O Mundo Precisa de Filosofia
Eduardo Prado de Mendonça
Rio de Janeiro: Agir, 1988.
Conta Aristóteles em uma de suas obras, a Retórica (L. II, c. 16), que certa vez a es- posa de Hieron, rei de Siracusa, perguntou ao poeta Simônides o que valia mais: ser rico, ou ser sábio? "Rico", respondeu o poeta; "pois vejo os sábios estarem sempre batendo à porta dos ricos".
Não faltam os que julgam ser a riqueza o poder por excelência. E porque os ricos são em geral poderosos, grande parte da humanidade luta por possuir maiores bens de fortuna, porque através destes bens espera vir a ter mais poderes. A aspiração do poder aparece para o homem, de um modo geral, como o meio adequado de conquistar o exercício da liberdade. Aquele que manda e é obedecido tem a impressão de estar no exercício pleno da liberdade. O poder, que se exterioriza, parece ser o sinal capaz de testemunhar uma experiência que mais difícil de realizar-se na intimidade do sujeito, quando ele está a sós, ficando diante apenas de si mesmo.
Nesta passagem aqui referida, Aristóteles analisa o que seja a psicologia do rico. Vivem os ricos cercados desta ideia de poder, pois ocupam a muitos outros homens no cumprimento da sua vontade; e isto ocorre naturalmente, pois são muitos os que têm necessidade daqueles que têm posses. Por isso, os ricos se acham no direito de comandar, pois têm aquilo por que vale a pena comandar, desde que coloquemos o problema da vida em termos de uma troca de interesses práticos. Se viver se resume a conquistar bens materiais, os que têm maiores bens deveriam ter o direito de dirigir os demais homens.
Como a vida, no entanto, não se reduz a isto, diz Aristóteles que a figura do homem rico pode exprimir-se assim: tem todas as características de um homem feliz, a quem falta, no entanto, o bom senso.
Conta-se que certa vez relataram a um filósofo a resposta dada por Simônides à esposa de Hieron, e ele acrescentou: "Bem, é verdade que os sábios em geral batem à porta dos ricos, e que os ricos não batem à porta dos sábios; mas, isto é porque os sábios sabem o de que precisam, e se os ricos não procuram os sábios é porque não conhecem quais são as suas necessidades" (atribuído a Antístenes).
Para bom entendedor não estamos aqui enfrentando o problema social da distribuição das riquezas; não estamos abordando o problema do rico e do pobre; do rico bom e do mau rico, mas estamos apenas focalizando um problema de valores nesta antinomia: riqueza material e saber. Nem sempre temos a nítida noção do poder que possuem as ideias. E o nosso objetivo é refletir sobre a força das ideias.
É tempo de refletir sobre isto, pois estamos no alvorecer da era da Filosofia no mundo.
Não os convido a um Curso por diletantismo. Convido-os a tomar posição e lutar por uma vida humana, tendo a consciência clara de que o domínio sobre as próprias ideias é tão necessário como o ar que respiramos, como o alimento do nosso corpo, para a saúde do posso espírito. As doutrinas dos filósofos já não vivem nas Academias: elas estão nas ruas. Nós as adquirimos sem o saber. Nós as adquirimos num sistema singularíssimo de crediário: nem sabemos como as adquirimos, e nunca sabemos por quanto tempo e nem o quanto pagaremos por elas.
Estamos no alvorecer da era da Filosofia. Ao afirmarmos isto não usamos de uma expressão literária, mas apontamos um fato histórico. O mundo está hoje dividido pelas ideologias, que são as formas pelas quais as ideias assumem corpo e exercem sua ação eficaz na existência. As ideologias são os conjuntos de fatores afetivos e voluntários que, envolvendo uma ideia, a transformam em uma poderosa energia dinâmica.
Nos primórdios da História dos povos, encontramos a valorização da força: é o poder militar que domina o mundo; os chefes podem comandar segundo os caprichos de seu arbítrio, e todo um conceito de nobreza se constrói em torno do poderio absolutista dos governantes.
Durante a Idade Média, o pensamento religioso pôde exercer uma influência capaz de submeter governos, e estruturas de organização social. Assistimos, depois, a uma ascensão da burguesia: é o valor econômico a exprimir o domínio dos poderosos do mundo; a marcha para a riqueza criou graves problemas sociais, que passaram a obrigar a mudança da face do mundo. Vemos, então, a ascensão do poderio político: a liderança política passa a ser a grande expressão do poderio moderno. É certo que não desaparecem nem o poderio militar, nem o poderio econômico; mas estes já não bastam, e passam a ser submetidos, como instrumento do poderio político. A verdade é que o mundo nos apresenta hoje, como sua característica geral por excelência, uma luta de ideologias. São concepções em movimento, são as ideias no campo de batalha. A sorte da humanidade está sendo decidida pelo debate das ideias. Hoje nós sabemos disto, em nossos dias nós podemos ter consciência disto, e já não é mais possível adiar o encontro programado pela história do mundo.
À era de predomínio militarista da antiguidade, sucedeu uma era de predomínio religioso; a esta sucedeu uma era de predomínio econômico e, depois, uma era de predomínio político. Houve quem dissesse que a guerra era assunto muito sério para ser resolvido por militares; pois, do mesmo modo, diremos que a vida humana é assunto muito sério para ser resolvido por políticos. Chegou o momento em que a presença do filósofo aparece como inadiável, e a Filosofia é reclamada por sua irrefutável necessidade. Eis porque dizemos tranquilamente que estamos no alvorecer de uma era da Filosofia.
Achamos da maior oportunidade reproduzir aqui uma página de conhecido historiador da filosofia moderna, I. M. Bochenski:
"Surge de início a questão da justa apreciação da totalidade do esforço filosófico no curso da história. Subestimamos-lhe muito frequentemente o alcance: a filosofia, diz-se, é um conjunto de especulações abstratas sem interesse para a existência; às ciências práticas que nos devemos devotar, pois elas condicionam a técnica de todas as atividades (não somente a do engenheiro, mas também a do pedagogo), como o faz a Sociologia, a Economia Política e a Política. Pois, primum vivere, deinde philosophari, e o philosophari não tem importância na vida". Para o autor, "esta concepção tão espalhada hoje é radicalmente falsa, e trata-se de uma perigosa aberração intelectual. Limitar o saber a seus aspectos técnico-práticos é supor que é sempre suficiente saber apenas como isto ou aquilo se faz. Mas, antes da questão do como, é necessário colocar a do porquê. E somente a Religião e a Filosofia podem dar uma resposta ao último porquê. Que não se diga que o senso comum é suficiente para isto: o que se chama o senso comum não passa, no mais das vezes, na história, do simples resíduo de ideias filosóficas anteriormente difundidas. O homem é um animal racional, ele não pode agir sem usar sua razão, e, quando ele não o faz de uma forma consciente e filosófica, ele o faz irrefletidamente e como diletante. Isto vale para todo mundo, mesmo para aqueles que se acreditam desligados de qualquer filosofia: eles são precisamente filósofos diletantes, que, manifestando um desprezo pelos trabalhos de homens de uma capacidade intelectual infinitamente superior, constroem suas próprias filosofias, inúteis e medíocres. Pode-se fazer constatação semelhante no que se refere à Religião. Por natureza ela não depende da Filosofia. Mas também ela deve ser tornada clara e inteligível, deve ser sempre explicada, pois o homem é um ser pensante. De fato, se para esta explicação necessária não nos servimos de uma filosofia racional, acabamos aqui como antes por sermos vítima dos preconceitos.
"De outra parte, nada mais falso que negar a importância da Filosofia para a vida. Certamente, o filósofo nem sempre tem um lugar destacado na realidade cotidiana. Seu destino é, no mais das vezes, o de só ser compreendido depois da morte. Sem dúvida, houve filósofos que puderam ainda provar sua glória durante a vida — chamem-se Plotino, Tomás de Aquino, Hegel, Bergson. Mas, ainda assim, trata-se mais de uma simples moda que de uma plena compreensão. O filósofo não leva em conta as exigências da hora e das modas do dia. É reprovável? Não é próprio do homem ultrapassar a pura existência do instante? Fazendo do momento presente o único objeto do saber não corremos o risco de rebaixar o homem a besta? Quem vive sem cessar a vida do espírito, segundo suas convicções filosóficas, sabe que o que se passa é diferente: porque ela não se prende ao hic et nunc do instante e que ela não pretende agir diretamente sobre a vida, a filosofia é justamente uma das maiores forças espirituais que nos impedem de soçobrar na barbaria e nos ajudam a permanecer homem e a vir a sê-lo cada vez mais.
"Mas, isto não é tudo. Por mais fútil que possa parecer, a Filosofia contudo uma poderosa força histórica. É necessário convir com Whitehead, quando compara os sucessos de um
Alexandre, de um César e de Napoleão aos resultados, infrutíferos em aparência, que obtém o filósofo: é o pensamento que transforma a face da humanidade. Não é absolutamente necessário, para dar-se conta disto, remontar, como o metafísico inglês, até os pitagóricos. Que se considere unicamente sobre o prodigioso destino de Hegel, este filósofo tão difícil de compreender. Ele abriu o caminho tanto ao fascismo e ao nacional-socialismo quanto ao comunismo: é uma das forças que estão em vias de transformar o mundo. O filósofo, posto em ridículo pelo povo, vivendo entre seus pensamentos inofensivos, é na realidade uma potência terrífica. Seu pensamento tem o efeito da dinamite. Ele segue seu caminho, ganha homem por homem e toca as massas. Chega o momento em que triunfa de todos os obstáculos e regula a marcha da humanidade — ou estende um lençol sobre suas ruínas. Eis porque os que desejam saber em que direção está a rota fazem melhor prestar atenção não aos políticos, mas aos filósofos: o que os filósofos anunciam hoje será a crença de amanhã" (La Philosophie Contemporaine en Europe, Paris, Payot, 1951, pp. 6-8).
Achamos natural que um atleta recue e tome distância para apanhar impulso e saltar um obstáculo; e no entanto, é comum estranhar que se proponha um recuo reflexivo, à procura de maior apoio e fundamento para sobrepujar os problemas, que são os obstáculos da existência humana. Vivemos presos ao imediato. À medida em que o homem mais desconhece a razão de ser de sua vida, tanto mais ele se agarra às pequeninas coisas do cotidiano. Tanto menos ele conhece o sentido de sua vida, e mais é tomado de uma angústia e paixão, que deixam a impressão de uma pressa de chegar sem que ele saiba aonde. E quanto menos ele se conhece a si mesmo tanto mais se empenha em transformar o mundo. Revolver mão é revolucionar, evolver não é evoluir, nem processamento é necessariamente progredir.
O homem moderno, de tanto se servir da máquina, passou a refletir o humano pelo mecânico. E assim se criou uma certa mentalidade mecanicista, pragmática, ativista, que colocou de quarentena o contemplativo. Podemos mesmo dizer que ele perdeu o sentido da contemplação. De tal modo se deixou empolgar pelo fazer, que perdeu a perspectiva do ser. E de tal forma deixou-se apaixonar pela ideia da produção, que perdeu o senso da perfeição. Na perspectiva do mais, esqueceu perspectiva do melhor. Não sabe mesmo o que possa vir a significar vida contemplativa.
A ideia comum de vida contemplativa é a de um afastamento da realidade, a de uma vida de abstração, ou, para usar uma palavra ao gosto da época, a de uma alienação. E, no entanto, a contemplação não se opõe radicalmente à ação: ela se prova mesmo na ação, e podemos dizer que a vida contemplativa está intencionada à ação: contemplata aliis tradere, diria São Tomás de Aquino ("transmitir aos outros a contemplação"). A vida contemplativa se opõe à vida operativa na medida em que a vida operativa está dirigida a um fim externo, a uma realização de produção, a uma ação transcendente ou transitiva, que se termina na obra realizada fora do sujeito que a realiza. A vida contemplativa tem por fim a própria perfeição do sujeito da ação, e por isso se diz propriamente da ação imanente, do ato considerado no próprio sujeito, como expressão daquilo que ele é, daquilo que ele quer ser, daquilo que ele pode ser, daquilo que ele deve ser. Como entender, portanto, que a vida contemplativa é um alheamento da realidade? Pode haver maior senso de realidade do que este que se ocupa com a integridade do seu próprio ser? A vida contemplativa é esta que se dirige à tomada de posse de si mesmo, à clareza de consciência, ao domínio da vontade, ao discernimento intelectual. É a que cuida da formação de uma consciência justa, afastando de si os resíduos viciosos dos preconceitos; é a que cuida da firmeza da vontade, defendendo-a de um envolvimento imaginativo, pois o excessivo exercício da função fabuladora, o pensamento que se arrasta nos voos da imaginação despoliciada a sacrifica e entibia; é a que cuida da justiça intelectual, pelo conhecimento e uso adequado de suas funções intelectuais, defendendo a razão das inclinações afetivas e sentimentais, que impedem a inteligência de atingir as conclusões verdadeiras e não comprometidas a priori pelas preferências arbitrárias e irrefletidas.
Este é o terreno da Filosofia, que, à ordem do fazer, — preocupada apenas com como fazer, — acrescenta as dimensões mais largas da vida humana, quando o homem passa a preocupar-se com o por que fazer e o para que fazer, além de vir a poder julgar convenientemente o que fazer diante dos polos da vontade e do dever. Nesta linha da vida contemplativa, que não se afasta da realidade, mas, ao contrário, nela procura mergulhar profundamente, para atingir-lhe as raízes mais íntimas, é que se coloca a Filosofia.
O drama por excelência da vida humana, nós o encontramos focalizado no Fausto de Goethe, no qual nós vemos o Dr. Fausto, movido pela ambição de possuir todos os bens do mundo, entregar a sua alma ao Diabo. Que significa possuir tudo, se a criatura humana se perde a si mesma? O trágico da ambição que se transforma em valor absoluto está exatamente nisto a ambição que se satisfaz com a pura ambição, em lugar de levar a criatura a possuir, leva-a a ser possuída; ela não domina as coisas, mas é dominada por elas; não dirige, é dirigida. A ambição, que se elege critério universal, é insatisfação insanável, é permanente angústia. O próprio bom senso ensina pela prudência que é preciso saber o que devemos querer, porque os bens particulares podem esconder o que verdadeiramente é o bem. Nesta linha da vida contemplativa, na consideração de todos estes problemas, que armam os alicerces da vida humana, a Filosofia representa um convite para a vida do homem em plenitude, como ser racional. O convite da Filosofia não é o de um afastamento da vida; muito ao contrário, no discernimento das ideias que povoam a vida humana, e são o eixo do mundo dos seres dotados de razão, o estudo da Filosofia realiza um alargamento da visão e das dimensões da existência, em extensão e profundidade e neste sentido podemos dizer que filosofar é viver mais.
Passemos a algumas considerações específicas sobre as relações entre as ideias e a vida do homem.
1. Ideia e sentimento.
Ou Diz um adágio popular: "O que os olhos não veem o coração não sente". E diz com razão. Não existe sentimento sem ideia. Quando a expressão popular diz "o que os olhos não veem", está dizendo exatamente "o que não se sabe", "o que não se conhece", "o de que não temos ideia". Devemos lembrar, aliás, que, no grego, a palavra idéa significa primariamente "visão", "o que é visto", "a forma", a "figura", aquilo que é objeto da visão. Quando hoje dizemos "ideia", dizemos a "visão intelectual", a "representação mental", o "conceito" ou "noção", a apreensão simples realizada pela inteligência. "O que os olhos não veem o coração não sente". Os nossos sentimentos variam de acordo com as ideias que os acompanham.
A força dos estoicos para resistir ao sofrimento está exatamente na sua concepção do mundo e da vida. Um estoico pagão, julgando que todos os prazeres do mundo são apenas uma face externa de padecimentos e insatisfações e que o bem é apenas não sofrer, vê com alegria a morte. Um estoico cristão recebe a morte com resignação ou paciência porque tem a ideia da vida eterna. E quantas vezes na vida sentimos mais prazer em pensar num acontecimento do que propriamente na sua experiência? E quantas vezes deixamos de gozar uma experiência realizada em nossa vida porque não tínhamos a ideia nítida do seu valor? Um concerto a que assistimos, uma peça de teatro, um espetáculo, e até mesmo um encontro, são tanto mais apreciados por nós quanto mais nos tivermos podido preparar para eles, levando conosco uma ideia antecipada do que está por acontecer.
O teatro grego explorou este fato, utilizando no terreno estético um recurso de grande efeito, com a identificação, em que um personagem aparece em cena com a sua verdadeira identidade, após ter aparecido veladamente. O espectador já sabe que é ele, mas o outro ou os outros personagens não sabem. Em Electra, de Eurípedes, o irmão de Electra, após longos anos de separação, a encontra; mas antes de identificar-se, com ela conversa longamente; o momento de identificação produz na plateia um forte impacto emocional: a assistência já sabia quem era o personagem, mas a realização prática e clara da ideia produzia esta emoção. O mesmo ocorre com Ulisses, na Odisseia de Homero: Ulisses é esperado no lar, de volta da guerra, embora muitos o julgassem morto; de volta, primeiro identifica-se ao filho; ele vem disfarçado em mendigo; depois, identifica-se diante de todos: a emoção estética produzida por esta experiência de ver esclarecido na ordem da ação prática o que já era pensado e conhecido.
O próprio sentimento religioso apresenta características diferentes, segundo a ideia que o acompanha: é acompanhado de terror e inquietação, se temos um culto fetichista, cuja divindade se encontra nas forças da natureza; é acompanhado de um pessimismo, se a divindade é pensada como existindo difusamente no universo, como é o caso do Bramanismo; é acompanhado de medo, se a divindade se apresenta sob a forma dos preceitos e da Lei, como é o caso do Judaísmo; é acompanhado de esperança, se a ideia de Deus o identifica com o amor e a graça, como é o caso do Cristianismo.
E se as ideias dão o tom dos nossos sentimentos, podemos dizer que as ideias dão a cor da própria existência. Os mesmos fatos produzem em nós impressões e sentimentos que variam de acordo com a ideia que a respeito deles somos capazes de estabelecer.
2. Ideia e vontade.
As palavras, que têm como uma de suas funções exprimir o pensamento, por vezes o escondem. E, por vezes, nos enganam, parecendo exprimir alguma coisa, quando em verdade nada exprimem e não passam de ruídos, como o diria Crátilo, pensador grego. Se, na geometria de Euclides, falarmos em círculo-quadrado, aí está uma palavra que não tem correspondência com um objeto, e nem exprime uma ideia, porque na geometria euclidiana não é possível pensar em círculo-quadrado, pois não há composição possível dos dois conceitos tomados isoladamente, sendo um exclusivo do outro. Na História da Filosofia, às vezes encontramos coisas assim, pois os homens de gênio também erram. A diferença entre o erro de um homem comum, e o do homem de gênio é que aquele erra tolamente, sem qualquer razão de ser, enquanto o gênio por vezes erra, mas com bons argumentos, com boas razões, erra — poderíamos dizer — genialmente. Houve assim um filósofo alemão, Emanuel Kant, que defendeu a ideia de uma vontade que fosse apenas vontade, uma vontade que não fosse vontade de coisa alguma, mas fosse apenas forte, o que ele entendia por "vontade pura". Não vamos entrar aqui nas razões que explicam os caminhos que o conduziram a tal vontade. É sempre transitiva, é sempre vontade de alguma coisa.
Dizemos com razão que um homem de força de vontade é aquele que persegue com firmeza alguma coisa. Um homem de vontade firme é aquele que sabe o que quer, e sabe o que quer exatamente porque quer o que sabe. É a vontade que nos leva à ação. A firmeza de vontade se exprime pela firmeza dos atos, e conduz necessariamente ação. Mas, se os atos dependem da vontade, e a vontade é determinada pela ideia, que dá o modelo do seu exercício, podemos ver desde logo qual o papel das ideias na configuração da atividade do homem, e saber a significação vital das ideias. Elas, realmente, estão intencionadas ao real, e elas não só representam o real, como também constroem a realidade, na medida em que determinam a vontade, e dirigem a ação da vontade, que, por sua vez, se transforma nos atos da vida prática que configuram a existência particular e social do homem.
Neste sentido, podemos acrescentar que as ideias decidem a própria ordem moral da vida humana. Se é verdade que o homem tem uma natureza moral, que o faz aspirar ao bem e rejeitar o mal, é também verdade que, para o exercício da vida moral, ele necessita distinguir com clareza o que é o bem e o que é o mal; e não pode, por isso mesmo, satisfazer-se com esta disposição manifestada espontaneamente na sua natureza de aspirar necessariamente ao bem. É preciso lembrar aqui que os próprios criminosos, até na prática dos seus delitos, estão movidos por uma aspiração do maior bem: o que lhes falta o discernimento do que seja efetivamente o bem e uma educação da vontade para ser dócil ao que a inteligência pode compreender verdadeiramente como sendo o bem. Aquele que rouba, no ato mesmo de roubar, julga ser este um meio melhor do que conseguir o que pretende alcançar através do próprio trabalho, que o obrigaria a um maior esforço, e maiores padecimentos. O caminho que lhe parece mais fácil, parece-lhe o melhor.
A obrigação do homem é de tal ordem no sentido de possuir uma noção clara e distinta do que seja o bem, que São Tomás de Aquino nos fala mesmo de um pecado de ignorância. Há uma ignorância invencível, que é a dos loucos, como é a dos que jamais tiveram a oportunidade dos estudos. Mas, há também uma ignorância culposa, uma ignorância que implica em omissão indesculpável, um desinteresse pelo conhecimento dos valores e dos princípios de que dependem os destinos da humanidade. Diz um aforismo jurídico: Ignorantia juris neminem excusat (A ignorância da lei não escusa ninguém). O conhecimento da lei é um sinal de respeito pela vida em sociedade. Não somos apenas nós que estamos em jogo nas nossas ações; elas têm consequências e produzem seus efeitos sobre aqueles com quem convivemos. E mesmo que isto não provocasse as reações devidas à delimitação dos direitos, é necessário lembrar a responsabilidade que temos de nós mesmos, em face do dom da vida que, afinal, não é criação nossa, mas, evidentemente, nos foi dada.
A ideia do bem não exclui totalmente o ato mau. Video meliora proboque deteriora sequor (Vejo o que é melhor, mas sigo o pior), diria o célebre poeta latino Ovídio. Mas, segundo Tomás de Aquino, a ideia do bem é sempre um obstáculo à prática do mal. Poderíamos dizer que com a ideia nítida do bem, o ato mau já não é tão mau. E isto porque haverá sempre uma contradição interna no sujeito, pois a sua consciência estará inquieta, e o haverá de perseguir. A angústia crescente, derivada do divórcio entre a ideia e o comportamento, pedirá uma solução. Ainda aí a ideia manifesta a sua força determinante.
3. Ideia e ação.
Finalmente, é necessário deixar bem claro, e com toda a ênfase, a intima relação existente entre as ideias e os atos.
Diz Karl Marx, em sua undécima tese sobre Feuerbach, em sua obra A ideologia alemã, esta frase, que bem merece ser pensada e comentada: "Até hoje, os filósofos só fizeram interpretar o mundo; devemos, agora, transformá-lo". Não são poucos os homens, sejam marxistas, ou pragmatistas, ou livres-pensadores, ou existencialistas, ou que rótulo tenham, ou venham a ter, que estão prontos a aceitar como verdadeiras estas palavras. Não são poucos os que manifestam o seu desamor pelas teorias, preconizando o exercício prático, a excelência da ação, como a única solução a ser procurada, e a única verdadeiramente eficaz.
Podemos aceitar que uma ideia sem aplicação na realidade seja como uma semente que não tenha sido plantada. Mas, devemos aceitar também que, para ser fecunda, a semente deve ser convenientemente tratada. Em geral, secamos as sementes, para podermos depois plantá-las com sucesso. Assim, quando ela parece seca, e sem vida, é que ela é fonte de vida. Quando tratamos as ideias, examinando-as em si mesmas, parece que as retiramos da vida. A verdade, no entanto, é que a sua clareza inteligível e abstrata é que lhe garante toda a força vital.
O homem tem radicado no seu ser o senso da liberdade. Ele quer naturalmente ser livre. E ele se sente livre quando tem o domínio dos seus atos, pois só assim pode agir com equilíbrio e segurança. Mas não pode haver ação firme de sua parte, se não possui ideias claras sobre o que quer fazer.
Ignoranti quem portum petat, nullus suus ventus (Não há vento favorável para quem não sabe a que porto se dirige), afirmava Sêneca, o famoso estoico latino. Não dizemos novidade afirmando que a maioria das pessoas é infeliz exatamente porque procura ser feliz, e não sabe o que possa ser a felicidade.
As ideias obscuras, vagas, imprecisas, não podem garantir a firmeza das ações. E isto é tanto verdade que, para prová-lo, podemos recorrer a um fato, que, embora sendo uma contrafação da verdadeira e justa firmeza das ações, o demonstra: a firmeza dos loucos, garantida pelo seu monoideísmo, ou ideia fixa. Os teimosos, cuja fixação de ideias é fruto do capricho, nos dão uma outra confirmação.
Não queremos a firmeza das ações na ordem da firmeza dos loucos, ou dos que fazem do capricho o critério de seleção de suas preferências. Queremos a firmeza sadia dos que sabem o que significa a força das ideias, e o respeito e o cuidado com que elas merecem ser tratadas.
E, enfim, é necessário refletir bem sobre esta verdade de fato: na vida humana, ou vivemos de acordo com o que pensamos, ou acabamos pensando de acordo com o nosso modo de viver. Eis o que devemos considerar muito cuidadosamente, para não nos enganarmos a nós mesmos. Seria bom que cada um pudesse saber nitidamente, para ter consciência do papel que está cumprindo na existência, se as ideias que dirigem a sua vida são fruto de uma reflexão crítica, ou são apenas a formulação teórica justificativa de um modo impensado de viver. Esta reflexão, que consideramos fundamental para os que realmente desejam ser homens livres, segundo a dignidade de sua natureza, exprime ainda uma vez o poderio das ideias: elas têm tanta força que podem chegar até a enganar ao próprio homem a respeito de si mesmo, quando verificamos que, por vezes, as ideias que parecem dirigir a sua vida são apenas a expressão de um tipo de comportamento formado pelos hábitos adquiridos no decorrer da vida, porque ele se deixou levar pela onda das circunstâncias, omitindo-se quanto à obrigação que teria de decidir racionalmente a sua própria vida. Na vida humana, ou vivemos de acordo com o que pensamos, ou acabamos pensando de acordo com o nosso modo de viver. E, por isso mesmo, é preciso não menosprezar a força das ideias. A civilização grega floresce até os nossos dias, e o mundo ocidental está marcado por ela exatamente porque aquilo que Renan denominou "o milagre grego" consistiu no culto do "logos", na descoberta da razão, e por isso mesmo a Grécia antiga foi o berço generoso dos filósofos por excelência, de cujas doutrinas ainda se alimenta a humanidade. Devemos ser dignos da nossa civilização e das nossas origens.
Só por isso a Filosofia tem garantida a sua presença no mundo, à procura do esclarecimento das ideias, como o único e efetivo caminho para a solução dos problemas da vida humana, na sua essência, cumprindo esta missão de ajudar ao homem, em primeiro lugar, a tomar consciência do que seja a força das ideias.
As ideias caracterizam os sentimentos; as ideias determinam a vontade; da clareza das ideias depende, enfim, a firmeza das ações. As ideias não estão apartadas da vida: mas estão na existência como o eixo em torno de que o mundo humano efetivamente gira. Esta é, de fato, a força das ideias, e assim é que as ideias movem o mundo.
Existe uma ideia corrente sobre a figura do filósofo, que o indica como um excêntrico. Em geral, pensamos no filósofo como um tipo esquisito, estranho, diferente. E esta ideia não é de hoje.
Uma das versões sobre a morte de Pitágoras relata que o famoso filósofo grego teria morrido num incêndio. O povo da localidade em que vivia Pitágoras, movido por uma série de suposições a respeito da vida estranha do mestre e seus discípulos, resolvera incendiar a sua escola, temendo que aquela vida de recolhimento em que viviam significasse, de fato, uma ameaça à cidade. Por vezes, o homem prefere eliminar o que não compreende.
Platão já nos descrevia desta forma a figura do filósofo. Recordemos uma página sua, em sua obra intitulada Teetetos, em que Platão, num diálogo entre Sócrates e Teodoro, descreve a figura do filósofo: "Falemos dos que representam os verdadeiros filósofos, pois os que não revelam nenhuma excelência na prática da Filosofia, para que ocupar-nos deles? Dos primeiros, pode-se dizer que, desde a juventude, o que desde logo ignoram é o caminho que conduz à praça pública, o lugar do tribunal, a sala do conselho e todas as outras salas de deliberação comum existentes na cidade. As leis, as decisões, os debates ou sua redação em decretos, a isto não assistem, nem ao espetáculo, nem aos seus ecos. As querelas das agremiações políticas (hetairias) na disputa das magistraturas, as reuniões, festins, as reuniões agitadas dos tocadores de flautas, em nada disso nem mesmo em sonho supõem vir a tomar parte. O que ocorre, bem ou mal, na vila, os defeitos transmitidos por hereditariedade a este ou àquele homem ou mulher, o filósofo não se preocupa, senão, como diz o provérbio, do número de tonéis de que se compõe o mar. E nem sabe que a tudo isto ignora, pois, se disto se desinteressa, não é por vanglória: é que em realidade apenas o seu corpo está na cidade. Seu pensamento, para quem tudo isto não passa de mesquinharias e vazio, de que não dá conta, passeia por tudo seu voo, como diz Píndaro, "sondando os abismos da terra", e medindo suas distâncias, até os últimos arcanos celestes, acompanhando a marcha dos astros, e, de cada realidade, perscrutando a natureza em seu pormenor e seu conjunto, sem deixar-se jamais prender ao que é imediato.
"Assim, Tales observava os astros, e, olhos presos ao céu, caiu um dia num poço. Uma serva da Trácia vem em seu socorro e, com zombaria, pergunta-lhe como cuida de saber o que se passa no céu, se não sabe ver o que tem diante de si, a seus pés. Esta zombaria vale contra todos os que passam a vida filosofando. É que, realmente, um tal ser não conhece nem próximo, nem o vizinho, não sabe o que ele faz, e mal distingue se é um homem, ou se se trata de um outro animal qualquer. Mas, quanto ao que significa ser um homem, por que uma natureza tal deve distinguir-se das outras em sua atividade e em sua passividade próprias, eis o que procura saber, e a investigação a que dedica o melhor de seus esforços.
"Tal é o comportamento de um filósofo, tanto na vida particular como na vida pública. Quando, no tribunal, ou em outra parte, é necessário, contra a sua vontade, tratar daquilo que está a seus pés, diante de seus olhos, ele faz rir não apenas as mulheres da Trácia, mas a todo o povo, de poço para poço, de perplexidade em perplexidade, deixando-se cair por falta de experiência, e seu desajeitamento o cobre com a impressão de ser um tolo. Nas trocas de injúrias, de fato, ele não tem contra ninguém nenhum insulto que lhe pareça dever ser dito, pois só tem olhos para o que é o bem: jamais se preocupou em adestrar-se na arte de ofender. Sua aparência humilde lhe dá uma aparência ridícula. No que se refere à habilidade de elogiar, ou às jactâncias, com que os outros se encantam, ele nada tem a dizer: e ainda ri com naturalidade destas coisas, de forma que é tomado por um alienado. De um tirano ou de um rei, se ouve alguém fazer-lhe o elogio, pensa tratar-se de um pastor, seja um tratador de porcos, ou um camponês, ou um vaqueiro, de quem acredita ouvir contar a satisfação por beber desbragadamente. Por outro lado, nada mais é do que um rebanho mais difícil e dissimulado o que os tiranos e os reis têm que pastorear e cuidar, e por isso se tornam eles tão pouco educados quanto os outros pastores, pois ficam privados de todo lazer, e, do mesmo modo que os outros ficam isolados nas montanhas, estes ficam isolados entre as muralhas dos seus palácios. Se lhe dizem que um homem tem dez mil alqueires de terra ou mais ainda e que isto representa um prodigioso haver, parece-lhe o entusiasmo desproporcionado, pois está habituado a abarcar com a vista a terra toda. As genealogias, que são em geral cantadas, a nobreza de alguém que pode contar sete antepassados ricos, ele julga ser a expressão de uma curta visão das coisas: estas pessoas a quem falta instrução só conseguem voltar suas vistas para o que as cerca e nunca para o todo, são incapazes de calcular que, avós, bisavós, cada um tem quantidades, quantidades que não poderíamos enumerar, nas quais se encontram ricos e mendigos, reis e escravos, Bárbaros e Helenos, apareceram e desapareceram dez mil e dez mil vezes fazendo um giro na linhagem de qualquer que seja. Que alguém se orgulhe de uma série de vinte e cinco ancestrais e que remonte a Hércules, filho de Anfitrião, parece-lhe isto coisa estranhamente mesquinha. O vigésimo quinto antepassado de Anfitrião terá sido o que o acaso o quis, sem falar do quinquagésimo antepassado deste vigésimo quinto. E o sábio se ri dos que não sabem fazer este cálculo, sem despojar-se das tolices que inflam suas almas. Em tudo isto ele aparece como objeto de riso do povo, quer porque esteja voltado para coisas muito fora de alcance, como se crê, ou porque não se preocupa de ver o que está imediatamente diante de seus pés.
"Mas, eis que, se alguém, ao contrário, for levado por ele para as alturas e consente em segui-lo além das questões do tipo "que mal te faço eu, ou tu me fazes?" para examinar em si mesmas em que consiste a justiça e a injustiça, sua essência respectiva, sua diferença com relação a todo o resto ou sua mútua distinção; que, ultrapassando questões como saber "se o Rei está feliz com seus montões de ouro", para abordar o problema do que é a realeza, do que é a felicidade e infelicidade humanas no seu sentido absoluto, e sua essência respectiva, os caminhos que convêm à natureza humana para conseguir uma e escapar a outra, desde que sobre todas estas questões, aquele que tem o espírito estreito fica obrigado a dar e defender uma resposta, é agora sua vez de pagar a pena de talião. A cabeça se lhe atordoa, por estar alçada a tais alturas. Sua vista se desprende do céu para profundezas desacostumadas de tal forma que ele se angustia, não encontra o que dizer, e se restringe a gaguejar. Este agora é quem se torna objeto de riso, não das servas da Trácia, nem de qualquer pessoa inculta, incapaz de perceber o seu ridículo, mas de todos aqueles que foram educados como homens livres. Assim se comportam um e outro: um, que uma efetiva liberdade e um lazer justamente aproveitado formaram, este precisamente que se chama filósofo, pode parecer simples quando se ocupa em trabalhos servis, e não saber, por exemplo, como dobrar uma coberta de viagem, como se prepara um prato, ou se forjam os discursos laudatórios. O outro pode, em tudo isto, sair-se muito bem. Mas, não saberá lançar sua capa sobre o ombro direito à maneira de um homem livre, nem adaptar-se à harmonia do discurso, para dignamente cantar a realidade da vida que pertence aos deuses e aos mortais bem-aventurados." (175, 176 a)
Esta ideia de o filósofo viver afastado da vida comum continua a existir em nossos dias. E isto produz uma reação natural de desconfiança com relação a ele. A isto se acrescenta número de casos, ou fatos excêntricos, através de que são em geral conhecidos os filósofos e a Filosofia.
Se encontramos uma frase como esta: "A mentira é verdade, porque se não é verdade não é mentira, é verdade", achamos que os filósofos se comprazem em confundir as ideias, e fazer um jogo de palavras. Retomando a fase, vejamos o que ela de fato exprime: a mentira, é verdade que é mentira; porque, se for verdadeiramente mentira, então é falso é mentira; e não se trata de mentira, mas verdade. Isto revela que a razão humana tem uma capacidade reflexiva: assim, não só tem conhecimentos verdadeiros ou falsos, como pode ter um conhecimento do conhecimento, e isso mesmo julgar se o conhecimento primeiro é, por sua vez, verdadeiro ou falso.
Mas, por vezes, são os sofismas que impressionam as pessoas, principalmente porque muitos se distraem ante as dificuldades de desfazer a aparente verdade de um sofisma. Tomemos um exemplo, e vejamos como, realmente, é necessário ter o espírito preparado, e conhecer bem as regras da Lógica, para conseguirmos sair de certas perplexidades criadas por um engenhoso artifício, em que um raciocínio aparece com as características de ser verdadeiro, e, no entanto, não o é: "Tudo o que é raro é caro; um cavalo bom e barato é raro; então, um cavalo bom e barato é caro".
O erro deste aparente silogismo nós encontramos no sujeito da primeira proposição: ela aparece sob a forma de uma proposição universal, quando na verdade é uma proposição particular. Quando dizemos "tudo", no caso, estamos exprimindo literariamente, e não logicamente. Estamos usando "tudo" para dizer que "quase tudo o que é raro é caro"; ou "em geral, o que é raro é caro". É como se disséssemos: "Tudo é mentira": ora, se tudo é mentira, então a expressão "tudo é mentira" também o é. É necessário distinguir o uso literário das palavras e o uso lógico: quando encontramos a expressão literária "tudo é mentira", na Lógica se diria "há muita mentira". Quando encontramos a famosa passagem de Vieira "Tudo cura o tempo... o que ele diz é que o tempo cura muita coisa...
Os filósofos ficam sendo conhecidos como os que confundem a mente dos outros, quando de fato é na Filosofia que encontramos os elementos capazes de livrar-nos da confusão das ideias, e da imprecisão da linguagem. Mas, o que é curioso notar é que é mais fácil o homem em geral interessar-se por este anedotário de equívocos e sofismas, de frases estranhas e abstrusas, do que interessar-se pelo que a Filosofia pode oferecer de claro e seguro.
O anedotário filosófico é sempre motivo de interesse. Isto não é mau, em princípio, porque neste anedotário há sempre um elemento intelectual, sobre que é interessante pensarmos.
Conta-se que certa vez Bias de Priene, um dos conhecidos como "os sete sábios da Grécia”, estava numa embarcação, onde se encontravam muitos malfeitores, quando se armou uma forte tempestade. Os homens, apavorados, puseram-se a rezar, quando Bias os interrompeu: "Por favor, não invoquem os deuses; se eles percebem que vocês todos estão aqui o barco afunda na certa".
Mais conhecido o caso de Sócrates e Xantipa, sua esposa, mulher conhecida como de muito mau gênio. Certa, vez, ao voltar para casa, um pouco mais tarde do que de hábito, conta-se que, ainda distante, sua mulher, da janela, dizia-lhe desaforos e fazia reclamações, até que, ao passar o filósofo sob a janela, Xantipa atirou-lhe um jarro de água, ao que Sócrates pacientemente respondera: "Bem, é assim mesmo, depois da trovoada vem a chuva".
Certa feita, Diógenes ouvira Platão descrever o homem como um bípede implume. Deu- se ao trabalho de depenar um frango, e atirou-o em meio ao círculo de discípulos do Mestre, exclamando: "Eis o homem para Platão".
Este mesmo Diógenes, o cínico, que a si mesmo se intitulava "o Cão", ficou simbolizando para muitos a figura do filósofo, por seus hábitos exóticos. Morava num tonel, e usava a própria mão para beber água, por entender que devia eliminar tudo o que fosse supérfluo na existência. Ficou conhecido também por andar com uma lanterna acesa em pleno dia, para espanto de todos, ao que explicava: "Estou procurando um verdadeiro homem".
Conta-se que São Tomás de Aquino, estando muito absorto em suas meditações, foi despertado por um outro frade, que o chamava para olhar o céu e ver um boi voando. Quando o gordo doutor se dirigiu à janela, provocou o riso geral. Mas, sem perder a calma, respondeu, sem aborrecimento algum: "Bem, eu pensava que seria mais fácil ver um boi voar do que ver um frade contando mentira".
Heráclito de Éfeso pregava o fluir permanente de todas as coisas. Um rio nunca é o mesmo rio, pois suas águas estão passando sempre, e quando entramos num rio uma segunda vez, já não é o mesmo, pois suas águas já são outras. Crátilo, que foi seu discípulo, dizia então que deveríamos guardar silêncio permanente, e jamais falar, porque se falássemos sobre alguma coisa, e tudo está em perene transformação, então não adianta falar: quando estivermos falando sobre alguma coisa da realidade, ela já se terá transformado.
Mais estranho é pensar que, enquanto Heráclito afirmava a mudança de todas as cosias, Parmênides defendia a tese da imutabilidade real. As transformações seriam meras aparências: por trás das aparências, o real permanecia imutável. Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, chegou mesmo a formular alguns argumentos para provar que o movimento seria pura aparência sensível, pois parecia incompreensível para a inteligência. Vejamos um de seus argumentos, o chamado argumento da flecha: quando vemos atirar uma flecha e esta atingir um alvo, devemos pensar o que isto significa para a inteligência. E, então, diz ele: Ora, dizer que uma flecha atinge o alvo é dizer ela atravessa o espaço que vai de seu ponto de origem até o alvo; atravessar este espaço é por todos os seus pontos; mas passar por todos os pontos é atravessar cada um deles. Então, é necessário pensar o que significa atravessar um ponto: é dizer que num determinado momento a flecha está e não está num mesmo ponto. Como não é possível pensar que algo esteja e não esteja num determinado lugar no mesmo instante, o movimento aparece como ininteligível.
Górgias, famoso sofista grego, dizia: “Não existe verdade; se existe, não a conhecemos; se a conhecemos não podemos transmiti-la”. Como Górgias valorizava apenas o conhecimento sensível, assim explicava o seu conceito: se vemos alguma coisa, temos uma imagem visual do que vemos: ora, a imagem visual não é a mesma coisa que o real; por outro lado, se relatamos o que vimos, em lugar de uma imagem visual, transmitimos uma imagem sonora, que não substitui a primeira.
Tudo isto, apresentado assim, isoladamente, conduz efetivamente a uma impressão estranha do que seja a Filosofia. Ela nos aparece sob uma feição inacessível. Leibniz dizia, com razão, que as teses mais estranhas e abstrusas encontravam sempre um filósofo que as defendesse, e com muito boas razões. E, na verdade, o que encanta no campo da Filosofia não é o fato de estarmos sempre diante da verdade, mas num plano de inteligência em que até nos erros dos filósofos temos sempre alguma coisa a aprender. Por isso, dizia São Tomás de Aquino: "Na investigação da verdade recebemos ajuda dos outros de duas maneiras. Um auxílio direto recebemos dos que encontraram a verdade. Se cada um dos pensadores anteriores encontrou algum fragmento da verdade, estes fragmentos, reunidos em uma unidade e um todo, são poderosa ajuda para chegar a um conhecimento compreensivo da verdade. Indiretamente os pensadores são favorecidos pelos que os precederam, porque os erros dos antigos dão aos pósteros ocasião de pôr a claro a verdade por uma reflexão mais séria. É, pois, justo que sejamos reconhecidos a todos os que nos tenham ajudado no esforço por alcançar o bem da verdade" (In II Metaph., lect. 1).
É por esta razão que aquele que se dedica ao estudo da Filosofia não abandona, como inúteis, posições que aparentemente podem parecer absurdas ou grotescas. O estudioso da Filosofia sabe o quanto é difícil atingir uma verdade. Por isso, não despreza nenhum esforço realizado neste sentido, e do próprio erro procura tirar sempre algum ensinamento. Mas, isto é de fato uma realidade muito diversa da impressão generalizada de que o filósofo se compraz no cultivo de um modo de viver e de pensar exóticos, que é razão para que se considere o filósofo vivendo um tipo de vida incomum. Por isso julgamos sempre que há uma grande distância entre o modo de viver e de pensar dos filósofos e o viver e o pensar dos homens em geral. Na verdade, porém, os filósofos convivem conosco.
Assim como a atmosfera em que vivemos está povoada de seres invisíveis, que aspiramos em nossa respiração, sem o saber, a atmosfera de nossa vida de pensamentos está povoada de ideias dos filósofos, que fazemos circular, sem ter a menor consciência disto. No mais das vezes, o que julgamos ser manifestação espontânea de nosso próprio pensamento, ou expressão do senso comum, exprime na verdade resíduos de ideias defendidas por filósofos, ideias que se tornaram populares, e se desligaram do seu contexto e de suas origens.
Propomo-nos, assim, chamar a atenção para o que efetivamente acontece: os filósofos, que julgamos distantes de nós, vivem conosco, ao nosso lado, e até em nós mesmos, presentes em nossos pensamentos. Nós os conduzimos conosco, sem o saber.
Quantos brasileiros ignoram que o lema "Ordem e Progresso" inscrito em nossa bandeira foi tomado da filosofia positivista de Augusto Comte! Augusto Comte dizia: o amor por base, pregando um sentimento de fraternidade e de filantropia; a ordem por meio, pois sem ordem nada pode ser construído de estável; o progresso por fim, porque para ele, que não aceitava o sobrenatural, tudo se reduzia a uma evolução social e política da humanidade, cujo termo só poderia ser indicado vagamente no conceito de progresso, entendido simplesmente como superação.
Da mesma forma, passou a ser um rifão popular a expressão "contra fatos não há argumentos". É do próprio positivismo que retiramos este princípio. O positivismo, defendendo o conhecimento direto dos fatos pela observação, criticava a interpretação e a teorização, que poderiam deformar os fatos por uma fabulação ou um enredo, que não correspondesse à realidade observável.
E, por falar em positivismo, lembremos ainda uma frase de Augusto Comte: "Os vivos são cada vez mais dirigidos pelos mortos". Esta frase, que para Augusto Comte significava que o exemplo de nossos ancestrais, e a figura dos homens ilustres, inspirava a vida do homem, chega a ser tomada, inclusive, por vezes, como significando que devamos ouvir a palavra dos mortos, como fazem os espiritas.
Quando encontramos alguém que julga que a vida deva consistir no gozo dos prazeres sensíveis, aí está, sem o saber, um epicurista. Epicuro, na verdade, a princípio, julgou que o bem do homem estava no gozo dos prazeres imediatos. Mas, depois, refletindo melhor, verificou que o gozo sensível tem sempre um limite, e, o que é pior, no mais das vezes produz reações opostas, como a fadiga, o enjoo, o tédio. Daí ter distinguido entre os prazeres móveis e os prazeres estáveis, para enfim concluir que apenas o saber poderia representar uma satisfação estável.
Quando encontramos alguém para quem não existe verdade, aí encontramos um cético. Mas é preciso saber que o ceticismo absoluto é uma contradição em si mesmo: dizer "não existe verdade", ou é pretender que isto seja verdade, o que nega o que é afirmado; ou se não pretende que a afirmação seja verdadeira, então se trata de uma afirmação inconsequente.
Se encontramos a concepção de um relativismo, em que se afirma que cada um tem uma verdade para si mesmo, estamos diante de um ceticismo relativista à feição de Protágoras, que dizia: "O homem é a medida de todas as coisas", ou seja o que serviu de título a uma peça teatral de Shakespeare: "Assim é se lhe parece". Deste ceticismo relativista, encarrega-se a própria sociedade, que exige para uma vida dos homens em comum a existência de concepções em torno das quais possam os homens entender-se.
Há os que julgam que não atingimos o conhecimento da verdade, mas apenas um conhecimento aproximado da verdade. Pois estes, sem o saberem, estão na linha do ceticismo probabilista de Cícero. Mas, vejamos: se não podemos conhecer a verdade, como podemos saber que temos um conhecimento que se aproxima da verdade?
Há criaturas irritadiças, armadas contra tudo e contra todos. Estão sempre criticando negativamente. Estas poderiam ser colocadas na classe do pirronismo. Não se trata de uma posição propriamente teórica, mas de uma atitude de espírito. Com relação a elas, lembraríamos o que dizia Aristóteles: não basta afirmar, ou negar; é necessário sempre poder apresentar as razões fundadas em que nós afirmamos ou negamos alguma coisa. Sem isto, não nos colocamos numa posição racional, mas apenas assumimos uma posição por capricho, posição esta que nem pode ser compreendida, pois que, sem a possibilidade de considerar em que se funda, estaremos sempre diante apenas de palavras, e não diante de ideias.
Quando alguém nos diz, por exemplo, que uma obra de arte não tem valor em si, mas vale apenas pela impressão causada no espectador, e admite que cada um possa ter uma impressão completamente diversa sobre o mesmo objeto, ele está assumindo uma posição que, em Filosofia, se denomina idealismo subjetivo. Emanuel Kant, filósofo alemão, levou às suas últimas consequências a ideia de que nós não conhecemos o objeto real, a coisa em si, apenas a impressão produzida por ela em nossa sensibilidade e em nosso entendimento. Não conhecemos a coisa como tal, mas sabemos que ela produz em nós uma impressão. Por isto, um de seus críticos assim traduziu a crítica fundamental ao idealismo subjetivo de Kant: para entrar no kantismo é necessário aceitar a coisa em si, mas para ficar no kantismo é necessário negar a coisa em si.
Há os que em lugar de procurarem realizar um esforço de aprendizagem e de disciplina da razão, para dominarem os problemas da existência, acham que podem esperar sob forma de mensagens as doutrinas salvadoras, bastando para isto um comportamento moral adequado. Estes revivem o movimento dos gnósticos, que, num período dominado pelo ceticismo, nos séculos II e I antes de Cristo entenderam que o esforço racional seria inútil. Sendo assim, só lhes restava esperar as revelações particulares, que os espíritos mensageiros iriam trazendo do além. Para estes, no entanto, ficaria sempre a dúvida de saber como reconhecer a mensagem válida ou enganosa. E isto forçaria necessariamente a retomada dos problemas à luz da razão, segundo o esforço natural, sem o que jamais poderia ele ter segurança com relação ao valor das ideias assumidas para a direção de sua vida.
Há os que negam a existência de uma vida espiritual, e tudo pretendem entender como expressão da matéria. Estes estão ligados ao materialismo. Mas, o materialismo enfrenta, para os próprios materialistas, os mais graves problemas. O grande sustentáculo do materialismo foi a ciência. Mas a ciência quando procura conhecer pela força da razão natural, sem apelar a Deus nas suas explicações, sabe que isto representa um método de trabalho, e não uma solução do problema da existência de Deus ou da sobrevivência espiritual da alma humana, pois estes problemas não são abordados pela ciência experimental. A ciência pode dizer que não os trata, mas não pode apresentar para eles uma solução, que não lhe cabe. A ideia materialista do mundo obriga o homem, por outro lado, a explicações anticientíficas: assim é que ele necessita afirmar que a ordem do universo e o plano orgânico dos seres vivos, como a estrutura dos seres brutos, tudo isto é obra do acaso, enquanto a ciência, no seu progresso, vai penetrando cada vez mais no espetáculo extraordinário das leis e princípios que regem a natureza, revelando nisto um plano inteligente e sábio.
Encontramos os que julgam o real um ser único, em que tudo existe apenas como aspectos particulares de um todo. São os monistas. Há monistas de diversos tipos, uns de coloração religiosa, outros de teor naturalista. Os regimes totalitários são aplicações politicas desta concepção: o Estado é a realidade, o indivíduo por si nada é, e por isso deve submeter-se inteiramente aos desígnios do Estado Todo-Poderoso. A união moral, que é uma união ideal, passa a ser concebida como uma união real. Esta união, que se faz pelo consentimento da vontade, passa a ser entendida no sentido de não levar em conta a pessoa humana com sua dignidade individuante, de tal modo que ela é julgada apenas como uma peça particular na engrenagem geral do mecanismo do Estado. Esta posição se chama em Filosofia de idealismo absoluto, ou idealismo transcendental, sendo que idealismo, na concepção filosófica, não é o que geralmente se entende por idealismo (o fato de um homem lutar por suas ideia), mas é a posição doutrinária que, em lugar de submeter as ideias à realidade, pretende submeter a realidade às ideias.
Há os que julgam que a razão tem um valor absoluto, e tudo pode ser explicado pela razão. Estes estão na linha do racionalismo. Para sermos simples, recordemos a resposta dada certa vez a um racionalista, que se propunha tudo explicar pela razão: "Não, respondeu-lhe um homem simples, não quero isto, pois o senhor jamais poderia provar-me racionalmente que meu pai e minha mãe são realmente meus pais".
Poderíamos alargar por muito tempo ainda a série dos exemplos. Basta-nos, contudo, mostrar que os homens carregam consigo posições filosóficas, assumidas arbitrariamente. Assumem estas posições pelas razões mais díspares. Mas não sabem, como os filósofos, justificar racionalmente as posições assumidas. Não sabem como estas ideias podem ser defendidas, ou criticadas, e com isto podem estar, na verdade, assumindo uma posição que os afaste da realidade da existência. Não são, pois, os filósofos que se afastam da vida. Eles convivem conosco, marcando a vida humana com a sua presença constante. Os homens que julgam não afastar-se da vida, estes, por não se ocuparem da Filosofia, estes sim podem estar afastados da realidade, pois deixam, por deficiência da concepção, de viver como poderiam e deveriam viver. Vivemos diante desta presença dos filósofos, pois as suas ideias se manifestam a todos os instantes. Mas estas ideias, eles as sustentavam procurando encontrar para justificá-las razões profundas. Os filósofos, através das ideias que nos legaram, acompanham a nossa vida. E nós? Será que nós poderemos também acompanhar os filósofos?
As crianças gostam de ouvir histórias. E gostam de criar histórias: na brincadeira de “faz de conta", cada qual vai representando um papel da história, que se compraz em criar. Ninguém duvida que o mundo da criança é povoado de fabulações. Pouco importa que as histórias sejam fantásticas; que apareçam gigantes ou monstros, lobos ou fadas, mundos de chocolate, ou desertos e noites escuras: o que importa é que as histórias tenham um enredo. Em geral, julgamos que a criança está atraída pelo fantástico, mas a verdade é que ela está atraída pelo enredo. Por isso, ansiosa, pergunta sempre: "E aí?" Este "e aí?" tão comum, tão característico, esconde uma significação da maior importância. O enredo, que atrai a criança, marca a tendência natural da inteligência humana de procurar a teoria. O homem é, por excelência, um animal capaz de fazer teorias.
Um famoso filósofo francês, Bergson, diz que o homem antes de ser homo sapiens é homo faber, quer dizer, antes de ser o teórico é o prático. Sua concepção decorre da observação de que o homem, premido pelas necessidades, é levado em primeiro lugar à luta de ordem prática, que visa à solução dos problemas relativos à sua sobrevivência. Neste sentido, nele se formam hábitos voltados para a vida prática, antes de se formarem as condições de desenvolvimento teórico. Será isto verdade?
Os homens, desde a idade da pedra, nos deixaram sinais, que hoje empolgam os historiadores da arte, nos desenhos e pinturas gravados no interior das cavernas em que viviam. Pois bem, uma consideração mais atenta do significado destas gravuras nos leva à conclusão seguinte: nestes sinais da arte primitiva, há mais do que uma simples distração. Há a representação da figura dos animais perigosos, dos animais de caça, com a indicação dos seus pontos vitais, dos pontos em que deviam ser flechados. Há, pois, interpretações autorizadas que veem nestas figuras um elemento pedagógico, de que se serviriam os caçadores de então para ensinar aos jovens a arte da caça. Dada a probabilidade de ser verdadeira esta interpretação, vemos aí que, até mesmo com relação a uma providência eminentemente prática, qual seja a procura de alimentos para a sobrevivência, manifestava-se a tendência teórica do homem, que exprimia assim uma concepção sobre a caça.
A tendência natural do homem para a teoria manifesta-se no fato de que espontaneamente formamos uma opinião sobre os acontecimentos, antes mesmo de nos preocuparmos com o conhecimento preciso das ocorrências sobre as quais manifestamos a nossa opinião. Mesmo no setor da ciência, a preocupação com a colheita precisa dos fatos é relativamente recente, pois, antes, o espírito humano estava voltado primordialmente para a construção das grandes teorias, explicativas do universo no seu todo.
Todos os povos, nas suas origens culturais, apresentam de modo característico as lendas e as fabulações mitológicas que aparecem como formas de exprimir um enredo relacionando os fatos observados pelos espíritos ingênuos. São elas as formas elementares da teorização.
Num dos mais antigos textos da literatura universal. "A História do Marinheiro Naufragado", encontrada num papiro do velho Egito, e atribuída ao período de 2.000 anos antes de Cristo, diz-se assim: "Contar-te-ei alguma coisa do que vi por mim, quando embarquei para as minas do Soberbo e naufraguei num navio de 180 pés de comprido por 60 de largura, no qual estavam 120 marinheiros dos melhores do Egito. Eles devassavam os céus, devassavam a terra e tinham corações de leões. Eles previram uma tempestade e não erraram. Um temporal nos colheu no mar. Velejamos diante do vento, que levantou uma onda de oito cúbitos de altura... Então o navio soçobrou e todos pereceram. E eu fui lançado a uma ilha por uma onda do mar, e passei três dias sozinho com o meu coração. Dormi sob uma árvore, abraçado com a sua sombra. Pus-me depois a andar à procura do que comer. Encontrei figos e videiras, e toda sorte de finas coisas. Havia peixes e aves, e nada faltava lá. Acendi fogo e fiz uma oferenda aos deuses". Poderíamos julgar no relato a sua simplicidade e pureza, além de identificar na história a primeira versão do futuro Simbad, o Marujo, ou o Robinson Crusoé. A nós interessa mostrar o aspecto teórico que precede ao mesmo. Pois, antes de iniciar a história, diz o seu autor desconhecido: "Feliz é aquele que conta as suas experiências depois que as calamidades passaram”.
As primeiras tentativas explicativas dos mistérios da existência fizeram-se sob forma de histórias, ou de lendas.
Na Índia, em um dos "Upanishads", encontramos esta versão dos primórdios da Criação: "Na verdade, ele não tinha prazer; um só não tinha prazer; ele desejou um segundo. Ele era, na realidade, tão grande como uma mulher e um homem abraçados. Ele fez esse eu cair em dois pedaços: desses pedaços saíram um marido e uma esposa. Por isso cada um é como uma metade; por isso esse pedaço se enche como uma mulher. Ele se uniu a ela. Por isso seres humanos vieram. E ela ponderou consigo: "Como se une ele comigo depois de ter-me tirado de si próprio? Deixa que me esconda". Ela transformou-se em vaca. Ele transformou-se em touro. Com ela se uniu. E o gado nasceu. Ela se transformou em égua, e ele em cavalo. Ela se transformou em jumenta e ele em jumento. Com ela uniu-se, e daí nasceram os animais de casco. Ela se tornou cabra, e ele bode. Com ela se uniu, e nasceram cabras e carneiros. Assim, realmente, ele criou tudo, todos os pares, mesmo as formigas. Ele sabia: “Eu realmente sou esta criação, porque eu emiti tudo de mim mesmo". E assim surgiu a Criação.
A religião egípcia cultuava a vida, em todas as suas misteriosas manifestações: a palmeira, que dava sombra no deserto; a fonte, que lhe dava água num oásis; o sicômoro, que florescia nas areias; os pepinos, as uvas, as cebolas; os animais, como o boi, o crocodilo, o gato, o falcão, o ganso, o bode, o carneiro, o cão, a galinha, a andorinha, o chacal, a serpente. Quando os deuses foram cultuados como entidades humanizadas, ainda eram representados pelas figuras animais, exprimindo a sua força característica. Osíris era cultuado, por sua morte e ressurreição, símbolo da enchente e vazão do Nilo. Nas últimas dinastias, corria a lenda de que Set, perverso deus da seca, encolerizou-se com Osíris por derramar com a enchente a fertilidade sobre a terra, e, por isso, matou-o. Reinou, então, sobre a árida região. Chegou o dia em que Hórus, filho de Isis, o derrubou e expulsou: e Osíris ressuscitou ao calor do amor de Ísis, e governou o Egito, estabelecendo a civilização, até que subiu ao céu para reinar eternamente como deus.
Na Pérsia, uma lenda relata as origens de Zaratustra ou Zoroastro, que conduziu os persas do culto fetichista para o culto dum só deus, Ahura-Mazda, Senhor da Luz e do Céu.
Conta-se que o seu anjo da guarda entrara na planta "haoma" e passara com a seiva para o corpo de um sacerdote, quando este oferecia um sacrifício aos deuses; no mesmo instante um raio da glória celeste entrou no seio de uma virgem de alta linhagem. O sacerdote desposou a virgem, o anjo assimilado pelo seu corpo misturou-se com o raio aprisionado — e surgiu Zaratustra. Começou a vida rindo-se alto no próprio dia do nascimento, e os espíritos maus que se reúnem em torno de cada nova vida fugiram dele em tumulto e com terror. Seu grande amor à justiça e à sabedoria o fez afastar-se da sociedade dos homens e ir viver no agreste das montanhas, alimentando-se de queijo e frutos da terra. Tentou-o o Diabo, mas sem sucesso. Seu peito foi varado por uma espada, e suas entranhas cheias de chumbo derretido; ele não se queixou, e ainda mais se aferrou à fé em Ahura-Mazda — o Senhor da Luz, deus supremo. Mazda aparece-lhe e põe-lhe nas mãos o Avesta, ou Livro da Ciência e da Sabedoria, mandando que o pregasse ao gênero humano. Por muito tempo foi ridicularizado e perseguido; mas, por fim, um alto príncipe do Irã — Vishtapa ou Histaspes — o ouviu com alegria e prometeu-lhe difundir a nova fé. E assim nasceu a religião de Zoroastro. Este viveu vida longa, tendo sido consumido por um raio, e subido ao céu.
A mitologia grega nos apresenta uma série enorme de fabulações explicativas dos fenômenos e das forças da natureza. Entre elas, destacamos a lenda de Prometeu, onde se procura explicar as origens do homem e da mulher, e a natureza racional do ser humano, diante do bem e do mal. Prometeu, que era um dos deuses gregos, cujo nome significa "o previdente", não foi apenas um deus industrioso, mas um criador. Havia notado ele que, entre todas as criaturas vivas, não havia nenhuma que fosse capaz de descobrir, de estudar, de usar as forças da natureza, de dirigir os demais, de estabelecer entre eles ordem e harmonia, de comunicar-se pelo pensamento com as deuses, de alcançar por sua inteligência mão apenas o mundo visível, mas ainda os princípios e a essência de todas as coisas: e, do limo da terra, formou o homem.
"Minerva admirou a beleza de sua obra, e ofereceu a Prometeu tudo o que pudesse contribuir para sua perfeição. Reconhecido, Prometeu aceita o oferecimento da deusa, mas acrescenta que, para escolher o que melhor conviria à obra que criara, seria necessário ver com seus próprios olhos as regiões celestes. Minerva o conduz ao céu, e ele daí só volta depois de ter roubado aos deuses, para dar ao homem, o fogo, elemento indispensável à indústria humana. Este fogo divino, que ele traz para a terra, Prometeu o apanhou no carro do Sol e o escondera no cabo de uma bengala, que era oco.
"Irritado com um tão audacioso atentado, Júpiter ordena a Vulcão forjar uma mulher que fosse dotada de todas as perfeições, e apresentá-la à assembleia dos deuses. Minerva a reveste de um manto de brancura admirável, cobre-lhe a cabeça com um véu, e guirlandas de flores, e por cima uma coroa de ouro. Neste estado, Vulcão a conduz. Todos os deuses admiraram esta nova criatura, e cada um quer dar- lhe o seu presente. Minerva lhe ensina as artes que convêm a seu sexo, entre as quais a arte de tecer. Vênus expande sobre ela um trato ameno com o desejo inquieto e os cuidados fatigantes. As graças e as deusas da Persuasão ornam seu pescoço com colares de ouro. Mercúrio lhe dá a palavra com a arte de prender os corações através dos discursos insinuantes. Enfim, todos os deuses lhe tendo dado seus presentes, ela recebe o nome de Pandora (do grego pan, "tudo", e doron, "dom"). Quanto a Júpiter, ele lhe entrega uma caixa bem fechada, e lhe ordena entregá-la a Prometeu.
"Este, desconfiando de alguma armadilha, não quer receber nem Pandora, nem a caixa, e adverte mesmo a seu irmão, Epimeteu, cujo nome em grego significa "o que reflete muito tarde: este só julgava das coisas depois do acontecido. Ante a figura de Pandora, todas as recomendações fraternas foram esquecidas, e ele a toma por esposa. A caixa fatal foi aberta e deixa escapar todos os males e todos os crimes, que depois se espalharam pelo Universo. Epimeteu ainda tentou fechá-la, mas era tarde. Só consegue reter a Esperança, que estava quase saindo, e que ficou na caixa hermeticamente fechada.
"Júpiter, enfim, contrariado porque Prometeu não caiu no seu artifício, ordena a Mercúrio conduzi-lo sobre o monte Cáucaso, e prendê-lo a um rochedo, onde uma águia devia devorar-lhe o fígado para sempre" (Cf. P. COMMELIN, Nouvelle Mythologie grecque et romaine).
A teoria nada mais é que um enredo em termos abstratos. Os mitos, as lendas, as histórias são enredos em termos concretos. Assim, as histórias, as lendas, os mitos, foram as primeiras manifestações desta tendência teorizante do ser humano. Na Grécia antiga, a figura de Hesíodo representa um papel da maior importância, como uma figura de transição entre um período tipicamente mitológico, e um período decididamente técnico. Hesíodo não se contenta com os mitos isolados, com os mitos que representam fatos ou acontecimentos particulares. E ele tece um grande enredo, na sua obra Teogonia, em que, embora sob forma mitológica, pretende abarcar num único plano geral todos os acontecimentos da existência. Estava preparado o caminho da teoria pura. Mais tarde se descobriria que, para abarcar o geral, seria necessário fixar-se aos princípios abstratos, e não aos casos particulares. Só assim seria possível atingir um conhecimento universal. Desta forma, valoriza-se o conhecimento abstrato, e caminha-se para o plano da teoria geral.
Fizemos um retrospecto, através da História, das manifestações da cultura, que, desde os seus primórdios, indicam esta tendência do espírito humano para a teorização. Poderíamos seguir caminho diverso, e partir da análise das manifestações espontâneas da natureza humana.
Em primeiro lugar, retomar o gosto infantil pelas histórias. Não se trata de uma expressão característica de uma fase do desenvolvimento humano. Mas de uma característica geral do homem, que se manifesta desde a infância. No homem adulto, esta tendência se manifesta na facilidade com que o homem arma suas opiniões. A opinião é um enredo, é uma estrutura teórica embrionária, que se forma inopinadamente no espírito humano, diante de um fato. É necessário um grande esforço para que o homem se fixe estritamente ao que pode observar numa ocorrência que lhe é dado conhecer. Em geral, faz sobre ela uma interpretação, liga-a a outros fatos, associa-a a alguma lembrança fixada em sua memória, e assim forma imediatamente uma opinião. Reage contra a apreensão isolada dos fatos; aspira por colocá-la imediatamente dentro de uma estrutura. Num depoimento, é sempre difícil o relato dos fatos, pois há um impulso incontrolável de manifestar sempre, ao lado dos fatos, uma opinião ou um juízo sobre eles.
Podemos dizer que até dormindo esta tendência se manifesta. Os sonhos são enredos que se formam no psiquismo humano, para preservar o sono. O enredo que se arma no sonho tranquiliza a criatura que sonha, Grande parte dos sonhos apresentam à imaginação a realização daquilo que não se realiza no estado de vigília. Os pesadelos e os sonhos assustadores são casos particulares, em que esta tendência fabuladora não consegue realizar-se completamente, graças à permanência insistente de certos fatores subconscientes, ou afetivos.
Há, também, um fato característico, que a Psicanálise denominou de "racionalização”. Trata-se da construção de uma teoria explicativa, que funciona como justificação, devido a um fator afetivo persistente. Neste caso, a teoria não decorre de um processo racional. Antes, o que impõe a conclusão é uma fixação afetiva: a teoria aparece como uma fabulação, que justifica a persistência do estado afetivo. Vamos dar um exemplo: uma jovem se apaixona por um rapaz (aí está o fator de fixação afetiva); todos os seus amigos a aconselham a afastar-se dele, em virtude de várias informações desfavoráveis; forma-se, subconscientemente, uma teoria justificativa para que ela não se afaste dele, teoria na qual ela mesma é a primeira a acreditar: acha que mantém amizade com o rapaz porque entende que deva ajudá-lo a converter-se ao bom caminho.
Esta tendência à teorização se manifesta igualmente na ciência. Tão natural parece-nos em geral que ciência caiba a obrigação de construir teorias, que haveremos de estranhar o problema que agora colocamos em foco. A tarefa da ciência não é a de construir teorias; mas a de formular teorias que efetivamente correspondam à realidade; e saber, exatamente, quando tem elementos suficientes para estabelecer teorias, ou deva limitar-se estritamente a coligir uma série de fatos colhidos com precisão, mas incapazes para sustentar uma teoria, ou por serem insuficientes, ou porque falta ao cientista um princípio formal capaz de lhes dar uma unidade lógica.
Já no século XVI, Francis Bacon, em sua obra Novum Organon, dizia: "De onde se deduzem os princípios que hoje nos servem de base? De um certo número de pequenas experiências, de um número extremamente reduzido de fatos familiares, de observações triviais" (§ XXV). Com isto, Bacon fazia uma advertência da maior importância: a ciência não pode pretender um valor de verdade, se não cuida da estrita precisão dos fatos colhidos, e que lhe servem de fundamento às teorias que os pretendem explicar.
Devemos recordar que ainda durante séculos encontramos na ciência a preocupação predominante com as teorias. Se algum fato novo não obedecesse à teoria previamente construída, atribuía-se isto a uma deficiência experimental, ou se criava alguma explicação que contornasse a dificuldade. Depois da segunda metade do século XVIII é que, realmente, a ciência começou a dar um valor primordial ao fato, até que em nossos dias, com a teoria da relatividade, o problema se pôs de maneira totalmente clara: se existem fatos colhidos com precisão, que não cabem numa teoria, é necessário modificar a teoria.
Uma das conquistas da teoria da relatividade estabelecida por Einstein foi considerar o observador como parte do problema tratado por ele. Até então a ciência olhava o cientista como um ser absoluto, fora da ordem dos acontecimentos tratados por ele. Agora, passa-se a considerar a variação das medidas na ciência, de acordo com a posição do observador. O problema de conhecimento do mundo passa a ter mais um fator, ou um termo, que é o próprio investigador que pretende solucionar os problemas do mundo.
Custou o homem a aprender que não basta procurar a solução dos problemas construindo teorias. Difícil, realmente, é saber que o primeiro problema é o de saber como se coloca devidamente um problema.
O sucesso da Matemática fez com que muitos pensadores construíssem uma explicação do mundo segundo um modelo matemático. Resta saber se conhecemos verdadeiramente o mundo, se excluímos todo o seu aspecto qualitativo e o reduzimos apenas às relações quantitativas.
Dado o sucesso da Física, com suas concepções mecanicistas do século XVIII, logo surgiram teorias no campo da Psicologia explicando o mecanismo do conhecimento em termos de física mecanicista. Não se cuidou de saber, em primeiro lugar, se o fato psicológico era da mesma natureza do fato físico. Não foi surpresa, portanto, que uma forte reação se fizesse sentir no sentido de restabelecer o psicológico no seu plano próprio.
Devemos levar em conta a importância deste fato, pois até no terreno da própria ciência que se esforça por adquirir um conhecimento preciso, esta tendência teorizante, própria à natureza humana, tem feito com que o conhecimento científico fique submetido a constante correção, com vistas a corresponder estritamente à realidade dos fatos.
No terreno da Filosofia, como no terreno das ideias diretrizes da vida humana, em geral, o problema cresce de complexidade. Na verdade, não faltam teorias. As teorias existem, dos mais diversos tipos, e para os mais diversos gostos. Toda a questão é a de saber se elas correspondem à realidade. De fato, o problema por excelência da Filosofia se põe neste ponto: existem filosofias e Filosofia.
De um modo geral, o homem identifica como filosofia qualquer doutrina, ou concepção que exprima uma visão geral da vida. A simples construção de um enredo explicativo da vida não é Filosofia. Filosofia não é uma teoria qualquer, arbitrariamente enredada. Ela exige uma responsabilidade, que obriga a uma disciplina racional; exige uma colocação problemas da vida humana em termos adequados (se colocarmos mal os problemas, não podemos esperar soluções corretas); depois, um tratamento igualmente responsável e proporcional destes problemas.
De tal forma isto é fundamental para a compreensão de uma verdadeira Filosofia, que, para acentuar este fato, mudamos a ordem natural por que se entende a questão. Não devemos preocupar-nos em primeiro lugar com as teorias: devemos cuidar antes de tudo de verificar se a colocação dos problemas se faz corretamente.
Vejamos alguns exemplos:
Certa vez, disse-nos um professor de matemática: "Se me apresentassem uma demonstração matemática da existência de Deus, eu acreditaria em Deus". À primeira vista, a proposição parece ter sentido. Se a matemática aparece como sendo a ciência de maior precisão, para uma visão superficial a questão parece cabível, e, no entanto, encerra um completo absurdo. Respondi, então, o seguinte: "Se me fizessem uma demonstração matemática da existência de Deus, eu não acreditaria em Deus". Espantado, perguntou-me ele: "Mas... Por quê?"— "Porque, respondi-lhe, se me dessem uma demonstração matemática da existência de Deus, isto significaria que Deus seria apenas uma entidade matemática”. Claro. A matemática não pode demonstrar, por exemplo, a existência do mundo físico. A matemática não pode demonstrar que os seres físicos têm cor ou forma. A matemática lida apenas com entidades matemáticas, conceitos abstratos criados pelos matemáticos. A matemática, como uma ciência inteiramente abstrata e dedutiva, pode servir como linguagem exprimir certas relações do mundo exterior segundo uma perspectiva do sujeito que dela se utiliza nesta expressão. Mas, não sendo uma ciência de observação, nada pode dizer sobre o ser real. Como, pois, pretender que fosse válida uma demonstração matemática da existência de Deus? — Vemos aí um exemplo de como a posição verdadeira consiste em devolver a solução aos seus problemas adequados; o de que uma teoria matemática pode tratar apenas e exclusivamente problemas matemáticos.
Por vezes ouvimos dizer que não existe sobrevivência da alma humana porque nenhum microscópio por mais aperfeiçoado jamais alcançou visão de alguma coisa que pudesse ser afirmada como sendo a alma. Ora, conceber a alma espiritual do homem como tendo caraterísticas sensíveis já não é colocar o problema em termos que possam apresentar uma solução válida. E, se já temos pronta a solução, na convicção de que tudo o que existe é puramente material, para que colocar o problema da existência da alma espiritual? Mas, se queremos tratar efetivamente do problema, não basta ter já antecipadamente uma solução, que não é uma resposta científica, mas simplesmente uma convicção.
Precisamos pensar de outra forma. Se a alma humana puder sobreviver à morte do corpo, porque ela não se confundirá com a natureza física do ser humano. Então, já de saída saberemos que não podemos responder à questão aplicando os métodos utilizados no conhecimento do mundo físico. Seremos obrigados ao emprego de um método demonstrativo, ou de conhecimento indireto, e nunca pretender um conhecimento direto por observação. Como vemos, não basta ter uma solução: é necessário procurar a colocação correta do problema.
Ouvimos falar numa concepção da vida do homem em sociedade como a de um organismo social. Trata-se de uma concepção por analogia simples. Podemos aceitar a ideia de organismo social se ao falar "organismo" entendemos organização, ordem, plano institucional da vida humana. Mas, se a ideia de organismo faz entender a sociedade humana como um ser real, e não apenas como uma entidade moral, em que as pessoas humanas se unem através de ideais comuns, então temos uma concepção que deforma a realidade. A teoria de uma organicidade tomada em si mesma é válida: mas, aplicada a uma realidade, é necessário determinar bem a que ela pode ser aplicada. Não basta a teoria: é necessária a consciente e clara colocação do problema para poder verificar se pode ou não, ou em que proporção apenas pode ser aplicada ao real.
Temos um princípio teórico: "não matarás”. Qual o problema a que corresponde este princípio? Um homem que mata estritamente em legítima defesa está descumprindo este princípio? Se matou em legítima defesa, na verdade fez cumprir o princípio impedindo que o outro o matasse. Para isto, foi necessário matar. Será julgado, para que se verifique se o recurso extremo representava efetivamente a única forma de evitar que o ato de assassinato consumasse por parte do outro. Como vemos, basta o princípio teórico: é necessário colocar bem o problema como ele se põe na realidade, para atingir a validade do que está expresso na teoria.
Infelizmente, o homem é um animal que alimenta de teorias. O dom da razão, pelo qual lhe é dada a faculdade de investigar a realidade, e participar da existência, compreendendo a sua posição no mundo e a significação dos fatos que o cercam, leva-o no mais das vezes, por uma tendência ao menor esforço, a adormecer sobre as teorias. É necessário compreender que a inteligência deve estar permanentemente despertada, porque a vida humana se desdobra entre o mundo dos fatos e o mundo teórico, e só um permanente esforço intelectual faz com que estes dois planos se conjuguem.
Devemos ser bons. Mas, o que é ser bom? E quando conseguimos ser bons? Quando é que dar esmola é ser bom? Qual é o problema? Trata-se de um necessitado? Trata-se de um vadio?
Em matéria de educação, devemos ser pacientes. Qual é o problema? Trata-se de compreensão diante de uma deficiência insanável? Trata-se de desculpar as faltas, e incentiva os atos maus?
Não nos bastam as teorias. É necessário que saibamos sempre relacioná-las aos problemas a que se referem. É necessário, especialmente, saber colocar os problemas. Não podemos aceitar qualquer problema, colocado de qualquer maneira. Para nós, o valor por excelência de uma verdadeira Filosofia é que ela começa pelo debate sobre a maneira correta de colocar um problema. Se uma posição filosófica se apresentar partindo de princípios, que não justifica, colocando problemas sem o correspondente debate, trata-se de uma posição sectária, e não verdadeiramente do que se possa chamar de Filosofia. Achamos mesmo que o valor por excelência da Filosofia está na discussão e no estabelecimento de uma consciência clara sobre o problema fundamental, que é este: como colocar corretamente um problema?
De nada nos valem as soluções, de nada valem as teorias, se não temos a consciência clara de como devem ser colocados os problemas. Por isso, antes de nos deixarmos encantar por uma pregação doutrinária, devemos sempre examinar este ponto: é correta ou não a sua maneira de colocar os problemas?
Se os homens dessem mais atenção à colocação dos problemas em termos reais e objetivos, do que costumam dar às teorias, haveria menos desentendimento e um maior esforço de colaboração, de compreensão e de paz. O esforço no sentido de colocar os problemas em termos reais e objetivos exige honestidade de propósitos, sinceridade, espírito de dedicação, compromisso com a verdade antes de tudo, em lugar da luta cega pelos interesses imediatos. Por isso, ouso fazer este convite: procuremos as soluções que se esforçam por colocar os problemas como eles devem ser colocados, em lugar de colocar os problemas de modo que eles caibam nas soluções que já trazemos conosco antecipadamente. Somos problemas à procura de soluções: a solução primeira é tomar consciência dos problemas, dos problemas que nós somos, dos problemas que nós pomos, dos problemas que se põem para nós, dos problemas que devemos descobrir diante de nós. É mais fácil construir uma teoria do que formular com precisão um problema, eis a questão. E por isso dizemos que as soluções estão à procura dos problemas.
O mundo ocidental nasceu sob a égide de Minerva. Minerva, na mitologia grega, era filha de Júpiter, e era a deusa da sabedoria, da guerra, das ciências e da arte. Conta a lenda que Júpiter devorou a Prudência, e passou a sentir uma fortíssima dor de cabeça. Recorreu, então, a Vulcão, que, com uma segura paulada, abriu-lhe a cabeça. De seu cérebro surgiu Minerva, completamente armada, e já em idade e condições de poder socorrer seu pai na guerra dos gigantes, em que se distinguiu especialmente por sua valentia. Minerva tinha uma divergência com Netuno, pois ambos disputavam o privilégio de dar o seu nome à cidade de Atenas. Os doze grandes deuses, escolhidos para árbitros da questão, resolveram que daria o nome à cidade aquele dos dois que conseguisse produzir a coisa mais útil a ela. Netuno, com um golpe de tridente, conseguiu fazer brotar da terra uma oliveira, o que fez com que lhe fosse dada a vitória.
Poderá parecer estranho que comecemos a falar sobre a chamada civilização da máquina relatando uma lenda. A verdade, porém, é que a nossa civilização da máquina está impregnada de fantasia. E, por isso, achamos oportuno recordar a lenda, que, na Grécia, exprimia a figura da protetora da ciência e da arte.
No livro da Gênese, vemos a imprudência de Adão e Eva levá-los a provar do fruto da árvore, que lhes revelou a ciência antitética do bem e do mal. Curioso é notar que, na lenda grega, Júpiter engole a Prudência, e de sua cabeça brota a deusa da ciência e da arte. Ora, a prudência se nomeia à sabedoria prática, ao saber de ordem moral: é como dizer ao afirmar "engolir a prudência", que, recolhida a ordem moral, brota a ordem teórica e técnica em seu lugar. Se existe, ou não, um simbolismo intencional no Livro dos Hebreus, ou na lenda grega, o fato é que a História nos revela, na sua sucessão episódica, exatamente isto: na medida em que se retrai o ideal contemplativo da vida humana, assume o seu lugar o ideal operativo.
Yves Simon nos diz que a compreensão das épocas culturais da história humana pode ser equacionada nestes termos: "O discurso científico, em razão de sua dupla função, é capaz de duas organizações sistemáticas opostas, que geram, desde que uma ou outra adquira uma preponderância sensível numa sociedade, tipos diferentes e opostos de cultura ou de civilização. Se o discurso científico se orienta de maneira preponderante no sentido da contemplação, se ele constitui antes de tudo uma preparação à posse contemplativa, nós teremos a considerar uma civilização de tipo sapiencial; se ele se organiza de maneira preponderante sob a forma de uma direção de trabalho, nós teremos a considerar uma civilização de tipo técnico. As grandes civilizações do passado preferiram constantemente a orientação sapiencial à orientação técnica: citemos a Índia, a China, a Grécia, o Islã, a Idade Média cristã. Uma tal orientação geral da cultura gera um desenvolvimento particular das vias mais adequadas para conduzir à posse contemplativa e as menos capazes de conduzir ao domínio do mundo físico (estudos religiosos, filosóficos, morais). A orientação técnica da cultura é coisa relativamente recente: ela se delineia na época do Renascimento, encontra sua expressão doutrinal no cartesianismo, manifesta-se com o movimento enciclopédico e triunfa com o industrialismo capitalista, saint-simoniano e marxista" (in Trois leçons sur le travail, págs. 8 e 9).
Retrai-se o ideal contemplativo, projeta- se o ideal operativo. Assim, vemos uma retração do setor especulativo teórico puro em favor de um surto tecnológico e prático. Este é o fato histórico em suas linhas gerais. O homem, devendo harmonizar estes dois aspectos, desde o momento em que um deles se desenvolve em detrimento do outro, é necessário tomar consciência de suas consequências.
Comecemos por uma análise fenomenológica, procurando em primeiro lugar a caracterização do momento histórico de nosso tempo, marcado predominantemente pelo advento da máquina.
Um sinal expressivo do progresso técnico de nossa época é, sem dúvida alguma, a cosmonáutica. Todo o mundo vibrou com os primeiros voos espaciais, que preludiavam a possibilidade de um voo interplanetário. Há uma espécie de gozo coletivo, participando de uma aventura que parece exprimir uma conquista prática da liberdade. O homem, como ser físico, está submetido a uma prisão fundamental, uma prisão invisível, a prisão de seu corpo ao solo, a prisão da gravidade. A cosmonáutica aparece como um passo de libertação desta condição elementar, enquanto o homem parece conseguir isentar-se da influência da gravidade. Sentir-se flutuar no espaço! Sentir-se solto! Poder deslocar-se como os peixes, ou como os pássaros! Voar, deslocar-se sem as imposições normais devidas às condições do ser animal-humano foi sempre a aspiração imaginativa do homem.
Um elemento impressionante é recordar a preocupação de um Leonardo da Vinci, no século XVI, com a possibilidade de construir um aparelho, com o qual o homem pudesse voar. Os cadernos de apontamentos de Leonardo da Vinci mostram que durante trinta anos ele perseguiu esta ideia. É um justo prazer percorrer estes apontamentos. Vamos tentar resumir do melhor modo possível alguns destes apontamentos, para dar uma ideia da meticulosidade com que se aplicou ao problema.
Em primeiro lugar, uma alongada observação e descrição do voo dos pássaros. Os pássaros procuram as correntes de ar para delas se aproveitarem, planando sem esforço. Quando não encontram uma corrente de ar batem rapidamente as asas. Nas curvas, usam a asa como leme, ou batem mais vezes com uma das asas do que com a outra. O voo dos pássaros migratórios se faz contra o vento, porque isto é menos fatigante. Leva em consideração o problema da força dos pássaros com relação à força humana, pois sua máquina de voar seria movida por pedais, e por força muscular. Examina a constituição muscular e nervosa dos pássaros. Observa que o pássaro, quanto maior, seus movimentos poderão ser mais lentos. Preocupa-se com o problema da aterrissagem, e da posição em que o homem deveria ficar durante o voo. Calcula as proporções das asas que o homem deveria conduzir, por um estudo de proporções constantes nas aves, pela relação entre o tamanho das asas e o peso do corpo. Faz uma série de projetos sobre a movimentação destas asas. Seria longo enumerar os pormenores, o estudo do material a ser empregado, as dimensões de todas as peças, o amortecedor para a aterrissagem, os tipos de manivelas, etc. A estrutura das asas inspirava-se nas asas do morcego. Todo o rigor de quem trabalha com a maior seriedade e espírito de ciência. E, no entanto, o espírito de fantasia ali está presente, também. Eis como imagina e descreve o dia em que esta máquina pudesse funcionar: "O grande pássaro fará seu primeiro voo sobre o dorso do grande cisne, para estupefação da terra, e encherá todos os anais com sua grande nomeada; e ao seu ninho natal conferirá uma glória eterna".
A Grécia antiga não poderia ter deixado de marcar na lenda este sonho tão característico da espécie humana. E assim se conta que Dédalo, filho de Himetion, descendente de Erecteu, rei de Atenas, discípulo de Mercúrio, artista notável, construtor, estatuário, inventor, que construía estátuas movidas por mecanismos internos, parecendo seres vivos, matara seu sobrinho, e fora condenado à morte. Fugiu, então, para Creta, e ficou na corte do rei Minos.
Aí construiu o afamado Labirinto, construção repleta de tão intrincadas veredas, que quem por ali entrasse não conseguia sair. Dédalo foi a primeira vítima de seu próprio engenho. Minos, irritado com ele, manda prendê-lo no Labirinto com o seu filho Ícaro e o Minotauro.
É então que Dédalo fabrica asas para ele e seu filho. Com cera ele prende estas asas nas espáduas, e recomenda a seu filho não se aproximar muito do Sol. Partiram pelos ares, e Ícaro, possivelmente encantado com tal experiência, esqueceu-se das recomendações. Ícaro procurou subir muito alto, o Sol fundiu a cera, e ele caiu no mar Egeu, encontrando a morte.
Assim, se com Leonardo, apesar de toda a preocupação racional, encontramos a manifestação de um entusiasmo fantástico, na lenda grega, em meio à fantasia, parece existir uma advertência prudente frente ao delírio do homem com relação às suas audaciosas conquistas.
Mas, ao referir-nos ao entusiasmo manifestado ante a possibilidade de o homem voar, achamos interessante recordar o momento histórico em que, pela primeira vez, o homem conseguia elevar-se do solo num balão. Segundo o relato dos historiadores R. Mousnier e E. Labrousse, "os irmãos Étienne e Joseph Montgolfier, filhos de um fabricante de papel em Annonay, reputado em toda a Europa pela perfeição de seus produtos, conheceram a obra em que Priestley descrevia muitos gases novos. Imaginaram poder voar prendendo num envoltório de pouco peso um gás mais leve do que o ar: o aparelho se elevaria até o ponto em que encontrasse a uma certa altura um leito cujo peso específico mantivesse o equilíbrio. Fizeram sua primeira experiência em Annonay, a 4 de junho de 1783, diante de deputados da província de Vivarais: um "montgolfiero" de 12m de diâmetro, com uma tela dupla de papel, cujo ar era aquecido com palha incendiada, subiu até 500m de altitude.
"A Academia de Ciências de Paris faz repetir a experiência, no Campo de Marte, a 27 de agosto de 1783. O Prof. Charles fez encher o balão com hidrogênio, que pesa 14 vezes menos que o ar, e, pela primeira vez, o hidrogênio, produto de laboratório, foi obtido em grande quantidade. Diante de 300.000 pessoas que choravam e se abraçavam num delírio de entusiasmo, pois um dos mais velhos sonhos da humanidade se realizava, o balão atinge 1.000 m de altura. Mas, inteiramente cheio no momento da partida, ele se esvazia, e vai cair a 20 km de Paris. Os camponeses, apavorados, de início, com a ideia de que a Lua caía do céu, refeitos do susto, vingaram- se do medo que tiveram fazendo em pedaços a máquina. A administração real precisou advertir oficialmente os camponeses para que eles nada temessem e de futuro não mais a destruíssem. Após uma experiência, a que o Rei honrou com a sua presença, a 19 de setembro de 1783, Pilâtre de Rozier e o Marquês d'Arlandes foram os primeiros homens a voar; planaram sobre Paris, a 19 de novembro de 1783. O Prof. Charles, que imaginou a nacele, postado na galeria de vime, sua malha e a válvula, acompanhado de Robert, atinge 4.000 m de altura a 1.o de dezembro de 1783, e aterrissa a 36 km de Paris, estabelecendo os primeiros recordes de distância e de altitude. Blanchard e o Dr. Gefferies, partindo da costa de Douver a 7 de janeiro de 1785, atravessaram pela primeira vez a Mancha por via aérea. Pilâtre de Rozier, que morre a 15 de junho após uma queda, foi o primeiro mártir da aviação. Blanchard e Guyton de Morveau imaginaram o dirigível, mas seus lemes serviram para mostrar a impossibilidade de contar unicamente com a força humana. Em toda parte, em toda a França, criaram-se sociedades de amadores, e cada dia um "montgolfiero" subia. A moda, chapéus, fitas, robes, os coches, se faziam à Montgolfier, à balão, à Charles e Robert. O delírio alcançou a Europa" (Hist. Gén. des Civilisations, vol. 5, pág. 137).
O mesmo entusiasmo! A mesma alegria! o mesmo delírio! Hoje, com a perspectiva dos voos interplanetários, ontem, com a perspectiva de o homem poder elevar-se do solo, e deslocar-se no espaço!
A era da máquina se delineava, antes de tudo, não como uma era racionalista e fria, como seria de esperar, mas como uma era de exaltação sentimental e imaginativa. A máquina aparecia, antes do mais, como um instrumento de multiplicação das forças humanas. Qual seria o alcance da força humana, com o auxílio da máquina? Aqui, trabalha a imaginação.
Ernesto Renan, em sua famosa obra L'avenir de la science, escrita há um século, diz o seguinte: "A última palavra da ciência moderna é organizar cientificamente a humanidade. Tal é a sua pretensão, audaz, porém legítima. Chego mais longe. Como a obra universal do que vive é tornar perfeito a Deus, quer dizer, realizar a grande resultante definitiva que enfeixa o círculo das coisas com a unidade, indubitável é que a razão, que até agora não tomou parte alguma nesta obra, se encarregará um dia de levá-la a cabo, e, depois de haver organizado a humanidade, organizará a Deus. Nada deve assombrar a quem considere que todo o progresso realizado até agora não é talvez mais que a primeira página do proêmio de uma obra infinita". Assim se pinta a esperança humana de tornar-se onipotente: o próprio Deus será criado pelo homem, pois o advento da ciência e da máquina o faz sentir-se todo-poderoso.
É interessante notar um fato histórico, que demonstra o empenho no sentido de fazer da máquina um elemento de expressão sentimental. A máquina se transforma num elemento estético, em motivo de encantamento. O século XIX foi rico na organização de monumentais exposições, de âmbito internacional. Há um desejo de dar a conhecer ao público as descobertas recentes da técnica. Londres reúne 17.000 expositores em 1851 no Palácio de Cristal. Paris, em 1855, constrói seu Palácio da Indústria. Londres atrai o mundo em 1862. Paris, em 1867, atrai ao Coliseu visitantes de todas as partes do globo. As exposições se sucedem: Viena, em 1873; Filadélfia, em 1876, comemorando o centenário da independência americana; Paris, em 1878, no Trocadero; Sydnei, Melbourne, Amsterdam, Anvers, Nova Orleans, e as grandes exposições de Paris, em 1789, e, em 1900, na abertura oficial do século. As exposições atraem visitantes de todas as partes, e comunicam-lhes a mensagem do triunfo de uma civilização industrial. E, ainda hoje, podemos negar o interesse geral por exposições deste gênero? As feiras internacionais continuam a tarefa de sustentar a imaginação humana, garantindo pelas conquistas a esperança com relação ao que se anuncia para o futuro.
Toda a preparação desta civilização da máquina foi forjada por uma convicção no valor absoluto da razão humana. A confiança na razão gerou o desejo de descobrir pelas forças naturais da inteligência os segredos do mundo. Ao lado de tudo isto formou-se a religião do conforto. O desejo de conquista dos bens materiais, que tornassem mais suave a luta do homem no atendimento às exigências necessárias de sua sobrevivência. A ciência progrediu. O desenvolvimento científico, numa progressão efetivamente admirável, poderia fazer prever uma vida humana controlada pela razão, disciplinada, sistemática, planejada. E, no entanto, o que vemos, de fato, é a explosão da fantasia, dos impulsos egoístas, e da imaginação desenfreada. Por um lado, os homens de inspiração criadora, especializados, descobrindo, criando. Por outro lado, a multidão submissa, querendo ser dirigida, vivendo de notícias vagas, a tal ponto mergulhada no automatismo profissional, que cultiva o irracional.
Nunca se valorizou tanto o culto do irracional. Nunca se estudou tanto, e, contudo, a civilização da máquina desnorteou o homem com relação ao discernimento e controle racional de sua vida. Perde-se o senso do objetivo, e cultiva-se o esforço. Valoriza-se o trabalho, e perde-se o sentido da produção humana.
No campo da religião, nota-se um espírito de insubmissão. Cada criatura quer criar a sua religião, ou pelo menos, mais modestamente, quer seguir a sua religião a seu modo.
No campo da filosofia, cada qual se acha no direito de eleger sua teoria, sem submeter-se aos critérios e aos rigores de um método reflexivo, capaz de julgar convenientemente a propriedade de suas construções mentais.
No campo da ciência, o sucesso prático imediato parece ser o único critério de verdade. Não se pensa nas consequências futuras, nem se pensa nos objetivos da ciência com relação às exigências da natureza humana. O caminho da investigação é o que responde à ambição.
No campo das artes plásticas, a pesquisa passou a ocupar o lugar da realização. A simples variedade passou a ser considerada como um valor objetivo.
No campo da música, as experiências de uma chamada música concreta substituem as melodias pelos ritmos, e a obra passa a ser apreciada na medida em que consegue fazer sacudir o corpo, e não na medida em que pode ser apreendida pela inteligência como uma harmonia capaz de produzir uma ascese dos sentimentos.
No campo da literatura, a revisão dos ritmos e da estrutura da língua, para fugir de uma linguagem usual, transporta a obra literária para o terreno das emoções subjetivas.
No campo do teatro e do cinema, a exploração dos temas sexuais, ou das cenas de violência, faz da violência uma categoria estética. Tudo isto reflete uma reação, por primária que seja, ao domínio da máquina. Em oposição ao automatismo e à frequência, à rotina, ao tédio, a explosão desenfreada de todas as portas do irrefletido, poderíamos dizer até uma forçada procura da espontaneidade perdida.
O filósofo não procede como o moralista. Não observa estes fatos para julgá-los, e condená-los. Antes, quer entendê-los. E parece-nos certo dizer que no fundo de toda esta efervescência rítmica e pressurosa do nosso mundo está uma tentativa de fuga da angústia causada pela estereotipia.
O profissionalismo, a especialização, o ritmo de trabalho, talvez menos pelo esforço do que pela natureza de sua maneira de ser, sufoca o aspecto humano da vida, naturalmente irregular e criador. Em todas as reações características de nossa época, vemos esta antinomia: por um lado, a procura de regularidade e automação, como veículo de economia e liberdade, mas, por outro lado, tudo isto representando uma efetiva e progressiva frustração, causadora das reações irrefletidas e escandalosas. Esta procura da espontaneidade perdida, no entanto, não encontra a solução adequada. A juventude vaga contra os quadros cada vez mais rijos da civilização caindo na mais impressionante das uniformizações. Os cabelos compridos, as calças justas, os blusões de couro, a atitude desleixada, tudo isto se reproduz com uma velocidade e com uma força espantosas. Tudo isto é reação contra a uniformização e a rotina, e, no entanto, se faz da maneira mais uniforme e rotineira! A fuga da angústia, nestes termos, faz nascer a moda das modas, a moda por excelência, a moda da angústia!
Antes, falava-se em embriaguez para esquecer, hoje fala-se nos excitantes para puxar angústia. E, assim, toda esta franja psicológica, que envolve a nossa civilização da máquina, está mergulhada num mundo de alucinações, de fantasia, está acompanhada de um espírito mítico, que é próprio do reino da magia e do encantamento. Não estamos discutindo aqui se o caminho é certo ou errado. Estamos constatando o fato histórico, que põe ao lado da máquina, no mesmo contexto, o mundo da rebeldia, o mundo da fantasia, o mundo da fabulação.
A Religião não toca o povo pela verdade de uma doutrina, mas pelos milagres, pelo comércio das esperanças, pelas superstições, ou pela aspiração de conquistar bens e vantagens por um processo misterioso.
A Filosofia não é considerada pela clareza e segurança no domínio racional mas pelo que possa prometer como reforma do mundo.
A Ciência não é conhecida pelos rigores de suas fórmulas matemáticas, ou sua terminologia especializada, mas pelos voos que permite à imaginação, excitada pelas histórias da ficção científica.
Luta-se egoisticamente nos contatos do dia-a-dia, e choram-se os dramas humanos ouvidos nas novelas de rádio, ou vistos nos teatros de televisão.
Tudo isto, que pode parecer um quadro trágico de nossa civilização da máquina, tem um significado: são caminhos, justos ou injustos, de uma procura da espontaneidade perdida. Esta é a explicação do espírito mágico da civilização da máquina Esta é a razão por que, numa era de tecnicismo, o homem está de tal forma voltado para o fantástico, o maravilhoso, o irrefletido, o sentimental, o irracional. Não conhecendo os meios de encontrar uma satisfação para o seu espírito, o homem da civilização da máquina pensa encontrar refúgio na distração. Organiza-se, mesmo, em nossa época, a indústria da distração. O homem procura distrair-se, porque não tem consciência de que o que sua natureza exige é satisfação, não distração. E confunde distração com satisfação! Pensa poder satisfazer-se com a distração. E distrai-se da procura da verdadeira satisfação.
Pode parecer um paradoxo a fusão destes dois aspectos de nossa civilização da máquina: por um lado, um aperfeiçoamento científico e técnico que reflete as maiores criações da inteligência humana, e, por outro, um comportamento irrefletido, marcado pela fantasia, pela imaginação, pela desencontrada procura de uma excitação afetiva. Como explicar tal fato?
Dizemos: o homem penetrou o mundo do átomo, e passou a controlar a sua força. Dizemos "o homem", mas, na verdade, cada um dos homens, cada um de nós, Pedro, João, que tem a ver com isto? Que fizemos nós, homens concretos, por isto? As descobertas de alguns são assumidas por todos. Convencemo-nos que as descobertas são nossas, porque revertem em nosso benefício. Mas há uma desproporção entre os que descobriram e os que usam as descobertas. Quantos de nós poderão dizer que vivem, de fato, à altura de nosso século? Quantos de nós, até mesmo no meio de grandes cidades, vivem uma idade primitiva? Pois é esta desproporção que cria este paradoxo. O que para uns, os construtores mestres da civilização da máquina, representa servir, para outros representa ser servido. Uns refletem, outros sentem. E, assim, a civilização representa um alto plano racional, mas a humanidade representa com relação a ela uma perplexidade real, uma desproporção. E tanto mais este divórcio se estabelece e se aprofunda, e mais esta civilização aparentemente racional e mecanizada é acompanhada de uma auréola irracional e desordenada. E por isso domina em tudo o espírito mágico, que se reflete na fabulação, no gosto do espetáculo, no culto misterioso do que o homem em geral não pode compreender, mas não se recusa a admirar.
Diz Henri Bergson que há nas origens da civilização mecânica de nossa época um impulso místico. Para este filósofo francês, a mecânica decorre da mística. No período do Renascimento, de fato, podemos dizer que brotou uma religião naturalista, em substituição à religião transcendente, que dominou a Idade Média. Mas esta religião naturalista herdou do pensamento cristão o conceito de salvação. De fato, durante toda a Idade Média foi-se acentuando cada vez mais a preocupação com o sentido salvífico da religião. O surto humanista da idade moderna não desfez esta aspiração de salvação e de ascese. Apenas, em lugar de pensá-la em termos sobrenaturais, passou a pensá-la em termos naturais. E o que seria esta salvação assim concebida? Só a História poderia responder a isto: seria o que a civilização pragmatista o fez ser, isto é, a aspiração ascética se transformou na aspiração do bem-estar, na conquista de padrões mais altos de vida humana. A máquina poderia ter sido o instrumento desta promoção. Não foi. Em lugar de uma economia das horas de trabalho, e a conquista de horas de lazer, para que o homem pudesse cultivar o seu próprio espírito, e realizar, assim, a experiência da liberdade, a máquina produziu riquezas, que foram muito desigualmente distribuídas. As lutas sociais se travariam, sem qualquer dúvida, exigindo uma solução.
O operário descobre que pode reagir, em defesa de seus direitos. Sabe que, isoladamente, não pode reagir. Mas pode reagir em conjunto. Descobre o valor da associação, para poder ter força. E isto é uma realidade. O que é de lamentar, contudo, é que a descoberta desta força associativa num processo de reivindicação fosse explorada por doutrinas que não distinguiam entre o grupamento como força reivindicatória, e a concepção socialista, que dissolve o conceito de pessoa humana em favor de um Estado totalitário.
Sempre se soube que a união faz a força. Isto não é o bastante para conceber uma nação em termos totalitários, em que o Estado é todo-poderoso, e o indivíduo se despersonaliza, sacrificando suas aspirações legítimas, para servir à utopia socialista e comunista.
Um equívoco desta natureza se explica pelo divórcio, que se estabelece entre o indivíduo, tomado particularmente, e as conquistas da civilização moderna. Enquanto alguns constroem as diretrizes da civilização em que vivemos, uma grande maioria se contenta em assistir ao espetáculo, gozá-lo, e imaginar que tudo o que ela apresenta de maravilhoso é também obra sua. Na verdade, não acompanha, não pode acompanhar de perto as razões deste desenvolvimento, e satisfaz-se com seu entusiasmo e com os voos da própria imaginação. É por isto que falamos no espírito mágico da civilização da máquina.
Achamos da maior importância a tomada de consciência deste fato. O desenvolvimento da produção proporcionado pela máquina gerou critérios de valor que passaram a exaltar os interesses práticos. A busca dos interesses imediatos desviou o homem da compreensão racional de um plano geral da vida humana. Esta perda de perspectiva racional conduziu o homem a um plano de reações no plano sentimental e afetivo. E este seria o clima ideal para uma efervescência fabuladora e imaginativa. Assim se pode entender porque uma civilização científica e técnica pelas suas conquistas, seja profundamente irracional no espírito característico da humanidade que compõe esta civilização na sua proporção maior.
Este espírito mágico, que é este espírito de fantasia, se comprova pela facilidade com que se formam em nossos dias os cultos. Um cantor popular se torna objeto de culto. Um humorista se torna culto. Um político se torna culto. Um clube esportivo se torna culto. As coortes de fãs são uma característica de nossa época. E quem são estes fãs, estes fanáticos? São a expressão de uma humanidade ansiosa por cultuar. E, assim como a idade mágica primitiva cultuava as manifestações da natureza, o espírito mágico de nossa civilização cultua as manifestações da vida social.
É necessário tomar consciência disto para saber que o homem da era da máquina tem uma ânsia incontida de cultuar. Procura, assim, dirigir a sua disposição latente ao primeiro objeto que lhe possa parecer admirável. Tudo isto indica que é necessário reencontrar o espírito místico, que deu o impulso inicial de nossa civilização moderna.
Como diz Henri Bergson, nas origens da era da máquina, um impulso místico, de origem cristã, aspirava encontrar na máquina o instrumento de multiplicação do trabalho, de modo que o homem pudesse libertar-se da árdua luta pela satisfação de suas necessidades elementares, e poder alcançar níveis mais elevados de vida, cultivando os bens do espírito, e gozando da liberdade. O desenvolvimento cultural produzido pela máquina gerou bens extraordinários. Mas a distribuição destes bens se fez de tal modo que o nosso mundo apresenta as mais clamorosas desigualdades. Por isso nos fala Bergson da necessidade de reencontrar esta mística inicial, para que possa existir um equilíbrio entre o desenvolvimento da máquina e as exigências do homem, tomado em sua pessoa, em sua integridade, em sua dignidade.
Existe um espírito mágico acompanhando a civilização da máquina. Quando este espírito mágico descobrir claramente o objeto adequado para o seu culto, então teremos o reencontro desta mística necessária à harmonia entre a ordem da produção e a ordem da perfeição humana, entre o plano das exigências externas e a ordem das exigências interiores da vida humana. Este é o significado do espírito mágico da civilização da máquina.
Todos conhecem, certamente, a lenda de Édipo e a Esfinge. A Esfinge era um monstro, que a deusa Juno enviara a Tebas, por achar-se irritada com os tebanos. Tinha a cabeça e o peito de uma jovem, garras de leão, corpo de cachorro, cauda de dragão e asas de pássaro. Fazia suas devastações às portas de Tebas pousada no monte Ficeu, de onde saia para atacar os viajantes, e propor-lhes enigmas difíceis, destroçando aqueles que não os poderiam explicar.
Em geral, propunha este enigma: "Qual é o animal que tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia, e três pés à tarde?" Estava destinado, contudo, que a Esfinge perderia a vida desde que alguém pudesse adivinhar o enigma. Muitas pessoas já haviam morrido, vítimas do monstro, e a cidade vivia alarmada com o perigo.
Creonte, que assumira o governo com a morte de Laio, anunciara que entregaria a mão de sua irmã, Jocasta, viúva de Laio, e sua coroa, a quem livrasse Tebas da ameaça terrível daquele monstro. Édipo apresentou-se para decifrar o enigma: disse que o animal era o homem, que, em sua infância, e portanto pela manhã da vida, sustentava-se com os pés e as mãos; ao meio-dia, na idade adulta, firmava-se sobre dois pés, apenas; mas, à noite, ou seja na velhice, tinha necessidade de uma bengala como se fosse uma terceira perna. A Esfinge desarvorada, lança-se pelo precipício e morre.
"Decifra-me, ou devoro-te": esta era a situação com que o viajante se encontrava às portas de Tebas. Ontem, na lenda, era o homem diante do monstro, que lhe propunha o enigma. Hoje, continua na sua viagem pela vida, diante do monstro, e o monstro é o próprio enigma, que se põe para ele na pergunta sobre si mesmo: "O que é o homem?"
O mais falado pensador dos nossos dias, que, após sua morte, tem tido suas obras publicadas de dez anos para cá, Pierre Teilhard de Chardin, e que hoje está na moda (pois na História da Filosofia também existem as modas!) diz o seguinte: "Pela expressão fenômeno humano entendemos o fato experimental da aparição, em nosso Universo, do poder de refletir e de pensar. Durante períodos imensos, a Terra esteve certamente privada de qualquer manifestação propriamente vital. Depois, durante um outro período ainda imenso, deixou perceber, no seio da matéria organizada aparecida sobre o seu envoltório sólido ou líquido, apenas sinais de espontaneidade e de consciência irrefletida (o animal sente e percebe; não parece saber que sente e percebe). Enfim, só numa época relativamente recente, a espontaneidade e a consciência conquistaram sobre a Terra, na zona da vida tornada humana, a propriedade de isolar-se, de individualizar-se diante de si mesmas. O Homem sabe que sabe. Ele emerge de sua ação. Ele a domina numa medida por mais frágil que seja. Ele pode, então, abstrair, combinar e prever. Ele reflete. Ele pensa." Aparentemente não está dizendo nada novo, mas podemos verificar que a mais atual das colocações do problema do homem consiste em relacionar a sua existência com os arcanos da história da Terra, na medida em que a paleontologia a pode restabelecer. Pensar a existência do homem no quadro de cronologia da vida na Terra não deixa de ter um interesse, que, pelo menos, poderia contribuir para uma atitude um pouco diversa da que ele costuma ter comumente.
Será, quando menos, uma consideração mais edificante do que reduzir o problema do homem, como o fizeram os transformistas do século passado, a saber se o homem descenderia não do macaco.
Outra perspectiva introdutória interessante é aquela que coloca o homem ante as dimensões do universo, como o faz o escritor Camilo Flammarion em sua obra Astronomie Populaire. Diz ele: "O universo visível, com seus cem milhões de sóis, representa apenas uma pequena parte infinitesimal do universo total, infinito; é uma vila numa província, ou menos ainda; por outro lado, milhões de anos ou mesmo milhões de séculos por que ensaiamos exprimir o desenvolvimento progressivo das nebulosas dos sóis e dos mundos, representam apenas um instante rápido na duração eterna. Não podemos, então, tentando conceber estas grandezas, reconhecer a insuficiência de nosso campo de observação e compenetrar-nos de que o universo é incomparavelmente mais vasto, mais prodigioso e mais esplendido do que tudo o que a ciência nos revela e tudo o que a imaginação pode sonhar.
"Se todos estes sóis fossem realmente fixos, imóveis, esfinge da eternidade, imutáveis e inalteráveis, rei cada um em seu imperecível domínio, talvez o aspecto do universo fosse mais imponente e grandioso. Mas seria menos vivo. Mens agitat molem. Todas estas estrelas, vastas como nosso Sol, afastadas umas das outras por insondáveis distâncias, sucedendo-se ao infinito na imensidão dos espaços, estão em movimento nos céus. Nada é fixo no universo: não existe um único átomo em repouso absoluto. As forças formidáveis de que a matéria está animada regem universalmente sua ação. Estes movimentos de translação dos sóis do espaço na extensão são insensíveis a nossos olhos, porque eles se exercem a uma enorme distância; mas são mais rápidos do que qualquer velocidade observada na Terra. Para a vista que soubesse fazer abstração do tempo como do espaço, o céu seria um verdadeiro formigamento de astros diversos caindo em todas as direções do vazio eterno. A estrela que é nosso sol vem da constelação da Pomba e nos leva para Hércules com uma velocidade vertiginosa, mergulhando cada vez mais todo dia, a cada ano, a cada século, em imensidades sempre abertas do espaço.
"Nota surpreendente, bizarra, inesperada, mas absolutamente verdadeira: cada sol do espaço é impulsionado por uma velocidade tão rápida que uma bala de canhão representa o repouso diante desta velocidade; não são nem cem metros, nem trezentos metros, nem quinhentos metros por segundo, que a Terra, o Sol, Sirios, Vega, Arturos, e todos os sistemas do infinito percorrem: é dez, vinte, trinta, cinquenta, cem mil metros por segundo; tudo corre voa, cai, rola, precipita-se no vazio... e contudo, visto no conjunto, tudo está em repouso. Tomemos uma pedra, um bloco de granito, um bloco de ferro maciço: cada uma das moléculas deste pedaço de ferro se desloca, vibra, varia, com uma velocidade incomparavelmente maior do que um astro, molécula sideral... Um centímetro cúbico de ar é composto de um sextilhão de moléculas: se nós as alinhássemos em pensamento à distância de um milímetro uma da outra, teríamos mil no espaço de um metro, um milhão por quilômetro, um bilhão por mil quilômetros e nosso sextilhão de moléculas ocuparia uma extensão de 250 trilhões de léguas, indo daqui às estrelas (e não me refiro às mais próximas)! Ora, estas moléculas de um centímetro cúbico de ar existem realmente, agitam-se, vibram, giram, precipitam-se, como nossos sóis no espaço: elas formam também um universo. O homem está colocado entre dois infinitos; nós vivemos, sem pensar nisto, em meio ao sublime.
"Quanto tais contemplações não engrandecem, não transfiguram a ideia vulgar que em geral se forma sobre o mundo! O conhecimento destas verdades não deveria ser a primeira base de toda instrução que pretenda ter seriedade? Não é estranho ver a imensa maioria dos homens viver e morrer sem duvidar destas grandezas, sem sonhar em dar-se conta da magnífica realidade que os envolve?" (Astronomie Populaire, págs. 822-824). Pensar, a partir desta consideração, no problema do homem, também modifica a maneira habitual de julgar a questão.
Pascal exclamava: "Quantos reinos nos ignoram! O silêncio eterno destes espaços infinitos me espanta!" (Pensées, Pl., págs. 1.112- E, noutra passagem, ainda é Pascal quem tece estes comentários: "Que o homem tendo voltado a si considere o que é na medida do que é; que ele se veja como desgarrado neste cantão desviado da natureza; e que, desta pequena prisão em que se encontra colocado, quer dizer o universo, ele aprenda a estimar a terra, os reinos, as vilas e seja mesmo sua justa medida. Que é um homem no infinito?
"Quem se considerasse afortunado espantar-se-ia de si mesmo, e, considerando-se sustentado na massa que a natureza lhe deu, entre estes dois abismos do infinito e do nada, tremerá ante a visão destas maravilhas; e eu creio que, sua curiosidade transformando-se em admiração, ele estará mais disposto a contemplá-las em silêncio do que procurá-las com presunção.
"Pois enfim o que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, um tudo em relação ao nada, um meio entre nada e tudo. Infinitamente afastado de compreender os extremos, o fim das coisas e seu princípio estão para ele invencivelmente escondidos num segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada de onde foi tirado, e o infinito em que está envolvido.
"Que fará, então, a não ser perceber alguma aparência do meio das coisas, num desespero eterno de não conhecer nem seu princípio nem seu fim? Todas as coisas são tiradas do nada e levadas para o infinito. Quem seguirá estas admiráveis andanças?" (Pensées, ed. Pl., págs. 1.105-1.107).
Muitas são as perspectivas através das quais podemos abordar o problema do homem. Uns acentuam as suas fraquezas, outros se fixam na sua grandeza. Carregando consigo o enigma de seu próprio ser, cabe-lhe ao menos a possibilidade de refletir sobre si mesmo. Por isso, cabe recordar a conhecida afirmação de Pascal: "O pensamento faz a grandeza do homem. O homem é apenas um caniço, o mais frágil da natureza; mas é um caniço pensante".
Cogito, ergo sum. Penso, logo sou diria Descartes. O pensamento revela a existência do homem a si mesmo. Podemos duvidar da existência do mundo exterior. Podemos imaginar que o mundo externo é apenas um sonho, uma alucinação. Mas, se duvidamos, pensamos, pois para duvidar é necessário pensar; e, se pensamos, existimos como ser pensante. Daí a expressão de Descartes: penso, logo sou.
O problema, porém, não é tão simples, pois o pensador dinamarquês Kierkegaard propôs a afirmação oposta, dizendo: Penso, logo não sou. Como assim? "Penso, logo não sou", pois o pensamento humano se caracteriza fundamentalmente pela capacidade de colocar problemas. E o problema decorre exatamente do fato de o homem viver uma situação contingente. Ele é, e não é. Ele é, enquanto existe com certas características que o identificam naquilo que ele é. Mas, por outro lado, ele se desenvolve, há nele um processo permanente, aquilo que ele é hoje já não é o que foi antes, nem o que será depois. Ele é, por um lado, mas por outro lado ele se torna. O homem não é um ser completo e acabado. O seu pensamento o põe diante da consciência deste processo com uma visão retrospectiva e uma visão prospectiva. E porque o homem não é um ser completo e acabado é que o seu pensamento antecipa os limites do que aspira ser, e portanto do que ainda não é. E, por isso, Kierkegaard também tem razão ao afirmar — Penso, logo não existo.
Podemos lembrar, com Bergson, a íntima relação que existe no homem entre o seu ser e os seus atos. Segundo Bergson, o homem age de acordo com o que é, mas, também, por outro lado, ele é na medida do que faz. E, de fato, cada ação do homem constrói nele também alguma coisa. E é assim que, através do que fazemos, e de nosso modo de agir, construímos também aquilo que nos fazemos ser. O homem é, permanentemente, uma composição de sua natureza manifestada espontaneamente, e de seus ideais elaboradamente assentados. Somos, assim, em parte a expressão do que em nós está impresso pela natureza de nosso ser, e de nossa constituição, mas de outra parte somos igualmente o fruto daquilo que idealizamos ser. E, quando não assumimos conscientemente as rédeas de nossa própria formação, o que ocorre conosco é que aceitamos passivamente aquilo que nos parece serem os ideais do espírito de uma época, na qual vivemos.
A consideração deste processo de desenvolvimento do homem à procura de uma realização ideal de si mesmo que propomos neste instante à reflexão, no sentido de uma tomada de consciência do que a História nos pode indicar como a obra que o homem tem feito de seu próprio ser. Cada civilização, que se realizou na História, apresenta características próprias. Estas características refletem os ideais dos homens que a construíram, construindo-se com elas a si mesmos, pois cada tipo de civilização oferece certos ideais específicos dominantes no processo da educação. A educação, do ponto de vista histórico, consiste no conjunto de técnicas e valores de uma cultura, que são transmitidos de maneira institucional às novas gerações. Desta forma, determinam-se os hábitos e os ideais responsáveis pelo aspecto de ser humano que decorre de uma auto- elaboração.
O problema começa a ser tratado, pois, quando passamos a ter a noção do que o homem tem feito de si mesmo, no decorrer da História. O homem de hoje tem as mesmas características típicas do homem da Idade Média? O homem grego do período clássico tem as mesmas características do homem do antigo oriente? O romano tem as mesmas características do homem do Renascimento? Cada momento da História apresentou um ideal predominante de educação, o que equivale a dizer que em cada período histórico o homem procurou construir-se a si mesmo dentro de um ideal diverso. E isto continuará a acontecer. Precisamos saber, portanto, que tipo de homens estamos fazendo de nós mesmos.
As civilizações do antigo oriente estavam dominadas pelo espírito de pessimismo, fundado na convicção da fatalidade. O culto religioso parecia a única evasão da submissão a todas as forças da natureza, e aos caprichos dos soberanos e dos que tinham na força o argumento do poder. O sentimento de escravidão conduzia o homem a um misticismo do desprendimento absoluto, da atitude de mortificação da vontade, da negação do mundo. Todos os bens do mundo seriam razão de penas e sofrimentos. A felicidade estaria em não desejar, em não ter vontade, e fugir assim aos ciclos dos padecimentos a que se sujeitavam todos os que ousavam ambicionar alguma coisa do mundo.
Já a civilização grega passou a apresentar uma nova valorização do homem. E é interessante notar que o espírito grego, que Burckhardt caracterizou como um espírito agônico, procurou conciliar a convicção da fatalidade (ananké) com o sentimento da liberdade. O desenvolvimento da civilização grega poderia ser estudado em função deste ideal de liberdade. O homem grego, de um modo geral, tem o sentimento de que não lhe cabe o sucesso, pois o sucesso depende, para ele, do capricho dos deuses; ao homem cabe o esforço, aos deuses o sucesso. Mas nem por isso entende fugir à luta. Julga, ao contrário, que pode ter a liberdade de lutar por uma causa, de escolher um ideal, e, desta forma, sabendo que não pode contar com a certeza do sucesso, encontra no esforço um motivo de nobreza e de virtude. Não importa morrer no campo de batalha: o importante é morrer com a espada na mão sem fugir à luta.
O homem grego acreditava na fatalidade. Mas, isto não lhe esmorecia o ânimo. Cultuava a fama, como a vitória moral, no reconhecimento dos seus concidadãos, na certeza de que não se aviltara no testemunho dos outros homens. Há, assim, um sentido de dignidade e de nobreza na concepção do homem grego, desde o período homérico, sendo que este testemunho dos primeiros tempos históricos da Grécia marcou os ideais da educação grega nos seus períodos posteriores.
Todo o desenvolvimento cultural da Grécia clássica se deveu, fundamentalmente, a este espírito de magnanimidade, como o classificou Ravaisson. Este sentido de dignidade, este culto da liberdade, são responsáveis inclusive pelo desenvolvimento da filosofia grega. O desejo de conhecer os princípios universais diretores da ordem do universo é o mesmo desejo de ser livre, que, desta forma, na contemplação destes princípios, desliga o homem da prisão do simples imediato, e lhe dá a experiência da liberdade na medida em que ele consegue compreender a realidade, consciente de sua posição no cosmos.
O apogeu da filosofia grega corresponde ao apogeu das cidades-estado, das cidades autônomas, cada uma delas com a sua própria constituição, e os seus cidadãos assumindo a responsabilidade dos seus próprios destinos, na medida em que se formava uma consciência geral dos problemas da sua cidade, e que a todos interessava o que nela se passava. Lembremos o sentido da legislação de Solon, que dizia bastar uma lei para reger uma cidade: "Cada cidadão deve reagir contra uma injustiça cometida a outrem como se fosse cometida a si mesmo". Mais tarde, modificações políticas na Grécia levaram a uma centralização administrativa, que retirou aquela pujança cívica das cidades antigas. Um espírito de passividade passou a dominar, e o retraimento do debate conduziu o homem grego a um novo estado de espírito, em que as suas preocupações se voltaram para o culto religioso ou a vida prática. E assim começa a decadência da civilização grega: o culto religioso se povoa da influência oriental, com a característica de um afastamento da realidade; a vida prática se fixa ao imediato, e perde a visão de conjunto, deixando o homem à mercê de uma perspectiva de curto alcance.
A História tomaria um novo rumo. A civilização romana foi a civilização do Direito. Se estudarmos as origens da civilização romana, poderemos entender porque o seu desenvolvimento cultural se fixou neste campo do Direito. As primeiras povoações romanas foram constituídas de lavradores: a vida no campo, o trabalho junto à natureza, a paciência diante das variações de clima, a humildade diante das incertezas da colheita, tudo isto contribuiu para a formação de um caráter vigoroso, marcado pela sobriedade, parcimônia, simplicidade, persistência. Ao lado disto, um arraigado sentimento de família criaria um respeito pela autoridade, e um sentimento de colaboração, sentimento este fundamental à vida em sociedade. Quando se realizou o desenvolvimento cultural romano no setor intelectual, o homem romano haveria de informar este desenvolvimento no sentido de uma especulação que atendesse a este espírito de justiça e equidade: da conjunção destes dois elementos surgiu este monumento da cultura, que é o Direito Romano.
A lei escrita necessita de um espírito que a sustente. A vida da cidade com seus artifícios e seus requintes foi conduzindo o homem romano a um amolecimento de caráter, e os costumes caíram em tais depravações, que ainda hoje as ruínas de Pompéia podem testemunhar. O livro de Petrônio, o Satiricon, é um documento desta época. Por outro lado, o povo judeu, igualmente, fazia das Sagradas Escrituras uma letra de lei, cujo cumprimento não era fielmente resguardado. A humanidade se encontrava em xeque, pois a cultura ocidental e a cultura oriental exigiam um surto espiritual renovador, que revivificasse o direito natural e o direito sobrenatural. O surgimento do cristianismo seria a resposta a esta situação de crise. O homem, obediente à sua vocação, que aspira naturalmente ao melhor, correspondeu a esta mensagem de salvação. O cristianismo encontrava na generosidade do espírito humano o terreno propício ao seu desenvolvimento. E a Idade Média, por longos séculos, procurou conduzir o homem para o seu destino sobrenatural. Curioso é notar que no próprio seio do mundo cristão haveria de minar o elemento de reação à cultura implantada por ele. Pouco a pouco se acentuava cada vez mais a preocupação com a salvação do homem. E isto fez com que a atenção do mundo cristão se deslocasse da ideia de Deus para a ideia do homem. A princípio, o culto de Deus centralizava tudo, e a salvação do homem seria uma consequência. Depois, cada vez mais, o homem tentava garantir esta salvação, procurando assegurar de sua parte as condições desta salvação. E, de tal forma a atenção do homem se voltou para isto, que passou a cultuar a sua própria força, o seu próprio valor, o seu próprio esforço. Estava preparado o campo para o humanismo.
Um reencontro com os valores da civilização grega fez com que o homem se empolgasse com o espírito grego, em que o homem lutaria por sua liberdade servindo-se dos recursos de sua própria natureza. O Renascimento aparece, assim, como um espírito de rebelião contra o sobrenatural, ao mesmo tempo que se firmava a confiança nas forças exclusivas da natureza humana. O homem pensa, então, em construir a sua salvação num plano estritamente natural, e não sobrenatural. O primeiro passo neste sentido é o culto racionalista, a exaltação da razão, a ideia de que a razão humana tem poderes ilimitados. Ao culto racionalista acrescia-se a perspectiva de multiplicar pela máquina as forças do trabalho humano, ao mesmo tempo que se partia para a melhor utilização das forças da natureza. Criou- se, assim, o mito da produção, a corrida da produção. E o homem passou a dirigir sua vida em torno deste eixo. Os valores seriam julgados em termos de produção. O homem vale pelo que produz. Uma nação vale pelo seu poderio econômico e industrial. Com uma civilização assim, marcada pela tecnologia, o ideal de educação centralizou sua atenção na especialização do homem para melhor produzir, e para produzir mais. Com este ideal, delineou-se o plano da educação pragmatista.
Não viu o homem que, com isto, em lugar de fazer da máquina um instrumento a seu serviço, passava a conceber-se igualmente em termos de máquina: ele se moldava na máquina, ele se fazia ser-máquina, exatamente na medida em que passava a colocar o plano profissional de sua vida como o plano de vida por excelência. Não percebia, de modo algum, que abandonava com isto a consideração de outros valores essenciais à vida humana. A educação pragmatista visava ao adestramento profissional, e colocava em tela critérios que, na verdade, sufocavam a manifestação completa da natureza humana. A consequência geral de uma educação deste tipo, embora isto não estivesse nas intenções dos pregadores da doutrina pragmatista, é que os homens deixaram de ser interessados para serem interesseiros.
Deixaram de ser interessados, na medida em que não mais procuravam a compreensão do sentido da sua própria vida, e por isto mesmo perdiam a consciência de sua participação na existência. Passaram a ser interesseiros, na medida em que um espírito de imediatismo e de lucro passou a dominar o mundo. Tornou-se comum até mesmo o cultivo das amizades, não por desinteresse e real afeição, mas pelo sentido das vantagens que daí poderiam resultar. Ora, na medida em que os atos mais espontâneos da vida humana são comprometidos desta forma, não seria de estranhar que uma onda de desconfiança e de angústia dominasse o mundo.
O movimento existencialista surgiu em nossos dias, não como uma solução, mas como uma reação. Deste ponto de vista, de fato, ele representa um protesto contra a visão interessada, em que o homem perde a consciência de suas raízes, e o sentimento de espontaneidade. Daí a reação irracionalista do existencialismo, porque, na atividade geral desta posição de pensamento, seria necessário quebrar com os quadros artificiais estabelecidos pela razão humana, e recuperar a experiência original do ser humano, para ter consciência daquilo que no seu ser se manifesta com espontaneidade. Dizemos que o existencialismo não é uma solução para a vida do homem, porque, nas posições filosóficas dos que se alinham nesta ordem de pensamento, há uma série de equívocos, que não podemos admitir, embora possamos compreender. Mas a atitude geral é válida, enquanto reação contra os quadros artificiais que sufocam os limites da existência humana a quadros extremamente reduzidos de sua atividade prática. Daí a repercussão e a aceitação do existencialismo, porque o homem em geral, não entrando na análise e na compreensão dos seus aspectos técnicos, assimila apenas esta atitude geral, e, neste sentido, parece que toda a humanidade anseia por sacudir uma escravidão que sente, mas não compreende.
A vida que o homem moderno construiu para ele mesmo o sufoca. Basta lembrar aqui um fato: o homem hoje é egoísta mesmo sem o querer. Ele se isola e se defende, ele disputa cotidianamente com o seu semelhante, mesmo que não o deseje. Foi o ritmo da vida moderna, foi o sentido pragmático desta vida que o conduziu a isto. Ele se torna egoísta para não sucumbir. Desta forma, o homem vive insatisfeito consigo mesmo, pois dificilmente é dono de suas próprias ações. E as sociedades também são expressões desta insatisfação. Em todo o mundo encontramos o espetáculo das revoluções internas, de uma divisão interna dos povos, sem falar na animosidade latente, que se traduz pelos nacionalismos transformados em cultos políticos. A ideia de um convívio entre os povos foi substituída por uma atitude de resistência, de desconfiança, de temor a uma possível ameaça. Este resultado geral de nossa época parece testemunhar que o homem não encaminhou convenientemente a sua vida, pois as consequências verificadas não depõem a favor da orientação assumida.
Desta forma, não é só uma questão teórica, que devemos enfrentar, no sentido de determinar a direção e os valores da vida humana. Trata-se de um problema prático, que sentimos em nós, a nosso redor, e em todo o mundo. E esta situação obriga a todos aqueles que têm na vida um sentido de responsabilidade a voltar a sua consideração para discernir o que é o homem, e o que deve ser o homem. Tudo indica que a História tem manifestado uma série de experiências, em que o homem tem procurado realizar-se sempre dentro de uma dimensão particular. O que seria desejável é que ele fosse capaz de aproveitar a experiência de sua própria História, e se dispusesse a construir uma civilização fundada no conceito do homem integral.
Desta forma, ele cuidaria da atividade prática e do desenvolvimento técnico, mas, ao mesmo tempo, teria um sentido do direito, como o homem romano clássico; teria um amor da liberdade, como o grego, e, como este, cuidaria de desenvolver o seu saber como uma forma de desenvolvimento mais completo do seu próprio ser; mas, além disto, como o homem medieval, teria o espírito aberto às dimensões do sobrenatural.
O homem precisa restabelecer o culto de si mesmo. Não o culto forjado pela propaganda, como vemos em tantos casos. Trata-se do cultivo do próprio homem. Ele deve saber que não nasce completo e acabado. Ele deve ter consciência de que se educa a cada instante de sua vida. Cada escolha, em cada instante, é um passo na formação de seus hábitos, é uma etapa no apuro de sua própria sensibilidade, é um degrau na estruturação do seu modo de pensar. Os amigos são instrumentos de moldagem do nosso ser, e os lugares que frequentamos também o são. O que fazemos reflete o que somos, e constrói o que seremos. Solon, o grande legislador de Atenas, perto da morte, ainda exclamou: "Morro aprendendo". O homem aprende sempre, porque está sempre, até morrer, num caminho de formação de seu próprio ser.
Por isso falamos no homem à procura do Homem, porque ele deve decidir se quer ser apenas como homem um pouco do que pode ser, ou quer desenvolver-se da maneira mais completa, para ser o homem integral, capaz de sentir a alegria feliz de ter-se realizado com plenitude. O caminho da vida para os homens verdadeiramente dignos dos dons de sua própria natureza é este exatamente que consiste em procurar o desenvolvimento mais pleno do seu próprio ser. Aquele que não procurar superar-se a si mesmo não é digno de sua própria existência. A natureza colocou o homem limitado pela retrospecção e pela prospecção, entre a memória e a aspiração, entre a saudade e a esperança, entre o passado e o futuro. O homem à procura do Homem é a luta consigo mesmo, marcada pelo desejo de perfeição, ou, pelo menos, de superação.
Na encruzilhada marcada pelo encontro do que o homem é espontaneamente com aquilo que ele deve ser, e daquilo que quer com o que pode, o homem só tem o direito de dizer que é, verdadeiramente, se resolver estas antinomias internas de seu próprio ser, no desenvolvimento harmonioso de si mesmo, procurando a realização completa das disposições de sua natureza. Procurando a felicidade e o bem por toda parte, esquece de procurá-los no desenvolvimento de si mesmo.
A História prosseguirá testemunhando o homem numa procura permanente do que só pode encontrar se ele realizar-se a procurar si mesmo, pois, por trás de todas as procuras, o homem incompleto procura o homem integral.
Permiti-me começar a exposição deste tema com um relato de caráter pessoal. Há dias, fizemos uma viagem ao interior, a serviço, e, nesta viagem, eu e mais dois professores fomos visitar a construção de uma usina hidroelétrica, situada a 35 km da cidade em que nos encontrávamos. Neste local, as obras da engenharia haviam desviado uma parte do curso do rio, para construir as enormes barragens de concreto armado, que depois irão canalizar as águas, que vão mover as turbinas, que produzirão energia, e possibilitarão um novo desenvolvimento industrial à região. O primeiro impacto colocou imediatamente frente a frente dois valores igualmente poderosos: por um lado, o poderio técnico, que ali se construía, como um colossal monumento de engenharia; por outro lado, o espetáculo grandioso da natureza, na força das águas, cujo esplendor enchia de espanto e emoção os nossos sentimentos e nos transportava a tal estado de êxtase, que por instantes compreendemos porque os povos primitivos adoravam como deuses as manifestações da natureza.
Muitos operários passavam de um lado para o outro, no trabalho árduo e suarento, que a obra reclamava. Era o trabalho produzindo uma obra capaz de multiplicar o trabalho. E já podíamos antecipar as indústrias que se formariam nas redondezas. E já imaginávamos a aceleração no ritmo de vida da cidade, agora mansa e repousada. Eis que, passando sobre o que fora uma parte do leito do rio, que tinha agora suas águas desviadas, percebemos o trabalho das águas sobre as pedras, transformando-as em verdadeiras joias naturais. E, para nós, tudo parou de repente, numa nova admiração, que ao mesmo tempo revelava uma outra dimensão da vida humana: vida não prática. Abaixei-me aqui e ali, e pus-me a colher uma porção de pequenas pedras, cada uma delas com a sua originalidade e a sua beleza. De repente, pensei nos outros companheiros, e por instantes pensei o que julgariam eles ao ver-nos assim, como crianças, colhendo pedrinhas bonitas no que fora um leito de rio. Sorri, porque eles faziam a mesma coisa, e não só os dois outros professores como até o chofer que nos conduziu de carro até lá. Estávamos todos encantados com as nossas pedras pesando nos bolsos e enchendo as mãos. Foi então que reparei o espanto dos operários, que passavam por nós com um certo sorriso de ironia. Eles sabiam que estas pedras não eram preciosas. Eram pedras, apenas. Mas, eram bonitas, e para nós valiam por isto apenas. Sorriam com ironia os operários, passando por nós, e nós também sorríamos quiçá com a mesma ironia: eles, talvez por julgarem que nos enganávamos quanto ao valor das pedras; nós, exatamente por vermos que eles não compreendiam o valor daquelas pedras inúteis.
Estamos por demais viciados nos nossos critérios, através dos quais realizamos os nossos juízos de valor. Fomos envolvidos de tal forma por uma onda de produtividade, que a geração da máquina passou a entender que o útil deve ser o critério por excelência da vida humana. Assumimos este critério com a maior facilidade, sem refletirmos sobre a sua significação.
A noção do útil, como um valor por excelência, passou a fazer parte de uma consciência coletiva por duas razões: uma, de ordem eminentemente prática; e outra de ordem teórica. Na ordem prática, o advento da máquina levou a primeiro plano o problema da produção, e com isto difundiu uma mentalidade utilitarista, que levou inclusive a que se julgasse o homem pelo que ele é capaz de produzir e não pelo que ele é. Na ordem teórica, o pragmatismo doutrinário firmou-se na concepção de que seria válido apenas o que favorecesse o progresso da vida humana. Tais fatores, de natureza prática e teórica, fundiram-se numa concepção, que marcou a mentalidade humana, voltada para o culto do útil.
Em primeiro lugar, vejamos a completa significação de uma posição desta natureza. Do ponto de vista da ordem prática, eleger o útil como critério por excelência tem o significado de exprimir uma atitude pessimista. Do ponto de vista da ordem teórica, significa um fundamental agnosticismo. Vejamos porquê.
Em que sentido é uma atitude pessimista. Fazer do útil o critério por excelência, na ordem prática, dá-nos a impressão primeira de ser uma posição otimista, pois sugere permanentemente a ideia de criação, de uma criação renovada, de um mudar constante, de um dirigir-se sempre adiante, na escalada do progresso. Mas, por outro lado, desaparece a ideia de um fim a atingir, porque o meio se torna fim, o fim se identifica com o meio, e é neste sentido que dizemos exatamente que a noção de útil tomada como critério por excelência faz com que se pense na produção pela produção, no fazer pelo fazer, sem que saibamos porquê, para quê, a não ser de uma forma negativa, quando julgamos apenas segundo a ideia de superação ou variação. Talvez seja esta, mesmo, a razão mais profunda da angústia do nosso século: a ideia de produzir perdeu o sentido do que produzir, porque o produzir passou a ser um lema genérico e indiferenciado. Produzir é bom, produzir é útil, produzir e ser útil se tornaram conceitos solidários e equipolentes. E o homem procura produzir, mas sofre, embora não tenha consciência disto, a experiência de se ver instrumento de uma ação cuja direção final não alcança. E é isto que o sufoca na angústia.
Em que sentido é um fundamental agnosticismo. O filósofo alemão Emanuel Kant havia defendido a tese da primazia da razão prática sobre a razão teórica. Desta forma, entendia Kant que a razão humana não poderia, na ordem da especulação, atingir a realidade como tal, e conhecê-la. Assim, se não podemos conhecer a realidade como tal, só a conhecemos em função de nossas ações. O agnosticismo latente desta posição está em que não se crê na existência de uma verdade nas coisas, a verdade não pode ser apreendida no mundo das realidades externas ao nosso pensamento, e assim, em lugar de verdades estáveis, teremos apenas verdades que se vão criando em função de nossa própria atividade. Foi neste sentido que o pragmatismo pôde ser entendido como filiado ao kantismo e ao positivismo. O agnosticismo fundamental do pragmatismo está em não distinguir as verdades estáveis e suas aplicações ou manifestações variáveis, de sorte que defende a tese de que as verdades variam sempre, segundo cada estágio do desenvolvimento cultural da humanidade. Uma afirmação que poderia ter validade numa perspectiva histórica é defendida como posição doutrinária.
Um impulso prático aparentemente otimista reflete, de fato, um pessimismo latente; uma concepção teórica, que aparentemente exalta a posição do homem, na medida em que o faz ser o criador das verdades por suas ações, lança-o na consciência de um relativismo, em que dificilmente se determinarão os precisos limites entre o objetivo e o arbitrário.
Reduzir a vida humana ao critério do útil, apenas, é deformá-la essencialmente. Precisamos ter a noção justa de como distribuir na vida humana o plano do útil e o plano do inútil. Precisamos encarar o problema da esfera do não-prático na vida humana.
Em primeiro lugar, voltemos os nossos olhos para o mundo da criança. Não se trata de uma irrealidade: trata-se da manifestação espontânea da vida humana. E trata-se da manifestação autêntica das disposições do nosso ser segundo a sua natureza. A vida da criança exprime uma existência lúdica. Seu plano próprio de vida é o jogo, é a atividade que exercita o desenvolvimento de seu ser. O correr e o pular são necessidades graciosas, exprimindo a um tempo um transbordamento vital e uma alegria que se compraz no puro exercício de suas funções dinâmicas. A língua infantil começa por ser um jogo, também, em que ela se diverte ao ter consciência de uma primeira divisão reflexiva de seu ser, enquanto os sinais da fala alcançam um valor objetivo por si, distinto daquele que os emite. Mesmo quando as crianças mentem elas jogam com os adultos um jogo, que os adultos começaram: os adultos enganam as crianças, com fabulações ou explicações falsas; as crianças não percebem onde está o engano, do ponto de vista de seu conteúdo, mas, o que a inteligência não consegue discernir, a criança percebe nebulosamente; a mentira das crianças é quase sempre a reação inocente falta de lealdade dos adultos para com elas. A criança não pergunta "para quê". Ela pergunta "o quê", ela pergunta "por quê". O mundo dos adultos é que se põe em choque com o mundo infantil, e assim é que o adulto quer saber para que uma criança agiu de um modo ou de outro, e a vai conduzindo ao plano de vida dos interesses práticos.
O mundo da criança se prolonga na existência dos artistas. O mundo da arte não tem "para quê". O mundo da arte exprime um anseio de expressão, uma comunicação de sensibilidade, um traço de simpatia, pelo desejo incontido de exprimir uma visão original, que nada tem a ver com o rotineiro ou o prático da vida comum. Que espera ou deseja um artista verdadeiro que não seja exprimir na sua obra a surpresa de quem revela, em face ao que todos veem, o que ninguém vira? O artista tem por função revelar uma visão nova das coisas. Os artistas são os vigilantes do exército da liberdade, que têm por função principal despertar os homens dos hábitos automatizados e da visão rotineira de tudo. A eles cabe sacudir o torpor causado pela repetição e profissionalização da vida humana. O artista é o antimecânico, pois, na medida em que consegue promover esta visão original e desinteressada das coisas, ele contribui para a existência de uma tensão espiritual, que mantém o homem num estado de consciência e liberdade. As categorias da vida artística não são do domínio do útil: a graça, o belo, o grandioso, o sublime, e tantas outras, são a contribuição do não-prático, no mundo das artes, para uma vida humana mais humana.
No terreno das ciências, a Filosofia continua a experiência artística. A Filosofia procura alcançar um tipo de saber desinteressado, o que significa um tipo de saber que não está comprometido com nenhuma aplicação prática imediata. É verdade que o homem tem o direito de conhecer para atender à solução das dificuldades de ordem prática que surgem em sua vida; mas, não é só isto, pois ele se engrandece na medida em que se dispõe à investigação das explicações mais profundas, movido pelo desejo de encontrar uma resposta, que satisfaça a sua disposição inata de perguntar. Apenas esta satisfação de compreender, apenas esta alegria interior, que parece fazer com que se estabeleça no indivíduo a conciliação dele com ele mesmo, pois na medida em que ele conhece a natureza das coisas e o sentido da existência uma nova harmonia parece brotar no interior de seu próprio ser. Neste sentido, ele se reconcilia consigo mesmo, ele se sente poder apoiar-se em si mesmo, ele passa a dialogar com o mundo, porque, então, não é apenas um instrumento ou uma engrenagem da máquina da natureza, mas é um ser, um ser ciente e consciente, um ser no mundo, um ser diante do mundo, um ser capaz de testemunhar e contemplar a existência do mundo. Se ele procura levar a ordem de suas investigações até às últimas barreiras do que é possível conhecer não é pensando em qualquer vantagem, ou finalidade externa: procura apenas responder ao questionário que se impõe por sua curiosidade intelectual, e por seu sentimento moral, que o move no sentido de alcançar uma estabilidade intelectual e emocional capazes de dar-lhe a firmeza de ânimo e a precisão da conduta.
A vida moral se passa numa esfera fora do âmbito do útil. O bem moral não é o útil, mas é a perfeição, que é uma forma de realização harmoniosa do ser humano, na medida em que suas ações se efetuam de acordo com os fins que lhe são proporcionados. O bem moral coloca o homem no plano efetivo da liberdade, porque a sua vida se decide na medida em que o homem se cria a si mesmo, responsável dos seus atos, senhor do que faz de seu próprio ser. O útil está na ordem da produção, a perfeição está na ordem do ser. Assim, a ordem moral, como ordem de perfeição, não se identifica com o útil, e está dirigida ao ser, ao modo de ser do homem, para que nele não se estabeleça uma destruição interior, e para que ele permaneça com a integridade do seu ser.
No plano da vida religiosa, então, esvazia-se o conceito do útil. Não é possível compreender a criação por Deus a partir de um conceito de utilidade. A vida, na perspectiva religiosa, aparece como um dom gratuito. E toda a natureza aparece como o paroxismo da gratuidade. A vida podia ser como a máquina, repetindo os seus movimentos, refazendo segundo um modelo a sua produção. Mas a realidade é outra: a vida surpreendentemente se renova. As cores, a temperatura, as formas, o espaço, tudo parece renovar-se a cada instante. Tudo isto aparece misteriosamente como um dom permanentemente renovado. O dom, o mistério, a graça, tudo isto são expressões de uma contemplação em que o sentimento religioso distingue o plano da criação da perspectiva do útil. A existência das coisas é um dom gratuito de Deus, e só assim tem significação. Os que não creem em Deus veem a origem do mundo no acaso; mas, ninguém ousaria supor que o mundo viesse a existir por ser útil para isto ou aquilo.
Duas perspectivas se põem para a vida humana: a perspectiva prática e a perspectiva da perfeição pessoal. Uma se dirige à realização exterior, aos atos que se continuam pela produtividade num objeto exterior àquele que o produz; outra dirige-se ao modo de ser do homem, tomado em si mesmo, e, nesta perspectiva, diversos são os estágios de existência em que a vida humana pode desenvolver-se: o lúdico, o estético, o especulativo, o moral, o religioso.
A realização prática está dirigida primordialmente à satisfação das necessidades da vida humana. Desta forma o critério do útil não pode ser um critério por excelência. Ele tem uma posição subordinada. Ele está dirigido a atender a uma necessidade, e por isso, de um modo geral, representa um condicionamento à sobrevivência. Mas, é preciso ver que a vida humana não consiste apenas em sobreviver. Voltar a vida humana toda ela para a dimensão do útil é pensá-la em termos de pura sobrevivência, e isto significa reduzi-la ao seu aspecto puramente vegetativo. É preciso conceber e viver a vida humana em termos de liberdade, que é a emancipação do útil. A vida humana precisa atender às exigências práticas, impostas pelas necessidades devidas às relações externas do ser humano, e isto põe necessariamente a dimensão do útil. Mas, por outro lado, a existência humana tem toda uma franja de inutilidade, que precisa ser atendida: a vida lúdica, a vida estética, a vida especulativa, a vida moral, a vida religiosa são expressões desta existência não-prática, desta existência não-útil, desta existência inútil.
Há uma questão de termos, que devemos esclarecer, enfim, para que se compreenda a questão em todo o seu alcance. Que quer dizer "útil"? E que quer dizer "inútil"?
"Útil" significa tudo aquilo que tem um fim noutro, e não em si mesmo. Um lápis é útil, porque o seu fim é escrever; uma tesoura é útil, porque o seu fim é cortar; etc. Ninguém faria um lápis ou uma tesoura como objeto estético, isto é, apenas para serem contemplados. Ora, pelo próprio conceito de "útil" podemos verificar que ele não pode ser considerado como um critério por excelência para o julgamento dos valores, pois o que é "útil" não tem valor por si, mas só tem valor por aquilo a que serve. O "útil" é sempre instrumento, é sempre meio, é intermediário, e vale por aquilo a que se dirige: não vale por si. Como, pois, elevar o "útil" a um critério primordial da vida humana, se ele para ter significação fica na dependência de outro?
O que por vezes nos impede valorizar o inútil é não termos sobre ele um conceito preciso. Ou então o uso vulgar da palavra seu aspecto "inútil", sempre considerada no pejorativo, e esquecida no seu aspecto nobre e dignificante. Se a palavra "útil" significa o que tem um fim noutro, a palavra "inútil" significa o que não tem um fim noutro. Ora, aqui está todo o problema: "o que não tem um fim noutro" pode ser entendido de duas formas, pois "não tem um fim noutro" porque não tem finalidade alguma; ou, então, "não tem um fim noutro" porque tem um fim em si mesmo.
Em geral, empregamos a palavra "inútil" para significar o que não tem finalidade alguma. A palavra "inútil", no entanto, não significa apenas isto. Significando aquilo que tem um fim em si mesmo coloca-nos diante de um conceito que, efetivamente, define ao lado do conceito de "útil" o outro aspecto da vida humana. O homem pratica atos úteis e inúteis. Os atos úteis são aqueles que estão dirigidos a um fim externo ao que os pratica. Os atos inúteis, no sentido de atos que têm um fim em si mesmo, definem a vida humana na ordem da per- feição e da liberdade.
A existência lúdica manifesta-se na infância, mas não é específica da infância. Será, quando menos, da infância de todas as idades. O esporte, a excursão, o turismo, são formas de vida lúdica. O homem necessita fundamentalmente para o seu equilíbrio psíquico, e até mesmo orgânico, destes momentos de distensão, de desligamento da perspectiva prática da vida. Esta forma de existir tem o seu fim em si mesma. Ela se cumpre na própria medida em que ela se realiza no próprio indivíduo... Não tem um fim extrínseco a ele, mas se efetua nele, como um modo de ser fundamentalmente saudável.
A existência estética é outra manifestação da existência inútil. Ouvir uma música é ouvir uma música. Ver um quadro é ver um quadro, a obra de arte e mais Tanto mais perfeita profundamente ela cala no indivíduo. E mais: deixa-o sem palavras, também, porque se torna uma experiência indizível, porque se efetua e se completa na experiência estética, que é um estado de existência, um modo de ser diante da obra, ou do belo contemplado na natureza. Por isto se fala no êxtase estético: ele exprime uma experiência pela qual o observador é como que possuído pelo objeto que contempla. Ele entrega-se ao objeto estético para realizar a experiência que molda no seu ser algo de novo. Por isso a verdadeira obra de arte emociona e comove. As obras de arte que deixam o espectador indiferente a ela, ou promovem uma discussão em lugar de uma adesão, são falsas obras de arte. Mas isto é um outro assunto. Fiquemos apenas, neste instante, na expressão de que a experiência estética é inútil exatamente porque ela tem um fim em si mesma, que é a própria experiência, enquanto representa um modo de ser do sujeito que a experimenta.
A especulação intelectual desinteressada é uma forma de existência inútil. Ela representa o desenvolvimento da inteligência na perfeição de si mesma. Neste sentido, à medida em que a inteligência humana se dispõe à consideração dos problemas mais difíceis, ela põe em exercício, do seu lado, as suas funções cognoscitivas de maneira mais completa. Aristóteles dizia, neste sentido, que o valor por excelência da Filosofia estava no fato de ela ser uma ciência inútil: não estando comprometida com a ordem dos interesses práticos imediatos, podia ter a isenção de espírito necessária para conhecer de maneira mais completa e verdadeira, pois sua investigação visava atingir o conhecimento exaustivo do real, para satisfazer apenas a curiosidade humana de compreender.
A existência moral deve ser medida, não pelos atos externos tomados em si, mas pelos que refletem de um estado de perfeição do sujeito que os pratica. Desta forma, a vida moral interessa ao próprio sujeito, em primeiro lugar, como expressão de harmonia, de equilíbrio interior, de domínio de si mesmo, de consciência e responsabilidade dos seus atos.
No plano religioso, a disposição de culto, inerente à natureza humana, procura no sobrenatural a expressão viva de um sentido da vida. O ato religioso na sua essência consiste na experiência de uma doação de si mesmo diante do dom gratuito de todas as coisas da existência.
Estes modos de existência não-prática, de existência "inútil", que a análise fenomenológica de alguns filósofos existencialistas denominam de categorias existenciais, ou estados de existência, exprimem as etapas ascéticas de uma existência autêntica, em oposição a uma existência inautêntica, esta ocupada de maneira absoluta com o aspecto prático da existência, distraída com os seus aspectos superficiais do cotidiano, ou compenetrada apenas no que diz respeito ao útil e ao progresso material.
Desejamos um desenvolvimento da vida humana marcado pelo progresso, sem dúvida alguma, porém não concordamos com a redução do conceito de progresso ao puro desenvolvimento técnico e ao aperfeiçoamento dos instrumentos de produção. Tudo isto deve ser feito em benefício de um maior bem-estar do homem, que, pelo seu aspecto externo, significa maior conforto, mas, pelo seu aspecto interno, significará a possibilidade de um desenvolvimento mais completo do ser humano, voltado para o útil, mas voltado igualmente para o inútil, enquanto este "inútil" significa um caminho de maior aperfeiçoamento pessoal.
Uma civilização que coloca o útil como o critério de valor por excelência não pode solucionar o problema do homem em toda a sua complexidade, nem atender às suas aspirações mais profundas. E é neste sentido que devemos recuperar, para uma civilização mais completa e verdadeiramente humana, a noção de outros valores, que, ao lado do útil, poderemos resumir neste conceito do valor da inutilidade.
"É chegada a hora de separar-nos, eu para morrer, e vós para viver. A minha sorte ou a vossa, qual será a melhor? Ninguém, a não ser a divindade, saberá respondê-lo". Estas teriam sido as palavras de Sócrates, ao fim do julgamento a que foi submetido, em Atenas. Todos sabem que Sócrates foi um mártir da Filosofia. Foi condenado à morte pelo fato de ter disposto sua vida sob o impulso missionário de despertar os homens da sua terra, obrigando-os a afastarem-se das preocupações corriqueiras com os interesses imediatos, forçando-os a refletirem sobre os problemas mais profundos relativos ao sentido da vida e à noção do bem. O que é a morte?
O tema, para ser abordado, requer uma espécie de violência ao impulso espontâneo da existência, que parece voltado naturalmente para a consideração dos problemas relativos à ordenação da vida humana, ou aos atos de criação, de produção e desenvolvimento. E, no entanto, abordar o problema da vida impõe imediatamente o problema da morte. Assim, dizia Jacob Boehme: "Desde que o ser humano nasce está suficientemente velho para morrer".
Martin Heidegger, filósofo contemporâneo, analisando o ser do homem em situação no mundo diz que o homem, ao desligar-se das curiosidades superficiais, que consomem geral a atenção das criaturas, percebe que o seu ser está dirigido à morte.
Pensar a morte é tão difícil como pensar o próprio nascimento. Pensamos em nós, vivendo. Pensamos em nós tendo consciência das coisas. Não pensamos em nós antes de nascermos, e nem pensamos em nós nascendo. Da mesma forma, ninguém pensa a própria morte. Pensamos a morte dos outros, pensamos isto em termos abstratos. Concretamente, ninguém pensa a sua própria morte. Schopenhauer chega mesmo a dizer que nem o suicida pensa a sua morte: ele não quer morrer, quer mudar de vida; o suicida procura livrar-se de uma vida, que se tornou para ele insuportável, porque se choca com aquela que desejaria viver. O nascimento é um mistério, a morte é um mistério, e a vida é um mistério limitado por aqueles outros dois, o da origem e o do fim. Cumpre-nos, no entanto, viver. E cumpre-nos viver bem. Aliás, como diria Bergson, "a vida não se contenta com o bom, ela pede o melhor". E, de fato, a vida parece indicar um sentido ascendente, que nos põe um duplo problema: por um lado, a compreensão do que seja o viver em geral; por outro lado, a compreensão do que seja nosso próprio viver.
De todos os problemas da Filosofia, o problema do sentido da vida é aquele que se põe com a maior naturalidade. Se ouvimos a nós mesmos, se auscultamos as nossas próprias inquietações, na sua maior profundidade, veremos que o que se passa é que colocamos espontaneamente a questão da significação da existência. De onde vimos? que somos? para onde vamos? E esta questão se põe naturalmente. Basta que possamos desligar-nos por instantes das preocupações que nos aprisionam à vida prática. Ou, como diz Bergson, basta que não comecemos o estudo da Filosofia pelas obras especializadas. O problema que se põe espontaneamente, para o homem, é este: conhecer a significação deste fato de nascer, viver e morrer. É sempre assim: nascer, viver, morrer. Nascer, viver, morrer, isto nos parece normal. Mas nosso pensamento poderia exigir que fosse diferente. Por que todos começam nascendo? As perguntas dos filósofos às vezes tangenciam o absurdo. Mas, pensemos bem: podemos imaginar que o homem nascesse velho e morresse criança. Qual a necessidade de nascer criança? Mas, o fato é que a realidade é assim. Nascemos, morremos, e nesse intermédio processa-se um desenvolvimento nos seres vivos: a idade infantil, a idade madura, a idade senil. Verificamos então um fato da maior importância: a irreversibilidade da vida. Ela parece ter uma direção. Não podemos mudar esta direção. E o que tem direção tem um sentido. E é este sentido, que procuramos conhecer. E é pelo fato de existir este sentido, que não podemos deixar de colocar o problema do significado da vida. Porque o que encontramos no mundo dos seres vivos não é um simples flutuar. Encontramos uma direção, encontramos uma irreversibilidade, e isto é um desafio à nossa inteligência.
Os seres vivos são necessariamente corpos organizados. Esta organização supõe um plano interno, uma distribuição e subordinação de funções, um dispositivo de comando, de reflexos e de iniciativas, uma automação, uma capacidade seletiva. Parece incrível que um homem de ciência, como Darwin, pudesse ter pensado que um ser assim poderia ter sido criado por acaso! Seria o mesmo que pensar que poderíamos espalhar as letras do alfabeto e esperar que um dia, por acaso, elas se unissem e formassem um poema! Fica o desafio à compreensão de um fato tão empolgante como este da manifestação da vida. E a perplexidade cresce ainda mais quando no mundo dos seres vivos contemplamos o ser humano, com suas faculdades de inteligência e vontade. Tudo isto é extremamente fantástico, e, no entanto, os nossos olhos passam por tudo isto, em geral, como diante do mais rotineiro dos fatos. Os cientistas se perguntam se haverá vida em outro planeta ou outro mundo. É provável? É improvável? Estas são afirmações puramente abstratas e a priori. O problema é poder afirmar que "em tal planeta há indícios de possibilidade de vida, pela existência de condições para tal". E os cientistas não têm condições de afirmá-lo, até agora, embora saibamos que pela análise espectrográfica é possível determinar com absoluta precisão a composição dos corpos celestes, talvez com maior precisão ainda do que se estivéssemos neles. O maravilhoso está diante de nossos olhos indiferentes. Não perguntamos, como Heidegger, "por que existe alguma coisa em vez do nada?" Perguntamos, apenas, pelo sentido da vida.
Viver, espaço de tempo entre o nascimento e a morte. Que dizemos nós? Por que distinguir o nascer, o viver e o morrer? Carregamos conosco o nosso nascimento, como carregamos conosco a nossa morte. E, de fato, em cada momento da vida há um pouco de nascer e um pouco de morrer. Nascemos, de alguma forma, a cada instante que passa. Cada manhã, quando acordamos, põe-se de novo diante de nós o mistério do nosso nascimento, porque bem poderíamos já ter morrido, e nada explica a surpresa de nos vermos vivos ainda, persistindo na existência, quando sabemos que somos seres contingentes, e que não nos sustentamos a nós mesmos por nós mesmos, mas vivemos na dependência de outros. Nascemos, pois, a cada momento, no mistério da subsistência. Mas, morremos também, a cada instante. Viver é morrer aos poucos, na medida em que nos sentimos tolhidos na existência, e obrigados a escolher de tal forma que na proporção em que preferimos alguma coisa deixamos de lado outras, e a fixação numa é o desligar-se de outras. O processo de seleção e escolha, em que vivemos, nos faz passar pela experiência viva de nascer e morrer em cada momento de decisão.
Carregamos conosco o nascimento e a morte, o passado e o futuro. Viver é existir no tempo, e desta forma é que podemos dizer, como Bergson, que a consciência é coextensiva à vida, porque é por ela que nós nos sentimos viver. A consciência é passado e é futuro, é retrospecção e prospecção, é memória e previsão. Diz Bergson: "Reter o que já não é, antecipar o que ainda não é, eis a primeira função da consciência. Para ela não existe presente, se o presente se reduz ao instante matemático. Este instante é apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado do futuro; ele a rigor pode ser concebido, mas não é percebido; quando acreditamos surpreendê-lo, ele já está longe de nós. O que nós percebemos de fato é uma certa espessura de duração, que se compõe de duas partes, nosso passado imediato e nosso futuro iminente. Sobre o passado estamos apoiados, sobre o futuro estamos inclinados; apoiar-se e inclinar-se assim é o próprio de um ser consciente. Diremos então, se o quiserdes, que a consciência é um traço de união entre o que foi e o que será, um ponto lançado entre o passado e o futuro. Mas, para que serve este ponto, e o que a consciência é chamada a fazer?"
Viver se exprime como consciência pelo fato de ligar o passado e o futuro na permanente renovação dos atos de escolha. Porque viver é tomar posição na existência, e a consciência tem exatamente por função o discernimento desta posição, no ato da escolha. E diante desta possibilidade e efetividade da escolha que se define a nossa vida. Segundo Bergson, dois caminhos gerais podem oferecer-se à vida: "representemos então a matéria viva sob sua forma elementar, tal qual ela pôde oferecer-se a princípio. É uma simples massa de geleia protoplasmática, como a da ameba; é conformável à vontade, e então vagamente consciente. Agora, para que cresça e evolua, dois caminhos se apresentam a ela. Pode orientar-se no sentido do movimento e da ação, — movimento cada vez mais eficaz, ação cada vez mais livre: aí está o risco e a aventura, mas também a consciência, com seus graus crescentes de profundidade e intensidade. Pode, por outro lado, abandonar a faculdade de agir e de escolher, cujo esquema possui consigo, e arrumar-se para obter sem mover-se o que lhe é necessário, em lugar de ir buscá-lo: é então a existência segura, tranquila, burguesa, mas também o torpor, primeiro efeito da imobilidade; é ainda o relaxamento definitivo, é a inconsciência. Tais são os dois caminhos que se oferecem à evolução da vida". Esta imagem, que Bergson nos apresenta, caracteriza bem a luta constante, que encontramos na vida, em seus diversos graus. Por um lado, a tendência ao menor esforço, à conciliação, ao equilíbrio estático, à rotina, ao mecânico, ao irresponsável, ao sono, ao torpor, à inconsciência; por outro lado, a tendência à aventura, à luta, à surpresa, ao desconhecido, ao imprevisível, à criação, à liberdade, à vigília, à consciência. A matéria aparece como necessidade, a consciência como liberdade; mas parece bom que exista esta oposição entre uma e outra, pois a vida encontra um meio de reconciliá-las, pois a vida nos apresenta o espetáculo da liberdade penetrando na necessidade para assumi-la em seu proveito. A liberdade se realiza no esforço através do qual submete o plano do necessário e do material a uma ordem, de tal modo que o necessário se transforma em instrumento do exercício da liberdade.
Diz Bergson: "Para que o pensamento se torne distinto, é necessário que ele se espalhe em palavras: nós só nos damos conta do que trazemos em nosso espírito quando tomamos uma folha de papel e alinhamos uns ao lado dos outros os termos que estavam entremeados uns nos outros. Assim, a matéria distingue, separa, resolve em individualidade e finalmente em personalidade tendências antes confundidas no élan original da vida. Por outra parte, a matéria provoca e torna possível o esforço. O pensamento que é apenas pensamento, a obra de arte que apenas é concebida, o poema que apenas é sonhado, não custam ainda nenhuma pena; é a realização material do poema em palavras, a realização da concepção artística em estátua ou quadro, que exige um esforço. O esforço é penoso, mas é precioso, tanto ou mais precioso ainda que a obra em que se conclui, pois graças a ele tirou-se de si mais do que havia, e elevamo-nos acima de nós mesmos. Ora, este esforço não teria sido possível sem a matéria: pela resistência que ela opõe e pela docilidade com que a podemos conduzir, ela é ao mesmo tempo o obstáculo, o instrumento e o estímulo; experimenta a nossa força, sustenta a empresa, e apela à sua intensificação".
Desta forma, de fato, a matéria aparece como obstáculo, como impedimento, como torpor, mas a vida se exalta através dela, pela vitória da consciência sobre ela, e a consciência para ser livre necessita manter este estado de tensão, de luta, de esforço, de superação, de criação, como expressão de sua existência em estado de liberdade. Este é o estado natural da vida a luta entre consciência e matéria, na qual se exalta o espírito e se sustenta a liberdade. Interiormente, o que existe na vida é esta luta incessante. Vista pelo seu aspecto externo, a natureza aparece como a manifestação constantemente renovada de uma imprevisível e contínua criação; a força que a impulsiona parece fundamentalmente uma força de amor, um dom gratuito, um dom total, em que cada particularidade do que existe na natureza parece ter sido criada como uma obra de arte única.
Interiormente, a luta entre o contínuo e o descontínuo, entre o automático e o consciente, entre o mecânico e o espiritual; e, externamente, um espetáculo de contínua criação, de renovada surpresa, e até de inesperada repetição, em que a própria repetição tem o sabor e o sentido de uma renovação e uma recriação. O aspecto de luta e de divisão interior e o aspecto de união e criação exterior são os dois aspectos de uma expressão mais total da vida, que é o amor. O amor é esta divisão e união, é este dar e possuir, é este ser e não-ser, é a superação das antinomias, é um dissolver-se e um reencontro, é esta conservação e esta renovação, é morrer e nascer, é ser com vida, é viver, é reviver, ou melhor renascer, é nascer de novo sem morrer, é transfiguração, é prolongar o passado no futuro, é doação que assume todas as coisas, é morrer dando vida nova a tudo o que existe, é um reencontro consigo e com todas as coisas, amar é prolongar-se, sentir-se ilimitado, sentir-se em harmonia com o mistério total da existência e da vida.
A experiência de amor é a experiência da vida em sua plenitude. Mas, o amor se distingue do desejo, como a alegria se distingue do prazer. O desejo é subordinação, é expressão de necessidade, e se manifesta pela aspiração de possuir; o amor é liberdade, é independência, e se manifesta como transbordamento de vida, por isso é essencialmente doação. O prazer é o sentimento que acompanha a satisfação de uma necessidade, e está na ordem da subsistência sob suas diversas formas; a alegria é expressão de sobrevivência, de criação, de libertação, é superabundância. O desejo e o prazer são expressões do aspecto necessário da vida; o amor e a alegria são expressões do aspecto livre e criador da existência.
Em geral, não distinguimos entre conceitos tão fundamentais, em torno dos quais se desenrola a nossa existência. E esta distinção tem uma importância, que não podemos minimizar. Basta lembrar o seguinte: quantos casamentos desajustados se efetuam exatamente porque aqueles que se casam estão movidos pelo desejo, e não pelo amor? quantos vícios e hábitos inconvenientes se criam porque as pessoas não distinguem entre prazer e alegria?
Na grande maioria das vezes o homem procura fugir das dificuldades, evitar o esforço, contornar a luta, orientado por um conceito negativo de bem, como se o bem do homem consistisse em não encontrar dificuldades, em não fazer esforço, em não ter que lutar; mas, a lei fundamental da vida é exatamente a dificuldade, o esforço, a luta, porque é nestes termos que o aspecto consciente e livre da existência consegue ordenar e submeter o seu aspecto material e necessário e só assim pode o homem atingir o plano do amor e da alegria, através da criação, que é a vitória do intelectual sobre o material, do espiritual sobre o mecânico, da liberdade sobre a necessidade, do consciente sobre o automático.
Este fato é tão comum que, até em nome de uma posição científica, chega-se a pretender dirigir os rumos da educação num sentido que contraria o sentido da realidade. O advento da psicanálise tornou populares os conceitos de "frustração" e de "complexo". Ninguém quer ter "frustrações", ninguém quer ter "complexos". E isto foi levado a tal ponto que em matéria de educação passou a funcionar uma concepção de liberdade e espontaneidade, em que se permitia tudo às crianças, para que elas não tivessem "complexos". Posição falsa e irreal, levou a desastradas consequências. A criança perdia o sentido da autoridade, da coação e da lei, e chegava mesmo a criar o "complexo de abandono". É um fato social de nossa época a organização de bandos de rapazes em muitas partes do mundo, provocando agitações por vezes graves. Muitos psicanalistas, examinando o fenômeno, entenderam ser este a expressão de um sentimento de abandono. Daí a união em grupos, como que se amparando mutuamente, e provocando escândalos, que chamem sobre eles a atenção das autoridades. Da mesma forma que uma criança, por vezes, passa a proceder mal para chamar sobre si a atenção dos pais, assim se explicaria esta reação de grupos, dos que se acham abandonados. Este é o resultado de uma educação dominada por uma ideia de não criar "complexos", e que se transformou numa educação de abandono dos filhos. As crianças, entregues aos seus próprios impulsos, sem criarem o hábito de encontrar as resistências naturais, tornavam-se imaturas e despreparadas para a vida adulta, marcada toda ela pela competição, pela luta, pelo esforço, e até mesmo pelas decepções. Necessário seria reencontrar as bases de uma naturalidade, em que, certamente, seriam condenáveis os rigores excessivos, mas em que, igualmente, se verificaria o erro de educar numa excessiva e prejudicial liberdade sem responsabilidade, que significa efetivamente abandono, e não possibilidade de livre desenvolvimento. Este exige esforço, exige a consciência do obstáculo, exige o espírito de luta e de aventura, de nobreza e generosidade, capacidade de doação, e senso de paciência diante das injustiças ou dos insucessos, das decepções e das tentativas infrutíferas; mas, antes de tudo, coragem e persistência.
Sendo a vida, por excelência, esta luta interior de liberdade e automação, podemos verificar que ela traz consigo uma responsabilidade em nós mesmos de nos reavivarmos permanentemente. Não podemos deixar de arrefecer em nós o fogo sagrado de nossa própria existência. E não basta dizer que este fogo deve estar sempre aceso em nosso próprio ser. Devemos perceber o que faz com que ele adormeça, e nos leva a mergulhar num torpor, em que nos vemos viver arrastados nos acontecimentos, agarrados aos nossos hábitos, comportando-nos com um automatismo de reações, que não nos dão a plenitude de vida porque não nos fazem participar da existência de maneira livre e consciente. Voltamos ao tema do amor e da vida. Na verdade, traímo-nos a nós mesmos na medida em que não temos consciência desta força do amor, que é como que a alma da própria vida. Na medida em que vivemos apenas movidos pela ambição, exaltamos os nossos desejos, e vivemos amarrados aos interesses, que nos parecem lucrativos. Mas, a vida não é lucro. A vida é criação desinteressada, a vida é doação, a vida é um ato de amor. E nós vivemos na medida em que participamos do sentido profundo da vida em geral, quer dizer nós vivemos na medida em que amamos. A ideia do lucro é a distorção mais completa da ideia do amor. O interesse imediato é a distorção desta magnanimidade e generosidade, que caracterizam o verdadeiro ato do amor. A vida é amor, é dom, é manifestação desinteressada, é criação. O homem só pode sentir a vida na estrita medida em que for capaz de amor. E, quando dizemos amor, dizemos tudo isto: dizemos capacidade de dar, dizemos reconhecimento, dizemos criação, dizemos liberdade, dizemos alegria, dizemos consciência.
O amor coloca o homem diante do nascimento e da morte. O amor faz nascer de novo todas as coisas. O amor é como uma luz que se acendesse de repente e fizesse o homem ver o mundo que o cerca: todas as coisas nascem para ele, tudo fala, tudo com ele se comunica, ele dialoga com as coisas, ele se sente íntimo de tudo, ele se sente dono de tudo e ao mesmo tempo se sente possuído por tudo, como se ele existisse também em tudo quanto o cerca. Desta forma, tudo parece nascer com o amor, e o amor tem a faculdade de fazer surgir tudo, como se todas as coisas começassem a existir desde o instante em que o amor passa a existir. Mas, o amor põe o homem também diante da morte: o amor mata o passado. Não porque o passado desapareça da memória, mas porque é um passado, e um passado longínquo e abstrato, como um teatro estranho, em que o que se passou com o homem parece ter acontecido com um outro ser, que ele já não é. O amor põe o homem diante do nascimento e diante da morte, e por isso é expressão completa de vida, porque a vida existe exatamente entre estes limites do nascimento e da morte. O amor aprofunda ainda mais, no entanto, a nossa visão do nascimento e da morte, porque dá a estes conceitos um significado vivo, pela transfiguração qualitativa que por ele se efetua em tudo. Dá-nos o verdadeiro sentido do nascer: nascer é surgir por nada, é surgir como um mistério, e impor-se, sendo capaz de promover admiração, de fazer-nos parar diante de si, para contemplá-lo em si, por si. Dá-nos o verdadeiro sentido do morrer: morrer é transfigurar-se, é nascer sob outra forma, ou com outro valor. Pelo amor nós reassumimos em nós mesmos o nascimento e a morte, porque podemos nascer de novo e podemos morrer, à medida em que desenvolvemos a nossa vida num sentido de liberdade, de consciência, de responsabilidade, de criação.
Viver, nestes termos, é viver plenamente. É retomar-se e recriar-se permanentemente para poder corresponder à expressão de tudo o que vive, que é uma doação e um ato de amor. Criar-se a si mesmo para poder criar, e criar como uma doação, viver como quem morre, morrer como quem vive, fazendo o ofertório de si mesmo e sendo capaz de tudo possuir exatamente na medida em que somos capazes de não nos fazermos centro do mundo, de não querermos para nós, mas colocarmos em primeiro lugar a vontade de servir, de ser para o mundo, de corresponder a este ato de graça, que é existência e vida. Lutar, não com a ideia de possuir, mas lutar para vencer o obstáculo, e realizar o esforço através do qual vencemos na medida em que criamos alguma coisa. Viver é criar, que é a solução do encontro entre o espírito e a matéria, criar como expressão de um aperfeiçoamento pessoal e uma colaboração e efetiva participação no processo da vida, que é um processo criador.
Vivemos amarrados à procura de uma estabilidade inspirada na estabilidade dos sólidos, sem ver que a vida é uma expressão dinâmica, que encontra a sua estabilidade numa renovação constante, numa irreversível ascese, numa superação que une a morte e a vida numa ressurreição permanente. Procuramos a nossa estabilidade querendo possuir tudo, quando isto significa a nossa prisão a tudo o que pretendemos possuir, quando deveríamos sentir a posse na medida de tudo o que conseguimos receber para devolver transformado por nossas mãos em uma expressão de criação, que reflita de fato uma realidade viva, à altura do que nós somos, e de nossa posição na existência. Morrer é, na verdade, ser obrigado a desligar-se de tudo aquilo a que nos amarramos nesta vida; mas, este desligamento é fatal, porque somos seres vivos, e existimos num processo, que tem uma direção criadora.
Pretender existir como um sólido, amarrar-se a tudo, com uma aspiração de estabilidade, é na verdade construir a nossa própria morte. Para viver, portanto, é necessário ter esta coragem de morrer, ter esta coragem de enfrentar o que é a vida, obedecer ao seu sentido profundo, que é um sentido de renovação e criação. Para poder criar é necessário assumir o que nos é dado colher na existência, não para fixar em nossas mãos, mas para transformar na obra de criação, que é o nosso próprio ser, a nossa vida, e deve ser a obra de nossas mãos.
"Trabalhar como se a vida fosse eterna, viver como se fossemos morrer amanhã", eis um lema dos mais nobres e generosos, mas igualmente um lema realista, porque a realidade é esta, nós somos uma doação, como obra da vida, e só podemos ser fiéis a nós mesmos, se continuarmos a ser a doação que somos pelas nossas origens.
Viver é ter coragem de morrer, porque é ter a consciência de nosso existir como criação, e portanto entender com simplicidade e naturalidade que trazemos na essência de nosso ser, como expressão de vida, esta capacidade criadora, pela qual assumimos e reencontramos a criação que nós somos, e pela qual nós prosseguimos e correspondemos ao que nos foi dado ser, morrendo na medida em que não nos fixamos às coisas, e nascendo na medida em que as transformamos, nascendo com a nossa obra, fazendo de nossa vida esta doação de amor, que enche o coração de alegria e coloca o homem nas dimensões exatas de uma existência livre. Coragem de morrer, na libertação das amarras, que, com a preocupação de fixar, impedem-nos de criar. Criar é a única forma de fixação que nos é dado atingir na vida, porque é a fixação dinâmica e viva, exatamente na medida do que nós somos, e porque na proporção em que criamos alguma coisa nós nos criamos a nós mesmos, e renascemos na obra que conseguimos realizar.
Esta coragem de morrer, neste sentido, se identifica com a objetiva disposição de viver, como a expressão mais profunda de um dom de amor, que é a expressão da vida em sua plenitude e excelência de sua significação. Viver é nascer a todo instante; nascer a todo instante é morrer sempre, para continuar a viver no seu sentido mais pleno. Ter coragem de morrer é estar disposto a criar, criar é nascer em cada instante de criação, e é ter a coragem e a generosidade de viver, porque viver é um dom que nos foi dado, e deve continuar a ser um dom de nós mesmos. Só assim podemos amar a vida e sentir a alegria de viver, na medida em que a fizermos ser um ato de criação e um ato de amor.
Com estas palavras, inicia Aristóteles a sua obra intitulada Metafisica: "Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer; o prazer causado pelas sensações é a prova disto, pois, fora mesmo do aspecto de sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as sensações visuais. De fato, não apenas para agir, mas mesmo que não, nos proponhamos a qualquer ação, preferimos, por assim dizer, a vista a tudo o mais. A causa disto está em que a vista é, de todos os sentidos, o que nos faz adquirir o maior número de conhecimentos".
Todos, de fato, como diz Aristóteles, têm o desejo de conhecer, e, na realidade, de todas as vaidades que o homem carrega consigo parece-nos que nenhuma vaidade excede a que se refere ao conhecimento que o homem pretende ter de alguma coisa. E, de um modo geral, o conhecimento aparece como verdadeiro, na medida em que o homem é testemunha direta do que conhece, ou pensa conhecer. E, de fato, ver parece exprimir o conhecimento por excelência.
O famoso pregador Pe. Antônio Vieira, falando sobre a vinda de Cristo ao mundo, afirma que Deus o quis para garantir a salvação dos homens, que poderiam ver o Filho de Deus. Diz Vieira: "De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da Palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo Divino é palavra Divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras veem-se: as palavras entram pelos ouvidos, as obras, entram pelo olhos: e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos".
Mas, o próprio Pe. Antônio Vieira, em outra passagem, mostra como é efêmero confiar no que vemos. Diz ele: "Porque assim como há muitos que olham para cegar, que são os que olham sem tento; assim há muitos que veem sem olhar, porque veem sem atenção. Não basta ver para ver, é necessário olhar para o que se vê. Não vemos as coisas que vemos; porque não olhamos para elas. Vemo-las sem advertência e sem atenção, e a mesma desatenção é a cegueira da vista. Divertem-nos a atenção os pensamentos; suspendem-nos a atenção os cuidados; roubam-nos a atenção os afetos; e por isso vendo a vaidade do mundo, vamos após ela, como se fora muito sólida; vendo o engano da esperança, confiamos nela como se fora muito certa; vendo a fragilidade da vida, fundamos sobre ela castelos, como se fora muito firme; vendo a inconstância da fortuna, seguimos suas promessas, como se foram muito seguras; vendo a mentira de todas as coisas humanas, cremos nelas como se foram muito verdadeiras.
"Dirá alguém que este engano da vista procede da ignorância. O rústico, porque ignorante, vê que a Lua é maior que as estrelas; mas o filósofo, porque é sábio e mede as quantidades pelas distâncias, vê que as estrelas são maiores que a Lua. O rústico, porque é ignorante, vê que o céu é azul; mas o filósofo, porque é sábio e distingue o verdadeiro do aparente, vê que aquilo que parece céu azul, nem é azul nem é céu. Eu não pretendo negar à ignorância os seus erros, mas os que padecem comumente os olhos dos homens digo que não são da ignorância senão da paixão. A paixão é a que erra, a paixão a que os engana, a paixão a que lhes perturba e troca as espécies, para que vejam umas coisas por outras. E esta é a verdadeira razão ou sem-razão, de uma tão notável cegueira".
Estas considerações preliminares abrem caminho a uma reflexão sobre o valor do conhecimento que possuímos, ou que pretendemos possuir. O que conhecemos da realidade? Até que ponto o que conhecemos se trata, de fato, do que existe na realidade? Até que ponto é uma projeção do nosso espírito sobre a realidade? Até que ponto somos fiéis aos dados reais, e até que ponto a nossa imaginação interfere naquilo que julgamos colher do lado do real? Até que ponto o que conhecemos corresponde ao que existe na realidade? Qual, enfim, a realidade do nosso conhecimento?
Górgias, um dos sofistas da antiga Grécia, dizia: "Não existe verdade; se existe, não a podemos conhecer; se conhecemos, não a podemos transmitir". Para ele, a verdade não existe porque, segundo a sua concepção, não existe verdade universal, uma verdade que fosse comum a todos. O conhecimento exato, para ele, só poderia ser o conhecimento sensível: ora, o conhecimento sensível é sempre particular, e varia por isso de instante a instante, de indivíduo para indivíduo. Um conhecimento que não tem estabilidade não poderia ser verdadeiro. Conhecer é apreender alguma coisa; mas, o que é apreendido pelo conhecimento é uma representação da coisa. Não apreendemos a própria coisa no ato de conhecer. Haveria, assim, uma diversidade entre a coisa e a sua representação, e o conhecimento seria a apreensão de algo diverso da coisa, a sua imagem. Transmitir um conhecimento é sempre uma informação indireta, e aquele que conhece a informação não pode dizer que conhece o objeto da informação, mas apenas conhece a informação, ou uma informação sobre o objeto. Notemos que toda esta perplexidade vem do fato de que Górgias só aceitava como conhecimento certo o conhecimento sensível.
Nesta mesma linha, chegamos à concepção de Heráclito sobre a realidade, para afirmar que a realidade se reduz a permanente transformação, é transformação, é processo apenas, o que significa dizer que o que é ao mesmo tempo é e não é. A natureza é um vir-a-ser contínuo, e quem diz "vir-a-ser" diz "nunca é", "nunca chega a ser", "está sempre em vias de ser", ou "deixando de ser", ou "quase sendo", mas "jamais sendo". "Tudo flui", teria afirmado Heráclito, segundo a doxografia a respeito de sua concepção. Os sentidos atingem, de fato, apenas este aspecto aparente do real, e a aparência do real é esta de um constante mudar, de uma transformação incessante. Será que a realidade fica toda conhecida se nos fixamos ao conhecimento do seu aspecto aparente? O conhecimento sensível atinge a esta aparência. Podemos dizer que é a mesma coisa a aparência da realidade e a realidade?
Parmênides nega o movimento e a transformação do real. Seu ponto de partida consiste na crítica ao valor do conhecimento sensível. Para Parmênides, o conhecimento sensível é falso. Ele nos ilude. Se mergulharmos uma das mãos em água quente e outra nágua fria e logo após mergulharmos as duas em água morna a que mergulhara nágua fria nos indica calor, a que mergulhara nágua quente nos indica frio. Assim, mergulhadas na mesma água morna, uma indica frio, e outra calor, o que significa uma informação contraditória. Quando um carro cruza em sentido contrário ao em que estamos viajando, temos a impressão de que o nosso aumenta de velocidade, sem que isto seja real. Constatando as chamadas "ilusões dos sentidos", Parmênides passou a negar por completo qualquer valor ao conhecimento sensível. Desta forma, então, só o conhecimento puramente intelectual, sem qualquer vestígio de conhecimento sensível, seria verdadeiro. Nestes termos, o movimento e a transformação apareciam como impensáveis: dizer movimento é dizer que um objeto está e não está num determinado ponto, exatamente porque se diz que passa por este ponto; dizer transformação é dizer que algo é e não é alguma coisa num determinado instante, exatamente porque se diz que há uma alteração naquilo que é, ou seria. Como o conceito de ser é contraditório de não-ser, como o conceito de estar é contraditório de não-estar, não é possível pensar ao mesmo tempo que algo é e não-é, está e não-está. E, se só é verdadeiro o que é pensado em termos puramente intelectuais, sem qualquer vestígio do conhecimento sensível, que para Parmênides é um conhecimento falso, a realidade só pode ser imutável e intransformável.
Armava-se para o pensamento filosófico da antiga Grécia um impasse: por um lado, a valorização do conhecimento sensível; por outro lado, a valorização do conhecimento intelectual. Um e outro pareciam inconciliáveis. O conhecimento sensível acompanhava as manifestações externas da realidade, mas não permitia um conhecimento universal e estável. O conhecimento intelectual permitia um conhecimento evidente e indubitável, mas não acompanhava os fatos do mundo físico. Só havia um caminho: tentar a conciliação entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual: o conhecimento sensível atingiria o aspecto superficial da realidade, o conhecimento intelectual atingiria o seu aspecto profundo. Várias soluções aparecem, tentando formular esta conciliação inevitável.
Empédocles concebe os corpos como sendo formados de elementos simples, e unidos por forças responsáveis pelas suas transformações. Os elementos simples seriam quatro; terra, água, ar e fogo, que na época se supunham elementos simples. E as forças seriam duas: o amor e o ódio, uma força de coesão e uma força de repulsão. Desta forma, pretendia-se conciliar as exigências do conhecimento sensível e do conhecimento intelectual: os corpos se transformariam, de acordo com o testemunho do conhecimento sensível; mas, os elementos não se transformavam, cada um sendo permanentemente aquilo que é, segundo a exigência do conhecimento intelectual. Mas, a solução não era satisfatória. Como explicar a organização dos corpos? Falar em organização é supor um plano inteligente na natureza, e a explicação da organização dos corpos por simples união e separação dos elementos não satisfaz.
Anaxágoras, na mesma linha da solução anterior, supõe de um lado a existência de elementos simples, indestrutíveis, as "homeomerias", e por outro lado um princípio organizador dos corpos, a que denominou de "nous" (inteligência).
Demócrito, da mesma forma, nos fala de elementos simples, a que denomina "átomos", e de outro lado uma força turbilhonar caótica, que iria conjugando os elementos ao acaso, e constituindo os corpos.
Todas estas soluções apresentavam uma grave dificuldade. Tratava-se de saber a que se poderia denominar de ser. Aos corpos? Aos elementos? Ora, os corpos se transformavam, e não apresentavam a estabilidade exigida pelo conhecimento intelectual. Por outro lado, os elementos só existiam como parte dos corpos, não tendo existência própria distinta e separada. A dificuldade permanecia: como pensar a realidade?
Seria normal que neste ponto fizéssemos uma exposição igualmente sumária das concepções de Platão e Aristóteles. Preferimos não fazê-lo, no entanto. São concepções ricas e complexas, que necessariamente seriam deformadas numa exposição demasiadamente sucinta. No plano em que aqui nos colocamos, por outro lado, parece-nos mais interessante no momento insistir sobre as dificuldades que se apresentam com relação ao problema de conhecer a realidade. Passaremos a uma outra perspectiva. Até aqui o problema do conhecimento vem sendo tratado com relação ao real, tendo como centro das considerações a realidade. O pensamento moderno mudou esta perspectiva: em lugar do conhecimento da realidade ser tratado em função do mundo exterior, é o mundo exterior que é tratado em função do sujeito que o conhece. O sujeito passa a ser o centro da investigação do conhecimento do mundo.
Descartes, pensador do século XVII, após uma análise crítica da cultura anterior, entende que possa encontrar em si mesmo, quer dizer no próprio sujeito, o que não encontrou nos livros e na observação do mundo. Propôs, assim, o método racionalista, de reflexão sobre as próprias ideias, para, através de uma análise destas ideias, retirar delas mesmas o que pudesse valer como correspondendo a uma realidade exterior ao sujeito. Deste modo, propõe-se Descartes a rever todos os conceitos em uso no seu pensamento, segundo este método reflexivo e crítico. Três ideias parecem fundamentais: a ideia do próprio eu, a ideia de Deus, a ideia do mundo.
Podemos afirmar, por este procedimento crítico, a existência do próprio eu? Segundo Descartes, sim. Não podemos duvidar de nossa própria existência porque a sua dúvida tem uma significação positiva, que afirma a existência daquele que duvida. Assim, diz ele: "Duvido, logo penso. Penso, logo existo". A afirmação da existência do próprio eu aparece como expressão de uma evidência reflexiva.
Com relação à existência de Deus, o raciocínio de Descartes pretende seguir esta mesma direção de análise do conceito. Para ele, a ideia de Deus é uma ideia perfeita. Ora, o ser humano sendo imperfeito, não tem ideias perfeitas. Só um ser perfeito tem ideias perfeitas. Se o homem é um ser imperfeito, e tem uma ideias perfeita, que é a ideia de Deus, esta ideia só pode existir no homem dada a ele por Deus, e então Deus existe.
Com relação à existência do mundo, põe-se o problema em termos mais difíceis, segundo Descartes. Temos a ideia de que existe um mundo exterior, fora do nosso pensamento. Mas, como demonstrar que ele efetivamente é exterior a nós? Como provar que o que chamamos de mundo exterior não existe apenas em nossa imaginação e em nossa mente? E assim Descartes arma o problema: é possível que um espírito zombeteiro nos coloque a impressão de estar diante de um mundo exterior, que de fato não exista; é possível, também, que se trate de um sonho. Por vezes, em sonho, vemo-nos diante de situações dos mais diversos tipos, e não sabemos que estamos sonhando cremo-nos estar de fato vivendo tais situações. Que garantia podemos ter de que, num determinado instante, estamos vivendo a realidade, e não estamos sonhando? Esta demonstração racional, que Descartes procura, ele não a consegue estabelecer, e terá que recorrer à convicção para aceitar a existência do mundo exterior.
Mas Descartes escolheu um caminho complicado, podemos pensar. Para testemunhar a existência do mundo exterior é bastante estar diante dele e senti-lo. Mas aqui está o problema: em que condições isto de fato poderá efetuar-se?
Um grupo de pensadores ingleses, como reação à posição de Descartes, passou a defender a experiência direta do real. Este grupo, que ficou conhecido como constituindo a escola do empirismo inglês, haveria de mergulhar em novas perplexidades. Para os representantes desta escola, a sensação seria a fonte primeira de todos os nossos conhecimentos. Os nossos sentidos recebem as impressões produzidas pelo mundo exterior. Estas impressões se gravariam em nosso cérebro. No cérebro, um mecanismo faria com que as ideias se grupassem por associação de semelhança, contiguidade ou frequência. O pensamento seria um ato reflexo. Assim como o fígado segrega a bílis, o cérebro segregaria o pensamento. Assim foi proposta a nova posição por Locke. Vejamos, porém, as suas consequências.
Jorge Berkeley, seguindo as pegadas de Locke, muda completamente a posição de seus rumos iniciais. O ponto de partida seria a afirmação de que os conceitos gerais não correspondem à realidade: só os conceitos particulares são verdadeiros. Assim, para Berkeley existe uma árvore, esta ou aquela, mas não existe a árvore. "A árvore", conceito geral, é um simples nome. Sendo assim conclui Berkeley: a matéria não existe, porque "a matéria" é um conceito geral. Existe este ser, aquele ser, e assim por diante. Mas, como o que de fato conhecemos são as impressões, que se produzem em nós, e como a matéria não existe, não existem os seres físicos, como em geral pensamos. Desta forma, Berkeley conclui que o mundo físico de fato não existe, e as impressões que temos de um mundo exterior podem ser explicadas como sendo impressas em nós diretamente por Deus. Para Berkeley, se o que conhecemos são as impressões em nós, Deus nos dá estas impressões, sem que haja a menor necessidade de existência real de um mundo físico exterior a nós.
Mais radical ainda é a posição de David Hume. Para este pensador inglês, se a fonte de todo conhecimento são as impressões, tudo se reduz enfim a impressões. Nós mesmos não existimos como um ser substancial. Tudo quanto conhecemos de nós mesmos é um conjunto de impressões, de experiências isoladas, que grupamos numa denominação geral de "eu": somos, então, apenas um conjunto de impressões. O mundo exterior não tem realidade, ou ao menos não podemos afirmá-la. A ação de um ser sobre outro, a que denominamos ação causal, não sabemos se existe: tudo o que podemos afirmar é que existe uma sucessão de impressões. A posição de David Hume cai, desta forma, num fenomenismo absoluto, tudo são aparências, tudo são impressões.
É neste sentido que Hipólito Taine, seguindo a esta escola empirista, na França, diz não existir diferença entre a realidade e uma alucinação coerente. Mas, a realidade do conhecimento se reduzindo a impressões no sujeito, não existe diferença essencial entre o plano de uma realidade exterior e um processo de alucinação, desde que esta alucinação seja coerente, isto é, tenha uma ordem e um desdobramento.
Trouxemos de maneira sumária, nesta informação, um debate que está nas bases de toda a Filosofia, pois a ela cabe estabelecer com precisão o mecanismo, a natureza e o valor do conhecimento humano. Nossa intenção é marcar um problema no qual em geral não pensamos: o valor do nosso conhecimento. Até que ponto temos um conhecimento da realidade, até que ponto trazemos conosco uma alucinação coerente?
Edmond Goblot, conhecido tratadista da Lógica, analisando o conhecimento científico, chama a atenção para um ponto, que consideramos da maior importância. Diz ele que numa investigação científica o mais difícil é sempre saber em que ponto o cientista tem o direito de parar, isto é, de considerar os seus resultados satisfatórios, necessários e suficientes. Muitas vezes, após uma determinada colheita de dados, o cientista está em condições de construir uma teoria. Esta teoria é uma expressão racional e coerente relativa aos dados colhidos. Mas, o problema é sempre o de saber se os fatos observados são essenciais ou acidentais, se são exaustivos ou circunstanciais, se são elementos determinantes ou adicionais. Todo o problema é sempre o de caracterizar a proporcionalidade entre a teoria proposta e a realidade.
No plano dos conhecimentos de toda ordem, que efetuamos no decorrer de nossa vida, o problema cresce de importância. É por estes conhecimentos que, no mais das vezes, filtramos os critérios de que nos servimos para julgar as diretrizes de nossa vida. Do nosso conhecimento da realidade depende a nossa própria realidade, porque também nós podemos existir como seres reais, mas também como simples fenômenos, ou meras impressões. Uma vez que o conhecimento que temos das coisas exerce um papel determinante no nosso próprio modo de ser, tornamo-nos realidade, fenômenos ou impressões segundo o modo por que conhecemos.
Como conhecemos? Subordinamos a realidade a uma ordenação caprichosa e arbitrária, sem distinguir entre uma opinião e um juízo de realidade? Subordinamo-nos convenientemente às exigências do real para conhecê-lo segundo as suas imposições, e não segundo as nossas conveniências? Conhecemos o real pelo que é, ou o conhecemos apenas enquanto responde aos nossos interesses práticos? Conhecemos o real pela sua aparência sensível? Conhecemos o real atingindo os princípios inteligíveis que o determinam? Conhecemos os fatos isoladamente? Conhecemos a ordem que envolve os fatos particulares? Conhecemos a impressão? Conhecemos a significação? Conhecemos a sucessão dos efeitos? Conhecemos as razões causais?
Diz Bergson que é necessário um grande esforço de tensão intelectual para que o homem consiga aprender o real no que ele é. De um modo geral não conhecemos as coisas. Conhecemos nas coisas: escolhemos nelas algo que responda ordem dos nossos interesses. Não vemos o nome de um ônibus: vemos se ele nos leva aonde queremos ir. Não vemos as horas no relógio: vemos quanto tempo temos para realizar o que pretendemos fazer. Nossa visão do real é geralmente uma visão marcada por algum interesse prático. Não lemos um livro: procuramos identificar nele o que corresponda ao que já pensamos ou queremos pensar. Com relação às ideias que nos são expostas, em geral julgamos se são verdadeiras ou não apenas conferindo se correspondem ou não ao que já pensamos sobre o que nos expõem. Por isso diz Bergson que só um grande esforço de tensão intelectual nos põe de fato diante da realidade. Nas discussões, em geral, não há diálogo: não há um discurso a dois, em que um fala em continuação ao que o outro disse; os que discutem, na maior parte das vezes, estão de tal modo dispostos a falar, e tão pouco dispostos a ouvir, que o que ocorre em geral numa discussão é a manifestação, entrecortada, de dois discursos paralelos. Tudo isto é expressão de uma falta de objetividade, que prende o homem a si mesmo, e o aliena da existência, fazendo-o deixar de pensar a realidade, mas apenas pensando a pretexto dela.
Não estamos pensando a realidade só porque tomamos elementos da realidade com que compomos os nossos enredos, que julgamos representá-la. Os processos alucinatórios também se compõem de uma série de elementos tomados da realidade. O problema não é tomar estes elementos isolados do real, mas atingir também a sua colocação dentro de um quadro geral e dentro de um sentido e uma ordem que existam de fato na realidade, e não apenas na nossa mente.
O problema do conhecimento é um dos mais difíceis problemas da Filosofia. É também o mais difícil dos problemas do homem. Sendo o que há de mais natural e espontâneo em sua vida, pois todos os homens conhecem de alguma forma a tudo, é o mais difícil na medida em que pretendamos nele atingir um grau de precisão que nos autoriza a ver nele uma representação proporcional e adequada do real. E isto exige um esforço, uma vigilância permanente, um espírito de humildade (porque o estudo é uma expressão de humildade!), coragem, persistência, e a ideia de que nós nos formamos, e determinamos o que somos segundo o modo pelo qual conhecemos a realidade.
O homem tem sempre diante de si esta possibilidade de escolher: pôr-se em condições de conhecer efetivamente a realidade, ou tomar como realidade o que não passa de uma alucinação coerente.
"O homem é um animal racional". Todos sabem disto, todos o repetem. Esta é a definição de homem. Pelas regras da Lógica, aí está uma definição, que parece suficiente. Diz a Lógica que uma boa definição delimita o conceito pelo gênero próximo e a diferença específica: gênero próximo "animal", diferença especifica "racional". Temos, assim, uma definição, que é uma delimitação de um conceito, explicitando de maneira clara e distinta o que se contém no conceito de "homem". Conceito claro, porque o distingue dos demais; conceito distinto, porque o caracteriza no que ele tem de próprio e exclusivo (só o homem é um animal racional).
Esta noção é válida, mas não é exaustiva. É suficiente numa classificação, para situar o homem entre os demais seres. Mas, não é exaustiva porque não esgota o que é possível conhecer sobre a natureza do homem. Dizer que o homem é um animal racional não afirma, por exemplo, a natureza livre do homem; não esclarece a sua natureza espiritual; não indica de modo claro o destino sobrenatural da alma humana. É apenas uma noção preliminar, um ponto de partida na consideração do conceito de "ser humano". Desta forma, para termos um conceito adequado é necessário superar o plano lógico e atingir o plano metafísico: assim, então, poderemos discernir em profundidade o conceito do ser humano. Só desta forma poderemos esclarecer o conceito em sua plenitude. Não basta dizer "o homem é um animal racional". É necessário saber se a animalidade, o fato de ser um ser animado, reduz-se a um aspecto particular de uma dinâmica física ou biológica, ou a alma é de natureza espiritual; é necessário saber se a razão implica consciência passiva ou retrospectiva do nosso comportamento, ou implica igualmente uma consciência ativa e prospectiva, capaz de construir os objetivos segundo os quais dirigimos a nossa conduta; é necessário entender, também, se a razão humana consiste numa função cognoscitiva de grau superior, de complexidade maior do que a dos outros animais, ou se além disto a razão humana difere não apenas em graus, mas difere em natureza da capacidade cognoscitiva dos demais seres animais; é ainda preciso conhecer claramente se a função reflexiva da razão humana se explica por um processo tipicamente mecanicista, ou se além disto a reflexão humana significa uma possibilidade de autodomínio, de autodeterminação, e, portanto, de liberdade.
Todas estas questões ampliam a colocação do problema do conceito do homem. A visão simples ou simplória do problema conduz a equívocos, inevitavelmente.
Vamos dar um exemplo. O famoso Descartes, partindo da definição lógica "o homem é um animal racional" confundiu a caracterização distintiva, "racional", com a essência do ser humano. Desta forma, segundo ele, se todos os seres humanos são racionais, a razão é comum a todos os homens, e então todos são igualmente racionais. Sendo assim, todos os homens aparecem como tendo igual "razão": a diferença entre os homens não estaria na razão de cada um, mas no modo de utilizar a razão. Para Descartes, os homens não diferem quanto à capacidade da razão, mas quanto ao emprego que dela fazem. Daí, para Descartes, todo o problema do saber se concentra no método, que será o instrumento de que se servirá a razão para conhecer. Os conhecimentos variam apenas de acordo com o método empregado, mas não em relação à capacidade racional, que ele afirma igual para todos.
Ora, a razão não é de fato igual para todos. O problema não é apenas o do método empregado diversamente. Se todos os homens têm uma racionalidade, esta não é igual em todos. Uns têm uma razão predominantemente prática, outros têm uma razão predominantemente teórica: Uns são espontaneamente intuitivos, e outros reflexivos. Uns são memorizadores, outros são inventivos. Estas diferenças dizem respeito à própria disposição fundamental da razão, e não apenas ao método utilizado. A mudança no emprego do método não faz de um esteta um político, não faz de um homem de negócios um filósofo, não faz de um artesão um cientista, pois há vocações marcadas nas próprias disposições da razão humana, que, embora sendo da mesma natureza, não é idêntica em todos os homens.
Em realidade, o que explica a posição racionalista de Descartes é uma atitude de espírito. Esta atitude se caracteriza como sendo a de uma reação ao predomínio da convicção no sobrenatural, que marcou a Idade Média. É produto de um humanismo, que representa uma laicização do espírito religioso medieval, e procura retornar às fontes do pensamento grego.
A laicização do espírito religioso pode explicar-se assim: a Idade Média apresenta uma preocupação central com o conhecimento das Sagradas Escrituras. Assistimos a todo um desenvolvimento cultural preocupado com o entendimento da Revelação. Mas a pouco e pouco o aspecto prático passa a dominar o aspecto especulativo. Conhecer a Revelação é instrumento de salvação da alma humana. O problema da salvação passa a ocupar o primeiro plano. O cristão quer garantir a sua salvação. Não lhe basta confiar na graça de Deus. Quer saber, de sua parte, o que pode fazer para garantir esta salvação. Desta forma, pouco a pouco vai-se desenvolvendo a problemática relativa àquilo que lhe cabe por ele mesmo. Põe- se o problema do que o homem deve realizar pelo seu próprio esforço para garantir esta salvação. E assim, afinal, delineia-se o humanismo, a laicização do espírito religioso: o homem quer construir a sua salvação pelo seu próprio esforço, quer saber o que pode conseguir com os recursos exclusivos de sua própria razão natural, sem recorrer ao auxílio da Revelação ou do sobrenatural. E é neste ponto que o Renascimento vai buscar nas fontes do pensamento grego os elementos de apoio e de inspiração à realização de uma tarefa em que o homem, pelo seu próprio esforço, é o seu único artífice.
Este processo se cristaliza claramente no pensamento de Descartes, considerado o pai do racionalismo moderno. O ponto típico, por excelência, do pensamento de Descartes está na recomendação de nada receber como verdadeiro que não seja evidente, o que para ele significa um conhecimento claro e distinto, ou melhor, um conhecimento que resista à dúvida, um conhecimento que suporte a crítica reflexiva. Para Descartes, qualquer conhecimento para ser considerado verdadeiro deve ser submetido a um processo demonstrativo. O próprio mundo exterior, que para o senso comum é uma evidência intuitiva, para Descartes devia aparecer como uma evidência reflexiva, quer dizer, o resultado inequívoco de uma demonstração racional. Estava assim formulado o mito da certeza racional. Depois de identificar a natureza humana com a razão, que é apenas uma de suas funções, exige a redução de todo conhecimento verdadeiro à demonstração racional.
Curioso é notar que o fundador do racionalismo moderno acredita-se um inspirado. De fato, há um momento de sua vida a que Descartes atribui uma tal importância, que promete realizar uma peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Loreto, como prova de agradecimento pela inspiração recebida para criar o seu método racional. A estes sonhos deu ele uma excepcional importância. E, por isso, a título de curiosidade, relataremos os sonhos e a sua interpretação, dada pelo próprio Descartes.
Descartes relata ter tido três sonhos. Na noite de 10 de novembro de 1619, durante um inverno rigorosíssimo.
No primeiro sonho, via-se ele em meio a fortíssimo temporal, sem conseguir vencer o vento que soprava, até que foi atirado contra as bases da parede de um templo. No segundo sonho, viu-se lendo um dicionário, no qual distinguia as palavras latinas "sic et non" e um verso do poeta latino Ausônio, que assim dizia: "Quod vitae sectabor iter?" No terceiro sonho, via-se segurando um melão A estes sonhos, Descartes deu a seguinte interpretação: o vento poderoso ao qual não podia resistir seria a força do Espírito Santo obrigando-o a aceitar a tarefa de construir, a partir das bases, o Templo do Saber. O Dicionário significava a união de todas as ciências numa única ciência, em que todos os conhecimentos se desdobrariam com evidência, superando a antinomia do "sim" e do "não". Esta ciência unitária deveria indicar o sentido da vida humana, como o desejava o verso latino. E o melão exprimia que tudo isto se faria sem recorrer ao sobrenatural, quer dizer, sem afastar-se da realidade. Diante de tal interpretação, um dos críticos de Descartes com certa malícia afirma que o racionalismo nasceu de um sonho mesclado de misticismo.
Fato é que Descartes fez escola. Criou-se a convicção de que a razão deveria filtrar todos os conhecimentos e a todos subordinar ao processo demonstrativo. Desde os primórdios da era cristã que alguns céticos haviam formulado contra o processo demonstrativo uma crítica de base. Trata-se do famoso argumento do "dialelo" ou do círculo vicioso: nós não podemos apreciar o valor do conhecimento porque só o fazemos através do conhecimento. E, no caso particular da demonstração, só é possível demonstrar a partir de um princípio indemonstrável: ora, se fazemos da demonstração um princípio universal, e toda demonstração supõe um indemonstrável, que é instrumento da demonstração, então é impossível demonstrar o valor da demonstração.
Aqui há alguns pontos que devemos esclarecer. Em primeiro lugar, a crítica de que não podemos conhecer o valor do conhecimento porque o fazemos através do conhecimento, que é exatamente o que está em julgamento. Esta crítica, aparentemente, é procedente, mas de fato ela decorre da maneira superficial de colocar a questão. Não existe, de fato, um tipo único de conhecimento. Devemos distinguir entre conhecimento e conhecimento. E exatamente em função desta diversidade de conhecimentos é que há sempre um tipo de conhecimento capaz de julgar outro tipo de conhecimento. O conhecimento sensível pode ser verificado pelo conhecimento intelectual. O conhecimento reflexivo pode ser verificado pelo conhecimento intuitivo. O conhecimento perceptivo pode ser verificado pelo conhecimento judicativo. Esta distinção de tipos de apreensão e de ordenação do conhecimento é que garante o exercício da função reflexiva da inteligência humana, que pode, desta forma, tomar- se a si mesma como objeto de conhecimento.
Quanto ao método demonstrativo, é necessário perceber desde o início que a demonstração é um processo indireto e secundário de conhecimento, e por isto mesmo supõe um processo direto e primário. Demonstrar é mostrar a partir de alguma coisa, é conhecer através de um intermediário. Por isto, toda demonstração supõe um indemonstrável. Isto nos devolve à distinção dos tipos de conhecimento: um conhecimento reflexivo supõe um conhecimento intuitivo ou conhecimento direto. Por isso, os lógicos distinguem as operações da inteligência em simples apreensão, juízo e raciocínio, sendo que o raciocínio pode ser dedutivo ou indutivo.
A não consideração destas distinções por parte de muitos pensadores levou a que a História da Filosofia se povoasse com a criação de sistemas de bases arbitrárias, aos quais se exigia puramente uma coerência interna. Os filósofos, convencidos do valor exclusivo da razão, entendiam poder construir sistemas explicativos da realidade, desde que estes sistemas apresentassem uma coerência racional. Era o conhecimento reflexivo valendo por si mesmo, elevado a critério único de verdade. Seguindo o ideal de Descartes, de construir por dedução todo o corpo da ciência, Espinosa imaginou poder construir uma filosofia, que se desdobraria por dedução, à feição da matemática, a partir de certos princípios estabelecidos preliminarmente. Leibniz imaginou poder vir a conhecer todas as leis da natureza sem ter necessidade de realizar qualquer experiência. Os sistemas idealistas alemães de Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer ou Nietzsche partem da mesma convicção fundamental.
O ponto de partida de todas estas posições está em uma das regras do método de Descartes, na qual o célebre filósofo francês afirma que devemos tudo ordenar em nosso conhecimento, mesmo que não encontremos naturalmente esta ordem do lado da realidade. Aí está a porta aberta aos sistemas racionalistas e idealistas: a ordem dada pela razão é considerada como a fonte da verdade. A razão gera a verdade na medida em que ordena, mesmo que esta ordem não decorra de uma apreensão do real. Justificava-se assim a possibilidade de construir enredos explicativos da realidade, desde que estes enredos tivessem uma coerência racional. Onde se situa, então, a certeza racional? Unicamente, nesta coerência interior. Não é de estranhar que no terreno da ciência, por correspondência a estas posições filosóficas, surgissem as concepções mecanicistas do universo, a ideia da imutabilidade das leis da natureza, a convicção de uma repetição dos fenômenos, e de uma possibilidade indiscutível de exata previsão. Não se levava em consideração a possibilidade de existir na natureza um processo de criação e evolução, não se levava em conta a irreversibilidade dos fenômenos, não se tinha a ideia da surpresa e da liberdade. E tudo isto em decorrência de uma confiança na certeza racional, concebida em termos de conhecimento reflexivo, de coerência interna do pensamento consigo mesmo, de lógica do pensamento projetada sobre a realidade, quando esta realidade é por vezes ilógica. Não é a realidade que acompanha as construções da nossa razão, mas é a razão que deve subordinar-se às imposições da realidade.
Várias reações se manifestaram na história da Filosofia. Em primeiro lugar, os movimentos positivistas. O positivismo de Augusto Comte representa, de fato, uma oposição profunda aos sistemas idealistas. Para Comte. não se trata de construir teorias em abstrato, mas fixar-se aos fatos, para, da observação e descrição dos fenômenos, tirar as leis que regem a natureza. O positivismo materialista de Augusto Comte foi alargado pelo positivismo espiritualista de Henri Bergson. Também para Bergson o fundamental seria perseguir as linhas dos fatos, para apreendê-los com integridade. Para Bergson, a apreensão dos fatos não se faz apenas pelas sensações, mas realmente pelas percepções, que envolvem o dado numa complexidade em que é necessário considerar inclusive os elementos, que o sujeito projeta de si sobre os dados apreendidos; e, por outro lado, enquanto Augusto Comte supõe uma imutabilidade das leis da natureza, Bergson, em nome de uma atitude positivista, denuncia esta posição teórica como uma concepção a priori, e não experimentalista: é necessário estar com o espírito preparado para as surpresas de um possível processo criador na natureza.
As reações às posições idealistas prosseguiam no pensamento contemporâneo, quer com a fenomenologia de Edmundo Husserl, quer com os existencialistas, sem falar nos ativistas, como Karl Marx, e nos pragmatistas, como William James e John Dewey. Nos existencialistas, como Kierkegaard, Karl Jaspers, Martin Heidegger, Gabriel Marcel, Jean-Paul Sartre, a reação se caracterizou por um descrédito em relação ao pensamento abstrato, exigindo em matéria de conhecimento uma experiência integral, em que o homem conheceria verdadeiramente na medida em que participasse e correspondesse ao real em que se situava e a que se integrava. O conhecimento é entendido assim em termos de existência e de vivência completa, em que se procura esvaziar uma dicotomia interna do ser humano entre o seu existir e o seu pensar. Daí a crítica dos existencialistas aos modelos científicos utilizados por muitos filósofos modernos e contemporâneos, como sendo a expressão de uma traição ao pensamento filosófico, que não deve ser uma pura construção teórica, mas deve ter fundamentalmente um compromisso com a realidade, e portanto com a vida.
Podemos ver, pois, que o problema de um conhecimento racional não se põe de maneira simples. Posto de modo simples, ele se torna o mito da certeza racional, transformada em critério universal, fonte de equívocos. A ideia de exigir como expressão da verdade o que possa ser demonstrado parece, de fato, à primeira vista, uma exigência rigorosa, e válida. Mas, eis a questão: o que é necessário levar em consideração, em primeiro lugar, é que a verdade é um conhecimento proporcional entre o que é apreendido e o objeto do conhecimento. E a demonstração é um procedimento válido como conhecimento indireto, mas supõe para ser válida a apreensão verdadeira do elemento intermediário no processo de demonstração. Trata-se, portanto, antes de tudo, de distinguir entre o que deve e pode ser conhecido por demonstração, e o que não deve e não pode ser conhecido por demonstração.
A existência do mundo exterior é um exemplo. Não pode e não deve ser objeto de demonstração. É uma evidência. É um conhecimento básico. Submetê-lo à demonstração, ou exigir uma demonstração da existência do mundo exterior é complicar inadequadamente a questão, e expor-se às consequências disto. A existência do movimento é outro exemplo: trata-se de um conhecimento sensível, que a razão pode compreender se aceitar primeiramente o valor do testemunho dos sentidos.
Um primeiro ponto, portanto, deve ficar bem definido: a certeza racional, no sentido de um conhecimento demonstrativo, não pode pretender exaurir todo o campo do conhecimento possível e verdadeiro.
O racionalismo moderno, na verdade, é uma posição que deixa a desejar em comparação com o intelectualismo grego. Curioso é notar que a valorização da razão em oposição à fé, no período do Renascimento, pretendeu um retorno às fontes gregas. Mas, na verdade, não podia expulsar de improviso a força de uma tradição religiosa de tantos séculos. E o que ocorreu, de fato, foi o surgimento de uma nova religião, a religião da razão, o culto da razão, o mito da razão, pois espera-se tudo da razão, e à razão se atribuem todos os poderes, o que configura uma conceituação taumatúrgica da razão.
Podemos aceitar como válido o conceito de que o homem, sendo um animal racional, vive um nível de vida que pode ser considerado humano e não meramente animal na medida em que conduza a sua vida racionalmente. Isto é certo. Mas, há muito considerar que sobre o que seja efetivamente conduzir a vida segundo a razão. E isto obriga a uma conceituação mais completa do papel da razão na vida humana.
O erro do racionalismo consistiu em identificar a natureza do homem com a razão, quando a razão é apenas um aspecto particular do todo humano. Cabe, portanto, restituir o conceito adequado do papel da razão para podermos aspirar a um conhecimento verdadeiro, ou seja, um conhecimento proporcionado à realidade.
Em primeiro lugar, devemos considerar as manifestações primárias do nosso psiquismo, como por exemplo o funcionamento normal do nosso mecanismo sensorial e motor. Os nossos sentidos nos fornecem dados verdadeiros na apreensão do mundo físico na medida em que os órgãos dos sentidos sejam órgãos sadios. Uma deficiência nos órgãos dos sentidos fornece dados proporcionais a esta deficiência. Assim como um cientista procura levar em consideração o valor do aparelho utilizado numa observação, para, na consideração dos dados obtidos, levar em conta as deficiências do aparelho e proceder à correção dos erros, assim também devemos calcular as possíveis correções a serem feitas com relação às possíveis deficiências dos nossos órgãos sensoriais.
Outro ponto importante é levar em conta as características do nosso temperamento. Está fora de dúvida que o temperamento de cada um influi na maneira de conduzir o seu modo de conhecer. Este temperamento pode orientar subconsciente ou inconscientemente a maneira pela qual ordenamos os dados isolados da apreensão realizada, e influi sem dúvida alguma sobre a forma de estabelecermos as nossas conclusões. Muitas vezes mesmo as conclusões a que pensamos chegar são prefiguradas por influência do nosso temperamento: estas conclusões podem ser pacientemente aguardadas após um processo de tratamento conveniente dos problemas, ou podem ser precipitadas, por uma impaciência ou impertinência de nosso modo de ser.
A formação de nossos hábitos de conduta reflete necessariamente sobre o nosso modo de raciocinar. O homem prático, aquele que dispôs a sua vida na dimensão dos resultados da aplicação imediata, especialmente preocupado com a visão do lucro, raciocina em função destes hábitos segundo os quais moldou o seu modo de ser.
Passando para as manifestações superiores do psiquismo humano, devemos notar que os sentimentos são fatores de influência sobre o exercício da razão. Neste ponto, o estado sentimental, a intensidade dos sentimentos, os estados emocionais ou de paixão representam papel de grande importância no procedimento racional. A insubordinação dos sentimentos não pode permitir a isenção necessária a um procedimento objetivo nas operações da razão.
Outro ponto ainda se refere à educação da vontade. A vontade caprichosa não é o mesmo que uma vontade firme. A vontade que se submete ao que deve submeter-se é firme. Distinguir a vontade aparentemente forte da que efetivamente o é merece uma consideração especial. Ela pode conduzir a razão a uma investigação exaustiva do objeto, como pode tolher o desenvolvimento de um processo racional, por uma escolha subjetiva.
A atividade racional, portanto, está envolvida por todo um contexto de manifestações do psiquismo humano que sobre ela exerce uma influência, e por vezes até mesmo a tiraniza.
Os existencialistas têm razão de reagirem contra os racionalistas quando exigem um conhecimento como participação completa da vivência humana no ato de conhecer. De fato, a razão não opera isolada no ato do conhecimento. Mas, os existencialistas não conduzem bem a solução do problema: pedem uma vivência, sem distinguirem todos estes aspectos aqui apontados. Pedem uma vivência em bloco, e por isso mesmo confusa, quando o que é necessário é compreender que no ato de conhecer opera a nossa razão, mas opera conjugada a outros tantos fatores, especialmente o nosso temperamento, os nossos hábitos, a nossa sensibilidade, a nossa vontade.
O intelectualismo grego teve a consciência desta complexidade do ato de conhecer. Desta forma é que encontramos o ensino dos filósofos dividido entre os cursos exotéricos e os cursos esotéricos. Os cursos exotéricos seriam as palestras de informação para um público em geral. Os cursos esotéricos ou cursos regulares, dirigiam-se aos discípulos: nestes cursos, assistimos então a uma verdadeira iniciação, em que o discípulo era provado no seu comportamento pessoal, na formação dos seus hábitos morais, ao lado de uma disciplina com relação ao uso de suas operações intelectuais. Desta forma, o estudo se revestia de um sentido de responsabilidade: o saber representaria um poder, que deveria ser usado convenientemente. O desenvolvimento intelectual seria um aspecto de um desenvolvimento mais completo do ser humano: o exercício do saber adquiria um sentido moral, e dava ao homem um sentido total de integração responsável na existência.
Hoje, uma instrução preocupada com a formação de especialistas empenha-se em fazer da cultura o fornecimento de instrumentos de trabalho profissional, perdendo esta visão integral da formação do homem. Por vezes o homem procura a instrução como instrumento de prestígio, entendendo que possa utilizar-se arbitrariamente dos conhecimentos recebidos, da mesma forma que arbitrariamente escolhe um setor de conhecimento que pretende adquirir. Tudo isto é reflexo de um mito da certeza racional, em que o papel da razão deixa de ser compreendido dentro de um contexto realista.
Ser um animal racional não é apenas ser racional. A razão é uma faculdade entre outras faculdades, um aspecto entre outros aspectos do ser humano. E, assim, viver racionalmente é viver de acordo com este contexto, e, compreendendo a estrutura complexa em que se situa a sua atividade racional, cuidar para que ela possa exercer sua função adequadamente. Para isto, é necessário cuidar de todos os demais aspectos da complexa estrutura em que se encontra a razão.
Para sermos racionais é necessário que a razão possa exercer sua atividade livremente. Este exercício livre da razão significa que ela não se encontra premida ou submetida às imposições dos outros fatores do psiquismo humano. Para o seu exercício livre a razão necessita encontrar as condições de equilíbrio e de harmonia que permitam a sua ação em termos de isenção e de objetividade Para alcançar a verdadeira certeza racional é necessário cuidar do que não é estritamente racional. mas compõe e interfere na atividade racional.
Não basta acreditar no valor da razão se não damos ou construímos as condições para que ela possa desempenhar o seu papel na vida humana. Este é um conhecimento básico, do qual não podemos fugir, cuja clara consciência devemos ter. Os problemas da existência solicitam à razão que apresente para eles as soluções adequadas; mas a razão humana, por sua vez, contém em si mesma um problema, que aqui procuramos colocar nos devidos termos. Se não o enfrentarmos, estaremos condenando pela base as soluções posteriores apresentadas por uma razão despreparada para atingir as soluções esperadas.
O homem é um animal racional, por sua natureza. Para que o seja, de fato, no desenrolar de sua vida, deve solucionar os problemas não racionais que condicionam o exercício da razão e a possibilitam cumprir o papel a que está destinada, como garantia de uma vida humana que possa efetivamente ser considerada humana.
Julgamos coisa simples pensar na vida. Muitas vezes, ficamos pensando no que nos tem acontecido, revemos um pouco os nossos atos, fazemos planos para o futuro. Imaginamos um outro caminho, que poderíamos ter seguido, imaginamos ainda o que gostaríamos que nos acontecesse de futuro. E julgamos com isto estar pensando na vida. Pensar na vida, no entanto, não é assim tão simples.
Dizia Platão que o homem vive preso a uma falsa imagem do real. Para ele, não contemplamos em geral a própria realidade, mas apenas as imagens, que estão para o real como a sombra de um objeto para o próprio objeto. Para caracterizar este fato criou a famosa alegoria da caverna: os homens vivem acorrentados, numa caverna, voltados para o seu interior; a luz, que nela penetra, projeta sobre as suas paredes interiores sombras dos objetos reais; desta forma, vemos as sombras projetadas, e julgamos que estas sombras são a realidade; ora, estas sombras têm alguma coisa da forma real, mas são uma imagem pálida e imprecisa da realidade, e não a sua visão efetiva e direta. Para Platão, o conhecimento sensível está para o conhecimento intelectual como a sombra está para o objeto de que ela é uma imprecisa projeção. Por isso, para Platão, a missão do filósofo consistiria fundamentalmente em libertar os homens desta visão subalterna, para que eles pudessem contemplar a verdadeira realidade.
Esta concepção de Platão, que poderemos criticar nos pormenores, continua essencialmente válida. A missão fundamental do filósofo consiste em libertar o homem de um tipo de visão espontânea e superficial para conduzi-lo a um outro tipo de visão do mundo. Não podemos refletir convenientemente sobre os problemas que afligem a existência humana se não pudermos ultrapassar uma visão imaginativa da vida por uma visão conceitual. Esta distinção entre imagem e conceito é fundamental. Sair do plano confuso em que se desenrola espontaneamente o conhecimento humano é, antes de tudo, ter consciência da distinção que existe entre o conhecimento-imagem e o conhecimento-conceito. Depois, ter o domínio sobre um conhecimento restrito ao processo imaginativo, e sobre o conhecimento que se processa no plano conceitual. Voltaremos a esta questão, que neste momento nos limitamos a enunciar.
Lembremos aqui a consideração de Bergson sobre o conhecimento que se processa no que ele denomina o "eu de superfície" e o que se processa no "eu profundo". Para Bergson, o nosso contato com o mundo exterior se efetua em dois planos bastante distintos: por um lado, são os contatos em que funciona do lado de nosso psiquismo apenas um mecanismo de superfície, uma espécie de automatismo de funções, em que reagimos diante dos estímulos de acordo com os interesses práticos do momento; por outro lado, podemos ter uma participação nos acontecimentos, em que jogamos com a nossa própria personalidade, e marcamos a nossa vida nos atos de escolha que realizamos. De um lado, o comportamento do "eu de superfície", e de outro o do "eu profundo". Não se trata da distinção do conhecimento sensível e intelectual, como encontramos em Platão, mas revela igualmente dois tipos de existência em face do modo de conhecer.
Também o filósofo alemão contemporâneo Martin Heidegger fala-nos de uma existência inautêntica e de uma existência autêntica. Para Heidegger, o homem comum se deixa levar por uma série de questões superficiais, por uma curiosidade inconsequente, que se perde no conhecimento das simples notícias, sem maiores exigências: esta curiosidade vã coloca o homem diante de uma existência inautêntica, em consequência dos conhecimentos adquiridos sem profundidade. Somente quando o homem substitui esta curiosidade inconsequente pela angústia, que é a expressão de uma percepção dramática da existência humana, em que o homem se vê permanentemente numa encruzilhada, em que cabe decidir a sua vida (como o diria igualmente o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard), é que o homem vive a sua existência autêntica.
Traduzindo estes testemunhos de Platão, de Bergson, de Heidegger, em termos do pensamento aristotélico, poderíamos com relação ao conhecimento voltar ao problema do conhecimento sensível e do conhecimento intelectual, mas acrescentando ao mesmo uma complexidade um pouco maior. O problema não termina nesta distinção, como duas formas de apreensão, uma apreendendo a imagem (que é o conteúdo da apreensão sensível) e outra apreendendo o conceito (que é o conteúdo da apreensão intelectual). A importância por excelência desta distinção é que o conhecimento sensível, fixado à imagem, é um conhecimento sempre particular, e desta forma a via imaginativa só se desdobra no conhecimento meramente informativo, associativo, factício, amarrado à reprodução do observado, ou compondo enredos fabulosos que historiam os acontecimentos. O conhecimento intelectual, porque se realiza através dos conceitos, não é um conhecimento meramente particular, mas eleva- se às apreensões universais, que possibilitam um conhecimento comparativo, reflexivo, e crítico; desta forma, o conhecimento intelectual é fundamentalmente judicativo, valorativo, interpretativo, e não meramente descritivo ou representativo.
Quando pensamos a vida, efetivamente, não se trata apenas de recordar o passado ou imaginar o futuro. Trata-se de julgar a nossa participação na existência, e decidir a nossa vida em função de uma consciência, e de uma responsabilidade assumida, que efetiva a possibilidade de existirmos como seres livres, segundo o que dispõe a nossa natureza, de direito, e nem sempre de fato.
A prisão ao conhecimento sensível nos faz pensar por imagens. As imagens nos prendem ao aspecto físico e exterior da existência, e impedem-nos de pensar a existência em termos de vida. Pensamos tudo em categorias de espaço, e não atingimos a vida em seu existir no tempo. Para pensar a vida, devemos pensá-la em categorias de tempo, de qualidade, de intensidade: presos ao conhecimento sensível, presos às imagens, pensamos apenas em termos de espaço, de quantidade, de matéria.
Comecemos por refletir sobre um conhecimento que nos parece indiscutivelmente objetivo, desde que se tornou habitual o uso do relógio: a medida do tempo. Em que consiste a medida do tempo? Olhamos o relógio e dizemos: "Sete horas". Mas, que estamos dizendo ao dizer "sete horas"? Dividimos em horas o dia solar, o tempo de uma rotação completa da terra tomando o Sol como ponto de referência. Desta forma, marcamos um ponto na superfície da terra com relação direção dos raios solares incidindo neste ponto: passa-se um dia, quando a terra retoma a posição anterior após uma rotação completa. Chamamos a isto um dia, um dia solar. Se em lugar de ter o Sol como ponto de referência tomássemos uma estrela mais distante, veríamos que a medida seria diferente, e teríamos o dia estelar. O que denominamos dia-hora é a relação entre o movimento de um ponteiro dando voltas a uma certa velocidade num mostrador graduado e o percurso realizado pelo ponto de referência tomado na superfície da terra. Enquanto este ponto marcado na superfície da terra dá uma volta, o ponteiro do relógio dá aproximadamente vinte e quatro voltas. Relacionamos o espaço percorrido pelo ponto da superfície da terra, cuja medida está marcada pelos meridianos terrestres, e o espaço marcado em subdivisões no mostrador do relógio. Referimo-nos ao tempo através de uma comparação dos espaços percorridos pelo ponto da superfície da terra e pelo ponteiro do relógio.
Bergson nos chama a atenção para este fato. De um modo geral, não pensamos diretamente o tempo. Pensamos o tempo através de uma relação de espaços. Nosso pensamento se amarra à visão do espaço. Pensamos o calor em termos de graus, ou seja o espaço de dilatação do mercúrio numa coluna por efeito do calor: o calor age sobre o mercúrio, este metal se dilata dentro de uma coluna de vidro, e o espaço da dilatação dizemos que é o grau de calor.
Assim, quantificamos o tempo, quantificamos o calor, apenas porque podemos quantificar os espaços a que os relacionamos indiretamente.
Diz Bergson que espontaneamente não pensamos as nossas sensações fundados na experiência delas mesmas, porém projetamos sobre ela a noção das causas externas que as produziram. Desta forma, pensamos as nossas sensações em termos de maior ou menor, enfim quantificamos as nossas sensações pela ideia da quantidade da causa externa que a produziu. Vejamos a seguinte experiência: tomemos um instrumento pontudo, e toquemos com a ponta dele a palma de nossa mão; depois, aumentemos um pouco a pressão do objeto; finalmente, aumentemos ainda mais fortemente esta pressão. A ideia que temos é a de que as três impressões produzidas são da mesma natureza, variando quantitativamente em graus de pressão menor ou maior. Na verdade, como diz Bergson, as impressões são qualitativamente diferentes: a primeira, é uma impressão suave e agradável; a segunda, uma impressão de pressão e resistência; a terceira, uma impressão de dor. Como sabemos, no entanto, que a causa externa variou apenas na pressão maior ou menor que produziu o efeito, somos levados a julgar a impressão como variando também quantitativamente, quando de fato a impressão produzida no paciente variou qualitativamente.
Se um objeto pesado cai em nosso pé dizemos depois que estamos com dor no pé. Ora, o pé foi afetado pelo objeto, e foi machucado, mas o pé não tem nenhuma possibilidade de sentir dor. Sentimos dor devido a uma afecção no pé, mas não sentimos dor no pé. Assim, a anestesia local, desligando o circuito do sistema nervoso com o centro cerebral faz com que não sintamos a dor. O fato de percebermos a localização da afecção nos faz pensar em dor no pé, isto é, espacializamos a noção da dor.
Quando as crianças são pequenas os adultos perguntam: — Você gosta de mim? — Gosto. — Quanto?, insistem eles. O problema não é de "quanto", é de "como", mas o hábito de pensar em categorias de espaço e de quantidade vai-se transmitindo de geração em geração. A lei do menor esforço contribui para isto, e nós vamos procurando uma representação física e exterior de nossas experiências pessoais, certos de que nos exprimimos melhor apenas porque encontramos nisto maior facilidade. E assim construímos os quadros espontâneos de reflexão sobre a vida. As próprias virtudes parecem mais virtudes se aparecerem em forma sólida ou física: "vontade de ferro", "coração de ouro", "firmeza de rocha", "poço de sabedoria", "caráter reto", "inteligência lúcida".
Poderíamos julgar tudo isto uma concessão literária aceitável, e esteticamente válida, sem dúvida, se no momento de pensar os problemas da vida tivéssemos a consciência nítida do valor da língua e do seu uso no ato de pensar. O que ocorre, no entanto, é que um modo de pensar espontaneamente voltado para as imagens se afeiçoa ao simbolismo literário, e depois não sabe desvencilhar-se das suas amarras, e pensa literariamente o que exige uma disciplina de pensamento e uma linguagem adequada.
Dante, na sua Divina Comédia, pensa a existência em termos literários e até mesmo plásticos. Não foi e não é por acaso que a Divina Comédia tem despertado sempre a atenção dos artistas, que a desejam ilustrar com seus desenhos. Ela é toda concebida em cenas, cuja descrição transporta o tema em quadros. E, assim, descreve ele a vida como uma estrada.
"Na estrada da vida", eis uma expressão, que se repete permanentemente. Fosse apenas uma expressão literária, e não haveria problema. Há um problema, no entanto, e grave. É que pensamos a vida como uma estrada. E aí está mais uma consequência desta tendência de pensar em termos de imagem e de espaço físico.
Nascemos, crescemos, aprendemos a andar. Andamos por ruas, andamos por estradas, andamos por caminhos, andamos por picadas, andamos por florestas, abrindo trilhas. Ficamos com a ideia de viver, como uma estrada por onde passamos, por onde outros já passaram, e por onde outros passarão. E aí está porque somos incapazes de pensar convenientemente a vida.
Martin Heidegger, filósofo contemporâneo, propôs que para pensarmos a nossa existência nós nos imaginássemos despertando no meio de uma floresta sem qualquer estrada ou caminho. A existência de cada um é uma floresta onde jamais nenhum caminho foi aberto. Cada um de nós tem que abrir o seu caminho, cada um de nós tem que construir a sua própria estrada. Com esta imagem, Heidegger procura mostrar que o fundamental para pensar a existência é não pensá-la como uma estrada, que já está, preparada, e a qual é suficiente percorrer. Não, os caminhos não estão preparados, e, na verdade, não existem estradas e não existem caminhos. Existe o ser humano, que se desenvolve no tempo. Para o ser humano, do ponto de vista de sua vida, de fato, nem as ruas por onde caminhamos, nem as estradas que percorremos são sempre as mesmas. Na perspectiva da duração interior, que o nosso existir no tempo, que é o nosso existir histórico, tudo é novo.
Marcel Proust, guiado pela inspiração da filosofia bergsoniana, levou para o romance uma visão realista do ser humano. Em lugar do personagem clássico, que, diante de situações externas idênticas, se comportava de modo semelhante, Marcel Proust focaliza a variação psicológica interior: as mesmas situações externas encontram um personagem que variou no tempo, que amadureceu. E assim é. Vamos habitualmente para o nosso trabalho: na verdade, cada dia é diferente. Lemos uma poesia pela primeira vez, e temos dela uma impressão; lemos outra vez, a impressão já é outra; lemos a mesma poesia para outra pessoa, e agora a nossa impressão se acresceu do que nos pareceu ser a reação da outra pessoa; e assim cada nova leitura se conjuga com as impressões anteriores, e produz uma impressão sempre nova. E tudo é assim. O que acontece conosco, devido aos nossos hábitos de pensar, é que fixamos a nossa atenção nos aspectos externos, que parecem repetir-se, e deixamos de viver os momentos absolutamente novos, que surgem permanentemente. Agarramo-nos a uma objetividade prática, agarramo-nos aos nossos afazeres práticos, à procura de repetir alguma coisa, como se isto nos desse paz e segurança, e deixamos de perceber a riqueza de tudo o que se renova a cada instante em nossa vida.
Vivemos um momento histórico de civilização marcado pela mentalidade da notícia. Toda notícia é um clichê, é um rótulo, que se destaca da fluência da vida. Não só nos conformamos com as notícias soltas, que não especulam pelas causas nem consideram os efeitos, como também vivemos a nossa própria vida em grande parte como se estivéssemos fabricando notícias. Vivemos, assim, diante dos outros e não diante de nós mesmos. Aparecemos e desaparecemos de foco, como se nos reduzíssemos a simples efeitos luminosos. E, no entanto, viver é ter a consciência de construir a própria vida. Viver é caminhar, certos de que não existe um caminho anteriormente traçado na existência. O caminhar é o caminho, cada passo que damos abre um caminho, cada escolha que realizamos nos aprisiona e nos fortalece, porque é uma autodeterminação. O modo por que vivemos constrói a expressão do que somos e do que nos fazemos ser. Pensar a vida não é pensá-la em termos de caminho que percorremos, porque viver não é passar, mas é ser. E, por isso, o que importa é saber como participamos da vida, como sentimos a vida, o que construímos de nosso próprio ser no nosso próprio modo de ser. Desta forma a vida aparentemente mais simples pode ser a mais heroica, tudo dependendo da intensidade de vida com que o nosso ser se realiza no seu modo de ser.
Não foi por acaso que escolhemos este tema para encerrar esta série de temas que abordamos aqui. Ele retoma tudo o que procuramos dizer anteriormente. Numa série que intitulamos O mundo precisa de filosofia, não procuramos apresentar soluções de compêndio, prontas e acabadas. Preferimos a pregação aberta, que se preocupa primordialmente com uma atitude de espírito, que deve ser a marca fundamental da especulação filosófica: a atitude de espírito que não simplifica sacrificando os problemas, porém antes parece complicá-los, pois é necessário atingir em primeiro lugar a sua complexidade, para depois pretender encontrar para eles a solução correspondente.
"As ideias movem o mundo": ideias confusas produzem ações indecisas; ideias claras e precisas sustentam a firmeza das ações; os homens que desejam ser firmes nos seus atos chegam a preferir ideias que não são verdadeiras, mas que se apresentam a eles com clareza e simplicidade.
"Os filósofos convivem conosco": arrastamos em nossa herança cultural uma série de posições doutrinárias, cuja autoria desconhecemos, e por isso julgamos que são nossas, apenas porque não conhecemos quem as lançou e porque o fez; por isso é necessário repensar as doutrinas que abraçamos.
"As soluções à procura dos problemas": no mais das vezes nos satisfazemos com uma concepção, que nos parece coerente e engenhosa, quando o importante é verificar se os problemas que ela pretende solucionar foram colocados adequadamente, e se a colocação falsa dos problemas gerou soluções que já estavam previamente conformadas por esta maneira inadequada de colocá-los.
"O espírito mágico da civilização da máquina": o mito do poder da máquina, da ciência e da tecnologia criou uma divisão interior no ser humano, porque ele continuou a ser um místico sem o saber, criando uma série de cultos que o desviam de uma direção a que está chamado por sua natureza.
"O homem à procura do Homem": colocando todas as suas esperanças no puro esforço da razão e no emprego das forças naturais, o homem se vê obrigado a procurar um conceito de si mesmo, e descobrir que não é um dado absoluto, mas um problema.
"O valor da inutilidade": a corrida para a produção desviou a atenção do homem de si mesmo, pensando em si apenas como instrumento de produção, quando seria necessário descobrir que o que faz só tem valor em função do que ele é, e por isso os problemas do fazer só se solucionam se o homem repuser em seus justos termos o conceito de dignidade de sua própria natureza, que poderá fazer com que emerja dos limites do necessário para os valores devidos a uma vida de liberdade e criação.
"Viver, ou ter coragem de morrer": a vida humana só é grande e digna se o homem reconhecer que a sua vida é um dom gratuito de amor, e for capaz de retribuir a isso fazendo de si mesmo um ofertório de verdadeiro amor.
"Realidade, ou alucinação coerente": o homem está diante de uma realidade, que ele conhece pelas impressões que dela recebe, e por isto tanto pode conhecê-la, de fato, se além das impressões isoladas apreende uma ordem existente no real, ou então de fato ele constrói subjetivamente com estas impressões isoladas uma imagem fantástica do mundo.
"O mito da certeza racional": dotado de razão, o ser humano se distingue dos outros seres, mas a sua razão não é um absoluto, nem ele é só razão, e por isto mesmo deve cuidar do equilíbrio e harmonia interior de seu ser no que não tem de racional para que nele a razão possa funcionar acertadamente.
"Quando o caminhar é o caminho": a existência tem este duplo aspecto de manifestação externa e de impulso interior, um aspecto espacial e um aspecto temporal, um aspecto necessário e material, e um aspecto livre e espiritual, um aspecto estrutural e um aspecto vital; o ser humano é criatura e é criador: não é criador de si mesmo nas suas origens, mas é criador de si mesmo no seu modo de ser, na sua maneira de assumir as forças de sua própria existência, na forma pela qual participa e se integra na existência.
Caminhar na vida não é percorrer um caminho anteriormente traçado: é construir o seu próprio ser na maneira pela qual se cuida da saúde do corpo, se afina a sensibilidade, se disciplina a vontade, se exercita a inteligência, e se destina tudo isto à procura de um sentido da vida que nos faça orgulhar da miséria de criatura animal perecível, e ao mesmo tempo humildemente aceitar a grandeza de ser racional e consciente, e por isto mesmo chamados a um destino espiritual, cujo mistério não nos é dado discernir por completo, mas cuja perspectiva nos é permitido esperar como a razão de ser de tudo o que existe, do que amamos, do que pensamos, do que entendemos e até mesmo do que nem sempre podemos compreender, pois, como diz a famosa passagem de Shakespeare: "Há mais verdades entre o céu e a terra do que podem discernir todas as filosofias do mundo".