senão uma edição no idioma do autor ou, no melhor dos casos, uma edição crítica em tal idioma. Não obstante, há uma diferença básica entre o texto original e toda edição. O texto original é um ou vários "manuscritos" (quiçá digitalizados) que guardam uma relação de produção material com seu autor ou, em um sentido mais frouxo, o primeiro ou mais antigo manuscrito de que dispomos (eventualmente, ele mesmo já uma cópia). Comum a todos os casos é que se trata de um objeto material, de uma entidade no mundo, suscetível de ser encontrada, perdida, destruída. A maioria de nós seria incapaz de tratar diretamente com ele. Ele tem de ser "fixado", e essa fixação é um problema ao mesmo tempo físico e hermenêutico que nem sempre pode se resolver de modo plenamente satisfatório.
2. Supondo que a tarefa anterior tenha sido cumprida, o texto pode então ser "editado". A edição já não é o texto original. Também aqui encontramos um objeto físico ao qual, não obstante, foram integrados vários tipos de momentos interpretativos. Com eles surge, claro está, o perigo de alterações.
3. Nesse sentido, nem sequer a primeira edição (editio princeps) dá garantias absolutas, pois nela não são incomuns erros de todos os tipos. Seja como for, quando a primeira edição é efetuada durante a vida de seu autor, revisada e corrigida por ele, a questão do manuscrito original perde boa parte da sua importância.
4. Mais confiável que toda edição, inclusive aquela revisada pelo próprio autor, é a edição crítica, produto do trabalho exaustivo de especialistas que levam em conta variantes de edições, alterações da primeira edição em relação ao manuscrito original, correções do próprio autor ao texto editado etc., e que, mediante "introdução" e "notas", nos oferecem um auxílio inestimável a toda compreensão e interpretação.
5. No caso das traduções, elas apresentam problemas particulares além daqueles próprios de toda edição, exigindo que o trabalho com elas assuma cuidados especiais. Ainda deixando de lado a questão de princípio referente à possibilidade de tradução enquanto tal, e ainda concedendo o fato óbvio de que há traduções melhores ou piores, nunca se pode esquecer que não há tradução sem erros ou, ao menos, sem opções. Toda tradução é sempre versão.
6. Suponhamos agora por um instante que todas as dificuldades imagináveis tenham sido superadas. Tanto ao texto original quanto à edição crítica, quanto às sucessivas edições (incluindo traduções eventuais), corresponde uma realidade material. Ao contrário deles, o que poderíamos chamar "o texto ideal" não é uma realidade deste tipo. Ele é uma pura unidade objetiva de sentido totalmente desvinculado de toda condição de existência real e de toda facticidade. Ele é aquilo que o original, a edição crítica e toda outra edição "dizem".
6.2. Falácia da harmonia hermenêutica preestabelecida
Com base nos esclarecimentos anteriores, podemos colocar o seguinte problema: é possível garantir (a priori) que o texto, enquanto unidade física, também seja uma unidade hermenêutica, isto é, uma entidade autônoma e autossuficiente de sentido? Não o creio. No melhor dos casos, estamos diante de um postulado metodológico muito útil, mas que não pode pretender, de modo algum, caráter de princípio. Supor que a uma unidade física corresponde, de forma necessária, uma unidade de significação é uma ingenuidade que poderíamos denominar "falácia da harmonia hermenêutica preestabelecida". Só se pode afirmar que "o texto", enquanto objeto físico, contém uma unidade de sentido que se auto sustenta quando efetivamente se evidenciou a presença dela por meio da análise. Só se pode conceder a priori que o texto constitui uma unidade de sentido se o consideramos integrado por aquilo que é imprescindível para sua compreensão. É óbvio que tal tese hermenêutica é analítica.
Tomemos o caso do Tractatus de Wittgenstein. Aqui não há maiores problemas em fixar a unidade física do texto: os erros da primeira edição inglesa, por exemplo, são bem conhecidos. Todavia, essa unidade física não pode ser considerada uma unidade auto-suficiente de sentido. Se quiséssemos fazer do Tractatus uma entidade hermenêutica possuidora da característica mencionada, com certeza teríamos que fazer uma "colagem" dele com textos de, pelo menos, Frege, Russell e, inclusive, Platão. O "texto ideal" do Tractatus se compõe de certas passagens de Russell, outras de Frege e outras de Platão. De fato é isso que se faz, só que tal circunstância passa despercebida para muitos, pois, em vez de se efetuar uma "colagem explícita." (que repercuta no visual do texto), este vem acompanhado de "introdução e notas".
6.3. Redimensionamento do "texto" como instrumento de aprendizagem e estudo filosófico, assim como da própria filosofia
Existe, em certos círculos, uma tendência a mistificar o texto, considerando a relação com o texto não como momento, mas como o todo da atividade filosófica. Citar a figura de Sócrates já seria um argumento decisivo para inquirir tal postura. Porém o que nos interessa agora não é apontar a desgastada dicotomia entre oralidade e escrita, mas mostrar a inter-relação e recíproca exigência desses e de outros momentos presentes no trabalho filosófico.
Ninguém razoável poderia desconhecer os méritos da escrita, os quais se encontram não só em comunicar mas, inclusive, em ordenar o próprio pensamento. Este reconhecimento, não obstante, não pode levar ao reducionismo empobrecedor da "onipotência do texto", que não só faz do trabalho com o texto a modalidade privilegiada da atividade filosófica, mas que tende também a reduzir a esse trabalho (e a entender a partir dele) toda outra forma de atividade filosófica, de tal modo que ela perde sua especificidade e o original de sua oportunidade. A carta e o diálogo foram na história da filosofia meios essenciais no intercâmbio de ideias e só às vezes, e de um modo derivado, recursos literários. Ora, um recurso literário é algo diferente de uma modalidade de produção intelectual. A diferença, não obstante, é desconsiderada, e o diálogo e a carta enquanto tais desaparecem para tornar-se simples "gêneros" da escrita, tais como o ensaio ou o tratado. Em vez de ler o texto como diálogo, fazemos do diálogo um texto. Entre Hylas e Philonous e Teeteto não há agora diferença alguma. Contudo, nem em Sócrates o diálogo é um recurso literário, nem a carta o é no século XVII. O fato de que nenhum dos dois estivesse destinado à "publicação" não os invalida como momentos de trabalho intelectual. Poderíamos dizer que o "filho da parteira", seus interlocutores e, inclusive, aqueles que presenciaram seus diálogos não estavam fazendo filosofia? Algo similar acontece com a aula: ela se transforma primeiro em escrita e, posteriormente, em leitura da escrita e, o que é ainda pior, achamos que isso é signo de seriedade intelectual; dizemos, então, que a aula foi meticulosamente "preparada". Na verdade, ela simplesmente se tornou supérflua. O mesmo acontece com a conferência. Dar uma conferência significa, de fato, ler um escrito em público de forma tal que inclusive o possível diálogo ou as possíveis perguntas terminam sendo subordinadas a ele. O não restringi-las com base em tal critério é considerado sinal de descortesia. Por outro lado, um conferencista que se apresentasse a sua plateia sem texto algum ameaçaria sua reputação na comunidade acadêmica (embora, muito possivelmente, esta fosse a única forma de ser capaz de pensar diante do público junto com ele, de reconhecê-lo como presente e tornar-se aberto a ele). Em suma, a onipotência do texto produz um empobrecimento do trabalho intelectual, pois já não se obtém um benefício adequado das suas diferentes modalidades. Nisso a filosofia tem muito a aprender da relação teatro-literatura.
Para conceder ao texto essa posição monopólica têm contribuído, em boa medida, as exigências inerentes à pesquisa acadêmica (que nada têm a ver com o philosophical way of thinking enquanto tal, senão, unicamente, com sua institucionalização). A academia desenvolve no texto funções que não são inerentes a ele e que possuem uma natureza mais "jurídica" que propriamente filosófica. O texto deixa de ser aquilo a ser entendido para passar a ser "a prova" do entendido. Não obstante, uma coisa é o texto como "fonte", outra é o texto como expressão do trabalho intelectual.
6.4. A atividade filosófica
A ideia de que o filósofo não faz nada é tão difundida quanto a ideia (não por acaso vinculada à anterior) de que ele é uma figura supérflua na sociedade, uma vez que se dedica "meramente" a pensar. Claro está, se por "pensar" entendemos algo assim como a livre associação e o fluir do devaneio, um deslizar puramente lúdico de um sonho em vigília, esse pensar não é um "fazer". Outra coisa, porém, é o pensar no sentido de uma atividade intelectual submetida a exigências de rigor, o qual exige esforço e que, como qualquer atividade, cansa.
Derivada da ideia de que o filósofo não faz nada, encontra-se uma certa concepção do que seja a filosofia como disciplina e, em definitivo, em que consista sua aprendizagem. Estamos habituados a opor um "saber que" a um "saber como", sendo este último exige uma certa prática para ser adquirido. A filosofia, por outro lado, é unanimemente considerada uma disciplina "teórica". Todavia, tanto o trabalho filosófico como a aprendizagem da filosofia são modos de atividade: só se pode aprender filosofia "fazendo-a".
Ninguém frequenta uma academia acreditando poder "definir" o abdome apenas por observar o professor fazer abdominais. Seria absurdo que alguém reclamasse do trainer pelo fato de já fazer seis meses que visita sua aula, olha atentamente seus movimentos e, mesmo assim, não obtém nenhum resultado. Pois bem, às vezes a situação em filosofia se torna tão absurda quanto na hipótese que acabamos de descrever. Ninguém pode esperar que somente pela mera presença física na sala de aula consiga um crescimento intelectual significativo. Ainda que possa receber vários subsídios para melhorar o resultado, há algo que só ele pode realizar. O momento da atividade é absolutamente insubstituível; sem ela não há apropriação.
A oposição entre atividade e não-atividade no ensino não aponta para o lugar-comum da pedagogia contemporânea de que as aulas não devem ser expositivas, mas participativas (algo que não poucas vezes confunde "atividade" com "agitação"). Não se trata de aplicar "dinâmicas". Para a atividade que propomos não é necessário que aproximemos nossos assentos e nos demos as mãos em roda. Trata-se de uma atitude intelectual. Uma única pergunta pode ser o produto de uma elaboração extremamente ativa do percurso do pensamento; a atividade ininterrupta do musculus linguae, pelo contrário, uma evidência da falta de disposição reflexiva adequada.
6.5. As modalidades não-textuais da atividade filosófica
Se a filosofia é essencialmente uma atividade, esta atividade apenas em parte consiste na leitura de textos. Tão importante para a produção, não menos que para o ensino e o estudo filosófico, são outros modos de atividade que são independentes do texto e que só de forma indireta o supõem. Chamaremos a esse referido grupo heterogêneo modalidades não-textuais da atividade filosófica.
A reflexão sobre os problemas mesmos (para a qual o texto eventualmente pode ser ocasião, mas não "objeto") é momento essencial não apenas da produção filosófica, o que é óbvio, mas da própria aprendizagem da filosofia. Não há filosofia sem reflexão e essa sempre é pessoal. É ela talvez um momento linguístico, mas, não obstante, silencioso. Tomando emprestado um conceito do ensino de línguas pode- mos diferenciar uma compreensão passiva da filosofia de uma ativa: o entender só está consumado com a passagem da primeira à segunda (para a qual a fixação escrita pode ser um recurso inestimável) (1ª, 6, 6.6).
Reflexão e escrita são atividades solitárias, o que não quer dizer que não possuam caráter social. Na verdade, toda forma de atividade intelectual é, em princípio, social, pois pelo mesmo motivo de que seu resultado pode ser compartilhado de modo intersubjetivo, ela tampouco pode necessariamente desligar-se do processo em que o mesmo se constitui. Mesmo sendo o momento de maior atividade, a reflexão sempre é consequência, reflexo. Ela só é possível como "recolhimento", como interrupção de alguma modalidade social de atividade intelectual.
Talvez a teoria da interrogação deva ser o momento essencial de toda hermenêutica: todo entender parece estar vinculado à dinâmica pergunta-resposta; ele sempre é, implícita ou explicitamente, entender uma resposta, e só entendo a resposta àquela pergunta que poderia formular.
Há, no entanto, diferentes formas de perguntar. Não se deve confundir a importância da pergunta no diálogo, na leitura de textos filosóficos e no trabalho filosófico (que é algo muito mais específico que o anterior). Bem-aventurados aqueles capazes de formular perguntas, pois deles será o reino das respostas! Lamentavelmente, esses são poucos; a maioria se limita a sofrer com suas dúvidas. Por tal motivo, a tarefa decisiva de ensino não é muitas vezes apenas responder, mas ajudar a formular a pergunta. Toda compreensão tem um momento ótimo, um kairós. Há verdadeiras "urgências intelectuais".
Perguntas não se dirigem apenas a pessoas, mas também a textos. O entender um texto tem o caráter de entender uma resposta. Ora, o texto só responde na medida em que perguntamos, e só responde de modo preciso quando perguntamos de modo preciso. A adequada compreensão do texto depende da colocação da pergunta pertinente para uma resposta dada.
O caráter ativo e social do pensamento filosófico encontra no diálogo uma expressão essencial. A atividade filosófica, em todas as suas modalidades, contém como momento decisivo a participação em um movimento dialógico. Característico dele é articular uma sequência que contém como possibilidades pergunta e resposta, mas também aclaração e precisão, argumentação e contra-argumentação.
O diálogo é condição essencial tanto para a produção de filosofia como para o aprendizado. A filosofia se produz e se aprende primariamente no diálogo e não na leitura solitária ou dirigida de textos. É por isso que ele não pode estar subordinado ao texto e ser meramente um auxílio ao serviço da sua leitura, mas sim ter um valor autossuficiente. Se alguma redução tem aqui sentido, é que a leitura do texto é uma modalidade de diálogo e não o diálogo uma modalidade de texto.
Assim como é possível diferenciar modos de interrogação, é possível diferenciar classes de diálogo, cada uma das quais explora ou põe de manifesto uma das suas potencialidades: o diálogo real ou virtual, com ou sem texto, com um interlocutor qualquer, ou com o autor do texto. Neste último caso está contida uma experiência decisiva. Somente nela é que tomamos consciência da distância que separa o texto isolado da sua relação pulsante com seu autor. Textos aparentemente ingênuos tornam-se obras-mestras.
O diálogo e a discussão cumprem um rol decisivo no fortalecimento lógico e hermenêutico. O interagir de escrita, texto e discussão da escrita é decisivo. A assunção de pontos de vista, ainda que flexíveis e mutáveis, conduz, sem solução de continuidade, do primeiro ao segundo. Na polêmica, finalmente, na qual, à diferença da mais flexível discussão, "posições" são assumidas, supõe-se a escrita, efetuando-se a partir dela e por seu intermédio.
6.6. Texto e tradição viva. O mestre e a escola
Jamais surgiu uma filosofia só a partir da leitura de textos. Um Robinson Crusoé que, porventura, tivesse a maior biblioteca do mundo dificilmente produziria uma reflexão de valor. Isto se deve ao fato de que grande parte do movimento de ideias filosóficas não está nos textos, nem jamais vai estar; ele está presente apenas na tradição viva. Esta não pode ser transformada em supérflua por nenhuma biblioteca. Para quem é escravo da "mistificação do texto", a biblioteca é o templo do saber, no qual ele se recolhe como todo bom sacerdote e do qual só sai para "ver" algum pontífice. Porém, basta refletir sobre a própria biografia intelectual para perceber que boa parte do que temos aprendido não está em texto algum e que, mesmo quando está, nem sempre atua e influi enquanto texto. De tal natureza são os consensos em uma certa comunidade acadêmica, tão sabidos, óbvios e onipresentes, que até circulam nos corredores de uma universidade.
Se a filosofia é impossível sem inserção em uma tradição viva, esta supõe o contato com pessoas concretas e, em particular, com um mestre. A relação discípulo-mestre não é sentimentalismo de pedagogo, mas momento imprescindível na aprendizagem da filosofia. Um grande filósofo (ou investigador acadêmico) é, por regra geral, discípulo direto de um outro, e esse de outro, e assim sucessivamente. É incomum que surjam pensadores à margem dessas relações diretas que constituem uma linha dinâmica de assimilação e elaboração.
A figura do mestre só pode ser necessária na filosofia se há algo que apenas ele pode oferecer, algo para o qual ele é insubstituível. Este algo, abstratamente considerado, já sabemos, é o vínculo com a tradição. Agora, se o mestre é capaz de introduzir seu discípulo na tradição viva, é porque esta vive nele. Como ele efetua essa função mediadora é suscetível de uma análise mais detida.
Em última instância, podemos reduzir a quatro as tarefas essenciais que assume o mestre e que o definem. A primeira é introduzir seu discípulo no philosophical way of thinking, para o qual combate sem concessões todo cômodo "espontaneísmo" intelectual. A segunda é orientar seu discípulo no "labirinto filosófico", ordenando, priorizando e, em definitivo, focalizando (1ª, 4, 4.2.3) problemas e conceitos de modo tal a evidenciar qual é seu verdadeiro núcleo. A terceira tem a ver com o mais rico que ele tem a dizer, com aquilo que é o decantado de seu estudo de anos. Nem tudo o que ele sabe merece ser ensinado. Existem muitas coisas para as quais ele é prescindível, pois são os demais nele, a sua erudição. Há, sem embargo, algo que é dele, pois só ele pode ensinar dessa forma única e irrepetível: talvez seu modo peculiar de entender e não entender, talvez não muito mais que a suspeita de um problema decisivo, ou aquela pequena originalidade do exemplo feliz ou da metáfora definitiva; talvez aquilo que ele descobriu com assombro infantil, aquilo que ele sempre "soube" mas que só um dia, ao olhar pela janela, pôde compreender em seu núcleo verdadeiramente essencial. Existe, finalmente, uma quarta e paradoxalmente decisiva tarefa pois ele de forma alguma pode propô-la a si, já que ela não diz respeito a um fazer, mas a um ser. É através dela, não obstante, mais que por nenhuma outra, que ele marca indelevelmente seus discípulos. Seu prazer e sua tenacidade, sua consciência do complexo, o permanente alerta contra toda atitude ingênua, em suma, o que poderíamos chamar "sua personalidade intelectual amadurecida”, é uma ponte pela qual outros ingressam na tradição.
Seria incompreensível a existência de um mestre de um único discípulo. Espontaneamente o mestre tende a ser um ponto de aglutinação, a formar uma escola cujos membros se transformam em novos mediadores e, desejavelmente, em seus interlocutores e críticos mais severos.
1.1. Introdução
Nas seguintes considerações me dedicarei prioritariamente a explicar em que consiste o problema básico da filosofia kantiana, outorgando para isso um especial acento à Crítica da razão pura. Num segundo momento direi alguma coisa a respeito de sua solução.
1.2. O problema crítico
O problema kantiano se constitui de vários problemas articulados e, como veremos, possui uma firme unidade interna. Ele tem uma dimensão teórica e uma prática, ou seja, uma dimensão epistemológica e uma ética. Chamo a atenção para a unidade da pergunta kantiana e, ao mesmo tempo, de sua dupla dimensão essencial. De início me ocuparei com a questão teórica; em seguida com a questão prática. Isto não obedece a uma ordem de importâncias ou prioridades.
1.2.1. O problema teórico
Se o problema kantiano tem um duplo aspecto (teórico e prático), no campo teórico há também uma dupla dimensão. Este é um dado imprescindível se queremos compreender a Crítica da razão pura. Entender esta obra é, em boa medida, entender a ligação interna que há entre duas perguntas que, a princípio, são logicamente independentes uma da outra, a saber:
1. É possível a metafísica como ciência?
2. Como são possíveis física e matemática como ciência?
1.2.1.1. A pergunta pela possibilidade das ciências física e matemática
Começarei pela última pergunta. A ciência é, para Kant, a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana. Isto pode parecer óbvio, mas não é. Para entender o que significa é preciso saber algumas coisas.
Na primeira metade do século XVIII existem na Alemanha duas físicas, a de Descartes e a de Leibniz. A discussão entre elas caracteriza o momento científico, não conseguindo nenhuma delas se impor definitivamente sobre a outra. A física de Newton aparece como uma nova e poderosa concorrente, que as desloca, embora com lutas e fortes resistências. O desenvolvimento intelectual de Kant coincide com este processo. Kant inicia sua formação em física através do contato com as polêmicas entre cartesianos e leibnizianos para, em seguida, aderir progressivamente a Newton até tomar partido definitivo por este (numa época prematura para a situação intelectual na Alemanha).
As físicas de Descartes e de Leibniz diferem em várias "questões" (1ª, 2, 2.2) fundamentais. Entretanto, importa observar que, no marco destas diferenças, elas têm quatro pontos em comum:
1. Descartes e Leibniz (e todos os racionalistas em geral) compartilham uma ideia de ciência que tem suas raízes na Antiguidade clássica, segundo a qual a ciência é conhecimento universal e necessário. Para usar algumas formulações que não são exatamente idênticas, mas que confluem para o núcleo primordial da "necessidade", digamos que ciência é um conhecimento demonstrativo pelas causas ou razões; não um mero saber do que é, senão do por que é; não simplesmente um descrever, mas um explicar; não propriamente um investigar os fatos estabelecendo novas verdades em relação a eles, mas provar estas verdades.
2. Em segundo lugar, tanto Descartes como Leibniz trabalham naquele projeto, comum à ciência moderna, de matematizar o universo.
3. Em terceiro lugar, ambos vinculam estreitamente suas físicas com suas metafísicas. Se suas físicas são diferentes é, em boa medida, porque as metafísicas, a serviço das quais se encontram, são diferentes.
4. Finalmente, em quarto lugar, tanto Descartes como Leibniz fundamentam suas físicas em suas metafísicas, isto é (dado que ciência é conhecimento necessário), ambos vinculam a necessidade que caracteriza suas físicas como ciência a suas metafísicas.
Kant adota a física de Newton sem, no entanto, abandonar a teoria clássica de ciência, na qual se havia formado. Ele aceita a mecânica newtoniana, porém a interpreta através da ideia racionalista de ciência. Isto é decisivo: para Kant, a física newtoniana é algo mais que uma mera generalização de dados empíricos ou uma descrição matemática feliz e conveniente dos fenômenos que poderia, eventualmente, ser corrigida no futuro; ela é um conhecimento que implica um caráter universal e necessário.
Segundo Kant, existem dois tipos de conhecimento: o empírico e o a priori. Conhecimento empírico é aquele que se "funda" na experiência. Entendemos por experiência um saber baseado, em última instância, nos sentidos. Se eu dissesse agora que a parede é branca, isto seria um conhecimento empírico, pois a verdade desta minha afirmação está suficientemente fundada nos dados que os sentidos me proporcionam. Para saber se o que eu digo é verdade, a única coisa a ser feita é olhar para a parede. Conhecimento a priori é aquele conhecimento que não pode ser adequada e suficientemente fundado na experiência[39]. Ora, a experiência é incapaz de fundar um conhecimento universal e necessário. Ela pode dizer como são as coisas, mas não dizer por que necessariamente elas são assim e não de outro modo; ela pode dizer como as coisas foram até agora, mas não que devam ser sempre assim. Logo, se há um conhecimento que tenha estas qualidades de necessário e universal, então ele não pode ser empírico e, em consequência, é, por oposição, a priori.
Se pensarmos conjuntamente todos os elementos apontados até agora, chegaremos a uma interessante conclusão (que é, para Kant, na realidade, um ponto de partida):
1. Se a mecânica newtoniana é ciência,
2. e ciência é conhecimento universal e necessário,
3. então a mecânica newtoniana é conhecimento universal e necessário.
4. Todavia, conhecimento universal e necessário não pode ser jamais empírico, mas a priori.
5. Portanto, se a mecânica newtoniana é possível como ciência, então o conhecimento a priori é possível.
1.2.1.2. A pergunta pela possibilidade da metafísica como ciência
Se o primeiro elemento do problema kantiano é a física, o segundo será a metafísica. Mas o que é a metafísica para Kant? É, basicamente, a metafísica racionalista. Com certeza, o leitor já ouviu falar de uma das maiores expressões deste movimento: Descartes, e já sabe que, numa obra que tem por título, justamente, Meditações metafísicas, ele se propõe resolver, de modo definitivo, problemas tais como a existência de Deus ou a imaterialidade da alma humana. Algo similar tentam Leibniz, Spinoza e os outros autores racionalistas do período. Questões como as anteriores não podem ser respondidas pela experiência, pois objetos como os mencionados não são perceptíveis pelos sentidos. Em consequência, a metafísica se coloca perguntas que excedem os limites da experiência. Agora, o leitor lembrará que Descartes queria provar determinadas verdades, ou seja, queria demonstrá-las, isto é, queria conhecê-las por meio de puros raciocínios. A metafísica pretende, pois, ser conhecimento puramente racional, ou seja, conhecimento por meio da Razão pura. Os racionalistas consideram que a metafísica é possível como ciência, isto é, que é possível conhecer, por meio da Razão pura, verdades que transcendem toda experiência possível.
Hoje em dia, certamente, muitos duvidam que "questões" (1ª, 2, 2.2) como as citadas possam ser conhecidas (e muito menos demonstradas), mas é importante entender por que homens inteligentes dos séculos XVII e XVIII pensavam o contrário, porque eles acreditavam que estas "questões" eram suscetíveis de tratamento científico, podendo ser respondidas demonstrativamente. A confiança que eles tinham na cientificidade da metafísica é produto da confiança que tinham na Razão. A confiança que eles tinham na Razão, por sua vez, era produto da confiança que tinham na matemática. A matemática ocupa um lugar privilegiado no saber da época, sendo considerada modelo de solidez e rigor. Suas verdades são em si mesmas evidentes ou demonstradas a partir de verdades evidentes. Porém, em que se baseia a matemática? Na experiência? Nada disso! Quando o matemático demonstra seus teoremas apoia-se unicamente na Razão. Ora, se nas matemáticas a Razão consegue produzir conhecimentos a partir de si mesma, por que ela não poderia fazer o mesmo na metafísica? Se a Razão não precisa da experiência nas matemáticas, por que precisaria dela na metafísica?
Sabemos que conhecimento a priori é conhecimento não-empírico. Em consequência, um conhecimento puramente racional (que, portanto, não se funda em experiência alguma) é um conhecimento a priori. Aquilo que o racionalismo pretendia com a metafísica (ou seja, conhecer a realidade última do universo através da Razão pura) não é diferente daquilo que anteriormente chamamos conhecimento a priori. A possibilidade da metafísica como ciência depende então da possibilidade do conhecimento a priori por meio da Razão pura.
1.2.1.3. A relação entre os dois problemas
Chegamos, assim, à seguinte conclusão: tanto a mecânica newtoniana como a metafísica racionalista pretendem obter conhecimento a priori. Apesar desta semelhança, existe uma diferença não menos decisiva: nesta tarefa a mecânica newtoniana é exitosa, enquanto a metafísica fracassa. A mecânica newtoniana consegue construir um conjunto de conhecimentos que é aceito por todos e confirmado pelos fatos conhecidos. A metafísica, pelo contrário, é, como diz Kant, "uma eterna arena de disputas", não existindo uma única tese que seja unanimemente aceita nem uma única demonstração que não seja questionada. A pergunta que se segue é: por que esta diferença? Por que conhecimento a priori é possível na mecânica newtoniana e não na metafísica? Por que pode haver algo na mecânica newtoniana que não pode haver na metafísica? Imaginem agora que, de repente, começa a chover de um lado da Avenida Paulista e não do outro. Alguém poderia se perguntar pela razão desta diferença, ou seja, por que chove do lado esquerdo e não do lado direito da Avenida Paulista? A pergunta que Kant se faz é produto de uma perplexidade similar a esta.
Chamo a atenção para uma forma falsa de "compreender" a Crítica da razão pura e que, não obstante, é muito difundida. Segundo esta interpretação, que comete o erro capital de não ver que a física é parte integrante do problema, Kant afirma que a metafísica não é possível como ciência porque trata de questões que não podem ser respondidas pela experiência. Isto, em certa medida, é certo. Contudo, não é certo que, se a metafísica não é possível como ciência, porque transcende os limites da experiência, a física sim seja possível como ciência porque está baseada unicamente na experiência. Se Kant tivesse pensado que a física newtoniana se baseava unicamente na experiência não haveria a necessidade de escrever uma Crítica da razão pura. Se Kant tivesse pensado que a metafísica não fosse possível como ciência simplesmente porque transcende os limites da experiência não teria sido Kant, e sim mais um empirista. O verdadeiro problema é a diferença na situação da física e da metafísica em relação à possibilidade do conhecimento a priori; o fato de que num caso somos capazes de produzir tal tipo de conhecimento e no outro não.
1.2.1.4. Como são possíveis juízos sintéticos a priori?
Sabemos que conhecimento a priori implica necessidade. O problema de fundar a possibilidade de tal tipo de saber consiste, basicamente, em fundar esta necessidade. Agora, que significa "necessidade"? Alguns contemporâneos de Kant se colocaram esta pergunta e conseguiram responder de um modo preciso o que é necessidade lógico-formal. Para entender sua resposta, temos que levar em consideração algumas definições.
1. Uma contradição se produz quando afirmo e nego a mesma coisa, ou seja, digo: "A é não A" (ou, por exemplo: "Chove e não chove").
2. O princípio de contradição é um princípio da lógica clássica que diz: nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob a mesma relação (ou: um juízo não pode ser verdadeiro e falso).
3. Algo é possível quando não implica contradição.
4. Algo é impossível quando implica contradição.
5. Algo é necessário quando sua negação é impossível ou implica contradição.
O enunciado: "Um triângulo tem três lados" é logicamente necessário porque se eu o nego (ou seja, se digo: "Um triângulo não tem três lados") produzo uma contradição (ou seja, afirmo e nego algo), isto é, dado que "figura de três lados" é, propriamente, a definição de triângulo, digo algo assim como: "Uma figura que tem três lados não tem três lados" (ou seja: "A é não-A").
A lógica não faz outra coisa que explicitar a legalidade da Razão. Os princípios lógicos não são outros que os princípios da Razão pura, sendo o de contradição um dos fundamentais. Portanto, apoiando-me exclusivamente na Razão pura posso fundar o conhecimento necessário do ponto de vista lógico-formal e, em consequência, produzir um certo tipo de saber a priori. Este saber a priori, não obstante, não é suficiente para fundar nem a metafísica, nem a física e a matemática.
Sabemos que a Razão fracassa no seu empenho em produzir conhecimento a priori na metafísica. Agora sabemos o porquê: porque o conhecimento que a metafísica pretende obter pela Razão pura não é um conhecimento necessário do ponto de vista lógico-formal, o único que a Razão pode fundar. Se a ciência físico-matemática tem êxito, isto só pode acontecer porque, de algum modo, ela é capaz de um conhecimento necessário que não se baseia na Razão pura. Nosso problema começou quando observamos que um conhecimento que pretendesse ser necessário não pode ser fundado na experiência. Até aí, poderíamos dizer: não se funda na experiência, mas na lógica. Sem embargo, o que acontece quando um conhecimento é necessário (e, em consequência, não pode ser fundado na experiência) e, no entanto, possui uma necessidade de tal natureza que tampouco pode ser fundado no princípio da contradição? Kant formula esta pergunta do seguinte modo:
Como são possíveis juízos sintéticos a priori?
Perguntar "Como são possíveis juízos sintéticos a priori?" é perguntar como são possíveis juízos que, enquanto a priori, são necessários, ainda que, enquanto sintéticos, não são logicamente necessários. O problema teórico de Kant é basicamente explicar a fonte de uma necessidade que não é lógico-formal (ou seja, que não se baseia no princípio da contradição) e que, portanto, não é "analítica" mas "sintética".
É importante mostrar esta situação com alguns detalhes pelo menos em relação à mecânica newtoniana. Segundo Kant, ela pressupõe conhecimentos a priori que, no entanto, não são logicamente necessários. Para entender isto temos que recordar alguns fatos e ser informados de outros.
1. A ciência físico-matemática procura reduzir o universo a um sistema de leis. Esta foi a grande herança da mecânica newtoniana.
2. Contudo, o significado científico de uma lei não é outro que o estabelecimento de uma relação universal e necessária entre dois ou mais fenômenos.
3. Esta universalidade e necessidade da relação entre os fenômenos é afirmada pelo princípio causal, o qual diz: tudo o que acontece tem uma causa.
4. A legalidade da natureza pressupõe, pois, o princípio causal.
5. Todavia, pelo menos a partir de Hume, os filósofos sabem que o princípio causal não pode ser demonstrado por meio do princípio de contradição, ou seja, que sua negação não contém uma impossibilidade lógica, isto é, que ele não é logicamente necessário.
6. E então? Em que ele se funda, já que não podemos prescindir da mecânica e, por outro lado, não podemos fundá-lo na Razão pura?
Sintetizando o resultado alcançado até agora, formulemos o problema kantiano com quatro perguntas ordenadas num grau crescente de precisão:
1. Por que a física e a matemática são possíveis como ciências e a metafísica não?
2. Por que é possível conhecimento a priori na física e na matemática e não na metafísica?
3. Por que é possível a necessidade sintética na física e na matemática e não na metafísica?
Esta última pergunta exige ainda uma observação. Conhecimento a priori é conhecimento universal e necessário. Não obstante, em 3 só falamos da necessidade. Digamos então, mais precisamente, que a pergunta kantiana é:
4. por que é possível necessidade sintética de caráter universal na física e na matemática e não na metafísica?
1.2.1.5. As antinomias
A metafísica pretende obter conhecimento a priori e não o consegue ou, o que é o mesmo, a Razão pura não é capaz de outra coisa que fundar uma necessidade lógico- formal. Mas esta é apenas uma parte da história. Se para Kant a metafísica não é possível como ciência, ele não tem dúvida alguma de que os problemas que ela levanta são importantes e, inclusive, muito mais importantes que os da física. Se os corpos caem a 9,8 ou 9,9 metros por segundo nada muda, porém muda muito se existe ou não existe Deus, se existe ou não existe uma alma imaterial e imortal. Contudo, as questões colocadas pela metafísica não são para Kant unicamente relevantes, elas são necessárias; são questões a que a Razão não pode responder, e, no entanto, paradoxalmente, não pode deixar de se colocar. A Razão é basicamente a capacidade de procurar razões, ou seja, de buscar porquês. Nisto consiste sua tarefa própria e específica. Agora, é justamente cumprindo esta tarefa (perguntando-se o porquê do porquê do porquê... ou, como diz Kant, "a condição de cada condicionado") que a Razão se vê impulsionada a colocar-se a ideia do incondicionado ou absoluto. É deste absoluto que pretende tratar a metafísica. A pergunta por uma causa da causa da causa... nos conduz à ideia de uma causa última do universo: à ideia de Deus ou à ideia de um substrato último de todos os fenômenos psíquicos: à alma enquanto substância. Todavia, estas questões não só são relevantes, necessárias e insolúveis. A situação é ainda mais trágica: a Razão, ao tentar respondê-las (ao intentar conhecer o absoluto), termina caindo em contradição consigo mesma. Ela chega (e isto acontece justamente na metafísica) à situação em que consegue demonstrar coisas contraditórias ou, como diz Kant, produz antinomias.
Se todo o capital do qual a Razão dispõe se encontra concentrado no princípio de contradição, pareceria que ela nem sequer consiga assegurar este patrimônio. Isto coloca uma dúvida de princípio sobre a Razão. Já vimos que o êxito da ciência físico-matemática nos obriga a perguntar pela causa do fracasso da metafísica. Agora, como se já não bastasse ter que explicar a possibilidade do conhecimento a priori na física, há aqui outro importante motivo pelo qual não podemos nos limitar apenas à constatação de que a metafísica não é possível como ciência, deixando-a simplesmente de lado, é preciso ainda entender o porquê. Talvez compreendamos melhor a gravidade do caso se tomarmos conhecimento de pelo menos uma dessas contradições, a saber, entre a liberdade e o determinismo. A tese diz: há uma causa livre; a antítese afirma: toda causa é causada. Sem causalidade, como já vimos, não há lei e, em consequência, tampouco ciência, porém, sem liberdade não há ética.
1.2.2. O problema prático
Já anunciamos que o problema kantiano tinha uma dimensão teórica e uma prática. Na realidade, a preocupação fundamental de Kant é prática (ética). Nem sempre foi assim. Em seus primeiros anos de academia, Kant não era outra coisa que um jovem arrogante, mais preocupado em mostrar sua capacidade intelectual do que em estabelecer alguma verdade relevante de forma sólida. No entanto, a leitura de Rousseau o tirou da sua postura inicial. A fundamentação de uma ética passa a ser, agora, seu objetivo principal.
O problema de uma fundamentação da ética consiste em responder a perguntas do tipo "o que devo fazer?" e, mais radicalmente, "por que devo?". Trata-se, pois, em última instância, de fundamentar a objetividade do dever, isto é, sua universalidade e necessidade. Entretanto, como já sabemos, universalidade e necessidade não podem ser funda- das empiricamente. A experiência pode me dizer como os homens de fato se comportam, mas nunca que eles devam se comportar assim. Logo, se é possível universalidade e necessidade na esfera ética, ela só pode ser fundada de um modo não-empírico, ou seja, a priori. A noção de um saber a priori, assim como o problema de sua possibilidade, os quais desempenharam um papel decisivo no campo teórico, voltam a aparecer em lugar central da ética. Pois bem, sabemos que a Razão é (ou pelo menos pretende ser) uma faculdade de conhecer não-empírica. Por conseguinte, a tarefa de uma fundamentação a priori da ética assume em Kant a forma de uma fundamentação racional.
Observemos que é a segunda vez que nos vemos obrigados a falar da Razão em Kant. No primeiro caso nós a tratamos no contexto da metafísica, agora no contexto da ética. Isto poderia dar a impressão de que há duas Razões: uma teórica e outra prática. Mas Kant não duvida da unidade da Razão, nem muito menos de sua destinação prática originária. Se a noção de a priori está presente, de forma decisiva, tanto no campo teórico como no prático, o modo em que a Razão se vincula com ela é em cada caso diferente. No campo teórico, a Razão, ao buscar a condição do condicionado, via-se remetida à ideia de um absoluto que não podia determinar sem contradição. Devemos, pois, renunciar a um absoluto? De maneira alguma. A ideia do incondicionado, a qual a Razão alcançava (mas não podia determinar sem contradição no campo teórico), se impõe como um dado, como um fato irredutível, no prático: é o absoluto do dever. A consciência do dever é um Faktum da Razão. Eu me conheço como ser racional em primeira linha porque eu me conheço como ser ético. Não pode haver dúvida alguma que devo. Mas, novamente, por que devo? Qual é a fonte desta necessidade do dever?
1.3. O caminho da solução
Se na apresentação do problema kantiano fomos do campo teórico ao prático, na de sua solução temos de seguir a ordem inversa, indo do campo prático ao teórico. Deste modo, não obedecemos unicamente a motivos expositivos, mas também à ordem cronológica e sistemática.
1.3.1. A solução do problema prático
Por que devo? Tenho certeza de que o leitor já se colocou esta pergunta e, se não a fez a seus pais, pelo menos foi confrontado alguma vez com ela por seus filhos. Talvez a resposta que deu ou recebeu em tais ocasiões fosse do tipo: "Porque sim!" ou "Porque eu digo!". Há outras respostas que não são menos comuns na vida cotidiana e que aparecem com igual assiduidade no pensamento filosófico, como, por exemplo, "Porque Deus quer assim". É Deus quem determina o que é bom e o que é mau. No lugar de Deus, poderíamos colocar qualquer outra coisa; o importante é que as respostas dadas ao longo da história à pergunta "por que devo?" tendiam, de uma forma ou de outra, a colocar o princípio daquilo que devo fazer (e querer) em algo externo a mim.
A resposta que Kant nos oferece se encontra em outra direção; ela diz: "devo", porque sou um ser racional. Eu não preciso perguntar a ninguém o que devo nem por que devo, mas unicamente a mim mesmo enquanto ser racional. A fonte última do Dever não é outra coisa que a Razão; a moralidade, a autolegislação de um ser racional. A Razão, enquanto Razão prática, dita a sua própria lei. Ela não toma esta lei de nenhuma instância transcendente a ela, mas apenas de si mesma. A Razão é, pois, a verdadeira fonte da objetividade prática.
Porém, o que acabo de dizer é meramente uma parte da resposta (ainda que seja uma parte fundamental). Se a Razão é a fonte das leis práticas, uma lei não é em si mesma um imperativo; ela não diz: "tu deves". Admitindo, pois, que a Razão seja a fonte da legalidade prática, ainda resta compreender por que essa legalidade se apresenta na forma do imperativo (ou seja, na forma de um "tu deves"). A resposta kantiana é, ao mesmo tempo, consequente e surpreendente: na realidade, eu não "devo" porque sou um ser racional, mas sim porque, sendo um ser racional, não sou um ser total ou exclusivamente racional, mas também sensível (ou seja, submetido a impulsos e paixões). Um ser absolutamente racional seguiria a lei ética de modo espontâneo. Esta legalidade não seria para ele um "Dever". Contudo, para um ser que não é absolutamente racional, ou seja, que eventualmente pode entrar em contradição com a Razão, a lei adquire o caráter de um imperativo.
As noções Razão prática, legalidade, vontade, liberdade e autonomia estão no pensamento kantiano intimamente vinculadas por múltiplas relações recíprocas. O conceito de liberdade tem um sentido político (que é o mais conhecido) e um sentido metafísico[40]. No sentido metafísico, a forma mais usual de conceber este conceito é entender a liberdade como livre-arbítrio ou como a faculdade de fazer ou não uma coisa. Agora, para entender Kant, é importante não ignorar a relação essencial que ele estabelece entre liberdade e legalidade. O ser livre não é aquele que age sem lei alguma, mas aquele que impõe a si mesmo a sua própria lei. Em consequência, um ser livre é um ser racional e vice-versa. A vontade é um modo de causalidade próprio dos seres racionais. A liberdade é uma propriedade da vontade. O que é livre ou não é a vontade. A vontade é livre quando se autodetermina. Uma vontade livre é uma vontade autônoma. Vontade livre e vontade submetida às leis morais são para Kant a mesma coisa. A lei moral não é outra coisa que a legalidade de uma vontade livre.
No campo teórico, a ideia de liberdade estava imbricada em antinomias (2ª, 1.2.1.5); no campo prático, ela não só recebe sua legitimação como, inclusive, o seu próprio conteúdo. Kant inverte a ordem da prova com respeito ao racionalismo, que considerava a demonstração (metafísica) de nossa liberdade, pressuposto absolutamente imprescindível da tese da nossa eticidade. Na perspectiva crítica, a verdadeira fonte do meu conhecimento da liberdade é a eticidade. Se há algo que está por sobre qualquer dúvida (e que, em consequência, não precisa ser demonstrado) é o Faktum da Razão: eu devo. Mas, se eu devo, eu "posso". Do meu caráter como ser moral segue-se a minha liberdade.
1.3.2. A solução do problema teórico
A ideia da autolegislação ou espontaneidade, decisiva para Kant no campo prático, está também na base do caminho da solução do problema teórico. A virada que Kant opera na história da filosofia, tanto no campo ético como no epistemológico, remete a um ponto comum. Assim como os filósofos tinham fundado o bem e o mal numa instância transcendente (como por exemplo, em Deus), também fizeram algo similar com nossa possibilidade de conhecer o universo. Assim como, antes de Kant, a fundamentação da ética era teológica e/ou metafísica, também o era a fundamentação do conhecimento. Sem entrar em detalhes, pensemos em Descartes, que, num momento decisivo da sua filosofia, para descartar a hipótese do "gênio maligno", apela para a veracidade divina. Esta forma de proceder não é uma debilidade de momento, mas uma manifestação de um modo de pensamento que aborda o problema do fundamento último remetendo-o à transcendência. Também na física de Descartes está presente este modo de proceder. A necessidade das suas leis era fundamentada pela metafísica e, em última instância, por Deus. Porém, assim como na ética Kant não baseia o Dever em Deus (ou em qualquer instância transcendente) mas na própria Razão, ou seja, no "sujeito prático", assim ele funda a possibilidade do conhecimento a priori teórico no próprio sujeito cognoscente.
A ideia-chave, que orienta a solução do problema colocado na Crítica da razão pura, é metaforicamente denominada por Kant "inversão copernicana". Copérnico, não conseguindo explicar o movimento observável dos planetas a partir do pressuposto de que a terra estava no centro e o sol girava em torno dela, inverteu a relação e colocou o sol no centro e a terra girando em torno dele. Do mesmo modo, disse Kant, se partimos da suposição de que o sujeito, no ato de conhecer, é totalmente passivo e se limita a receber um objeto que existe em si mesmo e que é dado ao seu conhecimento, então não existe modo de explicar como é possível um saber a priori. Como pode um sujeito saber algo acerca de um objeto que é absolutamente independente dele? Dito metaforicamente: se partimos da suposição de que o sujeito "gira" ao redor do objeto, então o conhecimento a priori não é possível. Ao contrário, se o conhecimento a priori é possível, então devemos inverter o esquema e colocar o sujeito no centro, fazendo o objeto "girar" em torno dele. Deixando agora de lado a metáfora: a única forma de explicar a possibilidade do conhecimento a priori é admitir que o sujeito não é passivo no conhecimento do objeto (que não é meramente determinado por este) mas que é ativo, colaborando, de alguma forma (pelo menos em parte) na sua constituição.
O princípio básico que rege a explicação da possibilidade do conhecimento a priori que o sujeito só pode conhecer a priori aquilo que ele "produz" e que, em consequência, depende dele de algum modo ou, na perspectiva inversa, que o sujeito não pode conhecer a priori aquilo que não dependa dele de modo algum. Dito de outra maneira: o sujeito só pode conhecer a priori aquilo que, de uma forma ou de outra, depende do seu conhecimento e não, ao contrário, aquilo que existe de forma absolutamente independente de seu conhecimento. A realidade, tal como ela é "em si", é algo diferente do modo como ela aparece diante de mim enquanto sujeito cognoscente. A realidade, tal como é em si, me é incognoscível; o que posso conhecer dela é o modo como me aparece. O modo do seu aparecimento, porém, dependerá não só dela mas também "de mim". Justamente por tal razão, eu posso saber algo a priori dela. Exprimindo o nosso resultado em termos kantianos, digamos que o sujeito só pode conhecer (e só pode conhecer a priori) os fenômenos, mas não as "coisas em si" (Dinge an sich).
Agora estamos em condições de entender por que o conhecimento a priori é possível na física e não na metafísica, a saber, porque enquanto a física se ocupa unicamente com os fenômenos, a metafísica pretende tratar das coisas em si (de um absoluto). É a partir daqui que podemos entender a origem das contradições da Razão consigo mesma na metafísica: a Razão cai em contradições porque, ao introduzir a ideia de incondicionado na análise regressiva das condições, trata o que é tão-somente um fenômeno como se fosse uma coisa em si. A distinção entre fenômeno e coisa em si, que serve para explicar a possibilidade do conhecimento a priori, também nos presta um serviço inestimável na dissolução das contradições da Razão consigo mesma na metafísica (o que dá uma prova indireta, porém decisiva, da sua correção).
Demos um grande passo adiante ao estabelecer que o único conhecimento a priori possível refere-se aos fenômenos. A ideia de que só podemos conhecer a priori aquilo que "depende de nós", porque o "produzimos", é intuitivamente satisfatória. Contudo, ela não resolve todos os problemas. Conhecimento a priori é conhecimento universal e necessário. Dizer que existe conhecimento a priori do fenômeno é dizer que conhecimento universal e necessário do fenômeno é possível ou que é possível necessidade e universalidade no fenômeno (ou, mais precisamente, nas relações entre eles). Mas como? Já sabemos que esta necessidade não é a necessidade que nos ensina a lógica. E então?
Levando o problema da Crítica da razão pura à sua menor dimensão, ele consiste em fundamentar uma necessidade sintética de caráter universal. Sabemos agora que a essa necessidade sintética de caráter universal estão submetidos os fenômenos (e só eles). O próximo passo de Kant será deduzir a necessidade universal, a que os fenômenos estão submetidos, de uma outra necessidade que lhes é inerente, pelo fato de serem fenômenos. O fenômeno não existe em si, mas tão-só para mim. Fenômenos não são outra coisa que minhas "representações" (Vorstellungen). Porém, minhas representações, enquanto minhas, só existem na medida em que eu sou consciente ou, pelo menos, posso ser consciente delas. Logo, eu devo poder ser consciente de todas as minhas representações, ou como diz Kant: O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações, porque do contrário não seriam minhas.
Este princípio tem o pomposo nome de princípio da unidade originariamente sintética da apercepção (consciência). A ideia que está em sua base é, porém, muito simples: para que algo possa ser minha representação, eu tenho (pelo menos) que poder ser consciente dele. Toda representação ou (o que é basicamente o mesmo) todo fenômeno está submetido a uma condição necessária, a saber, a condição de que eu posso ser consciente dele. A jogada de mestre de Kant consistirá em mostrar que do vínculo necessário que todo fenômeno tem com uma consciência única segue-se uma relação necessária entre os fenômenos mesmos. Kant denomina dedução transcendental o argumento que efetua esta demonstração. Ela consiste basicamente em derivar uma necessidade de outra necessidade. A possibilidade de reunir todas as representações numa consciência é necessária e, ao mesmo tempo, universal. É aqui, pois, onde encontramos a origem última da necessidade e universalidade, que estava na base da ideia de conhecimento a priori.
1.3.3. Coincidências e diferenças entre as soluções das questões prática e teórica
Podemos observar uma identidade básica entre as fundamentações da moralidade e do conhecimento. Em ambos os casos esta fundamentação não apela a um fator transcendente (como por exemplo, Deus) e, em consequência, ela não é metafísica. Num caso a fundamentação me leva à Razão; no outro ao princípio da unidade sintética necessária da consciência. Não obstante, existe uma importante diferença. Tal fundamentação conduz a uma necessidade de caráter estritamente intelectual na ética e de caráter meramente fenomênico na ciência. Por isso, no primeiro caso, o conhecimento que obtenho vale para todo ser racional cimento e, no outro, vale unicamente para um ser racional que, como eu, seja finito, isto é, sensível.
1.4. O lugar de Kant na história da filosofia
A verdadeira dimensão da virada introduzida por Kant na história da filosofia (e que se manifesta de modos diferentes na ética e na teoria do conhecimento) está em tornar a filosofia teoria da objetividade (Geltungstheorie). Se no primeiro momento a filosofia se ocupa de modo prioritário com o objeto, num segundo momento o faz com a "objetividade" ou, mais precisamente, com a fundamentação de "aspirações de validade universal". Uma outra forma de expressar este resultado é: com Kant, a filosofia torna-se filosofia transcendental.
2.1. Introdução
Existem, na história da filosofia, pensadores que estabelecem as bases de novos problemas e, com isso, são responsáveis por transformações decisivas para o desenvolvimento do pensamento posterior; outros têm seu problema estabelecido no marco de uma tradição já existente e que, portanto, deve ser pressuposta. O problema cassireriano é do último tipo. A sua filosofia se move dentro da tradição do idealismo alemão e, mais concretamente, supõe um movimento derivado desta chamado neokantismo.
De seu enraizamento no idealismo alemão, o pensamento de Cassirer recebe um de seus traços mais típicos de estilo, o qual (e apesar de toda a atualidade de seus temas em momentos parciais) lhe dá um certo caráter não-contemporâneo: trata-se de sua forte tendência sintético-totalizante (não-analítica), que não poucas vezes conduz a uma radical imprecisão. Se, devido a este caráter mencionado, Cassirer é um "epígono" do idealismo, pelo mesmo motivo seu pensamento tem a importante propriedade, por ser anterior à cisão entre filosofia da linguagem e filosofia da consciência, de ser capaz de transitar em ambas.
2.2. Os pressupostos
2.2.1. O idealismo alemão
O idealismo alemão surge em diálogo crítico com Kant, entendendo a si próprio como o desenvolvimento sistemático consequente do criticismo. Se em Kant tínhamos, a partir da "inversão copernicana" (2ª, 1, 1.3.2), um sujeito ativo, este exercia sua atividade no transfundo de algo dado: sua espontaneidade nada mais era do que o reverso de sua passividade. O kantismo mantinha, pois, o esquema cartesiano básico da contraposição de um sujeito a um objeto como ponto de partida legítimo da reflexão e, com isso, uma série de dualismos (matéria-forma, sensibilidade-entendimento, intuição-conceito, fenômeno-coisa em si etc.). O idealismo pós-kantiano entenderá este pressuposto como ilegítimo e, mais ainda, como contraditório com um idealismo consequente. A ideia central e dominante passa a ser a da "espontaneidade" do "espírito" (Geist) que se autoconstrói. São muitas as consequências que se derivam desta mudança básica. Duas delas são de extrema importância em nosso atual contexto. Por um lado, o idealismo alemão tende a dissolver todos os dualismos kantianos, considerando-os pré-críticos e exigindo totalidade e sistema. A ideia da unidade da Razão passa a ser decisiva. Por outro lado, e dentro do delineamento mencionado, a ciência, ao invés de ser o ponto de partida da reflexão, deve mostrar-se como momento de um processo que a transcende. A aspiração totalizadora acaba por levar a filosofia a um conflito com a ciência, que segue seu caminho sem importar-se com o que a filosofia tem a dizer a seu respeito. Em seu desenvolvimento autônomo, a ciência obtém êxitos inegáveis, e não só resiste a ser submetida à filosofia, como também exige uma cosmovisão oposta à do idealismo. A física funda o "materialismo" ou, de modo mais genérico, o "naturalismo".
Uma importante derivação do naturalismo será o "psicologismo". Se no idealismo o pensamento criava uma realidade e o proceder da filosofia era totalmente a priori, trata-se agora de corrigir esta "deformidade" partindo do que o pensamento "realmente" é. A consequência será uma variante do relativismo antropológico.
2.2.2. O neokantismo
É no marco da oposição entre idealismo e materialismo que devemos entender a "volta a Kant" (Zurük zu Kant). O neokantismo será concorrente tanto do idealismo como do materialismo (e de outras variantes do naturalismo). Trata- se, por um lado (contra o idealismo), de restituir à filosofia sua relação positiva com a ciência; por outro, de mostrar (contra o materialismo) que a ciência não só não contradiz o idealismo em seus resultados, mas que, inclusive, o pressupõe nos princípios nos quais se sustenta. O neokantismo, ao mesmo tempo em que se opõe ao idealismo alemão, compartilha sua cosmovisão básica e sua ideia de objetividade como espontaneidade, marcando assim, ao mesmo tempo, a sua superação e o seu ressurgimento. O neokantismo é a reformulação do programa kantiano frente ao estado da ciência que sofreu mudanças. Uma vez que o desenvolvimento das matemáticas e da física no século XIX colocou a filosofia diante de um novo Faktum (que devia ser refletido como tal), os neokantianos não podiam ser simplesmente kantianos.
2.2.2.1. A fundação da Escola de Marburgo: o neokantismo de Hermann Cohen[41]
O método transcendental será o caminho seguido pelo neokantismo no intuito de efetuar uma reconciliação entre idealismo e ciência. Ele implica, como princípio, que nunca se deve refletir sobre coisas, mas sobre o conhecimento delas; seu tema não é o objeto, mas a "objetividade". O conceito de "transcendental" foi fixado na filosofia alemã por Kant. A expressão "método transcendental", no entanto, não se torna central na filosofia crítica até Cohen. O método transcendental se estabelece por contraposição tanto ao método dialético-especulativo-metafísico (hegeliano) quanto ao psicológico. Trata-se de partir da ciência como um Faktum, ou seja, como algo "dado" e, por uma reflexão explicitadora, elevar-se ao estabelecimento de suas condições lógicas de possibilidade. O decisivo é que "a" ciência, historicamente plasmada nos "livros de física", nada mais é do que um conjunto de enunciados de significado puramente ideal. A "teoria do conhecimento" (Erkenntnistheorie) moderna, que analisa o conhecimento como um estado particular de consciência e que, com isso, parte da ideia de experiência como "vivência" (Erlebnis), deve ser substituída por uma "crítica do conhecimento" (Erkenntniskritik), que o considera unicamente em seu sentido objetivo, como uma classe de proposições cujo sistema chamamos de "experiência científica". A Erkennistkritik acaba por desenvolver uma epistemologia sem sujeito. O caráter a priori de certos princípios só significa que algo, sendo pressuposto lógico da experiência, não pode, justamente por isso, ser fundado nela. O a priori é propriamente "ideal" e, neste sentido, a "idealidade" é o sustento de toda "objetividade" (que é, por sua vez, o único sentido inteligível no qual se pode formular o problema do "real").
O "método transcendental" jamais pretendeu ser um "argumento transcendental" (isto é, um argumento decisivo para derrotar o ceticismo). Argumentos transcendentais nunca foram a especialidade dos neokantianos, já que eles não tiveram o ceticismo, senão o materialismo como inimigo principal; seu adversário não um partido que negue a possibilidade da ciência, mas um partido com o qual eles compartilham a confiança nela. Segue-se que o objetivo primário não será mostrar a possibilidade da verdade, e sim que a verdade do conhecimento sobre o "real" supõe um elemento "ideal" (a priori). A atenção a este fato nos previne de uma crítica ao neokantismo que é sumamente estendida, mas que nem por isso é menos falsa. É comum dizer que o neokantismo acaba por pressupor o que deseja provar. Esta afirmação surge quando não se compreende o problema que o neokantismo se coloca e, sem mais, se o identifica com o kantiano. Porém, o problema é diferente. O que está basicamente em discussão não é se a ciência é possível ou não, mas se ela refuta ou não o idealismo. Neste contexto argumentativo, a estratégia neokantiana é legítima. A espontaneidade do "espírito" (Geist), ou seja, a presença de um elemento "ideal", tem que ser provada (e isto contra o materialismo) na própria ciência. A tarefa não é estabelecer certas verdades por si mesmas, mas unicamente como condições necessárias da possibilidade da experiência, isto é, a fixação de princípios que, por um lado, não podem ser fundados na experiência e, por outro, não obstante, são supostos necessários da sua possibilidade.
Paradoxalmente, por regra geral vincula-se o neokantismo às mudanças acontecidas na ciência dos séculos XIX e XX, somente para dar conta de sua dissolução (que seria provocada pela insustentabilidade da crença em princípios a priori diante das "revoluções" experimentadas na física e nas matemáticas). É certo que o surgimento das geometrias não-euclidianas, da teoria da relatividade e da mecânica quântica tornou temerário tentar fixar os princípios a priori absolutos e eternos da ciência; é falso que fosse este o objetivo primário do neokantismo.
A epistemologia marburguesa toma seu ponto de partida em Cohen, que concentra sua reflexão na teoria do infinitesimal. Radicalizando uma tendência já presente em Kant, Cohen nunca concebeu a matemática como ciência "formal", mas em sua relação e orientação à física. A matemática é "método", ou seja, não propriamente uma teoria sobre certos objetos, mas um instrumento de objetivação dos fenômenos. A doutrina coheniana do infinitesimal não está interessada neste como objeto puramente matemático, e sim em sua aplicação à física. Sua tese principal é de natureza eminentemente epistemológica e se inscreve no movimento idealista. O objeto da física é o produto não da percepção, mas da "concepção", não o resultado de um mero recepcionar algo dado, e sim de uma atividade construtiva e espontânea do pensamento. A prova de tal tese toma a forma de estabelecer uma linha de continuidade entre o objeto das matemáticas e o da física, sendo o caminho para isso assimilar a qualidade ou magnitude intensiva ao infinitesimal.
2.2.2.2. O desenvolvimento do neokantismo marburguês: Paul Natorp
Três mudanças decisivas são introduzidas por Natorp com respeito a Cohen na escola de Marburgo:
1. Se, por meio do processo descrito, a epistemologia coheniana tende a eliminar a consciência da consideração epistemológica, a tarefa de Natorp será reintroduzir a temática da subjetividade no seio da filosofia crítica; ele o fará, no entanto, de forma tal que, respeitando o princípio transcendental, não tende a promover um retorno ao psicologismo nem ao dualismo insuperável da metafísica. A forma de cumprir esta dupla exigência será dissolver a oposição absoluta entre sujeito-objeto na oposição relativa entre "subjetivo" e "objetivo", polos que nada mais são do que direções contrárias de um processo único, pontos de vista divergentes sobre um mesmo fenômeno. A dualidade sujeito-objeto torna-se agora a dualidade subjetivação-objetivação. O proceder da psicologia apenas pode ser "reconstrutivo", isto é, não há acesso a uma consciência imediata como tal, e sim "reconstrução" da consciência produtora a partir de seus produtos, "subjetivação" a partir do "objetivado", e isso sempre de forma gradual e contínua. Com Natorp o objeto vira processo de "objetivação"; o sujeito, simples correlato desse processo.
2. Ao mesmo ponto, como veremos, conduz a tese natorpiana de que o Faktum da ciência tornou-se um Fieri, o fato, um fazer-se. O verdadeiro dado a ser refletido pelo método transcendental não é um saber fixo e definitivo, mas o devir da ciência. A história da ciência mostra uma tendência a eliminar a "intuição" ou, dito de forma mais simples (e menos exata), a distanciar-se cada vez mais da visão cotidiana do mundo. Esta situação obriga Natorp a estabelecer a filosofia da matemática e da física neokantianas sobre novas bases. O objetivo último segue sendo o mostrar a continuidade entre matemática e física e, deste modo, a "idealidade" dos fundamentos desta última. O conceito de "relação", entretanto, substitui o de infinitesimal como momento-chave da epistemologia marburguesa. O ponto de partida é a poderosa generalização experimentada pelos conceitos de número e espaço através do surgimento de novos sistemas numéricos e novas geometrias. A consequência deste processo será que a matemática adquira uma forma estritamente "lógica" que, prescindindo da intuição, passe a basear-se unicamente no "pensamento". A física, por sua vez, vinculada essencial- mente às matemáticas, segue a mesma tendência.
3. Aplicar o método transcendental à psicologia, enquanto conduz a uma análise regressiva do próprio processo de objetivação, muda o princípio de que somente temos acesso ao objeto por meio da objetividade, pois aqui o objeto é ele mesmo o processo de objetivação e suas formas. Isto terá consequências decisivas na formulação do problema das "ciências do espírito" (Geisteswissenchaften). Não só a linguística, como também a linguagem tornam-se objeto de análise transcendental.
Em sua versão natorpiana, o processo de objetivação tem um caráter linear e unidirecional. Suas diferentes formas e modos ordenam-se em uma sequência única de momentos sucessivos e não-coexistentes, no ápice da qual se encontra a física. Assim, apesar do "pluralismo" que introduz Natorp com a sua nova perspectiva transcendental, o monismo hierárquico, próprio do cientificismo fisicalista marburguês, segue mantendo o primado. Neste ponto Cassirer introduzirá uma modificação decisiva.
2.3. Cassirer e a filosofia das formas simbólicas
2.3.1. Introdução
Tornou-se lugar-comum entre os comentadores de Cassirer introduzir o leitor ao seu pensamento dizendo que ele "amplia" (erweitert) a teoria da ciência kantiana ou neokantiana por meio de uma "filosofia da cultura". Esta ideia, em aparência elucidadora, é porém, na realidade, superficial ao extremo. A diferença básica entre Kant, Cohen e Cassirer não se refere tão-só nem à extensão do problema nem à sua solução, mas ao seu próprio estabelecimento. O fator decisivo é que as perguntas a que os três filósofos buscam responder são diferentes, e que o são porque a situação da ciência nos três casos também difere. Não se pode compreender a evolução de Kant ao neokantismo nem, dentro do neokantismo, de Cohen a Cassirer, se não se consideram as mudanças acontecidas na própria ciência. A filosofia das formas simbólicas tem sua origem genética e sistemática na reflexão cassireriana sobre a epistemologia das matemáticas e da física.
2.3.2. A filosofia cassireriana das matemáticas e da física
O problema da objetividade científica experimenta uma mudança característica no século XIX: ele assume novas coordenadas e abandona como horizonte referencial o conceito de lei para centrar-se no conceito de teoria. Fundar a objetividade da ciência era para Kant sinônimo de fundar a objetividade da lei; para Cassirer, sinônimo de fundar a objetividade da "teoria"[42]. Sua tese básica (formulada em termos contemporâneos e não cassirerianos) será que as "entidades teóricas" não são nem elimináveis da ciência, nem redutíveis a entidades observacionais. A legitimidade das entidades teóricas se segue do fato de serem imprescindíveis para a teoria e de esta ser imprescindível para a ciência. Cassirer não está interessado só em mostrar a irrealidade dos objetos referidos pelos termos teóricos e a impossibilidade de sua realização sensível. Com essas duas teses, segundo sua opinião, não se faz outra coisa senão constatar que a ciência se serve de um certo tipo de conceitos, de "símbolos", sem por isso oferecer uma prova strictu sensu da "objetividade" deles. Sua verdadeira justificação será encontrada no projeto de uma compreensão físico-matemática da natureza, ou seja, na redução do real a uma trama de relações legais.
Como e por que chegamos a este estado de coisas? Se a epistemologia kantiana e o coheniana são uma reflexão sobre a mecânica de Newton, a cassireriana (que segue a de Natorp em seus motivos fundamentais) reflete sobre o desenvolvimento da física na segunda metade do século XIX. Na ótica de Cassirer, a novidade fundamental desta é o fracasso do programa da redução da física à mecânica, assinalado pelo surgimento da teoria do eletromagnetismo[43]. Newton foi para Kant o que Maxwell é para Cassirer. A queda do mecanicismo[44] colocou com urgência o tema da relação da ciência tanto com a "realidade" como com a intuição. A ciência não é nem a cópia de uma realidade em si, nem o ordenamento de uma intuição a priori. Os conceitos básicos da construção física do universo não admitem nem um vínculo direto com o real, nem um vínculo imediato com a intuição. A teoria cassireriana da ciência reflexiona sobre essas duas tendências da física pós-mecanicista, exercendo o conceito de "símbolo" um papel essencial nela. A ideia básica é que a ciência é conhecimento essencialmente "simbólico". No contexto em que nos encontramos, o "simbólico" se opõe ao real por um lado, e ao intuitivo por outro. Uma relação simbólica é não-ontológica; um conhecimento simbólico é não-intuitivo.
A problemática pós-mecanicista do nexo da ciência tanto com a realidade quanto com a intuição levantou a pergunta se o conhecimento que ela nos proporciona é algo relativo e, no caso-limite, meramente convencional. A crise do mecanicismo termina desencadeando um radical questionamento concernente à verdade da ciência enquanto tal. A pergunta sobre o nexo entre teoria e realidade conduziu, pois, a um questionamento acerca do vínculo entre ciência e realidade. O problema de uma justificação da teoria se transforma, em última instância, no problema da justificação da ciência como projeto de compreensão do mundo (Weltverstehen)[45]. Ao final, o que legitima propriamente o programa de uma com- preensão físico-matemática do universo?
Se a ciência é conhecimento simbólico, isto não quer dizer de modo algum que, então, fora da ciência exista um acesso não-simbólico ao real. Toda forma de apreensão do real é simbólica; não há uma via direta e não-mediada a uma realidade em si[46]. Por tal motivo, não podemos fundar a ciência comparando-a nem com a realidade em si, nem com um pretenso conhecimento dela.
Em consequência, fundamentar a ciência como modo de compreensão do mundo não pode significar, para Cassirer, outra coisa que determinar o "índice de refração particular" (Brechunsindex) a partir do qual ela ordena a multiplicidade sensível. Trata-se de fixar os caracteres próprios e específicos deste acesso ao real, na medida em que é comparado com outros e se delimita frente a eles. A única pergunta pertinente e legítima é aquela que se refere à relação imanente das diversas construções simbólicas umas com as outras. Dado que a ciência é apenas um ponto de vista sobre os fenômenos, só se pode entender o mundo que ela produz quando são fixadas as leis sob as quais se encontra este ponto de vista; porém, estas não podem ser fixadas senão enquanto se comparam os objetos que a ciência constrói com outros. Dito de outra forma: a justificação do conhecimento científico (a fundamentação de sua "objetividade") só é possível no marco de uma filosofia das formas simbólicas.
2.3.3. O problema das ciências do espírito
Tão característica para a segunda metade do século XIX quanto a queda do mecanicismo é a ruptura da concepção monista de ciência por meio do surgimento, diante das ciências da natureza (Naturwissenschaften), das ciências do espírito (Geisteswissenschaften). Num primeiro momento, Cassirer tentará aplicar sua teoria do conceito como "função" (que se dirigia originariamente à física e às matemáticas) a este novo tipo de ciência. O êxito será limitado, conduzindo, num segundo passo, a que a teoria do conceito se transforme em teoria geral da significação (allgemeine Bedeutungslehre), passando-se também aqui, como já aconteceu no caso das ciências da natureza, da crítica do conhecimento (Erkenntniskritik) à filosofia das formas simbólicas.
A evolução das ciências do espírito pôs em jogo o próprio conceito de realidade. A linguagem, o direito, a história também são "reais" (e não somente o átomo). É necessário, pois, um conceito de "mundo fenomênico" que não se reduza ao físico-matemático. Isto contém um certo paradoxo para o neokantismo: no caso das ciências do espírito, sua fundamentação "transcendental" pressupõe, ao mesmo tempo, uma fundamentação do objeto desta ciência. A teoria das ciências do espírito não é somente uma crítica do conhecimento, mas também uma teoria de objetos, pois nelas o homem é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Sua fundamentação conduz à necessidade de uma reflexão sobre a cultura. Os problemas da epistemologia das ciências humanas e da filosofia da cultura (Kulturphilosophie) terminam confluindo.
As ciências do espírito compõem-se de um conjunto heterogêneo de disciplinas. Por tal motivo, a sua teoria adquire acentos diferentes de acordo com a disciplina que, em cada autor, é tomada como mais representativa deste grupo. A reflexão cassireriana sobre as Geisteswissenschaften é, em primeira linha, uma reflexão sobre a linguagem. Três aspectos dessa temática devem ser observados:
1. Na medida em que a ciência se afasta cada vez mais do senso comum, cresce a consciência da linguagem como modo particular e específico de "construção do mundo". Assim, o afastamento crescente da ciência físico-matemática da condição de intuitividade, por um lado, e a intensificação do interesse pela linguagem, por outro, são fatores que, ainda quando em princípio independentes, confluem num mesmo ponto. A tomada de consciência da linguagem como objeto é também uma tomada de consciência da linguagem como "sujeito" da constituição do mundo.
2. O interesse pela linguagem dá uma nova visão do "espírito" (Geist), que reconhece a este, ao mesmo tempo, como espontâneo e encarnado, e que haverá de conduzir à superação do consciencialismo.
3. A virada linguística (linguistic turn) acontece em Cassirer como produto do desenvolvimento consequente de um dos fatores-chave presentes no idealismo pós- kantiano: a superação do dualismo matéria-forma, sensível-inteligível. Por isso a teoria cassireriana do significado não é triádica mas diádica, e, consequentemente, não podemos entendê-la sem mais no marco da oposição entre uma "filosofia da consciência" e uma "filosofia da linguagem".
2.3.4. A filosofia das formas simbólicas
Cassirer adota quatro estratégias diferentes para deter- minar o conceito de "forma simbólica" (symbolische Form):
1. definição explícita,
2. estabelecimento de critérios mínimos restritivos,
3. identificações implícitas deste conceito com outros equivalentes[47] e
4. determinação da tarefa, do tema e do objetivo de uma "filosofia das formas simbólicas".
2.3.4.1. O que é uma "forma simbólica"?
De acordo com a definição cassireriana explícita, por uma forma simbólica devemos entender cada energia do "espírito" (Geist) pela qual uma significação espiritual se une a um signo sensível concreto (ou a vivência sensível enquanto tal) e é apropriada por este: nós assimilamos o dado sensível originário em diferentes "formas simbólicas" enquanto lhe atribuímos diferentes significados. O conceito de "forma simbólica" é, pois, um derivado do conceito de "enformação simbólica" (symbolische Formung). A “enformação”, isto é, a "constituição" do objeto, acontece por um processo de "simbolização" na medida em que consiste em outorgar sentido a um dado sensível. Porém, não basta outorgar sentido a um dado sensível isolado para que falemos de "forma simbólica". É necessário, além disso:
1. que a atribuição mencionada se efetue em caráter estritamente universal, isto é, que todo dado sensível se deixe interpretar desta perspectiva particular;
2. que o princípio de interpretação aplicado a um caso específico possa se estender de modo sistemático, de forma tal a constituir um "mundo" que fixe o seu próprio critério do objetivo e do real;
3. que cada dado tenha várias interpretações possíveis (a pluralidade é pré-requisito necessário da existência das formas simbólicas; não pode haver uma única forma simbólica)[48]. Em suma, Cassirer entende por "forma simbólica" todo modo de compreensão de mundo, isto é, de "objetivação" dos dados sensíveis em fenômenos, que obedeça a maneiras particulares, específicas e irredutíveis de articular um "dado" e um significado.
A tese fundamental da Filosofia das formas simbólicas mais fácil de ser entendida pelo que nega do que pelo que afirma. Ela reza: a ciência não é (e muito menos concreta- mente a física newtoniana) a única forma válida de objetiva ção dos fenômenos. Dito de modo positivo:
1. existem diferentes modos de compreensão do mundo;
2. nenhum dos quais é o único válido ou verdadeiro;
3. sendo todos equivalentes ou possuindo o mesmo grau de validez; e
4. respondendo ao princípio básico da pluralidade possível de articulação sentido-sensível.
A filosofia das formas simbólicas é, pois, uma teoria da diversidade das descrições do mundo, e o pluralismo, isto é, a afirmação de uma multiplicidade de modos igualmente legítimos de descrição do mundo, sua tese principal.
Se quisermos entender a filosofia das formas simbólicas a partir de Kant, diremos que ela consiste em um idealismo pluralista. Certamente, não se trata de um pluralismo da substância (que afirme a existência de diferentes tipos de entes); tampouco de um pluralismo de estratos de ser (que eventualmente se constroem uns sobre os outros). A realidade é, como em Kant, produto da espontaneidade; porém, ao contrário deste, esta espontaneidade não consiste em "síntese", mas em atribuição de sentido, e justamente por isso ela pode exercer-se de modos diferentes. Ela não conforma o material sensível de uma maneira única, e sim de múltiplas; não dá lugar a um mundo fenomênico, e sim a vários coexistentes. A ideia fundamental de Cassirer é, portanto, que "o mesmo" (o estrato sensível primitivo) pode ser estruturado de modos diferentes, ainda que igualmente válidos ou verdadeiros.
Se a teoria das formas simbólicas supõe o idealismo e só se deixa entender em seu ponto de partida e resultados a partir dele, ela chega, não obstante, a conclusões que obrigam a dar a tal idealismo um sentido que não é fácil de conciliar com o clássico e que, sobretudo, problematiza intensamente as relações entre as ideias de subjetividade e espontaneidade. Cassirer fala ainda na linguagem conciencialista, quando é provável que tenha dado passos decisivos para dissolver o sujeito e, junto com ele, os modos tradicionais de idealismo[49].
A definição de "forma simbólica" oferecida é sem dúvida genérica. Um ponto essencial para torná-la mais precisa é o esclarecimento do conceito cassireriano de "símbolo", e do modo como este se relaciona com o conceito de "signo".
1. Acreditamos que o melhor caminho é deixar de lado todas as definições usuais (Saussure, Peirce, Morris, etc.) não tentando entender a definição do conceito cassireriano por assimilação a uma delas.
2. O verdadeiro contexto histórico-filosófico do conceito cassireriano de símbolo é a temática idealista da relação matéria-forma e da superação do dualismo.
3. Um símbolo é todo dado sensível que possua um sentido. Sendo assim, um processo de "percepção" um processo de "simbolização".
4. A tendência abarcadora se repete em ambos os lados dos elementos da definição. O que devemos entender por "sentido" (Sinn, Bedeutung, Bedeutsamkeit)? Certamente muitas coisas, entre elas todo tipo de "forma", de "momento não-sensível" fundido ao dado, incluindo representações de objetos, conceitos, "idealidades", etc.
5. A ideia do "dado sensível" (sinnliche Daten, Empfindungen, Eindrücke), por sua vez, não deve ser tomada de modo menos abrangente. No caso-limite, o dado sensível deve ser entendido como "vivência", como pro- cesso de natureza "privada"; no entanto, ele pode também, no outro extremo, apontar para um significante convencional e eminentemente público como, por exemplo, o som "cachorro".
6. O símbolo não é para Cassirer o "depositário" ou "substrato" do sentido, não é o mero momento físico, mas já a unidade de significação e substrato.
7. "Símbolos", em sentido cassireriano, certamente não são um tipo de signos, ainda quando o inverso não valha, pois signos são para nosso autor momentos de um tipo de símbolos. Com respeito a este modo de estabelecer a relação signo-símbolo, duas observações são imprescindíveis:
a. Os signos, entendidos não como unidades de significante e significado, mas como substratos sensíveis intersubjetivamente acessíveis, são convencionais. Os símbolos não são somente convencionais.
b. O signo é simplesmente um caso particular de simbolização, mas a função de simbolização não se limita nem ao uso nem à produção de signos.
8. O símbolo cassireriano não representa em função de uma correspondência analógica de nenhum tipo.
2.3.4.2. A multiplicidade de interpretações possíveis da filosofia das formas simbólicas
Tantas dificuldades quanto as que se apresentam na determinação dos conceitos de "símbolo" e "forma simbólica" existem para fixar o problema, o tema e a tese principal da filosofia das formas simbólicas. Na realidade, é inegável que coexistem em Cassirer motivações e interesses heterogêneos e que eles recebem acentos diversos segundo o contexto. Há três interpretações possíveis da filosofia das formas simbólicas, cada uma das quais é unitária e completa.
1. Podemos entender por "formas simbólicas", tal como fizemos no parágrafo anterior, modos de compreensão ou conhecimento do mundo e estabelecer como tese central a afirmação de uma pluralidade deles, igualmente objetivos ou verdadeiros.
2. Podemos entender por "formas simbólicas", por outro lado, "sistemas de signos"[50] e, em tal caso, colocar em primeiro plano a tese de que toda relação do homem com o mundo é mediada por eles.
3. Podemos, por fim, entender as "formas simbólicas" como tipos paradigmáticos de manifestações culturais, concebendo, consequentemente, a filosofia das formas simbólicas como filosofia da cultura. Esta, por sua vez, pode conter diversas teses centrais, apontando assim para três direções diferentes:
a. para uma filosofia "idealista" da cultura cujo conceito-chave é o da espontaneidade do espírito, e que se opõe a uma concepção "naturalista" de mesmo objeto;
b. para mostrar a unidade subjacente à cultura na diversidade de manifestações desta;
c. para resolver as "antinomias da cultura", isto é, evitar a pretensão de exclusividade ou o absolutismo inerente a cada forma cultural, evidenciando o direito relativo a cada uma delas;
d. ou, finalmente, para uma filosofia semiótica da cultura (que privilegia o acesso ao tema por meio das noções de significante e significado)[51].
Por sua importância e complexidade, convém deter-se na relação entre as primeiras leituras. Observe-se que os dois conceitos de "forma simbólica" referidos (modo de com- preensão do mundo e sistema de signos) respondem a duas teses que, em princípio, são logicamente independentes e que, desde um ponto de vista contemporâneo, se deixam subsumir em diferentes tradições, a saber, a analítica e a fenomenológico-hermenêutica (ou a filosofia da linguagem e a filosofia da consciência). Ambas, não obstante, estão presentes de modo explícito no texto do autor estudado. O problema é integrá-las de forma harmoniosa não eliminando simplesmente uma delas. Porém, em geral, se faz o contrário: se pressiona o pensamento de Cassirer dentro de uma alternativa imposta, sem observar que, ainda quando existam os melhores motivos sistemáticos para estabelecer uma oposição excludente entre um motivo linguístico e um consciencialista, esta não existe para o próprio Cassirer. Seu espírito, contrário a todo dualismo, é contrário também a este. Há claros elementos que indicam esta visão.
Quem vê no autor da Filosofia das formas simbólicas um precursor do linguistic turn deve com razão considerar que o resultado final é uma inconsequência, pois, obviamente, também existem elementos que apontam na direção oposta, como, por exemplo, a tese da pregnância simbólica (symbolische Prägnanz). Com esta tese, Cassirer luta ao mesmo tempo em duas frentes, contra o sensualismo e contra o intelectualismo (o qual, ainda quando critica o anterior, em certo sentido o pressupõe). A tese da pregnância simbólica nega a existência de dados sensíveis puros. Estes não são uma evidência fenomenológica, mas uma ficção abstrativa. Já no nível perceptivo mais elementar, jamais encontramos uma mera "impressão" (Eindruck), mas uma dualidade de representante e representado, elemento sensível e significação. A tese da pregnância simbólica também se opõe, assim mesmo, intelectualismo kantiano segundo o qual a espontaneidade seria unicamente obra do entendimento. A intuição sensível não proporciona uma pura multiplicidade: nela já estão presentes modos de ordenação especificamente sensíveis. A pregnância simbólica é considerada por Cassirer o fator transcendental originário: ela é a condição de possibilidade de toda mediação por símbolos e, inclusive, da constituição de sistemas de signos artificiais. Com isto, parece que uma estrutura de consciência ("privada") é posta na base do sistema. Ora, a pregnância simbólica não é propriamente um fenômeno de consciência, senão uma condição de possibilidade da própria consciência. Não um sujeito, muito menos ainda uma consciência pura, e sim o simples (impessoal) "há sentido" constitui o irredutível e inderivável "fenômeno originário" (Urphänomen).
Vejamos agora a perspectiva dos signos. É uma explícita tese de Cassirer que toda relação do homem com o mundo é mediada por signos. Contudo, se irreflexivamente identificamos signos com signos linguísticos, esta tese pode ser mal interpretada em sua originalidade. Existe de fato uma linha interpretativa que quer conceder à linguagem um lugar privilegiado no pensamento cassireriano, fazendo dela a condição de possibilidade de todas as formas simbólicas. Entretanto, para Cassirer, a linguagem não representa de modo algum um sistema de signos privilegiados, mas unicamente um entre outros. Quais são esses outros e em que medida constituem propriamente "sistemas" em sentido próprio não é, contudo, uma questão fácil de ser respondi- da. Se forma simbólica e sistema de signos fossem correlatos necessários, seria uma consequência inevitável que onde não há um sistema de signos tampouco pode haver uma forma simbólica. Se isto é assim, então qual é o sistema de signos, por exemplo, do mito, da religião ou da técnica? Esta consequência parece ser mais do que toda a flexibilidade sistemática de Cassirer pode suportar.
A tese da necessária mediação sígnica (Zeichenvermittlung) de toda referência do espírito a algo contém, em realidade, várias afirmações diversas, as quais enumeramos rapidamente[52]:
1. não podemos nos referir a objetos sem signos;
2. a constituição do objeto depende da linguagem;
3. o signo linguístico é fator determinante da constituição do objeto;
4. objetivação, ou seja, constituição de objetos em sentido pleno como entidades reidentificáveis, é uma produção da linguagem;
5. não se pode ordenar o mundo sem linguagem;
6. não existe pensamento sem linguagem;
7. o pensamento é dependente da linguagem;
8. a estrutura do pensamento é dependente da estrutura da linguagem;
9. a percepção depende da linguagem.
2.3.5. Estudo comparado de algumas formas simbólicas
Não existe clareza absoluta em Cassirer sobre quais são, em definitivo, as formas simbólicas e, eventualmente, qual o sistema de relações entre elas. Sua filosofia carece de uma análise do princípio único a partir do qual são derivadas as diversas formas simbólicas. O que mais se aproxima dele é o estabelecimento de três funções simbólicas (symbolische Funktionen) básicas: expressão (Ausdruck), representação (Darstellung) e significado puro (reine Bedeutung).
Por "função simbólica" devemos entender modos característicos e irredutíveis de inter-relação entre sentido e dado sensível (ou entre representante e representado). O específico da "expressão" é o fato de não diferenciar o signo do significado, o dado sensível de seu sentido. É este diferenciar o que caracteriza a "representação". O "significado puro", finalmente, é o produto da autoconsciência da plena espontaneidade definitória do "espírito" (Geist), que não só distingue o elemento sensível do seu sentido, mas, além disso, implica a impossibilidade de reconduzir um a outro.
Como devemos agora usar esta classificação? Com a flexibilidade exigida por Cassirer, fazendo das funções simbólicas apenas uma estrutura orientadora e não princípios de subordinação biunívoca rigorosa. O que diferencia, por exemplo, mito e linguagem não é o fato de que em um esteja presente só o fenômeno da expressão e não o da representação, e sim que um se orienta mais a um do que a outro.
Na Filosofia das formas simbólicas, Cassirer trata basicamente de três formas simbólicas: mito, linguagem e ciência, que são correlacionadas a expressão, representação e significado puro[53].
1. No mundo do mito não há distinção sujeito-objeto; há uma identidade primitiva, uma corrente indivisa de vida que engloba ao mesmo tempo o eu e o não- eu. O animismo, para muitos o caráter definidor do mito, é falsamente explicado como projeção, porque se parte de uma divisão que não existe.
2. O mundo da linguagem é o mundo da vida cotidiana orientado de modo prioritário por interesses pragmáticos. Sua estrutura fundamental é a estrutura objeto- propriedade, que atua como ordenadora e reguladora de nossas ações. Ele tem um caráter essencialmente sensível-intuitivo, definindo o objeto da percepção.
3. As matemáticas e a física (que é, na realidade, a continuação dos motivos da anterior) reduzem a multiplicidade sensível a um sistema de relações; real, objetivo, é para elas aquilo que se dissolve num tal sistema. Com respeito à matemática, Cassirer é estruturalista; no que tange à física, holista. Os sistemas de relações podem ser correlacionados com a percepção, porém não são suscetíveis de conduzir a intuições correspondentes. A visão físico-matemática do mundo não é intuitiva. A relação sacrifica a intuição. O objetivo da física não é dar uma "imagem" (Bild) do universo, mas reduzir a multiplicidade sensível a um todo unitário de funções.
Em todas as formas simbólicas estão presentes as mesmas categorias, entretanto com um índice diferente dado pela função simbólica fundamental que as define. É isto o que Cassirer chama de "teoria modal das categorias". Assim, por exemplo, a causalidade não é característica exclusiva da ciência, estando também presente no mito e na linguagem, ainda que de modos específicos, a saber, na ciência como função de subordinação inteligível, na linguagem como sucessão de eventos no tempo intuitivo, no mito como simpatias[54] que funcionam por semelhanças e contiguidades espaciais. Não é, portanto, a presença ou ausência da causalidade enquanto tal o que fixa a linha divisória entre mito, linguagem e ciência, mas o tipo de causalidade. O mesmo vale para espaço, tempo e número, consideradas por Cassirer as categorias fundamentais.
2.4. A modo de conclusão: o pluralismo e o problema da objetividade
A filosofia das formas simbólicas contém quatro teses diferenciáveis:
1. Não há acesso imediato ou direto ao real em si; toda forma de contato com o real supõe uma mediação.
2. Esta mediação é, em última instância, de natureza simbólica.
3. O seu modo pode variar, daí a existência de diferentes formas simbólicas.
4. Justamente, já que nenhuma delas é cópia de uma realidade em si (mas sempre um produto da mediação), todas as formas simbólicas possuem o mesmo grau de validez.
A tese 4 está longe de ser óbvia. Tão fundamental quanto ela é no esquema conceitual cassireriano, tão frágil é seu fundamento.
Claro está que o pluralismo que Cassirer defende supõe o "idealismo". Se o conhecimento fosse compreendido realisticamente como cópia de uma realidade "em-si", só poderia haver uma única descrição válida do mundo. Entretanto, se o pluralismo pressupõe o idealismo, isto não implica de modo algum que o idealismo só pode ser pluralista. Da premissa de que não existe mundo "em-si" segue apenas a possibilidade (e não a necessidade) da co-existência de vários "mundos". Cassirer, não obstante, sempre preocupado em salientar seu vínculo com Kant, em nenhum momento enfatiza esta diferença.
Admitido que todas as formas simbólicas têm o mesmo grau de validez, no sentido puramente negativo de nenhuma delas ser cópia do em-si, podemos dizer também que toda forma simbólica tem o mesmo grau de "objetividade", se por "objetividade" (como é de esperar em uma "filosofia transcendental") entendemos intersubjetividade? Já observamos que a ideia de múltiplos modos de objetivação se encontrava presente em Natorp, que as ordenava em uma sequência linear. Vimos, assim mesmo, que Cassirer o critica neste ponto, transformando a sequência linear em coexistência. No entanto, em tal crítica, se existe ganho, há também a introdução de um problema que em Natorp não existia. Neste não só está claro que toda objetivação é igualmente mediada, mas também que seus diferentes modos (como, por exemplo, o mito ou a ciência) têm graus de "objetivida- de" (ou seja, de intersubjetividade) diversos, ainda que todas sejam igualmente "objetivações" (ou seja, modos de delimitar o sujeito do objeto). Contudo, em que medida, fora do puramente negativo já mencionado, tem sentido afirmar, como Cassirer o faz, que a física possui a mesma "objetividade" que o mito? Podemos aceitar que nem o mito nem a física sejam uma cópia do real "em-si". Todavia, não há aqui nenhuma diferença? A maior carência sistemática de uma filosofia das formas simbólicas (e deixando de lado suas inumeráveis outras obscuridades) é que, com o abandono do evolucionismo natorpiano, passa-se a adotar um conceito de "objetividade" que não está nem legitimado nem esclarecido pelo próprio sistema. Teria sido necessário, portanto, que, junto com sua "transformação" da filosofia transcendental, Cassirer nos tivesse oferecido uma "metateoria da objetividade enquanto intersubjetividade”. Concedamos que não existe uma mediação simbólica solipsística; não é menos certo, no entanto, que nem toda mediação simbólica supõe universalidade, que mesmo aquela que aspira a esta nem sempre a realiza e que entre ambos os extremos parece ser possível um contínuo.
3.1. Introdução
Que devemos entender por "filosofia contemporânea?" Com respeito a esta temática, existe uma indeterminação extrema. Sendo absolutamente impossível para o leigo, é igualmente difícil para o estudioso, formar uma ideia apropriada do pensamento atual em seu conjunto. Se buscamos ajuda comparando obras especializadas a respeito do tema, a situação não melhora substancialmente: autores que em uma obra são considerados fundamentais nem sequer aparecem em outra. Na origem desta indeterminação encontra-se um fenômeno digno de nota: "a" filosofia contemporânea parece não possuir unidade e reunir dois desenvolvimentos independentes e heterogêneos.
Desde as primeiras décadas do século XX, a filosofia se desenvolveu no marco de uma divisão esquizoide. "Analíticos", por um lado, e "fenomenólogos-hermeneutas", por outro, pareceram durante muito tempo não ter nada que aprender uns dos outros e, o que é ainda pior, nem sequer ter do que conversar. Se a filosofia sempre possuiu escolas e estas chegaram a um alto nível de rivalidade, a simples indiferença no marco de um convívio desconfiado parece um fenômeno tipicamente contemporâneo. As duas ou três últimas décadas anunciam uma reversão desta tendência, mesmo que ela ainda esteja longe de ser recepcionada em círculos mais amplos.
O esclarecimento do conceito de "filosofia contemporânea" que aqui se propõe se efetua a partir da consideração da história da filosofia; para tanto, fica claro que esta última deve ser pensada em uma perspectiva filosófica. Podemos usar diferentes critérios para sequenciar a história da filosofia. O mais comum é fazê-lo correlacionando-a com os períodos históricos, políticos e culturais. Assim, obtemos uma ordenação em filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea. Este e outros critérios têm em comum o fato de serem puramente extrínsecos, periodizando a história da filosofia com base em um princípio que não é de natureza filosófica. O que nos interessa aqui é, contudo, buscar ordenar o desenvolvimento filosófico por critérios que preencham as seguintes condições:
1. que sejam, em primeiro lugar, intra-sistemáticos e propriamente filosóficos e, além disso,
2. que sejam evolutivos ou dinâmicos, isto é, que permitam compreender não apenas a diferença essencial entre o pensamento de diferentes períodos, mas também o princípio interno de passagem de um a outro.
Para fixar tais critérios, parto do convencimento (já exposto na primeira parte) de que é essencial no estudo filosófico a determinação dos problemas, existindo no devir da filosofia um avanço que é determinado pela dinâmica interna deles.
Permitam-me iniciar com um esquema:
3.2. Período metafísico
Em um primeiro momento, o interesse do pensamento está dirigido ao "mundo", quer este mundo inclua ou não o próprio homem. Os filósofos se perguntam o que há e o que não há, ou que tipo de coisas (substâncias) existem e a partir das quais o mundo se compõe. A disciplina fundamental da filosofia neste período é a metafísica e o conceito básico é o de "Ser". Nomes representativos deste momento são Platão, Aristóteles, Sto. Tomás etc.
No período metafísico, a filosofia é um discurso sobre objetos. Uma forma refinada desta ideia, mas não a única possível, é que se trata de um discurso sobre objetos de um tipo particular (por exemplo, suprassensíveis ou não-empíricos).
Ora, a filosofia, desde sempre, se perguntou não apenas o que é, mas também o que deve ser, não apenas pelos princípios do ser, mas também da ação ou, mais concretamente, quais são os critérios para diferenciar quando ajo bem e quando ajo mal. A disciplina filosófica que se ocupa desta questão é denominada ética. No período metafísico a fundamentação da ética está imbricada com uma metafísica. Aquilo que devo ou não devo fazer depende daquilo que é (por exemplo, o como devo me comportar estabelecido por Deus).
3.3. Período transcendental
No período epistemológico[55], em vez de perguntar pelo "Ser", a filosofia passa a se perguntar pelo conhecimento. A epistemologia torna-se a disciplina fundamental e a verdade o conceito-chave. Esta virada, característica da modernidade, começa com Descartes e culmina com Kant, com quem adquire sua forma mais pura. Se em Descartes, em última instância, e apesar de toda a "subjetividade", Deus desempenhava um papel essencial na fundamentação do conhecimento, com Kant este já não será fundamentado em nenhuma instância externa, mas em si próprio.
No período epistemológico o discurso dos filósofos deixa de ser um discurso sobre objetos, passando a ser um discurso sobre o conhecimento dos objetos. A pergunta já não é mais com respeito ao que há, mas ao saber do que há: se posso conhecer o que há, dentro de que limites, de que forma, sob quais fundamentos (a experiência ou uma fonte não-empírica, a razão, a intuição pura, etc.), o que é a verdade etc.?
No entanto, por que se passou do primeiro ao segundo período? Trata-se, simplesmente, de uma substituição fortuita de temas, de uma mudança arbitrária de interesses, ou existe um princípio interno na evolução dos próprios problemas que conduz de um a outro? Em minha opinião, sem dúvida, ocorre o último caso. "Antes" de nos perguntarmos pelo que há, devemos nos perguntar se podemos conhecer o que há[56]. Colocar a pergunta pelo que há pressupõe que se pode conhecê-lo. Ora, à medida que este pressuposto se efetiva, surgem as dificuldades: eventualmente, a contradição de teorias possíveis, a falta de argumentos satisfatórios, a necessidade de critérios de decisão. Em suma, a pergunta epistemológica é mais fundamental que a metafísica, já que esta supõe logicamente aquela.
A mudança que se produz, no nível teórico, da metafísica à epistemologia tem um paralelo na mudança que se produz, no nível prático, na relação entre metafísica e ética. Com respeito ao dever-ser, acontece agora algo similar àquilo que já vimos com respeito ao conhecimento: a ética deixa de fundar-se em um princípio externo e passa a fundar-se na Razão.
Se tomarmos conjuntamente o que ocorreu na teoria do conhecimento e na ética diremos que a filosofia, em sua passagem da "heteronomia à autonomia", torna-se teoria da validez (Geltungstheorie), seja s esta validez a da verdade na teoria do conhecimento ou a do bem na ética. A filosofia já não é mais um discurso sobre objetos, como no período anterior, mas sobre a "objetividade", ou seja, sobre as condições de possibilidade do "objeto". Por "objetividade" (ou "validez") entenderemos, basicamente, "intersubjetividade", não no sentido de uma mera comunidade de sujeitos fáticos quaisquer mas como caso-limite, de sujeitos racionais possíveis. Validez quer dizer válido universalmente. Um discurso que não fala acerca de objetos, mas das condições de possibilidade da objetividade é o que em filosofia costuma ser qualificado de "transcendental" (2ª, 1, 1.4). Um discurso transcendental pro cura a fundamentação das aspirações de validez universal, seja no conhecimento, seja na ética; seja com respeito à verdade do que é, seja com respeito à legitimidade do que deve ser.
3.4. A filosofia contemporânea
Já vimos que, na terceira etapa, é característica a cisão da filosofia em duas tradições (analítica e fenomenológico-hermenêutica). Por tal motivo, examinaremos cada uma delas em separado para, posteriormente, passar a considerar sua relação.
3.4.1. A filosofia analítica
Iniciemos por estabelecer uma diferença básica entre o "sentido"[57] e o "valor de verdade" de um enunciado. Entendemos por enunciado uma formulação linguística efetiva, oral ou escrita, que pode ser declarada verdadeira ou falsa como, por exemplo: "O carro de João é verde". Verdadeiro e falso são o que chamamos "valores de verdade". Cada enunciado possui um dos dois valores de verdade, ou é verdadeiro, ou é falso. O sentido do enunciado é o que este significa, ou o que "diz".
É um mérito histórico de Frege ter fixado de modo preciso a linha divisória entre as noções de sentido e valor de verdade, pensando consequentemente suas implicações. Tão simples e habitual como esta distinção nos possa parecer hoje, tão trabalhoso foi seu estabelecimento e tão fecundas são suas derivações. Ela não seria possível sem a tomada de consciência da especificidade do significado e, de modo correlato, por um lado, da crítica do psicologismo, por outro, da elaboração do conceito de objetividade não real, do qual o significado é uma instância particular. Sem ela, não poderia haver nem "semantic turn", nem "filosofia analítica".
Estabelecer a delimitação do sentido em relação ao valor de verdade é uma condição negativa necessária do surgimento do "semantic turn"; sem embargo, ela não é suficiente para dar conta dele. Se nossa hipótese geral é correta, a etapa três não segue meramente a etapa dois, mas deriva dela por uma evolução interna. Pois bem, por que passamos do período epistemológico ao linguístico? A esta pergunta podemos oferecer três respostas com um grau diferente de precisão e de acessibilidade intuitiva:
1. Em uma versão mais simples, a resposta principia por observar que somos seres eminentemente linguísticos, isto é, que usamos linguagem e que este uso é condição do produzir e transmitir conhecimentos. O fato indicado é tão óbvio que parece incrível que os filósofos puderam ignorar sua importância durante séculos, colocando suas teorias no marco de pressupostos que implicam que os sujeitos epistemológicos não falam ou só o fazem de modo contingente.
2. Se o fato apontado é extremamente importante, ele não é, contudo, uma questão de necessidade conceitual; mas é justamente esta necessidade que está aqui em jogo. O sentido de um enunciado é independente de seu valor de verdade e não se altera por este; o valor de verdade de um enunciado, pelo contrário, não é independente de seu sentido. Que isto seja assim é óbvio se levamos em conta o fato de que, para que um enunciado tenha valor de verdade, é necessário:
a. que tenha propriamente um sentido,
b. que tenha um sentido e apenas um (ou seja, não vários)
c. e que este sentido seja preciso (ou seja definido, não vago).
O sentido do enunciado é, pois, condição de possibilidade do valor de verdade e, portanto, o estabelecimento daquele antecede logicamente à fixação deste. Ao problema moderno do conhecimento se antepõe agora outro mais fundamental, já que logicamente anterior, o problema da significação ou semântica[58].
3. Podemos estabelecer uma linha de exposição mais acessível ao leitor não-especialista se, em vez de nos movermos dentro da perspectiva semântico-objetiva (que é aquela originária da filosofia analítica), introduzirmos uma "subjetiva"[59]. É uma experiência corriqueira o fato de que é possível "entender" um enunciado sem saber seu valor de verdade. Destarte, por exemplo, posso entender o que quer dizer João quando afirma que seu novo carro é branco, mesmo que nunca o tenha visto e não saiba se ele é realmente branco ou não. Contudo, a inversa não é válida: eu não posso saber qual é o valor de verdade de um enunciado, se não entendo seu sentido. Conhecer é atribuir valores de verdade; entender é captar sentidos. Entender um enunciado é uma condição necessária de todo conhecimento daquilo que ele diz.
Em suma, do que dissemos até agora, fica claro que o ponto central que marca a passagem do período epistemológico ao semântico é a antecedência lógica (e só por derivação “psicológica") da problemática do significado relativa àquela do valor de verdade. Consequência disto é que a semântica ocupa agora o lugar central que antes correspondia à teoria do conhecimento. Ela é a disciplina filosófica básica que, no período linguístico, substitui a epistemologia e a metafísica. Os problemas principais a ser solucionados por ela são:
a. Em que consiste a significação de um enunciado?
b. Qual é o vínculo entre a significação de um enunciado como um todo e das partes que o compõem?
c. Quando um enunciado tem significação e quando não tem? Qual é, em geral, a linha demarcatória entre sentido e sem sentido?
d. O que vincula a significação do enunciado à realidade? Qual é a relação entre a significação do enunciado e o mundo?
Para finalizar, quatro considerações:
1. Ainda que o dito seja, em princípio, certo, um ponto exige uma importante precisão. A filosofia analítica não é, em primeira linha, a fixação de um novo tema ou objeto do filosofar, mas basicamente de um método: a análise lógica da linguagem. A filosofia já não um discurso nem sobre objetos, nem sobre o nosso conhecimento dos mesmos, mas sobre a linguagem na qual falamos deles. Ideia comum aos pensadores analíticos é dissolver linguisticamente pretensos problemas filosóficos, evidenciando que carecem de sentido"[60].
2. Em certas variantes radicais do "analytic turn" a filosofia deixa de ser concebida como uma "teoria", como um discurso sobre tema específico ou como um tipo particular de saber (inclusive sobre o significado) para passar a ser uma atividade "terapêutica": a atividade de esclarecimento do sentido.
3. Estabelecer a linha demarcatória entre sentido e não-sentido torna-se a tarefa central.
4. O leitor terá observado uma certa oscilação de nossa parte entre os conceitos de sentido e linguagem. Tal impressão não é infundada. Ela se deve ao fato de que o nexo entre ambos é capital na filosofia analítica, tornando-se claro a partir de Frege que todo sentido é proposicional (ou proposicionalizável) e que só temos acesso a ele através do substrato sensível do signo linguístico.
3.4.2. Fenomenologia-hermenêutica
Entre fenomenologia e hermenêutica se desenvolve um complexo jogo de influências. O interesse recíproco de Husserl e Dilthey, por um lado, e, por outro, a explícita reformulação da fenomenologia como hermenêutica em Heidegger são claros elementos em tal sentido. Por conseguinte, o vínculo que existe entre fenomenologia e hermenêutica é diferenciado em relação àquele que existe entre elas e a filosofia analítica, já que, em um caso, está ausente a ruptura que se constata no outro. Desde tal ponto de vista, se legitimaria outorgar à hermenêutica e à fenomenologia um tratamento comum, contrapondo-as em conjunto à filosofia analítica. Todavia, hermenêutica e fenomenologia não são o mesmo, e a pergunta por seus vínculos, sobretudo desde o ponto de vista metódico, é uma questão complexa que, sem desconhecer confluências, impede a simples assimilação (seja esta unilateral ou recíproca). O fato inegável de que fenomenologia e hermenêutica têm origens históricas independentes não é pura contingência. Se concedemos o anterior é claro que, se elas precisam ser entendidas como momentos da mudança de paradigma da teoria do conheci- mento à teoria da significação, o devem ser por si mesmas e não por seu vínculo à outra.
3.4.2.1. Hermenêutica
Do mesmo modo que Frege é decisivo para a virada linguística, Dilthey o é para a hermenêutica. Seu programa de superação correlativa de empirismo e idealismo rompe com o monismo epistemológico, propondo a existência de dois tipos de ciências, possuidoras de objetivos e métodos diferentes. As ciências naturais (Naturwissenschaften) buscam estabelecer leis e seu objetivo é reduzir umas leis às outras, ou seja, explicar (Erklären); as ciências do espírito (Geisteswissenschaften), pelo contrário, buscam compreender (Verstehen). "Compreender" é partir de uma "objetivação" ou "expressão" (Ausdruck) do espírito (Geist) (pintura, romance, monumento, sinfonia, ato, personalidade histórica), para se remontar à vivência (Erlebnis) a partir da qual ela se origina e na qual se sustenta. Em sua versão original, pois, captar sentidos se assimila a uma "identificação vivencial". As consequências psicologistas de uma tal postura merecerão intensa crítica de seus contemporâneos, conduzindo Dilthey a sucessivas reformulações de sua teoria inicial que atentam crescentemente ao entendido enquanto tal. De todo modo, o que é captado não independe do captar, nem muito menos se torna uma entidade platônica auto-subsistente, sendo talvez no nexo do entender com a ideia de comunidade (Gemeinigkeit) que o conceito diltheano de compreender encontre sua formulação mais madura. Este fato não é secundário, mas responde a uma motivação essencial. A compreensão implica algo mais que uma relação puramente cognitiva com um "objeto". O sujeito torna-se "Vida" (Leben) e o objeto, "Mundo" (Welt).
No seu sentido diltheano a "Vida" não é um evento biológico nem deve ser pensada a partir de uma conceitualidade de tal tipo. Significação (Bedeutung), significatividade (Bedeutsamkeit) e contexto (Zusammenhang) são os conceitos básicos ou categorias (Lebenskategorien) a partir dos quais ela se torna inteligível. A primeira ocupa um lugar diferenciado em relação ao resto: "Vida" é o âmbito originário da significação (Bedeutung); significação, o correlato essencial da "Vida". Não há "Vida" senão ali onde há significação.
Em princípio e, diferentemente da semântica, a hermenêutica não parece ser uma superação radical da teoria do conhecimento moderna mas apenas seu complemento; sua contribuição se limitaria à proposta de um novo método científico concorrente com o físico. Em seu desenvolvimento, entretanto, ela explicita seu verdadeiro potencial. Temos que dirigir ao período hermenêutico a mesma pergunta que já dirigimos aos outros: que é o que conduz a ele? Assim como na filosofia analítica o sentido é reconhecido como condição do valor de verdade, na hermenêutica o entender torna-se condição do conhecer. Só a partir do pano de fundo de uma compreensão originária do mundo como totalidade (que não é redutível a um captar meros sentidos proposicionais), há conhecimento. O conhecimento aparece como um modo derivado de vincular-se ao mundo que não é inteligível a partir de si, mas a partir da Vida (Leben). A hermenêutica posterior a Dilthey, sobretudo em Heidegger, efetuará um significativo desenvolvimento desta ideia fundamental.
A hermenêutica, enquanto teoria da interpretação e compreensão, não só substitui a teoria do conhecimento, senão que exige um fundamento mais originário; a filosofia da Vida (Lebensphilosophie) passa a ocupar o lugar da filosofia transcendental.
Tal como se apresenta em Dilthey, a hermenêutica contém uma aspiração eminentemente metódica que a conduz a renunciar a constituir-se em "teoria". Ideia fundamental é o abandono da pretensão de qualquer "ponto arquimediano", ou seja, de qualquer absoluto a partir do qual se construa um sistema fundacional. O "começo" (Anfang) é a pura facticidade. A ideia de "fundamentação" é substituída pela ideia de "explicitação". A filosofia enquanto tal torna- se basicamente atividade de explicitação de estruturas significativas. Algo comparável, já vimos, pode acontecer na análise linguística.
3.4.2.2. Fenomenologia
Que, em algum sentido, a fenomenologia contém "também" uma "teoria da significação", pode-se conceder sem maiores dificuldades. Com efeito, significado (Bedeutung), noema, sentido (Sinn), constituição de sentido (Sinnkonstitution), doação de sentido (Sinngebung), não menos que expressão (Ausdruck) e compreensão (Verstehen), são parte essencial e não dispensável de seu repertório conceitual. Porém, isto não é suficiente para legitimar a consideração da fenomenologia como teoria do significado e, portanto, como um momento a mais na mudança de paradigma que analisamos[61].
Os elementos realmente decisivos para outorgar uma resposta afirmativa à questão que nos interessa me parecem ser os seguintes:
1. Em primeiro lugar, se trata da própria ideia de "método fenomenológico" e de seu objeto. O "método fenomenológico" não visa ao "real", o qual deve ficar "entre parênteses", senão à essência, ou seja, segundo a explícita formulação de Husserl, "unidades ideais de significação". Isto implica que a temática da "objetividade" deixa de ser referida exclusivamente à ciência do real e às aspirações de validez, para trasladar-se, não só "também", senão de modo prioritário, à significação. A partir de agora é estabelecida uma nova exigência a toda filosofia que pretenda o título de "transcendental": a fundamentação da objetividade já não pode limitar-se aos critérios resolutivos de valores de verdade (nem muito menos restringir o problema de tais critérios ao conhecimento do real). Ela deve passar, de uma forma ou de outra, pela temática da "objetividade da significação" e, em geral, das "idealidades". A fenomenologia abre à reflexão um plano que permanecia desconhecido à filosofia crítica; e que se torna possível e necessário a partir de Frege e sua distinção entre "objetividade" (Objektivität) e realidade (Wirklichkeit) através do seu conceito de "terceiro reino" (drittes Reich).
2. Todavia, a afirmação de um reino de "objetividades" nos deixará sempre com a metade da temática fenomenológica. A pergunta pelo sujeito não é uma pergunta husserliana entre outras, senão momento imprescindível do sentido originário da interrogação fenomenológica. Tarefa básica dela é dar conta da "passagem do subjetivo ao objetivo" ou da apreensão (Auffassen) do "objetivo" a partir do "subjetivo", sendo seu conceito neural, a intencionalidade (Intentionalität), momento-chave da resposta.
3. As duas perspectivas, a "objetiva" e a "subjetiva", não estão desligadas, senão que se exigem de modo recíproco. Enquanto alguns críticos insistem em sublinhar a existência de duas fases no pensamento de Husserl (a realista das Investigações lógicas e a idealista de Ideias), outros, por sua parte, tentam relativizar a tese de uma oposição irreconciliável entre elas. Porém, talvez a questão realmente fundamental não seja optar por um dos supostos antagonistas, senão evidenciar o núcleo comum das alternativas justamente enquanto diferentes. A essencialidade da perspectiva "subjetiva" é própria das duas fases, só manifestando-se em cada uma delas de forma heterogênea: como "apreensão" (Auffassen) no período realista, como "constituição" (Konstitution) no idealista. Assim mesmo, ela tampouco está presente sem a "objetiva": âmbito essencial de aplicação do método fenomenológico é justamente o vínculo sujeito-objeto. A ideia de objetividade não real é agora trasladada à própria relação do sujeito com a objetividade, sendo deste modo referida a essências e abordada a priori.
3.4.3. Uma aproximação sistemática da questão da unidade do pensamento contemporâneo na perspectiva da história da filosofia
A diversidade entre filosofia analítica e fenomenológico- hermenêutica é inegável, tanto que bem poderia questionar- se por que insistimos em situá-las em um mesmo período desde uma perspectiva que não seja a meramente histórica. Nossa resposta é simples: porque acreditamos que, não obstante todas as diferenças (que certamente não devem ser passadas por alto), há pontos de contato essenciais entre elas. Filosofia contemporânea (seja analítica, seja fenomenológico-hermenêutica) é basicamente, ou pelo menos de modo essencial, "também" "teoria da significação" (Bedeutungslehre), pois a centralidade do conceito de sentido é comum a ambas as tradições.
Indicar uma confluência não quer dizer afirmar uma identidade e, por isso, importa prestar atenção ao complexo jogo de similitudes e diversidades aqui presentes.
3.4.3.1. Sentido
O sentido em questão na reflexão analítica é aquele próprio dos enunciados linguísticos e possui caráter proposicional. Importante vantagem do sentido linguístico-pro- posicional é permitir uma tematização precisa, tanto do caso concreto quanto da conceitualidade geral necessária para pensá-lo; ele é, contudo, claro está, limitado.
O conceito hermenêutico de sentido é, sem dúvida, mais amplo. Trata-se "também" do sentido de enunciados linguísticos e estruturas proposicionais, não obstante, assim mesmo, de atos, personalidades, fatos históricos, objetos culturais de todo tipo e, em geral, de "totalidades" e "estruturas". A referida amplitude o compromete, em princípio, com uma certa imprecisão. Ora, se esta é inegável, não se pode esquecer o explícito intento de Dilthey de delimitar e articular de modo unitário os diversos modos de significação em uma teoria universal da significação, na qual o sentido lógico- proposicional representa tão-só um aspecto[62].
No caso da fenomenologia, vale em princípio algo similar ao exposto a propósito da hermenêutica. Seu próprio desenvolvimento a leva a focalizar-se em duas questões de decisiva importância, não só para ela mesma senão também para as duas tradições restantes:
1. É todo sentido suscetível de uma formulação linguística ou há sentidos que são intrinsecamente extralinguísticos?
2. É todo sentido proposicional ou, pelo menos, proposicionalizável?
Uma forma "técnica" que assume esta importante discussão (porém, não a única possível) se refere à interpretação do noema husserliano.
Entre os fatores possibilitantes do papel decisivo assumido pelo conceito de significação, ocupa um lugar de destaque a chamada polêmica em torno ao psicologismo. Chamamos psicologismo a toda teoria que, de um modo ou de outro, reduza a significação (e as "idealidades" em geral) a uma entidade psicológica, vivência (Erlebnis) ou representação (Vorstellung). Sua crítica, assim como, correlativamente, o compromisso com um certo "platonismo", é um fator-chave no surgimento tanto da semântica como da fenomenologia. No caso da hermenêutica, como já vimos, a preocupação com a temática mencionada adquire importância em seu desenvolvimento. Assim, ainda quando por vias diferentes, a discussão sobre o psicologismo termina sendo central nas três tradições.
Em princípio é válido dizer que a perspectiva analítica é "objetivista". O dado sobre o qual se deve reflexionar é a linguagem e, eventualmente, a significação linguística. A subjetividade do sujeito só é tema enquanto linguagem que tematiza a subjetividade do sujeito, mas não em linguagem objeto, como fator produtor ou condição da própria linguagem[63].
A perspectiva fenomenológica é, pelo contrário, como já indicamos, essencialmente "subjetiva". Agora, como deveria ser óbvio, mas não é, uma abordagem subjetiva não implica "psicologismo"[64], pelo contrário: se a formulação da ideia de objetividade não real é condição sine qua non para fixar o conceito de significado em sua especificidade, ela torna necessário um novo problema do sujeito, caracteristicamente diferente do moderno, no qual a questão da transcendência muda seu eixo do mundo real para o ideal-objetivo. Este problema não se coloca (nem pode colocar-se) no psicologismo (dado que ele consiste em negar a transcendência mencionada), mas torna-se inelutável como consequência de sua superação, sendo esta, portanto, suposto da temática fenomenológica da subjetividade (uma temática, pois, não pré, senão pós-fregiana).
Já Frege tem explícita consciência deste problema e um claro alinhamento com respeito a sua solução: se a ideia fenomenológica de intencionalidade possui em Brentano um contraponto, ela tem em Frege um antecedente. O que em Frege falta de modo absoluto é a aplicação da ideia de "terceiro reino" ao próprio vínculo sujeito-objeto. Neste particular, ele permanece em uma posição "pré-crítica".
Fenomenologia e hermenêutica encontram no traço subjetivo um elemento comum. Em ambas não é o conceito de sentido em-si o que preocupa de modo primário, senão o sentido vinculado a sua apreensão, seja esta um "entender" (Verstehen) ou um captar (Auffassen). Não obstante, a similitude mencionada contém, ao mesmo tempo, uma diferença. O sujeito da hermenêutica é algo heterogêneo daquele da fenomenologia: nesta a relação ao "objeto" é pensada a partir da noção de essência (quando não recebe um caráter "transcendental"), naquela, o sujeito em questão é concebido a partir do contexto da "facticidade"[65].
Da superação do psicologismo por Frege, a filosofia analítica se dirigirá, com o segundo Wittgenstein, a uma crítica radical do solipsismo metódico e do consciencialismo em geral. A fenomenologia percorre um caminho comparável: a crítica da subjetividade moderna se constitui em motivo prioritário. À hermenêutica, por sua parte, corresponde o mérito de haver dado início a tal revisão. Desta forma, no momento inicial e final do desenvolvimento das três tradições há coincidência, por um lado, na polêmica em torno ao psicologismo e no interesse pela objetividade do significado, por outro, na crítica do consciencialismo e do sujeito da modernidade.
3.4.3.3. Método
Se existe hoje uma tendência mais que incipiente a estabelecer vínculos entre filosofia analítica, fenomenologia e hermenêutica, existe também uma reação que procura manter, sobretudo por um motivo eminentemente metodológico, o hiato entre as tradições mencionadas. Uma séria crítica que se pode dirigir a nossa tese é que ela se concentra de modo unilateral na perspectiva temática, subestimando a importância da consideração metódica. Desde este ponto de vista, sem dúvida existirá sempre um abismo incontornável entre uma filosofia que se autoconcebe como análise da linguagem e outra que pretende uma consideração imediata dos pensamentos ou reincide no exame introspectivo. A linha demarcatória insuperável entre filosofia analítica e não-analítica deve ser fixada sobre a base do princípio de que, para a primeira, um estudo dos "pensamentos" (Gedanken) unicamente é possível mediante uma análise da linguagem[66].
O argumento da irredutibilidade metódica merece deti- do estudo. Ele constitui, sem dúvida, uma séria dificuldade para aqueles que aproximam as filosofias analítica e fenomenológico-hermenêutica de um modo tal que terminam por minimizar as diferenças entre ambas. Porém, ele não é um bom argumento contra nossa tese, a qual não desconhece a alteridade aqui presente senão que a redimensiona a partir do sublinhamento da existência de um núcleo comum.
Existe uma mitologia do puramente metódico, similar àquela do puramente "dado". Métodos, todavia, não são nunca inocentes. Todos eles implicam compromissos teóricos, um âmbito temático-conceitual e objetivos ou tarefas que lhes deem sentido. Justamente por tal motivo, existe um entrave intrínseco a todo proceder metódico: ele nem pode deixar de pressupor, nem justificar aquilo que pressupõe. A análise lógica da linguagem não foge à regra deste princípio, senão que o confirma. Este fato permanece oculto pelo acento dado à ideia de linguagem como "limite", à impossibilidade de sua "ultrapassagem" (Nichthintergehbarkeit) e a seu caráter último (Letzheit), de forma tal que a "análise" se apresenta como a culminação da pretensão filosófica originária de reflexividade radical. Ela não supõe "nada" na medida em que é capaz de tematizar "tudo" (o que se pode tematizar, ou seja, o que se pode "dizer").
Mas que é essa linguagem não ultrapassável da qual se ocupa o método semântico? Certamente não é a linguagem como fenômeno da natureza, senão como "meio universal". Por conseguinte, a análise linguística requer um critério identificador de seu objeto. Ora, tal critério não é possível de princípio sem a ideia de "significação" (Bedeutung, Sinn), sendo ela, portanto, imprescindível para fixar aquilo a ser analisado. "Significação" é momento necessário do repertório conceitual com o qual a filosofia analítica determina seu objeto e, consequentemente, pressuposto do método linguístico[67].
Algo similar vale com respeito à fenomenologia e à hermenêutica: em ambos os casos a proposta metódica pressupõe o conceito de significação como horizonte no qual ela é inteligível.
3.5. Consideração final
Através das páginas que antecederam procuramos transmitir ao leitor uma forma de ver a filosofia contemporânea de forma diversa daquela majoritária em nossos dias:
1. Essencial em nossa tese é a afirmação da comensurabilidade entre filosofia analítica e fenomenológico- hermenêutica. Não se trata de eliminar toda diferença, senão de superar a ideia de um abismo irredutível entre as três tradições (que, de modo irreflexivo e não-tematizado, é o que está na base da recíproca ignorância e do mútuo desprezo).
2. O dito implica, em âmbito programático, o restabelecimento do diálogo entre elas, diálogo que existia em um começo e que se perdeu posteriormente. Tal proposta, no entanto, está longe de ser um chamado à boa vontade, um bem-intencionado, ainda que ingênuo, "sejamos amigos". A possibilidade de diálogo é objetiva, dada pela existência de um substrato temático comum que permite traduzir os problemas de uma tradição nos termos da outra.
3. A comensurabilidade temática, porém, não é outra coisa que a manifestação superficial do fato de que, desde o ponto de vista da história da filosofia, semântica, hermenêutica e fenomenologia são momentos heterogêneos de um mesmo "giro" (turn), expressões diversas de um processo unitário justamente enquanto diferentes. Não só afirmamos, pois, que há um núcleo temático comum senão, além disso, que nele se manifesta o mesmo "giro" (turn) fundamental para a história do pensamento. Inclusive, a irredutibilidade metódica, que, sem dúvida, deve ser concedida, não contradiz senão que, pelo contrário, confirma este fato.
Se nossa tese se opõe, em geral, a um certo consenso ("ainda") hoje vigente, se opõe, em particular, à explícita "mitologia analítica". A visão da filosofia contemporânea e de seu vínculo com a história da filosofia que nela se pressupõe difere da que temos esboçado em dois pontos principais:
1. Para o pensador analítico, a oposição que caracteriza a passagem do período moderno ao contemporâneo é a referente à filosofia da consciência — filosofia da linguagem. O que temos chamado "período epistemológico" não é para ele nada mais que "filosofia da consciência", sendo que aquilo que no problema moderno do conhecimento era legítimo se dissolve em semântica, o que era ilegítimo torna-se psicologia não-filosófica.
2. Dado que, por outra parte, para o pensador analítico, a oposição filosofia da consciência — filosofia da linguagem é exaustiva, ele não pode entender o proceder fenomenológico (e, em geral, qualquer outra forma de filosofia que não seja a própria) já que não como filosofia da linguagem, então como filosofia da "consciência" (que em nada se diferencia da moderna, sendo simplesmente a sua prolongação e, em definitivo, um remanescente arcaico, um fóssil conceitual). Desta forma, a filosofia analítica estabelece um corte absoluto não só com as outras tendências contemporâneas, senão com a própria história da filosofia, corte absoluto que, definindo seu vínculo com a história de filosofia como pura negação, tenta fundar um egocêntrico e autossuficiente a-historicismo[68].
О que diferencia o esquema analítico do proposto neste ensaio é que este último, ao ser mais englobante, possibilita ver um ponto comum onde, de outro modo, não haveria se- não pura alteridade. Assim, ele não meramente estabelece a unidade da filosofia contemporânea, mas desta com a história da filosofia. Ao fim das contas, por que o interesse na mediação? Nada mais e nada menos que para restituir à filosofia enquanto tal sua unidade na perspectiva da história.
O devir filosófico assemelha-se à marcha do caranguejo: avança enquanto retrocede. Ele não é progressivo no sentido de acumulação de verdades, nem construtivo no sentido de articulação paulatina de um sistema de verdades. Ambas as coisas podem, eventualmente, "também" acontecer na filosofia, porém não constituem nem a sua essência nem, muito menos, a razão essencial de seu devir. A construção sistemática, a derivação de consequências, os "discursos argumentativos" e, em definitivo, a "solução" de problemas são internos às tradições constituídas, signos de uma "virada" (turn) já efetuada, mas não fundam um novo começo na história do pensamento. Eles não são possíveis senão como desenvolvimentos epigonais, não propriamente como "pensar originário". O verdadeiro "progresso"[69] na filosofia caminha na direção da explicitação; a identificação de supostos (tanto lógico-veritativos como hermenêuticos) é o que impulsiona a sua história. Em cada novo período filosófico se tematiza aquilo que era aceito de modo tácito, ainda que necessário[70], no período anterior. Também o período ontológico e o epistemológico-transcendental trabalhavam desta forma[71]. Neste sentido há um essencial elemento de união da filosofia contemporânea com a história da filosofia. A "virada ao significado" é um momento a mais na longa história da explicitação, que não é senão a longa história do trabalho reflexivo.
Podemos inverter, em nosso ponto de chegada, nosso ponto de partida. Partimos de buscar a unidade da filosofia contemporânea subjacente a sua diversidade. Terminamos aprendendo que esta unidade nada mais é que a unidade da própria filosofia para a qual lhe é essencial sua história.
[1] Ou melhor, do qual um determinado filósofo ou uma determinada obra tratam.
[2] E, pelo menos de modo indireto, mas genericamente, entre o "conteúdo filosófico" e o "pensar filosoficamente".
[3] Vários leitores das primeiras versões deste texto expressaram estranheza diante de minha afirmação, consciente e intencional, de que também em Nietzsche existe um "problema". Por momentos pensei escrever um capítulo da segunda parte mostrando como minha tese também vale no caso de um autor como Nietzsche. Entretanto, logo compreendi que, desta forma, o texto corria perigo de não encontrar um fim, pois com base no mesmo critério outros exemplos poderiam ser considerados necessários. Por tal motivo, me limito a observar:
1. Na reflexão nietzschiana existe conteúdo, coisa que não acontece na maioria dos nietzschianos adolescentes, os quais não passam do modismo estilístico.
2. O problema de Nietzsche é evidenciar que da absoluta negação de toda transcendência não se segue o pessimismo ou o niilismo como consequência "necessária", para o qual grande parte do esforço consiste em explicitar o que a transcendência significa. A impossibilidade de toda transcendência não tem que ser propriamente provada, senão explicitada. Na medida em que explicitamos, descobrimos o fenômeno da alienação e, com ele, o caminho para a resposta: justamente a negação da transcendência possibilita ao homem assumir seu caráter criador e, deste modo, dar a si mesmo valores e sentidos.
3. Pode-se estabelecer em Nietzsche uma distinção, paralela à kantiana, entre "pré-crítico" e "crítico", a qual deve ser fixada em torno ao diferente tratamento do pessimismo e à ruptura com Schopenhauer.
[4] Para o conhecedor é óbvia a inspiração, bergsoniana desta ideia; justamente por isso solicito que não se a identifique.
[5] Compreender o problema da Crítica da razão pura, por exemplo, não é saber que a pergunta dela é "como são possíveis juízos sintéticos a priori?". Pode-se "saber" isso e não haver entendido o problema.
[6] Poder-se-ia inclusive afirmar, como já fizemos acima (1a, 2, 2.2), que a atividade filosófica básica é a própria formulação do problema.
[7] Em tal sentido, a história da filosofia está sempre contida na filosofia contemporânea.
[8] Poderíamos formular a mesma ideia estabelecendo o ponto essencial de outra forma, por exemplo distinguindo entre argumento e algoritmo.
[9] A simples, simplíssima, distinção entre sentido e valor de verdade, fixada e desenvolvida nos últimos dois séculos, mostrou-se extremamente fecunda. Toda evolução filosófica ulterior (inclusive aquela que, eventualmente, a supere) deve partir dela. Ora, é curioso que justamente filósofos provenientes de uma tradição que contribuiu de modo decisivo para estabelecer a distinção mencionada, constituindo-a no eixo de uma concepção do fazer filosófico, possam, por momentos, reduzir sua tarefa a mostrar que se p é verdadeira, então q é verdadeira. Querer contra-argumentar dizendo que a elucidação do significado é justamente o modo principal da argumentação filosófica é brincar com as palavras. Pelo menos, deve-se conceder que se caracterizou o discurso filosófico de modo inexato.
[10] Por "lógica" entendo a ciência assim denominada usualmente.
[11] As investigações dos últimos anos têm evidenciado o que se suspeitava: os filósofos não possuem um "terceiro olho".
[12] É usual escutar que a análise congela e isola as ideias. Nada mais injusto que isto. A análise não detém o pensamento, nem implica atomismo. Distinguir não é isolar, senão o primeiro passo imprescindível para estabelecer relações bem definidas. O todo é assim clarificado em cada uma de suas articulações. Quanto mais vinculadas se encontram duas ideias, mais necessária é a sua distinção. Em realidade, a análise só se opõe a confusão e vaguidade: pensamento confuso ou vago é aquele que não distingue onde é possível.
[13] A ansiedade é inimiga da filosofia. O acompanhamento medicamentoso se torna, em alguns casos, recomendável.
[14] Mais adiante teremos que corrigir esta noção de "texto" à luz da proposta de uma distinção entre texto e escrita (12, 6, 6.1).
[15] É por isso que pode haver revistas filosóficas melhores ou piores, mas não "sensacionalistas".
[16] Uso os termos "entender" e "compreender" como sinônimos.
[17] Peço ao leitor que não confunda a distinção entre o entender e o entendido com a distinção entre um sentido objetivo e um subjetivo do "entender". O entendido é sempre objetivo, o entender o é só às vezes. O conceito de "objetivo" presente em um caso e em outro não é exatamente o mesmo.
[18] A historicidade é um modo básico de facticidade e está essencialmente ligada à finitude (12, 5, 5.1 e 5.2).
[19] Se considerarmos retrospectivamente o exposto em 12, 4, 4.2, ficará evidente que estamos diante de duas manifestações diversas do mesmo fenômeno básico: a significação nunca é "em si", senão que remete a um "horizonte".
[20] Esta ideia será precisada mais adiante.
[21] Ainda que não-linguística (1ª, 4, 4.1).
[22] Não há técnica de leitura de textos filosóficos nem metodologia de produção de textos que possam sanar o desconhecimento da gramática.
[23] Pode chamar a atenção algumas ausências ilustres, já que, se o "exemplo" aparece entre as categorias citadas, por que não a metáfora? A metáfora é um recurso de linguagem e não um tipo de conteúdo; em realidade todo tipo de conteúdo pode ter expressão literal ou metafórica. Em princípio é óbvio que, se entender é traduzir, temos que desmontar a metáfora para chegar à literalidade. Porém, aqui se encontra um problema complexo, pois poderia acontecer que a literalidade absoluta fosse propriamente "tarefa" (Aufgabe).
[24] Observe-se que o momento essencial não radica aqui no reconhecê-lo como verdadeiro ou falso, senão no reconhecê-lo como contradizendo uma de minhas crenças.
[25] Muitas leitoras me chamaram a atenção sobre o fato de que, com uma pequena modificação, isto vale de modo universal para o sexo masculino: os homens são seres com os quais é difícil dialogar "depois".
[26] Como veremos, a razão deste fato não é outra que a interação entre "recepção" e "criação".
[27] A "produção do texto", no sentido em que a consideramos agora, supõe a reconstrução lógica e histórica, parte fundamental da qual é a reconstrução do problema (1ª, 5,5.3).
[28] Por exemplo, o materialismo histórico.
[29] A originalidade que se exige de uma tese de doutorado deve ser pensada em relação ao status quaestionis; uma tese de mestrado, por outro lado, alcança plenamente seu objetivo quando consegue fixar o status quaestionis da temática que aborda.
[30] Da bibliografia ideal sobre o tema, temos de distinguir a bibliografia fundamental, composta pelos "clássicos". Ela é "fundamental" não no sentido de condição suficiente do trabalho, senão no de condição mínima.
[31] Para o iniciante pode parecer desinteresse e prepotência o fato de que alguns professores leiam primeiro o título do trabalho, eventualmente sua introdução e imediatamente deem uma olhada em sua bibliografia. A verdade é "diga-me o que tem lido e eu lhe direi o que você é capaz de produzir ". Se fisicamente somos o que comemos, intelectualmente somos o que lemos.
[32] A essencial dimensão coletiva da produção filosófica nada tem a ver com exigências derivadas da institucionalização da disciplina (congressos, mesas- redondas etc.).
[33] A expressão "reconstrução racional" já existe na linguagem filosófica com sentido e filiação histórica bem definidos. Por razões que mencionamos a seguir, nosso uso tem acentos diversos. Originariamente, a "reconstrução racional" estava dirigida à totalidade da linguagem; por derivação, passou a aplicar-se a teorias, principalmente, ainda que não só, de natureza filosófica. Um derivado de tal ideia é a "reconstrução do argumento", usual na filosofia e na história da filosofia anglo-saxônica. Contudo, a ideia de uma "reconstrução racional do problema" não tem, até onde sei, antecedente algum; muito menos o tem o conceito de uma "reconstrução histórica do problema", a qual, se nos atemos ao pano de fundo original da noção de "reconstrução", aparece como um paradoxo.
[34] A necessidade de uma colaboração entre elas tem a sua razão última na finitude do sujeito hermenêutico (1ª, 4,4.3.6) na sua dupla dimensão de produtor e intérprete do sentido.
[35] Os filósofos vinculados à tradição anglo-saxônica tendem a efetuar o segundo tipo de trabalho, os vinculados à tradição germânica o primeiro. Ainda que isto não seja uma consequência necessária, tem um certo vínculo com o fato de que a primeira está sob a influência da filosofia analítica e a segunda da hermenêutica.
[36] O caminho do filósofo para a construção de sua pergunta é essencial para a compreensão dela. Isto não tem nada a ver com biografia pessoal, mas com "biografia intelectual". Geralmente, a obra prévia do autor é a tomada de contato com o pensamento a ele contemporâneo e, através deste, com a história da filosofia.
[37] Isto não quer dizer, claro está, que a pergunta se torne então uma pergunta válida "em si": os seus supostos podem ser falsos, como também o podem ser os da pergunta presente.
[38] Por tal motivo, ela também é possível (e necessária) como permanentemente efetuada com respeito ao próprio presente. Acaso se é consciente da pressuposição da ideia de um saber a priori sob a forma de uma reformulação da teoria do conhecimento como semântica, quando se efetua uma contribuição qualquer à teoria do significado dos nomes próprios?
[39] Observe-se que, a princípio, a noção de a priori é definida de um modo puramente negativo: conhecimento a priori é aquele que não é empírico.
[40] Para sermos exatos teríamos de diferenciar um sentido político, um metafísico e um ético.
[41] 1. O movimento neokantiano se subdividiu em três escolas principais: a de Marburgo (Cohen, Natorp, Cassirer), a de Baden (Windelband, Rickert, Lask) e a "realista" (Riehl).
[42] Pressuponho a distinção usual entre "teoria" e "lei". Uma lei científica é, por exemplo, a lei da gravitação universal; uma teoria científica, a mecânica de Newton.
[43] A evolução posterior da ciência por meio da teoria da relatividade e da mecânica quântica confirma, segundo Cassirer, sua visão.
[44] Obviamente, a mecânica não é o mecanicismo. Não obstante, por razões de espaço, me movo com imprecisão e liberdade.
[45] Observe-se que isto não é propriamente um problema kantiano. Kant não duvida da legitimidade da ciência como modo de conhecimento ou com- preensão do mundo.
[46] Agora tomando simbólico como sinônimo de toda mediação.
[47] Porque não diremos nada neste sentido, devemos pelo menos enumerá-los. O conceito de forma simbólica seria equivalente aos conceitos de: 1. manifestações culturais; 2. formas de espírito; 3. objetivações; 4. modalidades de conhecimento; 5. compreensão do mundo e 6. modos básicos de experiências.
[48] Outras condições menos importantes em nosso contexto atual, mas que devem fazer parte de uma enumeração exaustiva são: 1. abertura de um "mundo" (caráter de totalidade); 2. produção de uma realidade; 3. ter, em última instância, uma relação imediata com um dado sensível.
[49] Preste-se atenção, mais adiante, aos conceitos de pregnância simbólica e fenômeno originário.
[50] Na realidade, uma forma simbólica não é o sistema de signos enquanto tal, mas enquanto produtor de um mundo. O Morse ou os códigos gestuais dos árbitros de futebol não são formas simbólicas.
[51] Sendo mais preciso, existem três formas de vincular a filosofia das formas simbólicas à semiótica:
1. Cassirer seria um antecedente ou um co-fundador da semiótica como disciplina científica.
2. O principal resultado da reflexão cassireriana consiste em ter fundado a semiótica como disciplina filosófica fundamental.
3. Cassirer opera uma mudança ou "transformação" da filosofia transcendental na direção da semiótica, sendo que neste caso o acento não se encontra no conceito de filosofia transcendental, mas no de semiótica. Cassirer não ampliou a teoria da verdade a outras esferas fora da física ou da ciência em geral, mas colocou a filosofia transcendental sobre uma base totalmente diferente, enquanto faz ante- ceder a teoria da verdade (ou objetividade) por uma teoria da significação.
[52] Deixarei de lado agora a diferença entre sistemas de signos em geral e linguagem em particular, referindo-me, ora a um, ora a outro, sem maiores esclarecimentos.
[53] Além das três formas simbólicas aqui mencionadas, são também consideradas como tais por Cassirer: a arte, a religião, a ética, a técnica e, talvez, a história e o direito, entre outros.
[54] No sentido etimológico originário de sentir com.
[55] Esclareço imediatamente por que no título fala-se de período "transcendental" e, a seguir, no texto, de "epistemológico".
[56] Este "antes" não é certamente temporal, mas lógico.
[57] No que segue usarei indiferentemente os termos sentido, significado e significação. Quando eles são referidos às estruturas proposicionais, devem ser entendidos na acepção fregiana de Sinn.
[58] Contudo, aquele certamente não se perde, mas se transforma, no marco das considerações anteriores, no problema da atribuição de valores de verdade, implicando a importante decisão sobre o que seja aquilo ao qual se atribui verdade e sobre que base se efetua tal atribuição (teoria da verdade).
[59] É claro que o que esta oposição realmente significa não pode ser totalmente esclarecido aqui.
[60] A diferença básica entre a filosofia transcendental e a analítica pode ser claramente percebida na sua forma heterogênea de crítica à metafísica: a crítica kantiana à metafísica era epistemológica, a analítica é semântica. Para Kant, não podemos decidir o valor de verdade de certos enunciados ainda quando, sem dúvida, eles são significativos; para a filosofia analítica, não podemos decidir o valor de verdade de certos enunciados, porque a condição necessária para isto está ausente, ou seja, porque eles carecem de sentido.
[61] Pode ser útil distinguir entre teoria do significado ou da significação e semântica, pois esta última está historicamente vinculada à linguagem e a estruturas proposicionais.
[62] Dilthey diferencia três formas de "expressão da Vida" (Lebensausdrücke) (uma em sentido próprio e duas em sentido amplo), correspondentes e internamente correlacionadas a três modos do entender (Verstehen) e da significação (Bedeutung):
a. o entender lógico possui como rasgo essencial seu caráter não-contextual;
b. o entender técnico tem natureza teleológica, dirigindo-se a atos que ostentam uma finalidade imanente;
c. por último, o entender vivencial, correlativo da "expressão" (Ausdruck) em sentido estrito, supõe a manifestação de um interior em um exterior e, inversamente, a interpretação daquele a partir deste.
[63] Uma pontualização seria aqui necessária com respeito ao Wittgenstein do Tractatus.
[64] Na realidade, existem diferentes tipos de psicologismo e antipsicologismo (lógico, epistemológico, semântico, etc...).
[65] Logicamente que esta perspectiva subjetiva apresenta variações nas diferentes fases da fenomenologia, tendendo a ser reformulada a partir da confluência com a hermenêutica. A temática do "mundo vital" (Lebensswelt) levará a uma posterior aproximação neste ponto.
[66] Entendemos aqui por "pensamento" o pensado por contraposição ao pensar, o conteúdo por contraposição ao ato, seja qual for o status outorgado a ele, contanto que possua estrutura proposicional.
[67] Esta ideia de significado não é ainda teoria do significado.
[68] Também aqui a situação tem experimentado grandes mudanças nos últimos vinte anos.
[69] Usamos aqui o termo "progresso" só para colocar a oposição apontada de um modo mais explícito e sem que ele volte atrás nas precisões desenvolvidas anteriormente (1a, 5, 5.2.3).
[70] Observe-se que não se trata de quaisquer supostos, senão de supostos necessários para um pensar que se concentra em um certo tipo de problemas.
[71] Ainda quando o faziam de um modo ou em uma variante "fundacionalista". Diferenciamos "fundamentação" (isto caracteriza a variante metafísica e a transcendental) de "explicitação". Fundamentação é explicitação de pressupostos lógicos, explicitação é explicitação de supostos significativos em geral. A explicitação, no caso-limite, pode assumir o caráter de fundamentação, mas não necessariamente.