Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade
Desidério Murcho
Edições Quasi
Copyright © 2005 by Desidério Murcho
À memória de João Manuel Lopes Machado que sempre me fazia pensar outra vez
“Que ninguém quando jovem atrase o estudo da filosofia, nem ninguém quando velho se canse do seu estudo. Pois nunca é cedo nem tarde para assegurar a saúde da alma. Quem diz que o tempo para a filosofia ainda não chegou ou já passou é como quem diz que o tempo para ser feliz ainda não chegou ou já passou.” — EPICURO
“A filosofia é uma extensão natural do nosso interesse pela verdade, e uma terapia para as nossas confusões atuais.” — ROGER SCRUTON
“A filosofia contemporânea entra em contato com áreas intelectuais de todo o tipo. Para que, a longo prazo, continue a ter valor, tem a um tempo de se dar a conhecer e de conhecer essas áreas. Para que isto aconteça, tem de existir um diálogo saudável entre filósofos e não filósofos de todo o tipo.” — SCOTT SOAMES
A filosofia, como as outras áreas do conhecimento, é susceptível de ser apresentada ao grande público sem tecnicismos desnecessários e sem atraiçoar a sua verdadeira natureza. Apesar de este tipo de abordagem ser já comum em Portugal no caso das ciências da natureza e da matemática — destacando-se excelentes divulgadores que são simultaneamente professores e cientistas, como Jorge Buescu — é algo que não existe no caso da filosofia. Neste caso, temos livros para especialistas e livros para o ensino, mas poucos livros para o grande público. Esta situação é infeliz e este livro procura contrariar essa tendência. Assim, ao contrário dos meus livros anteriores, este dirige-se a leigos em matéria filosófica com interesse em ler algo acessível mas sem um tom escolar. O objetivo é dar uma ideia do que se faz em filosofia — discute-se um certo tipo de ideias e usa-se um certo tipo de metodologia.
Em filosofia discutem-se ideias insusceptíveis de tratamento experimental ou exclusivamente formal. Insiste-se em pensar cuidadosamente e de forma tão sistemática quanto possível quando nem o laboratório nem a demonstração matemática nos dão respostas. Procura-se avaliar imparcialmente ideias opostas, usando da melhor maneira possível as nossas capacidades racionais para pesar as coisas. Corretamente entendida, a filosofia faz-nos mais humanos porque nos faz pensar quando o pensamento é difícil, quando a solução não é óbvia, quando não há métodos seguros que garantam resultados — quando a tentação de desistir e parar de pensar é grande.
As ideias e argumentos aqui discutidos são apenas a ponta de um enorme iceberg de ideias presentes na bibliografia especializada e introdutória. Contudo, ninguém pode estudar corretamente essa bibliografia sem antes ter sentido a realidade dos problemas filosóficos a que ela procura dar resposta. É para ajudar o leitor a sentir tal realidade que existe este livro.
O Capítulo 2 foi parcialmente publicado na revista Intelectu (n.o 8, 2003). Partes do Capítulo 3 baseiam-se em materiais publicados no Público e em Os Meus Livros. O Capítulo 5 foi originalmente publicado em língua inglesa no Bulletin of Advanced Reasoning and Knowledge (n.o 2, 2004). O Capítulo 6 foi publicado no livro Razão Mínima, org. por Luiz Paulo Rouanet e Waldomiro J. Silva Filho (São Paulo: Unimarco, 2004). O Capítulo 8 foi quase totalmente publicado na Periférica (n.o 11, 2004). O Capítulo 11 foi parcialmente publicado na Livros (n.o 19, 2000). O Capítulo 12 foi parcialmente publicado na Philosophica (n.o 16, 2000).
O Capítulo 7 foi parcialmente apresentado no colóquio Lusocom 2004 (Universidade da Beira Interior, 21 de Abril de 2004). O Capítulo 9 foi apresentado no colóquio A Ética e a Defesa dos Animais não Humanos (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 21 e 22 de Maio de 2002). O Capítulo 10 foi apresentado no colóquio A Proteção Jurídica dos Animais (Faculdade de Direito de Coimbra, 24 de Outubro de 2003).
Todos os ensaios foram revistos e adaptados, alguns substancialmente. Para não carregar o texto desnecessariamente, as referências bibliográficas foram deslocadas para o final do livro, onde se encontram igualmente sugestões complementares de leitura.
Agradeço as correções e sugestões de André Barata, Dídimo Matos, Fátima St. Aubyn e Américo de Sousa, que me ajudaram a evitar erros e me obrigaram a repensar ideias e argumentos. Com Miguel Amen e Célia Teixeira discuti profundamente alguns dos ensaios, o que foi crucial para fazer deste um livro melhor; estou-lhes imensamente grato. As infelicidades e erros que persistirem são da minha responsabilidade.
Espero que este livro dê uma ideia correta do que é a filosofia. Espero igualmente que o que nele se afirma não seja aceite acriticamente, mas constitua antes objeto de discussão e reflexão, de disputa e discórdia civilizada, argumentada, séria e imparcial. Se este livro o fizer pensar e argumentar e objetar e reformular, terá cumprido o seu objetivo.
DESIDÉRIO MURCHO
Londres, 3 de Janeiro de 2005
“O relativismo quanto à verdade é talvez sempre um sintoma de infecção pelo vírus epistemológico; de qualquer modo, parece que é isso que acontece no caso de Quine, Nelson Goodman e Putnam.” — DONALD DAVIDSON
O filme Matrix (1999) encena, de forma vívida, um dos mais discutidos problemas filosóficos. O problema em causa é de tal modo central que afeta muitas áreas da filosofia, as mais óbvias das quais são a teoria do conhecimento e a metafísica, mas também a filosofia da linguagem e da mente.
Neo, o protagonista do filme, descobre que o mundo é completamente diferente do que pensava. Os seres humanos não vivem numa grande metrópole tipicamente americana, conduzindo automóveis e trabalhando em grandes edifícios, vivendo em pequenos apartamentos e divertindo-se em festas. Na realidade, vivem em pequenos casulos semelhantes a úteros, onde vegetam como fetos. Os seus cérebros estão ligados a poderosos computadores que produzem neles todas as sensações que uma vida normal provocaria: cheiram, veem e ouvem coisas, falam e interagem com os outros... ou melhor, têm exatamente as mesmas sensações que teriam se fizessem todas essas coisas — sem as fazerem de facto. É como se vivessem num sonho permanente.
A ideia de que a realidade é radicalmente diferente do que pensamos tem uma longa tradição no pensamento humano. Na República, Platão ilustra-a com a chamada “alegoria da caverna”: os seres humanos são como escravos que vivem numa caverna, tomando vagas sombras projetadas nas suas paredes como se fossem realidades últimas — mas de facto são apenas sombras do que é verdadeiramente real, sombras provocadas pela intensidade do Sol, do qual os escravos, por nunca terem saído da caverna, não têm conhecimento. Na tradição religiosa, Buda recebe a Iluminação e compreende que a natureza da realidade é radicalmente diferente do que os seres humanos pensam, e esta ideia é praticamente comum a todas as religiões: a verdadeira realidade, a “realidade última”, difere radicalmente do que superficialmente parece real — e só pela fé podemos abandonar as nossas crenças falsas e acolher a Verdade e a Vida. Mesmo no pensamento teísta contemporâneo mais sofisticado o mundo quotidiano tem sempre um aspecto irreal, pois é uma espécie de escola criada por Deus para que os seres humanos possam desenvolver as suas potencialidades antes de ir ao encontro da Verdade: o Paraíso. Somos convidados por quase todas as religiões a tomar o que parece importante e real como sem importância nem realidade — a riqueza, a felicidade terrena, a saúde e o prazer são desvalorizados face à Verdade e à Vida.
No pensamento filosófico, a ideia de que “tudo” é uma ilusão recebe um tratamento mais aprofundado. O cepticismo radical, quase tão velho quanto a própria filosofia, declara que tudo o que tomamos como conhecimento é afinal Ilusão. Desde o tempo dos cépticos gregos que são discutidos os principais argumentos contra a realidade ou a natureza do mundo exterior. Dois dos principais argumentos são as ilusões perceptivas e a disparidade de opiniões igualmente prováveis. Nenhum dos argumentos é sólido, mas têm ambos exercido um enorme fascínio ao longo da história da filosofia.
O primeiro argumento defende que não podemos saber se a realidade é tal como a representamos dado haver ilusões perceptivas óbvias, e não podemos saber se não estaremos a ser vítimas de uma ilusão perceptiva radical ou global. Assim, quando ao longe nos parece existir água e afinal não há, ou quando nos parece que uma vara meio mergulhada em água parece partida e não o está, declaramos que estamos perante ilusões. Mas que razão há para pensar que as nossas percepções não são todas ilusórias? Assim, quando vemos uma árvore, podemos estar a ser vítimas de uma terrível ilusão e não existir realmente árvore alguma, ou existir algo completamente diferente.
Muitos filósofos sentiram necessidade de responder aos argumentos cépticos deste gênero, e a resposta clássica mais famosa é a de Descartes. Argumentou este filósofo que um Gênio Maligno pode talvez enganar-me sobre todas as minhas percepções, mas para me dar uma ilusão qualquer eu tenho de existir. Sobre esta frágil tábua de certeza inabalável num oceano de cepticismo quis Descartes erguer todo o edifício do conhecimento. O mesmo tipo de argumento tinha já antes sido usado por Santo Agostinho que, depois de uma devassa vida sexual aparentemente motivada por descrenças cépticas, descobriu a Verdade em Cristo e tornou-se casto. Recentemente, o filósofo Hilary Putnam argumentou contra a hipótese céptica de tudo ser uma ilusão, insistindo que a hipótese é incoerente porque pressupõe o que se propõe colocar em causa: um mundo exterior à mente.
O segundo argumento céptico, baseado na disparidade de opiniões, exerceu menos fascínio na história da filosofia, apesar de alimentar algum cepticismo mais popular. O argumento é o seguinte: Dada a existência de várias opiniões inconsistentes, e dado que não há maneira de refutar umas e sustentar outras, segue-se que todas as nossas opiniões são ilusórias e que nada se pode saber. A primeira fraqueza deste argumento é que se parece demasiado com a falácia do apelo à ignorância. Esta falácia consiste em confundir ausência de prova com prova de ausência. Como é evidente, do facto de não haver prova alguma de que exista vida além da Terra, não se segue que não há realmente vida além da Terra.
Esta falácia é elementar, mas a sua estrutura de pensamento é a base fundamental de todos os cepticismos globais. Esta estrutura é uma forma particularmente arreigada de antropocentrismo. O filósofo Donald Davidson usa uma imagem particularmente viva para caracterizar esta estrutura de pensamento típica do cepticismo: a imagem da raposa e das uvas. Na famosa fábula de Esopo, a raposa, depois de tentar em vão alcançar as uvas que queria comer, declara que afinal as uvas são azedas. O cepticismo global apoia-se no pretenso facto de que não sabemos algo para concluir — não que as nossas capacidades cognitivas não são tão boas como gostaríamos de pensar — mas que nada há realmente para saber porque o mundo é apenas uma invenção nossa. Este tipo de cepticismo é assim incompatível com toda a investigação e consequentemente com a própria ideia de escola ou universidade. O anti-realismo, o relativismo e o cepticismo, não sendo exatamente as mesmas posições, partilham em geral esta forma de antropocentrismo que consiste em declarar ilusório o que não pode ser conhecido com toda a segurança de forma mais ou menos automática, mas antes exige a paciência da tentativa e do erro milenares, isto é, a investigação sistemática contínua.
Contudo, o céptico poderá defender o seu argumento apresentando uma formulação mais subtil. Poderá dizer que não se trata de provar algo só porque o contrário nunca foi provado, mas de aceitar o significado da disparidade de opiniões sobre os mais diversos assuntos. Não se trata apenas de haver opiniões irreconciliáveis, mas de não ser possível encontrar critérios universais que permitam decidir entre as diversas opiniões, pois os próprios critérios são discutíveis e relativos às opiniões professadas. De modo que só do interior de uma dada opinião podemos avançar critérios para avaliar outras opiniões, o que torna todos os critérios irredutivelmente relativos às próprias opiniões, e portanto insusceptíveis de se constituírem como árbitros imparciais para avaliar opiniões.
Esta posição é habitualmente o passo seguinte do céptico global, e tem tendência para reaparecer periodicamente na história da filosofia, sob diversas vestes. Na filosofia da ciência do passado século Thomas Kuhn tornou-se o expoente mais popular deste tipo de cepticismo, introduzindo uma palavra vaga que tem feito as delícias de diletantes porque dá para tudo e nunca se sabe bem o que é: “paradigma”. Originalmente, a palavra significa apenas modelo; um paradigma de virtude, por exemplo, é um modelo de virtude — um santo, talvez (se bem que seja defensável que os santos estão longe de ser virtuosos). Kuhn usou esta palavra com sentidos diferentes, mas não com este sentido original. O sentido da palavra relevante para o céptico é “conjunto estruturante e incomensurável de crenças”. Assim, a ideia é que uma dada afirmação científica só pode ser avaliada no interior do conjunto de crenças que lhe deu origem; fora desse conjunto de crenças essa afirmação não é verdadeira nem falsa: é insusceptível de ser avaliada. Assim, cada conjunto de crenças é estruturante porque permite articular o modo como se vê as coisas e porque fornece os seus próprios critérios para avaliar afirmações; e é incomensurável precisamente porque tem os seus próprios critérios de avaliação, não existindo metacritérios, digamos, que permitam avaliar e comparar os diversos critérios — e mesmo que existissem tais metacritérios eles seriam apenas a expressão de outro “paradigma”, neste caso um “metaparadigma”.
Noutra versão, mais pitoresca, exprime-se o argumento céptico original numa linguagem menos pretensiosa, mas tão ou mais obscura do que a linguagem dos paradigmas, afirmando-se que não podemos “sair” do nosso sistema de crenças para as comparar com o pretenso mundo “exterior”. Tudo o que podemos fazer é comparar crenças entre si e eventualmente chegar a acordos, mas estes acordos nunca terão qualquer objetividade — serão meramente intersubjetivos.
Qualquer destas versões do argumento céptico original é igualmente incoerente porque pressupõe o que se propõe eliminar. O que o argumento céptico se propõe eliminar é o pretenso erro de pensar que há uma verdade para além do que nós pensamos que é a verdade. Mas esta afirmação tem, ela mesma, de ser encarada como uma verdade para além do que nós pensamos que é verdade. Pois se a própria opinião do céptico for uma opinião entre outras, com tanto valor como as outras, então não desaloja a opinião realista de que a verdade e a falsidade das opiniões é independente do que nós pensamos. Em qualquer dos dois casos, a opinião do céptico implica o que ele quer negar: que a verdade das opiniões é independente do que pensamos.
A versão do argumento expressa em termos de “paradigmas” é auto-refutante porque ou a própria ideia de que há “paradigmas incomensuráveis” é um “paradigma incomensurável” ou não. Se for um “paradigma incomensurável”, então não se pode comparar com a opinião de que não há paradigmas incomensuráveis, pelo que quem não acredita em paradigmas não está obrigado a aceitar a existência de paradigmas. Se não for um “paradigma incomensurável”, então há opiniões que não são incomensuráveis e portanto a perspectiva original é falsa. Em qualquer caso, a perspectiva original é falsa.
A versão mais pitoresca relaciona-se de perto com o problema do filme Matrix. Por ser muito vaga, a versão pitoresca pode exprimir diferentes ideias, mas uma das ideias importantes relaciona-se com o famoso “véu da percepção” desastrosamente introduzido por Locke, e admiravelmente explorado por Berkeley, no famoso parágrafo 8 do seu Tratado, para vindicar a sua doutrina de que o mundo exterior não é independente da nossa percepção dele:
Mas, dirás, apesar de as próprias ideias não existirem sem a mente, poderá todavia haver coisas como elas, das quais elas sejam cópias ou símiles, coisas essas que existem sem a mente numa substância impensante. Respondo que uma ideia não pode ser semelhante a coisa alguma exceto outra ideia; uma cor ou figura não pode ser semelhante a coisa alguma exceto outra cor ou figura. Basta olhar um pouco para os nossos pensamentos e veremos que nos é impossível conceber uma semelhança exceto entre as nossas ideias. Uma vez mais, pergunto se esses supostos originais, ou coisas exteriores, dos quais as nossas ideias são imagens ou representações, são perceptíveis ou não? Se são, então são ideias e ganhámos a causa; mas se dizes que não são, pergunto a qualquer pessoa se faz sentido asseverar que uma cor é semelhante a algo invisível; o rígido ou macio a algo intangível; e assim por diante. (George Berkeley, Tratado do Conhecimento Humano, § 8)
Talvez nenhum outro filósofo tenha expresso de forma tão clara esta confusão conceptual fundamental. Compreende-se a confusão que está em causa quando se reflete sobre a natureza da representação. Pode-se representar uma estrada, por exemplo, com uma linha azul num pedaço de papel. Mas a estrada não é nem uma linha, nem é azul nem está num pedaço de papel. A representação não depende da semelhança global. Claro que compreender cabalmente os aspectos fundamentais da representação é difícil e não existe provavelmente teoria alguma da representação inteiramente satisfatória. Mas, uma vez mais, só porque é difícil explicar a representação não se segue que é impossível explicá-la e ainda menos que não existe tal coisa.
O argumento original de Berkeley tem, em comum com a versão pitoresca do argumento céptico, uma metafísica dualista da mente a favor da qual não é avançado qualquer argumento. Segundo esta metafísica dualista, é possível comparar opiniões com outras opiniões, ou representações com outras representações, ou ideias com outras ideias — mas não é possível comparar opiniões ou representações ou ideias com a realidade exterior à mente. Mas que há de especial relativamente à comparação entre opiniões ou representações ou ideias que não há relativamente à comparação entre estas e a realidade exterior à mente? Imagine-se que alguém pensa que a neve é verde. Segundo o argumento céptico, esta pessoa não tem maneira de “sair das suas representações” para comparar esta ideia com o mundo em si; tudo o que pode fazer é comparar esta representação da realidade com outras representações.
Contudo, não pode ser a semelhança global que facilita ou dificulta a representação, como vimos: um risco azul num mapa representa perfeitamente bem uma estrada, mas a estrada não é azul nem um risco nem está num pedaço de papel. O problema de representar a neve através do pensamento não pode ser uma questão de o pensamento não ser branco nem frio nem feito de água. E se o pensamento fosse branco, frio e feito de água não seria, por isso, mais adequado a representar a neve. A ilusão de que se podem comparar representações entre si mas não as representações com o mundo é a ilusão de que só se pode representar algo através de outra coisa que tenha a mesma natureza do que é representado. É um pouco como argumentar que o João não pode ser filho da Maria porque a Maria é uma mulher e o João não. Evidentemente, afirmar tal coisa é não compreender a própria relação de ser filho, que não implica que os filhos tenham o mesmo sexo das mães.
Se não se pode comparar a representação da neve com a neve, então também não se pode comparar a representação da neve com a representação de outra coisa qualquer, pois não é a diferença ou semelhança global entre a representação e a coisa representada que permite ou impede a referência. Se o que impede a representação é que temos de comparar a representação com a coisa representada, o que só podemos fazer recorrendo a outras representações, então também não podemos comparar representações entre si, pois também neste caso temos de recorrer a outras representações. Qualquer argumento a favor da ideia de que podemos comparar representações entre si será um argumento a favor da ideia de que podemos comparar representações com o mundo exterior. Ou as representações não se podem comparar com coisa alguma, ou podem comparar-se tão facilmente com o mundo exterior como com outras representações.
A versão intersubjetivista sofre do mesmo problema. Se é impossível comparar representações com o mundo exterior à mente, então também é impossível comparar representações de diferentes pessoas. Pois para comparar as suas representações do mundo com as representações que outrem tem do mundo, uma pessoa só pode fazê-lo representando as representações de outrem — o que conduz o céptico ao argumento anterior que mostra a incoerência da sua posição. Isto deixa o céptico sem qualquer acesso à intersubjetividade, que ele presumia não ser problemática e de natureza radicalmente distinta da objetividade.
Estes dois argumentos mostram que a intersubjetividade só faz sentido no contexto mais geral da objetividade, pois comparar as minhas representações com as representações de outrem implica comparar as minhas representações entre si. Mas comparar as minhas representações entre si é ininteligível se comparar as minhas representações com o mundo exterior à mente for impossível.
O filme Matrix representa a ideia céptica de que todas as nossas representações do mundo podem ser enganadoras — e que não temos maneira de o saber. Contudo, o filme ilustra bem os limites da hipótese céptica original. Na hipótese céptica original o que está em causa não é afirmar que a natureza do mundo em si é diferente do que nós pensamos — afinal, esta hipótese está longe de ser céptica, pois corresponde à ideia geral da investigação, nomeadamente científica, que nos faz descobrir que o mundo é muitas vezes diferente do que parece à primeira vista: uma barra de ferro parece perfeitamente sólida e no entanto é um aglomerado de átomos com imenso espaço vazio entre si; a Lua parece emitir luz própria, mas afinal está só a refletir a luz original do Sol. A hipótese céptica é mais radical do que isto; é a ideia kantiana de que o mundo em si é um númeno incognoscível, ao qual não se podem aplicar sequer os nossos conceitos mais básicos, como a causalidade ou a existência no espaço e no tempo. O problema desta ideia é ser radicalmente incoerente e como tal insusceptível de ser representada e é por isso que no filme Matrix não é essa ideia que é dramatizada.
O argumento céptico do cérebro numa cuba pode ser compreendido de duas maneiras não equivalentes, mas só uma delas corresponde ao objetivo do céptico global. A interpretação visada pelo céptico pretende que a realidade é radicalmente numênica, incognoscível, inalcançável e irrepresentável. Mas lido deste modo o argumento é auto-refutante porque supõe precisamente o que se propõe colocar em causa: convida-nos a considerar a possibilidade de que somos cérebros numa cuba, o que implica que há cubas e há cérebros e há um mundo onde esses cérebros estão e alguém com certeza fez essas cubas e colocou esses cérebros nessas cubas — precisamente o que o filme Matrix dramatiza. Esta interpretação “fraca” do argumento céptico é ainda suficientemente inquietante para merecer reflexão, como veremos. Mas vejamos primeiro o que esta interpretação implica.
Antes de mais, implica que, ao contrário do que pretende a interpretação forte, a realidade última do mundo não é subjetiva, intersubjetiva, numênica, incognoscível ou radicalmente diferente do que pensamos. A realidade última do mundo é objetiva, não numênica, cognoscível e diferente, mas não radicalmente diferente, do que pensamos. Se sou um cérebro numa cuba, esse é um facto acerca da minha situação que é independente da minha perspectiva dele, ou da perspectiva de outra pessoa qualquer — é um facto, sem mais. Se sou um cérebro numa cuba, o mundo verdadeiramente real onde a cuba está localizada tem de ter alguma relação, causal (Matrix) ou divina (Berkeley), com as minhas percepções de prédios, pessoas, praias, etc. — o que faz do mundo verdadeiramente real uma realidade não numênica dado que é susceptível de manter uma relação com o mundo fenomênico. O conceito de mundo numênico é incoerente porque ou nenhuma relação há entre esse pretenso mundo e a nossa representação dele e portanto não estamos a falar de coisa alguma, ou há alguma relação e nesse caso tal mundo não é radicalmente diverso da nossa representação dele e portanto não é numênico. Se sou um cérebro numa cuba, o mundo verdadeiramente real onde está o meu cérebro não é incognoscível, pois esta mesma hipótese supõe ser cognoscível a hipótese de esse mundo ter, em cubas, cérebros susceptíveis de terem uma experiência total de um mundo. Em suma: se sou um cérebro numa cuba, o mundo para lá das minhas representações é diferente do que eu penso que é, mas não é radicalmente diferente. O fundamento último das coisas não são átomos e moléculas, mas bits num computador que, presumivelmente, tem uma localização espácio-temporal — ou será que também esse computador é apenas bits noutro computador?
No caso do filme Matrix, nada nos é dito nesse sentido. Mas no filme O 13.o Andar (de Josef Rusnak, 1999) explora-se precisamente esta possibilidade. Um investigador conseguiu criar um mundo virtual, num supercomputador, onde criou personagens que não têm outra realidade exceto a programação existente no computador — não são cérebros numa cuba, são bits num computador. Claro que a questão que se levanta é a de saber se este argumento é tão radical quanto o céptico pretende. No filme em causa o investigador original, que criou um mundo de realidade virtual com “pessoas” que pensam ser reais, acaba por descobrir que ele próprio e o seu mundo é uma simulação noutro supercomputador. O filme fica-se modestamente por aqui, mas o espectador pergunta-se se a realidade última apresentada será mesmo última, e lamenta que o protagonista, ao chegar ao que é tomado como o mundo “realmente real” não pergunte aos seus habitantes: “E como sabem vocês que tudo isto não é uma simulação?”
Segundo esta hipótese, a que podemos chamar “hipótese das bonecas russas”, não há qualquer mundo “último”, cuja realidade seja o fundamento da realidade de todos os outros mundos nele criados. No filme O 13.o Andar os computadores sofrem de falta de recursos, de maneira que se um dos habitantes avançar muito persistentemente numa dada direção durante apenas alguns dias chega ao fim da simulação eletrônica e portanto do seu mundo, e depara-se com uma espécie de imagem digital em construção. Um espectador mais ingênuo poderá ficar aliviado ao pensar que o nosso mundo não é assim, dado que podemos viajar imenso e nunca descobrimos tal limite digital. Isto é evidentemente ingênuo, dado que segundo o melhor conhecimento atual do mundo não podemos ultrapassar a velocidade da luz, de maneira que os limites mais distantes do universo são inalcançáveis em princípio — para não falar que, na prática, já será bastante moroso visitar a outra ponta da nossa própria galáxia: à velocidade da luz demorará mais de cem mil anos. E mesmo que aceitemos a fantasia de naves espetacularmente rápidas, muitíssimo mais rápidas do que a velocidade da luz, como é comum no cinema, podemos sempre perguntar o que acontecerá se uma dessas naves continuar para sempre a viajar — chegará a um momento em que há cada vez menos estrelas, até que nada restará exceto espaço vazio? Mas não poderá isso ser uma forma sofisticada de quem programou o nosso universo garantir que nunca iremos descobrir que somos uma mera simulação?
Contudo, também a hipótese das “bonecas russas” falha em vindicar o ponto de vista céptico. Pois o suposto computador que simula a nossa realidade não pode ser verdadeiramente real porque essa é a hipótese das “bonecas russas”. Mas se não é verdadeiramente real, então não pode ser o fundamento último da nossa realidade hipoteticamente simulada e como não faz sentido falar de uma simulação sem um simulador a nossa realidade não pode ser uma simulação radical. A nossa realidade pode ser uma simulação, e pode ser uma simulação de uma simulação, mas no fim da linha terá de haver uma realidade não simulada que possa ser o fundamento de todas estas simulações.
Ao longo destas linhas, a impaciência do céptico foi sem dúvida crescendo. Pois até agora não viu respondida a sua objecção de fundo: como pode alguém ter a veleidade de pensar que todas estas objecções são sólidas? Afinal, todas se baseiam em argumentos, por vezes intrincados, e se estamos iludidos perceptivamente quanto à natureza do mundo exterior, por que razão não poderemos estar igualmente iludidos quanto às nossas capacidades argumentativas? Esta pergunta de retórica é o ponto de partida para outra perspectiva céptica, ainda mais radical do que o cepticismo radical quanto à natureza do mundo. Trata-se do cepticismo quanto à natureza da própria racionalidade. Os argumentos são idênticos: muitas vezes, descobrimos que um raciocínio que nos parecia perfeitamente bom era afinal falacioso, de modo que nunca podemos saber que um dado argumento é realmente sólido. Logo, todos os argumentos usados contra o céptico falham, porque o céptico não acredita que tais argumentos sejam sólidos, ainda que ele não consiga dizer por que razão não são sólidos.
Este cepticismo ultra-radical é igualmente incoerente, por razões muito mais evidentes. Pois se todos os argumentos podem ser falaciosos sem que o saibamos, o argumento que pretende estabelecer que todos os argumentos são falaciosos também pode ser falacioso. Mas se for falacioso, então a sua conclusão não se segue das suas premissas e não temos razão alguma para pensar que todos os argumentos são falaciosos. E se não for falacioso, então há pelo menos alguns argumentos que não são falaciosos, nomeadamente os argumentos cépticos — o que refuta o próprio céptico, que queria estabelecer que todos os argumentos eram falaciosos. Por outro lado, se o céptico declara que só os seus argumentos não são falaciosos, é necessário que esta posição não seja arbitrária, pois com igual arbitrariedade pode o realista afirmar que só os argumentos realistas não são falaciosos. Mas se o céptico começar a explicar por que razão os seus argumentos não são falaciosos terá de usar outros argumentos, que também não poderão ser falaciosos, o que começará a multiplicar o número de argumentos não falaciosos — além de que não há assim tantas formas argumentativas e muito provavelmente o céptico estará a usar precisamente as mesmas formas argumentativas que usa o realista: modus ponens, modus tollens, silogismo disjuntivo, reductio, etc. Em suma, o cepticismo ultra-radical quanto à racionalidade é incoerente.
Apesar de o argumento de Putnam contra a hipótese céptica do cérebro numa cuba ser, nos seus traços gerais, análogo ao argumento principal aqui apresentado contra o cepticismo relativo ao mundo exterior, Putnam apresenta-o de uma forma peculiar (e retira dele consequências favoráveis a um certo tipo de anti-realismo, a que chama “realismo interno”). O argumento original de Putnam baseia-se numa teoria externalista da linguagem. Do ponto de vista de uma teoria externalista da linguagem, o significado dos nossos termos que referem categorias naturais, como a água, depende da natureza do mundo. Por exemplo, o termo “água” refere obviamente a água; e a água tem, sabemo-lo hoje, uma certa estrutura química — é H2O. Assim, se imaginarmos um planeta no qual há um líquido superficialmente muito parecido com a água mas que não seja H2O, o nosso termo “água” não refere esse líquido — porque nós não estamos em contato com esse líquido, mas apenas com H2O. Claro que nesse planeta outros seres poderiam usar a palavra “água” para falar desse líquido, mas nesse caso essa palavra não referiria a nossa água — seria apenas um caso de ambiguidade semântica: uma mesma palavra com duas referências diferentes, como acontece com palavras como “banco”, que tanto pode referir um banco de jardim como uma instituição financeira.
O argumento de Putnam aplica-se apenas a nomes próprios (como “José” e “Lisboa”) ou nomes de categorias naturais (como “ouro” ou “água”), a que por vezes se chama “termos de massa”. Assim, aplica-se à expressão “Eu sou um cérebro numa cuba”, porque o termo “cérebro” refere uma categoria natural. Evidentemente, é possível formular a hipótese céptica sem recorrer a termos que refiram categorias naturais: “Tudo o que vejo e penso ser real é apenas uma fantasia”. Contudo, a verdadeira força do argumento de Putnam torna-se manifesta quando se vê o que significa a hipótese céptica. O que o céptico quer defender é que quando vejo uma árvore, por exemplo, a árvore não passa de uma ilusão — não é real. Mas isto é incoerente porque pressupõe que a palavra “árvore” está conectada a algo para além de todo o conhecimento que eu possa ter — nomeadamente, está conectada à fonte da ilusão, o computador que me provoca todas essas ilusões. Mas isto derrota o argumento céptico, pois não significa que a árvore é uma mera ilusão, mas antes que a natureza última da árvore é muito diferente do que eu penso que é. Ora, como vimos, isto acaba por trivializar e neutralizar a hipótese céptica, porque só provámos o que já sabíamos: muitas vezes, a realidade última das coisas é muito diferente do que pensávamos inicialmente — as pessoas pensavam que a Terra estava no centro do Universo, e não está; que o flogisto existia e não existe; que não era possível viajar mais depressa do que o som, e é possível; etc.
Putnam retira do seu argumento uma conclusão geral, a que chama “realismo interno”. O realismo interno é uma forma de fenomenismo kantiano, e sofre dos mesmos problemas daquele: o mundo exterior “está lá mas é outra coisa”, na maravilhosa expressão de Bernardo Soares/Fernando Pessoa. Acontece que o único sentido coerente que se pode dar a esta ideia é precisamente a que é dramatizada no filme Matrix: há um mundo exterior, mas a sua natureza última é muito diferente do que nós pensamos que é — eu penso que as árvores são feitas de átomos e moléculas, mas são apenas bits num computador. Como vimos, isto retira à hipótese a força inicial. O que se queria com o fenomenismo kantiano era algo mais radical: um mundo exterior intrinsecamente numênico, sem relações conceptualizáveis com as nossas representações. Mas não é isso que se obtém, pois se além das nossas representações nada de conceptualizável existe que possa ter qualquer relação com elas, falhámos em falar do que quer que seja com esta hipótese — a nossa expressão “mundo exterior sem qualquer relação conceptualizável com as nossas representações” nada refere.
Apesar de Matrix representar uma forma fraca de argumento céptico é sem dúvida inquietante. E a personagem Cypher, que no filme prefere a fantasia à realidade, depois de conhecer ambas, representa uma escolha inaceitável. Contudo, do ponto de vista psicológico, trata-se de uma escolha que muitas pessoas aceitariam — entre ter a sensação plena de viver razoavelmente bem numa grande cidade e a realidade de viver num mundo horrível, no seio de uma luta épica e sem esperança de vitória, muitas pessoas prefeririam provavelmente o mundo da fantasia. Afinal, qual é o mal de estar de facto a vegetar numa espécie de útero, se estamos subjetivamente a viver uma vida perfeitamente normal e compensadora, do nosso ponto de vista?
Robert Nozick usou um argumento baseado no valor da realidade para refutar o utilitarismo, ou pelo menos certas versões do utilitarismo. Se o bem é apenas o maior prazer para o maior número de pessoas, então distribuir uma droga na água que dê imenso prazer às pessoas, sem as prejudicar, será uma política perfeitamente aceitável. Mas intuitivamente não é aceitável. Logo, o utilitarismo está errado. O argumento original de Nozick funciona melhor no contexto do filme Matrix: se for possível ligar as pessoas todas a máquinas que sejam autossuficientes, ficando as pessoas a vegetar como se estivessem em coma, mas a ter experiências subjetivas paradisíacas, será que fazer isso é aceitável? Claro, a primeira pergunta é: “Aceitável para quem?” Uma resposta possível é que cada pessoa terá a sua opção, e que nada mais há a dizer.
No filme Matrix é dada a Neo a possibilidade de escolha entre dois comprimidos, representando um a realidade e o outro a ilusão; o herói escolhe a realidade. Mais tarde, descobrimos que Cypher passou pelo mesmo teste, escolheu a realidade, mas está arrependido com a realidade sórdida que descobriu e prefere agora a ilusão. Atraiçoa o herói e faz um pacto com as máquinas para voltar à ilusão. Diz-lhes que quer viver numa ilusão com tudo o que há de bom, mas não quer lembrar-se de coisa alguma: não quer ter consciência, obviamente, de que se trata de uma mera ilusão. Este pedido de Cypher é subjetivamente incongruente, pois é equivalente ao suicídio: se eu vou passar para outro “plano” da minha existência mas não vou ter qualquer memória da minha existência anterior, então o meu destino nesse plano é-me subjetivamente indiferente dado que não haverá qualquer conexão entre esse “eu” e o meu eu atual. A escolha de Cypher é absurda, de um ponto de vista subjetivo. Mas faz sentido de um ponto de vista objetivo: o mesmo sentido que faz defender que um mundo povoado por pessoas felizes é objetivamente melhor do que um mundo povoado por pessoas infelizes. É objetivamente melhor porque é melhor para elas e ser melhor para elas é um facto objetivo do mundo, como outro facto qualquer. Ao olhar para si mesmo “a partir de fora” Cypher escolhe o que é objetivamente melhor, apesar de subjetivamente tal coisa lhe ser evidentemente indiferente.
Por outro lado, a escolha de Cypher faz sentido porque a condição de possibilidade para se ser feliz numa ilusão é não saber que se trata de uma ilusão. E isto exibe uma característica importante do conceito de felicidade: a felicidade ilusória, ainda que subjetivamente idêntica à verdadeira felicidade, é ainda uma ilusão e como tal objetivamente destituída de valor. E é porque nessa situação a felicidade é objetivamente destituída de valor que Cypher tem de pedir para não se lembrar de coisa alguma: não lhe será possível viver feliz num mundo de ilusão repleto de alegrias se souber que se trata de um mundo de ilusão. Não se pode negar a importância da realidade sem negar a nossa natureza de seres inteligentes. Caso a realidade não tivesse qualquer importância, Cypher teria recusado o “suicídio subjetivo” que consiste em não se lembrar do seu “eu” anterior — não só porque é uma espécie de suicídio, mas também porque teria satisfação em saber que tinha escapado a uma existência miserável. Mas tal satisfação é inteiramente anulada pelo conhecimento de que está agora a viver uma ilusão, por mais agradável que seja. É esta a força e importância da realidade.
Pode-se argumentar que diferentes pessoas dão importâncias diferentes à realidade, e que se trata de uma característica meramente psicológica e como tal perfeitamente contingente e sem qualquer significado filosófico, pois não existirá qualquer conexão conceptual entre a felicidade e a realidade. Sem dúvida que diferentes pessoas atribuem valores diferentes à realidade, e sem dúvida que muitas pessoas são muito boas a auto-enganar-se, construindo teias de reconfortantes crenças falsas. Mas o importante a notar é que ao escolher a ilusão, como Cypher, qualquer pessoa está obrigada a auto-enganar-se, sob pena de não conseguir o seu objetivo: ser feliz. E isso mostra a conexão conceptual entre a felicidade e a realidade e é por esta razão que o argumento de Nozick falha parcialmente — pois o que os utilitaristas sempre tiveram em mente não foi a felicidade meramente ilusória para o maior número, mas a verdadeira felicidade, ancorada na realidade e em resultado da realidade.
É porque a realidade é tão importante que, como assinala Thomas Nagel, não podemos evitar “olhar por cima do nosso ombro” para tentar ver as coisas de uma perspectiva imparcial. E é por esse motivo que uma existência humana plena de bens comumente considerados valiosos — conforto, saúde, amizade, boa disposição — pode no entanto ser insuficiente para dar sentido a essa existência. Os seres humanos anseiam pela realidade, e não em função de um qualquer traço psicológico contingente, mas porque são seres inteligentes — e a inteligência começa com a capacidade, cada vez mais aguda, para distinguir a verdade da ilusão, a opinião verdadeira da falsa, o conhecimento da crença falsa. É por este motivo que são tão profundamente desumanas as filosofias (ou antifilosofias) pós-modernas, com o seu distanciamento irônico perante nós mesmos — como se soubéssemos que estamos condenados a viver na Matrix mas quiséssemos festejar nietzschianamente o facto e olhar divertidos para a situação. São desumanas na exata medida em que festejam o cepticismo radical e a completa ausência de valores objetivos — nomeadamente esse valor central que o pensamento religioso costuma sacralizar: a verdade.
“O mais desejável é viver uma vida com sentido e não uma vida que parece subjetivamente ter sentido.” — SUSAN WOLF
Albert Camus inicia o seu famoso livro sobre o mito de Sísifo declarando que só há um problema filosófico verdadeiramente importante: o suicídio. A ideia é que é urgente descobrir se a vida faz ou não sentido — pois se não fizer, resta-nos o suicídio. Muitas pessoas que desconhecem a filosofia pensam que descobrir o sentido da vida é a tarefa fundamental, senão a única, da filosofia. Contudo, isto é um exagero dramático, semelhante ao erro de pensar que a filosofia tem por objeto de estudo unicamente “os valores”. A filosofia tem uma enorme amplitude e qualquer visão redutora deste gênero falseia a sua natureza. Quem está a par da discussão filosófica contemporânea, e dos grandes clássicos da filosofia, sabe que o problema do sentido da vida não tem sido uma preocupação central dos filósofos. Contudo, nos últimos anos este problema tem recebido cada vez mais atenção por parte de filósofos tão importantes como Thomas Nagel, Robert Nozick, David Wiggins e Peter Singer, entre muitos outros.
Neste capítulo, defende-se uma perspectiva objetivista, naturalista e otimista do sentido da vida. Objetivista, porque se defende que o sentido da vida não é independente da realidade. Naturalista porque se defende uma posição não religiosa. E optimista porque se defende que é possível viver uma vida com sentido.
Ao objetivismo quanto ao sentido opõe-se o subjetivismo: a ideia de que o sentido da vida depende exclusivamente da satisfação que a pessoa sente. Assim, deste ponto de vista, uma pessoa permanentemente drogada, por exemplo, tem uma vida com sentido desde que se sinta feliz. O subjetivismo foi muito popular na fase positivista da filosofia contemporânea — a mesma fase que viu os filósofos a defender o subjetivismo em ética — mas foi hoje quase totalmente abandonado.
Uma das motivações para o subjetivismo otimista é a ideia de que, de um ponto de vista mais alargado, a nossa vida não faz realmente sentido. Assim, os otimistas quanto ao sentido subjetivo da vida são geralmente pessimistas quanto ao sentido objetivo (mas podem igualmente defender que o sentido objetivo não é sequer inteligível). Contudo, na história da filosofia também encontramos pessimistas quanto ao sentido subjetivo da vida, como Schopenhauer:
Que a vida humana tem de ser um tipo qualquer de erro é suficiente demonstrar pela simples observação seguinte: o homem é um composto de necessidades que são difíceis de satisfazer; a sua satisfação nada alcança a não ser uma condição dolorosa na qual o homem sucumbe ao tédio; e o tédio é uma demonstração direta de que a existência não tem em si qualquer valor, pois o tédio não é senão a sensação de que a existência é vazia. Pois se a vida, que a nossa essência e existência deseja, tivesse em si um valor positivo e um conteúdo real, o tédio seria coisa que não existiria: a mera existência seria suficiente para nos realizar e satisfazer. Tal como as coisas são, não temos qualquer prazer na existência exceto quando lutamos por algo — caso em que a distância e as dificuldades fazem o nosso objetivo parecer algo que nos satisfaria (uma ilusão que desaparece quando o alcançamos) — ou quando nos entregamos à atividade puramente intelectual, caso em que estamos na realidade a sair da vida como que para a olharmos a partir do exterior, como espectadores numa peça de teatro. Mesmo o próprio prazer sensual consiste numa luta contínua e cessa mal o seu objetivo foi atingido. Sempre que não estamos envolvidos numa ou noutra destas coisas, mas antes damos atenção à própria existência somos assaltados pela sua ausência de valor e fatuidade e esta é a sensação a que se chama “tédio”. (Arthur Schopenhauer, “Da Vacuidade da Existência”, p. 69)
Conceptualmente, é possível defender uma perspectiva religiosa e simultaneamente pessimista ou subjetiva quanto ao sentido da vida, mas não é muito comum: uma das motivações da visão religiosa do mundo é a ideia de que só o sobrenatural poderá dar objetivamente sentido à vida.
Há um certo antropocentrismo na formulação do problema do sentido da vida, pois subentende-se que se trata da vida humana — ou pelo menos, da vida de seres inteligentes e sofisticados como nós. Por vezes, usa-se igualmente a expressão “sentido da existência”, conectando assim o problema do sentido da vida com o problema de saber por que razão há algo e não o nada. A questão de saber por que razão existe o universo relaciona-se com o problema do sentido da vida humana porque se encara muitas vezes este último como uma questão de saber que lugar é ocupado pelos seres humanos na ordem geral das coisas, por assim dizer. Contudo, como veremos, é falso que o sentido da vida dependa exclusivamente do lugar que ocupamos na ordem geral das coisas.
É evidente que o problema do sentido da vida não é linguístico — o termo “sentido” não corre nesta expressão na acepção em que ocorre quando perguntamos qual é o sentido ou significado de uma dada palavra. O problema do sentido da vida é saber se a vida tem finalidade e valor.
Uma atividade não tem sentido se não tiver finalidade. Se alguém caminha sem qualquer razão, essa atividade não tem sentido. Evidentemente, é raro que aconteça tal coisa. Geralmente, as pessoas caminham pelo prazer de caminhar, para ir ao cinema, para ir às compras, para visitar um amigo, para conhecer a cidade ou por outra razão qualquer. Mas têm em geral uma razão ou finalidade.
Podemos distinguir dois tipos de finalidades: as instrumentais e as últimas. Uma finalidade instrumental é apenas um meio para outra finalidade, como quando alguém caminha para ir ao cinema. Chamar “finalidade” ao que pode ser meramente instrumental parece um abuso de linguagem. Afinal, se a única razão pela qual caminho é para ir ao cinema, caminhar não é uma finalidade, de todo em todo, mas apenas um meio. Contudo, as coisas são mais complexas. Uma pessoa pode caminhar para ir ao cinema e ao mesmo tempo caminhar pelo gosto de caminhar — ou, mais sutil, mas muito comum, o gosto que a pessoa tem ao caminhar resulta de saber que caminhar é um meio para ir ao cinema.
Em qualquer caso, podemos distinguir as finalidades instrumentais, sejam ou não meramente instrumentais, das finalidades últimas. Uma finalidade última, ao contrário da instrumental, é uma finalidade cuja razão de ser se esgota em si mesma. Por exemplo, uma pessoa pode ir ao cinema exclusivamente porque gosta de cinema.
Ter uma ou várias finalidades é uma condição necessária para o sentido, mas não suficiente. O mito de Sísifo ilustra bem este aspecto. Condenado pelos deuses, Sísifo tem de empurrar uma monstruosa pedra até ao cimo de um monte. Lá chegado, a pedra escapa-lhe e rola outra vez pela encosta abaixo, o que o obriga a voltar a empurrá-la, repetindo esta ingrata tarefa para todo o sempre. A existência de Sísifo é geralmente entendida como absurda ou sem sentido. Contudo, a sua existência tem uma finalidade: carregar a monstruosa pedra até ao cimo do monte. Pode-se argumentar que a existência de Sísifo não tem sentido porque nunca consegue atingir a sua finalidade; e é verdade que se o sentido da vida depender exclusivamente de uma dada finalidade que não se consegue alcançar, então a vida não terá sentido. Mas o caso de Sísifo parece diferente, pois é defensável que se conseguisse alcançar a sua finalidade, a sua existência seria igualmente destituída de sentido. Isto porque a própria finalidade a que Sísifo foi condenado é destituída de valor. O valor é uma condição necessária para o sentido — mas não é suficiente.
Não é suficiente porque executar mecanicamente e sem entrega atividades que têm finalidade e valor não dá sentido a uma vida. Por exemplo, vacinar dezenas de crianças por dia contra doenças mortais é uma atividade com uma finalidade que tem valor. Contudo, desempenhar tal atividade mecanicamente e sem entrega anula a possibilidade de sentido porque quebra a conexão apropriada entre o agente e a finalidade e valor da atividade. O sentido emerge quando há uma entrega ativa a finalidades exequíveis com valor.
Pode-se defender que a exequibilidade das nossas finalidades não é uma condição necessária para o sentido. A forma mais plausível de o fazer é a seguinte: imagine-se alguém que dedica a vida a descobrir a cura para o cancro, mas morre sem o conseguir; mesmo que todos os outros aspectos da sua vida tenham sido destituídos de sentido, todas as atividades relacionadas com esta nobre finalidade são atividades com sentido. Esta ideia não é convincente, pois a ser verdadeira teríamos de dizer que a vida de alguém que não descobriu a cura do cancro apesar de o tentar e a vida de alguém que a descobriu têm o mesmo sentido. Por outro lado, é óbvio que uma vida dedicada a uma finalidade absolutamente inalcançável é absurda, por mais valor que tal finalidade possa ter: por exemplo, uma vida dedicada a tentar alcançar a omnisciência é absurda porque não é possível alcançar tal coisa. O que dá um ar de plausibilidade à ideia de que a exequibilidade das nossas finalidades não é necessária para o sentido são três pensamentos relacionados entre si. O primeiro é que uma atividade que tem por finalidade algo com valor tem mais valor do que uma atividade que tem por finalidade algo sem valor, ainda que nenhuma das atividades seja alcançada. Assim, ainda que quem procura descobrir a cura para o cancro não o consiga, a sua vida tem mais valor do que quem procura descobrir quantos grãos de areia há na Lua. O segundo pensamento é que é sempre melhor escolher finalidades com valor, ainda que não tenhamos garantias de as alcançar. Quem declara que não vale a pena darmo-nos ao incómodo de tentar descobrir a cura para o cancro porque não se pode ter a certeza de o conseguir labora no erro de confundir a falta de garantia no resultado com a garantia de que o resultado não é alcançável. O terceiro pensamento é que mesmo quando não se conseguem alcançar finalidades de valor, há sempre consequências de valor que resultam da própria tentativa: talvez a cura para todos os tipos de cancro não tenha sido alcançada, mas talvez se tenha conseguido chegar mais perto desse resultado, ou talvez se tenha descoberto outras curas importantes. Mas estes três pensamentos não implicam que uma vida dedicada a finalidades inalcançáveis (realmente inalcançáveis e não apenas difíceis de alcançar ou que efetivamente não se alcançaram por razões contingentes) tem sentido.
Disputar a ideia de que o valor seja uma condição necessária do sentido não nos leva muito longe, dado que uma vida dedicada a colecionar selos vermelhos e a contar os átomos da Lua é o exemplo típico de uma vida destituída de sentido. Pode-se defender que todo o valor é subjetivo e que desde que a pessoa dê valor a tais finalidades, a sua vida terá sentido. Mas isto é uma confusão, pois o que se está a pôr em causa não é a ideia de que uma vida dedicada a atividades sem valor não tem sentido, mas antes a ideia de que colecionar selos vermelhos não tem valor. Quando se tem uma perspectiva subjetivista do valor, seja o que for que alguém valoriza tem valor para ela e nada mais há a dizer. Esta perspectiva será discutida mais tarde. Para já, é suficiente notar que esta perspectiva aceita a ideia de que o valor é uma condição necessária do sentido; apenas acrescenta que o valor é seja o que for que é valorizado por uma pessoa.
Dado que parece haver imensas finalidades exequíveis com valor às quais nos podemos entregar, o problema do sentido da vida parece receber uma resposta optimista muito simples: se nos entregarmos ativamente a finalidades exequíveis com valor, a nossa vida terá sentido. Esta resposta está fundamentalmente correta, mas enfrenta várias dificuldades. Esclarecer e responder a essas dificuldades é o objetivo do resto deste capítulo.
Há uma tendência para pensar que descobrir o sentido da vida é descobrir uma finalidade única para toda a vida. Que há várias finalidades, últimas e instrumentais, que guiam as atividades da nossa vida, é evidente. Mas é falacioso inferir daí que há uma só finalidade. Do facto de todas as pessoas terem uma mãe não se pode inferir que há alguém que é a mãe de todas as pessoas. Assim, não se pode inferir a existência de uma finalidade única com base na existência de finalidades para as diversas atividades da vida. Mas daqui também não se segue que não há uma finalidade única. Provar que não se pode chegar a B partindo de A não prova que não se pode chegar a B. Se for possível reduzir todas as finalidades das várias atividades da vida a uma dada finalidade última, então pode-se dizer, com um certo abuso de linguagem, que essa é a finalidade única da vida. Assim, os hedonistas, por exemplo, defendem que a finalidade última de todas as atividades é o prazer — seja o prazer intelectual, emocional ou outro. Neste caso, pode-se dizer que a finalidade única é o prazer.
As atividades que desempenhamos ao longo da vida são encadeamentos complexos de finalidades últimas e instrumentais, muitas vezes misturadas de forma subtil. Assim, uma pessoa levanta-se cedo com alguma contrariedade, mas depois gosta de sentir o ar lavado da manhã enquanto se dirige para o seu emprego, talvez. Levantou-se e caminha para atingir uma finalidade instrumental: ir para o emprego. Vai para o emprego para atingir outra finalidade instrumental: ter dinheiro para ter uma vida confortável. Ter uma vida confortável é uma finalidade última, mas as outras finalidades poderão ser parcialmente últimas, no sentido em que a pessoa pode sentir-se muito realizada no seu emprego, e poderia até continuar empregada mesmo que lhe saísse a lotaria. Num certo sentido, podemos dizer que há uma finalidade na vida desta pessoa: podemos defender que a finalidade última de todas as suas atividades é o prazer, por exemplo, ou o bem-estar, ou a felicidade. Efetivamente, as diferentes escolas gregas de filosofia defendiam implicitamente diferentes perspectivas sobre o tipo de finalidade última e única que dá sentido à vida ao defenderem diferentes perspectivas sobre o que dá a felicidade: para Platão e Aristóteles a felicidade consiste em ser virtuoso; para os epicuristas, é a paz de espírito que resulta de vencermos os nossos medos irracionais; os cépticos defendiam que a felicidade só podia alcançar-se se suspendermos os nossos juízos sobre a realidade; os estoicos, quando aceitamos a realidade tal como é.
Contudo, a ideia hoje em dia mais popular é que um deus — ou deuses — nos trouxe à existência com uma finalidade, e que esse facto é o elemento fundamental para compreender o sentido da vida. Contudo, é uma ilusão pensar que basta tal coisa para dar sentido à vida. Em primeiro lugar, para que uma finalidade única possa dar sentido à vida, tem de ter uma conexão forte com as diferentes atividades dessa vida. Como nem todas as finalidades únicas podem ter tal tipo de conexão, segue-se que nem todas as finalidades únicas podem dar sentido às nossas vidas. Por exemplo, se a finalidade única de alguém for conduzir um exército numa batalha de importância cósmica com o vizinho das traseiras, só as suas atividades guerreiras e estratégicas de preparação para tal batalha fazem sentido. Se a maior parte da vida dessa pessoa for dedicada, como é natural pensar, a muitas outras atividades — ler poesia e conversar com os amigos, por exemplo — a maior parte da vida dessa pessoa não tem qualquer sentido.
Em segundo lugar, nenhuma finalidade que alguém me possa impor anula as finalidades que dou a mim mesmo. Ainda que os meus pais me tenham concebido com a finalidade de ter um médico em casa, e ainda que me obriguem ditatorialmente a ser médico, essa finalidade não se concretiza a menos que eu a aceite: pois se só contrariado for médico, não se pode dizer que ser médico seja uma finalidade da minha vida. Assim, para que uma finalidade única de alguém possa dar sentido à sua vida é necessário que essa pessoa reconheça essa finalidade e a faça sua.
Em terceiro lugar, ainda que uma finalidade única seja tal que oriente todas as atividades de uma vida, e ainda que tal finalidade seja ativamente aceite, essa vida pode ser totalmente destituída de sentido. Pois imagine-se que descobrimos que fomos criados por deuses para se divertirem à nossa custa, no seu programa televisivo predileto: Cosmic Big Brother. E imagine-se que aceitávamos com entusiasmo desempenhar o nosso papel. A nossa vida seria ativamente dedicada a uma finalidade única — distrair, com as nossas guerras e dramas, conquistas e descobertas, os deuses entediados — mas seria absurda porque essa finalidade é destituída de valor.
Finalmente, é defensável que qualquer finalidade única que nos tenha sido atribuída é degradante porque nos trata como objetos ou artefatos e não como pessoas:
É degradante que um homem seja encarado como algo que serve meramente um propósito. Se numa festa eu perguntar a um empregado de mesa “Qual é o seu propósito?”, estarei a insultá-lo. Poderia igualmente perguntar “Para que serve você?” Tais perguntas reduzem-no ao nível de uma engenhoca, um animal doméstico, ou talvez um escravo. Pois subentende-se que nós lhe atribuímos as tarefas, fins e objetivos que ele terá de procurar; que os seus desejos e aspirações e propósitos pouca ou nenhuma importância têm. Estamos a tratá-lo, para usar a expressão de Kant, unicamente como um meio para os nossos fins e não como um fim em si. (Kurt Baier, “The Meaning of Life”, p. 120)
Assim, em nada nos ajuda a ideia de uma finalidade única. A questão central é a mesma: encontrar uma finalidade — ou várias — com valor. A ilusão é pensar que se uma finalidade única for dada por um deus, então, por definição, tal finalidade terá valor. Compreende-se que é uma ilusão quando se pergunta se uma dada finalidade única tem valor porque foi escolhida por um deus, ou se foi escolhida por um deus porque tem valor. A primeira alternativa é inaceitável porque torna o valor arbitrário: a ser verdadeira, teria valor fosse o que fosse que um dado deus decidisse. Mas nenhum deus pode dar sentido à existência de Sísifo, por mais que determine que carregar pedras pesadas por nenhuma razão encosta acima tem valor. Resta-nos, pois, a segunda alternativa: Deus escolheu uma dada finalidade porque essa finalidade tem valor. Ora, isto significa que a nossa tarefa, exista ou não um deus, não se altera: em qualquer caso, temos de procurar uma finalidade — ou mais — com valor. Neste contexto, a palavra “deus” indica apenas um lugar vazio a ser preenchido mais tarde; indica apenas a esperança de que existam realmente uma ou mais finalidades com valor.
No auge da sua carreira, Tolstoi começou a sentir um vazio na sua vida. Apesar de se dedicar ativamente a várias finalidades com valor — escrever romances, criar uma família feliz e cultivar amizades com pessoas interessantes — não podia deixar de sentir que, de algum modo, tudo isso era vão:
Mais cedo ou mais tarde os que eu amava e eu próprio seríamos vítimas da doença e da morte (como já antes acontecera), e nada restaria senão podridão e vermes. Tudo aquilo de que me ocupava, seja lá o que for, seria mais cedo ou mais tarde esquecido, e eu próprio deixaria de existir. (Leão Tolstoi, A Minha Confissão, p. 12-13)
Como Tolstoi, muitas pessoas não conseguem evitar a sensação de que a sua vida é algo vazia — independentemente do bem-estar e riqueza que possam ter atingido. Algumas pessoas têm esta sensação no auge da sua carreira; noutras, ocorre quando morre um ente querido e dão consigo a perguntar-se que sentido terá tudo isto; noutras ainda, ocorre quando os seus negócios ou projetos falham estrepitosamente. Alguns adolescentes têm a mesmíssima sensação por motivos opostos: porque ainda não fizeram coisa alguma, porque estão indecisos e não sabem bem que tipo de vida querem ter.
Em nenhum destes casos as pessoas pensam que é indiferente ter uma vida confortável ou morrer de fome e sofrimento, amar e ser amado ou ser desprezado e odiado por todos. O que se pergunta é se tais atividades que nos fazem felizes dão sentido à nossa vida. O que está em causa torna-se mais claro se imaginarmos, como Richard Taylor, que os deuses não se limitaram a condenar Sísifo a empurrar repetidamente uma monstruosa pedra monte acima por toda a eternidade. Num gesto que poderia parecer clemente, os deuses teceram um encantamento e Sísifo sente a maior felicidade em empurrar a sua pedra. Sísifo está, pois, feliz. Mas será que por causa disso a sua existência faz sentido?
A questão é saber se a felicidade (ou, pelo menos, a satisfação e o prazer) é uma condição suficiente para dar sentido à vida. O argumento de Tolstoi é muito intuitivo e procura estabelecer uma resposta negativa — a felicidade não é suficiente para dar sentido à vida porque tudo acabará por perecer. Contudo, este argumento está errado — apesar de ser verdade que a felicidade, num certo sentido, não é uma condição suficiente para o sentido. Antes de analisarmos o argumento de Tolstoi é conveniente esclarecer que se pode ter duas concepções diferentes de felicidade. Numa concepção subjetivista, a felicidade é meramente a satisfação do agente, independentemente da realidade. Assim, uma pessoa pode ser feliz, neste sentido, ainda que esteja a viver uma completa ilusão — desde que essa ilusão seja agradável para ela. Numa concepção objetivista, uma pessoa pode pensar que é feliz, nomeadamente se estiver a viver uma ilusão muito agradável, mas estar enganada e ser de facto infeliz. É neste sentido objetivista que Aristóteles entendia a eudemonia. Se entendermos a felicidade no sentido objetivista, então a felicidade é uma condição suficiente para o sentido. Mas se a entendermos como a mera satisfação subjetiva, a felicidade não é uma condição suficiente para o sentido, ainda que possa ser necessária. Evidentemente, mesmo que se aceite a noção objetivista de felicidade, não se segue que alguém, ou o estado, tem o direito de impor a outras pessoas a verdadeira felicidade, do mesmo modo que do facto de ser realmente verdade que a Terra se move não dá ao estado ou a outra pessoa qualquer o direito de torturar e matar para convencer as pessoas de que a Terra se move. E, historicamente, são em geral os defensores de doutrinas que não resistem à discussão objetiva e racional que têm tendência para matar e torturar para impor as suas crenças — precisamente porque compensam com a força bruta a falta de argumentação sólida, baseada na verdade.
A formulação mais plausível do argumento de Tolstoi baseia-se na ideia de que se a vida não for eterna, não faz sentido. Mas se uma vida não tiver sentido, não o ganha só porque se prolonga indefinidamente: a existência de Sísifo não ganha sentido apesar de se prolongar para todo o sempre. E se uma vida tem sentido, não o perde só por ser finita: pensar isso resulta de uma confusão com o raciocínio prudencial.
Pode-se defender que o teste do tempo, por assim dizer, é uma forma apropriada de determinar se um dado valor é real ou ilusório. O que está em causa é a noção de que nem tudo o que no curto prazo dá prazer ou felicidade tem verdadeiramente valor, pois pode revelar-se causa de sofrimento e infelicidade no futuro. Assim, a aparente felicidade de hoje pode revelar toda a sua ilusão se amanhã provocar sofrimento: a entrega a uma vida boémia, por exemplo, pode trazer pobreza e solidão no futuro porque não se acautelou uma velhice confortável nem se consolidaram amizades genuínas.
O raciocínio prudencial é um bom teste do valor autêntico. Contudo, é um erro alargá-lo e declarar que toda a felicidade é ilusória e todo o sentido fantasia porque somos mortais. Pois há uma diferença fundamental nos dois casos. Num caso, o sofrimento de amanhã resulta da felicidade irrefletida de hoje; no outro, a morte e a cessação de toda a felicidade não resulta da felicidade de toda uma vida. Esta diferença é fundamental porque só a conexão entre a felicidade irrefletida de hoje e o sofrimento de amanhã permite afirmar que a felicidade irrefletida foi imprudente e responsável pela sua própria anulação. Quando não se dá essa conexão, tudo o que se pode dizer de uma vida com valor que chegou ao fim é que chegou ao fim; não se pode dizer que, porque chegou ao fim, anulou magicamente o valor alcançado.
Pode-se insistir que a morte é incompatível com o sentido da vida porque nos impede de alcançar os nossos objetivos: tal como Sísifo, nunca conseguimos completar a tarefa que temos em mãos. Ainda que consigamos alcançar várias finalidades instrumentais, a grande finalidade última — a vida eterna de felicidade — não pode ser alcançada se formos mortais. Este argumento é muito fraco porque pressupõe o que devia explicar: não explica por que razão só poderemos ter uma vida com sentido se a nossa finalidade última for uma vida eterna de felicidade. Pelo contrário, há muitas finalidades com valor que podemos alcançar e que não pressupõem uma vida eterna; que tais bens acabem por perecer também não lhes retira o valor que tiveram.
Acresce que é muito difícil conceber coerentemente uma vida eterna com sentido. As religiões que defendem esta perspectiva são parcas na explicação do que seria tal coisa. Pode-se pensar que no paraíso teremos uma existência eterna sem sofrimento e plena de felicidade. Mas isto são meras palavras sem grande significado: dado o que sabemos sobre nós mesmos, não se compreende como poderia tal existência ter algum sentido. Não poderíamos dedicar-nos durante sessenta anos à música, por exemplo, e depois outros tantos à ciência, e assim por diante, pois numa existência eterna teríamos de voltar às mesmas atividades, num ciclo infinito. Ora, se nos entregarmos à mesma atividade para todo o sempre, ainda que intermitentemente, o tédio é o resultado inevitável. O tédio aqui em causa não é uma mera reação psicológica à repetição das mesmas atividades para todo o sempre; sem dúvida que tal reação psicológica existe, mas o que interessa é que é intrinsecamente destituído de sentido repetir as mesmas atividades para todo o sempre, a menos que tais atividades tenham valor. Assim, o que há de crucial no sentido é o valor, e não a sua continuação. Mas mesmo que tais atividades tenham valor, a inevitável reação psicológica de tédio impede o sentido porque a entrega ativa a atividades de valor é uma condição necessária do sentido.
Poderá argumentar-se que na eternidade nos esquecemos do facto de nos termos já dedicado um número infinito de vezes a uma dada finalidade; mas isto é equivalente a ser mortal, pois é como defender que já vivemos um número infinito de existências de que não nos lembramos, e que a existência atual não será recordada por um “eu” do futuro distante. Viver um milhão de anos unicamente com memória dos últimos duzentos é equivalente a viver apenas duzentos anos. Mas tem a agravante de ser uma existência efetivamente absurda: como um Sísifo condenado para toda a eternidade a reconstruir o mesmo templo, destruído regularmente sem o seu conhecimento, e que Sísifo não recorda ter já reconstruído um número infinito de vezes.
Um argumento diferente é que a existência eterna é por natureza radicalmente diferente desta, pelo que não podemos aplicar as categorias que aplicamos a esta existência: pelos padrões da nossa existência atual é inconcebível a felicidade eterna, mas isso é apenas porque a nossa existência atual é muitíssimo limitada. No paraíso, não se trata de nos entregarmos a diversas finalidades, mas de nos dedicarmos apenas à pura contemplação e à felicidade extática. Este argumento é insatisfatório. Se sou incapaz de conceber a minha própria existência eterna, noutro plano das coisas, porque nesse plano tudo é completamente diferente, então quando me encontrar nesse plano não terei qualquer conexão com o que sou hoje e portanto é precisamente a mesma coisa do que ter cessado a minha existência anterior. Se a vida mortal não tem sentido por ser mortal, continuará sem sentido se for imortal mas nenhuma conexão existir entre o eu paradisíaco e extático e o eu atual. Se uma dada existência é destituída de sentido, mudar de “plano de existência” não pode dar-lhe sentido; e se uma dada existência tem sentido, não o perde só porque não se muda para outro “plano de existência”.
Assim, se a vida tem sentido, não o perde só porque somos mortais. E se não tem sentido, não o ganha se formos imortais. Evidentemente, uma vida poderá ser mais ou menos longa, o que permitirá realizar mais ou menos finalidades com valor, mas daqui não se segue que só uma vida imortal tem sentido. A morte, só por si, não retira o sentido à vida. Resta saber se a morte é um mal. Epicuro apresentou um argumento contra esta ideia:
A morte, o mais aterrorizador dos males, nada é para nós, dado que enquanto existimos a morte não está conosco; mas, quando a morte chega, nós não existimos. A morte não diz respeito portanto nem aos vivos nem aos mortos, pois para os primeiros nada é, e os segundos já nada são. (Epicuro, “Carta a Meneceu”, p. 125)
A morte não é um mal, segundo Epicuro, porque só existe quando nós já não existimos. A ideia é que o sofrimento associado a alguns processos da morte é sem dúvida um mal, mas a morte em si é indiferente. Pode-se acrescentar que, se acaso a morte for apenas uma passagem para uma existência melhor, nada há que recear; e que se for apenas o fim da existência, nada há que recear também. A morte pode parecer-nos um mal porque nos imaginamos mortos — vemos o nosso próprio funeral, digamos assim, na nossa imaginação. Mas isto é um erro porque estar morto não é como estar congelado num corpo, sem nos podermos mexer, nem é como pairar no nosso próprio funeral como pó levantado pelo vento: estar morto é não estar lá, e se não estamos lá, nada podemos sofrer.
O argumento de Epicuro não é convincente porque se baseia na ideia de que tudo o que conta é o que conta do nosso próprio ponto de vista. Se aceitássemos este argumento, teríamos de aceitar que, desde que nunca o saibamos, e desde que não existam consequências práticas, é irrelevante ser desprezado por quem pensamos que nos preza e por quem nós prezamos. Pelo contrário, a realidade dos sentimentos e pensamentos de quem prezamos é para nós importante, ainda que isso não tenha consequências práticas. Analogamente, não se pode argumentar que a morte não é um mal porque do nosso próprio ponto de vista já lá não estamos quando vier a morte; saber se a morte é um mal é saber se é realmente um mal, e não apenas saber se é um mal do nosso próprio ponto de vista. Assim, o argumento de Epicuro falha.
Há razões para pensar que a morte é um mal. Apesar de não ser um mal pela sua presença, como o sofrimento, é um mal pela privação que provoca: priva-nos de um bem maior — a vida. Todavia, a morte não anula o sentido que uma dada vida possa ter usufruído, ao contrário do que sugere o argumento de Tolstoi.
O argumento de Tolstoi sugere uma diferença importante no que respeita ao problema do sentido da vida: a diferença entre o valor ilusório e o verdadeiro valor. Esta diferença baseia-se na ideia de que tudo o que conta não é unicamente o que conta para nós, como o argumento de Epicuro parece pressupor. O argumento de Tolstoi sugere que para determinar se uma vida tem sentido não basta perguntar se essa vida é feliz de um ponto de vista exclusivamente subjetivo. É igualmente necessário saber se essa vida tem valor de um ponto de vista mais alargado. Tolstoi olhava para si próprio de um ponto de vista subjetivo e via-se feliz e realizado; mas olhava-se de um ponto de vista mais abrangente e perguntava-se se essa felicidade e realização teriam algum valor mais amplo.
Esta capacidade para nos olharmos de um ponto de vista mais abrangente — do ponto de vista do universo, como dizia Sidgwick, ou sub specie aeternitatis — é um resultado e uma exigência da própria racionalidade. Recusar olhar para nós mesmos de uma perspectiva mais alargada é empobrecedor e provinciano. Esta capacidade manifesta-se em várias áreas. A distinção entre a crença, ou aquilo que pensamos ser verdade, e o que é realmente verdade é uma condição de possibilidade de toda a investigação e estudo sérios: sem tal distinção a investigação torna-se arbitrária. Também o pensamento ético depende da distinção entre o ponto de vista subjetivo e o ponto de vista universal: os interesses de uma dada pessoa têm de ser contrastados com os interesses das outras pessoas, e cada qual tem direito apenas ao que é imparcialmente defensável.
Se o ponto de vista subjetivo fosse o único possível, qualquer vida teria obviamente sentido desde que fosse razoavelmente feliz. Por isso, quem se recusar a olhar para si mesmo de um ponto de vista não paroquial não encontra interesse no problema do sentido da vida. Pois nesse caso o problema do sentido da vida pouco mais é do que uma questão de raciocínio prudencial, reduzindo-se à questão de saber que tipo de vida ou que atividades mais provavelmente nos farão felizes. Este ponto de vista é inaceitável porque implica autoengano. Não podemos abdicar da nossa capacidade para olhar para nós próprios “por cima do nosso ombro” sem ao mesmo tempo abdicarmos da nossa racionalidade; mas não podemos abdicar realmente da nossa racionalidade — tudo o que podemos fazer é fingir que o fazemos, para aquietar talvez a sensação desconfortável de que, de um ponto de vista mais abrangente, a nossa vida é destituída de sentido.
Por detrás desta sensação desconfortável poderá estar uma incompreensão fundamental do problema do sentido da vida. Considere-se o seguinte argumento: a nossa vida não tem sentido porque à escala cósmica somos minúsculos — da estrela mais próxima, o nosso planeta não é visível, para não falar em nós próprios, e mesmo o nosso sol será apenas uma pequena estrela distante, não muito brilhante. Que este argumento é deficiente devia ser evidente, pois se a vida de alguém não tem sentido, não o ganha se essa pessoa crescer enormemente até custar a caber na galáxia.
Contudo, este argumento sugere que o problema do sentido da vida está relacionado com a questão da nossa importância; o tamanho é apenas uma forma desadequada de a conceber. Ora, no que respeita à importância, o conflito entre a perspectiva subjetiva e a perspectiva do universo é evidente: ao passo que do seu próprio ponto de vista a vida de alguém é de suma importância, do ponto de vista do universo a sua vida não é assim tão importante. Thomas Nagel defende que a vida carece de sentido, por mais que cultivemos atividades de valor, porque nunca poderemos ter do ponto de vista do universo a importância que temos do ponto de vista subjetivo:
Cada um de nós vive a sua própria vida — vive consigo vinte e quatro horas por dia. Que outra coisa poderíamos fazer? Viver a vida de outra pessoa? Contudo, os seres humanos têm uma capacidade especial para se distanciarem e se inspecionarem a si próprios, e para inspecionar as vidas com que se encontram comprometidos, com a surpresa distanciada que temos quando observamos uma formiga que luta para subir um monte de areia. Sem desenvolver a ilusão de que podemos libertar-nos da nossa posição muitíssimo específica e idiossincrática, podemos ver a nossa posição sub specie aeternitatis — e o que se vê faz-nos ficar sérios e é ao mesmo tempo burlesco. (Thomas Nagel, “The Absurd”, p. 15)
Este é um pessimismo substancial quanto ao sentido da vida. Não se trata apenas de afirmar que a nossa vida não tem sentido porque, por algum motivo, somos incapazes de cultivar os valores adequados que lhe dariam sentido. Trata-se de afirmar que a natureza das coisas é tal que é conceptualmente impossível que a nossa vida tenha sentido, porque nunca teremos do ponto de vista universal a importância que nos atribuímos do ponto de vista subjetivo.
Esta perspectiva resulta de uma confusão conceptual. Mas esta confusão tem raízes profundas na psicologia humana e é muito difícil de eliminar. Numa palavra, trata-se de uma confusão que resulta de egocentrismo. A confusão é particularmente clara em algumas perspectivas religiosas, sobretudo teístas, que atribuem aos seres humanos em geral e a cada um de nós em particular uma importância desmedida. A ideia é que o universo foi criado por um deus para que nós, seres humanos, existissem. Esta ideia é uma monstruosidade aritmética dada a dimensão do universo, pois é como pensar que alguém criou um sistema solar inteiro para uma pulga poder existir. Mas é precisamente esta monstruosidade aritmética que manifesta a confusão egocêntrica que importa esclarecer.
Do ponto de vista de uma dada pessoa, a sua dor de dentes é mais importante e urgente do que cem mil pessoas que morrem à fome num país distante. Emocionalmente, é assim que as coisas são. Mas não é assim que têm de ser. Também as crianças têm de aprender a superar o seu egocentrismo, que as faz achar óbvio que uma vontade, aqui e agora, de comer um chupa-chupa é mais importante do que salvar alguém de morrer afogado. Aprender a calibrar a importância que atribuímos às coisas de acordo com a importância que elas têm de um ponto de vista mais vasto é parte integrante do crescimento cognitivo e emocional. A forma mais simples de não atender a esta exigência é adoptar uma resposta religiosa ao problema do sentido da vida que garanta que cada um de nós tem uma importância cósmica. Certas formas mais infantis de viver conflitos espirituais resultam também de egocentrismo, fazendo as pessoas ter a sensação falsa de que os seus conflitos e dilemas espirituais têm uma importância cósmica — ao mesmo tempo que o sofrimento atroz mas alheio é negligenciável. O romantismo alemão e a ideia de uma alma genial e atormentada é outra manifestação do mesmo egocentrismo infantil.
O egocentrismo é uma incapacidade para nos vermos a nós mesmos como somos e para aceitar a importância que temos. Imagine-se alguém que levanta um processo em tribunal e ganha a causa, recebendo um pagamento pelos prejuízos de que foi vítima; imaginemos que a decisão do tribunal foi justa. O egocêntrico é sempre incapaz de aceitar a decisão como justa, porque nunca a vê de um ponto de vista universal: olha para a situação e tudo o que vê é o seu prejuízo. O egocêntrico não quer o que lhe cabe de um ponto de vista imparcial: quer o que lhe cabe do seu próprio ponto de vista — ou seja: quer o que quer.
Analogamente, o egocêntrico quer olhar para si de um ponto de vista universal e ver-se, desse ponto de vista, como se vê do ponto de vista subjetivo: como sumamente importante. Como, por outro lado, o egocentrismo é também uma incapacidade para ver a importância que os outros têm, gera-se a ilusão de que, de um ponto de vista universal, a nossa vida vale menos que nada. Na realidade, o egocêntrico é incapaz de olhar para si mesmo de um ponto de vista universal: tudo o que faz é olhar para si mesmo como olha para os outros; e como o egocêntrico olha para os outros como se fossem formigas, fica com a sensação de que, de um ponto de vista universal, a sua vida é tão destituída de valor e sentido quanto a vida de uma formiga. Mas a vida dos outros não tem menos valor só porque não é a nossa vida, e portanto a nossa vida não é destituída de valor do ponto de vista objetivo — apenas não tem o valor exacerbado que o egocêntrico lhe dá. Em igualdade de circunstâncias, o sofrimento ou morte de alguém, a sua felicidade ou bem-estar, é tão importante quanto a de qualquer outra pessoa.
O sentido da vida resulta da entrega ativa a finalidades com valor sub specie aeternitatis. Se os valores fossem meramente subjetivos ou intersubjetivos, também a vida não teria sentido sub specie aeternitatis — teria sentido apenas de um ponto de vista subjetivo ou intersubjetivo. Contudo, uma exigência fundamental do pensamento ético, reconhecida pelas principais teorias éticas clássicas e contemporâneas, é a universalizabilidade: o pensamento ético tem de avaliar as coisas do ponto de vista do universo. Quem defende que do ponto de vista do universo a vida não tem valor terá muita dificuldade em esclarecer em que sentido é a ética universalizável.
Não é verdade que ao olhar para nós mesmos de um ponto de vista universal todo o sentido se dilua, por mais que a nossa vida esteja ativamente conectada com valores objetivos. Porque, por definição, tais valores são valores de qualquer ponto de vista. Logo, se aceitamos que há valores objetivos, uma vida que os cultive ativamente faz sentido de um ponto de vista objetivo.
Uma versão diferente de pessimismo baseia-se na ideia de que não há valores objetivos. Apesar de ser um problema em aberto saber exatamente que tipos de valores são objetivos e que tipos de valores são subjetivos, não é verdade que todo o valor seja subjetivo. Imagine-se alguém que caminha longamente à chuva para ir ao cinema. Essa pessoa não caminha à chuva por gostar, mas apenas porque não tem outra forma de transporte; se pudesse evitar caminhar à chuva, evitá-lo-ia. Mas ela quer ir ao cinema porque está em exibição especial um clássico raro, recentemente recuperado. Dado o valor antecipado que a pessoa dá ao filme, o custo de caminhar longamente à chuva é compensado. Logo, a sua caminhada tem sentido: é um meio para uma finalidade com valor, e o custo do meio adoptado não ultrapassa o valor previsto. Contudo, ao chegar ao cinema, a pessoa descobre que afinal a exibição do filme foi cancelada porque as máquinas de projeção se avariaram. O que descobriu esta pessoa acerca do sentido da sua caminhada? Do ponto de vista subjetivista, não faz sentido dizer que ela descobriu que afinal a sua caminhada não teve sentido. Pois do ponto de vista subjetivo, ela não sabia, enquanto caminhava, que a sua caminhada não fazia sentido. Para podermos dizer que ela estava enganada quanto ao sentido da sua caminhada temos de admitir que o que faz sentido não é exclusivamente o que faz subjetivamente sentido. A realidade interfere nas nossas crenças sobre o que faz ou não sentido. O mesmo se pode dizer do valor.
O subjetivismo ingênuo quanto ao valor e ao sentido é claramente falso. Mas mesmo uma versão mais sofisticada, intersubjetiva, é dificilmente defensável. A ideia central do intersubjetivismo quanto ao valor é que se trata de uma construção social, como as regras de trânsito, por exemplo: meras convenções. Mas é absurdo afirmar que tanto faz aceitar como recusar que é bom torturar crianças por prazer, do mesmo modo que tanto faz conduzir pela esquerda ou pela direita. Nem tudo o que tem ou não valor é uma mera convenção intersubjetiva.
Uma das motivações do subjetivismo e intersubjetivismo quanto ao valor é o positivismo. Depois de se fazer uma descrição exaustiva dos factos, argumenta o positivista, não se encontraram “factos morais” ou “valores”; logo, não há tal coisa. Que este argumento é inaceitável vê-se imediatamente se o compararmos com o seguinte argumento análogo: depois de se fazer uma descrição exaustiva dos factos, quando alguém está pretensamente a pensar sobre chocolates, não se encontraram pensamentos sobre chocolate — tudo o que há são correntes eléctricas no seu cérebro; logo, não há tais pensamentos. O mesmo se poderia dizer, curiosamente, da causalidade e das leis da natureza, sem as quais as ciências da natureza, que o positivista considera o modelo do conhecimento, não poderiam existir. Depois de se fazer uma lista exaustiva dos factos, nunca se vê causas nem efeitos nem leis — tudo o que se vê são acontecimentos a seguir uns aos outros.
Assim, não há boas razões para aceitar o subjetivismo quanto ao sentido da vida. Uma vida com sentido não é apenas uma vida subjetivamente realizada; nem apenas uma vida valorizada pela comunidade. Uma vida com sentido é uma vida ativamente empenhada em valores objetivos. Mas estes valores são-nos familiares: são os valores estéticos, éticos e cognitivos. Uma forma de não compreender o problema do sentido da vida é pensar que tudo depende da existência de um valor especial — diferente de todos os valores estéticos, éticos e cognitivos que nos são familiares. As pessoas que sofrem de problemas emocionais e se interrogam que sentido faz a sua vida têm tendência para desprezar qualquer resposta razoável porque o que desejam é uma resposta a um problema pessoal: querem que a sua vida faça sentido sem que isso implique a entrega ativa a valores familiares. Daí que o divã do psicanalista, a New Age ou a religião constituam reações comuns ao problema, ao passo que a única reação razoável é a entrega ativa a valores éticos, estéticos ou cognitivos. Evidentemente, esta reação também não agrada a quem procura uma resposta para o seu egocentrismo: ninguém tem um valor cósmico acima de todos os outros seres dotados de inteligência e consciência. Mas daqui não se segue que ninguém tem valor algum, do ponto de vista do universo. A vida de cada um tem sentido, do ponto de vista do universo, na exata medida em que trouxer ativamente valor ao universo.
“Alguns sectores da sociologia da ciência, intoxicados pelo Novo Cinismo, defenderam ter mostrado que as teorias são aceites em função de forças sociais externas, tendo assim destruído a pretensão que as ciências têm de nos darem conhecimento do mundo — e ao mesmo tempo essa sociologia da ciência destruiu inadvertidamente a sua própria pretensão de nos dar conhecimento sobre o funcionamento da ciência.” — SUSAN HAACK
Há duas palavras que deviam ser banidas dos dicionários, pela confusão conceptual que provocam: “ciência” e “cultura”. A confusão tem raízes históricas que se tende a esquecer. Antes da revolução científica iniciada com Galileu não havia diferença entre as chamadas “humanidades” e as “ciências”. Em ambos os casos se tratava de resolver problemas e compreender melhor a natureza das coisas. A revolução científica introduz novas metodologias no estudo da astronomia, da física e do mundo natural em geral: uma maior atenção à observação sistemática, a tentativa de quantificar cuidadosamente e a ideia de experimentação controlada e cega, entre outras.
O problema nasce quando os universitários e investigadores partidários deste novo tipo de metodologias entraram na luta política pelo domínio das universidades, contra a velha guarda. O discurso empolgou-se, a retórica aqueceu e começaram a usar a palavra “ciência” como sinónimo de Conhecimento, Verdade, Seriedade Intelectual e outras ameaças deste jaez. Resultado: nasceu a “cultura”, uma histérica reação histórica à retórica dos cientistas. Estava lançada a confusão. Muitos cientistas pensam hoje que nas “humanidades” é a lei do vale tudo e que só na ciência há seriedade académica e pensamento crítico. E o trágico é que alguns professores de “humanidades” compraram esta triste visão das coisas, e aceitaram que nas “humanidades” é mesmo o reino do vale tudo — mas vingaram-se com a ideia notável de que também nas ciências é o reino do vale tudo. E assim nasceu o pósmodernismo, e a ideia de que tudo é relativo e uma mera “construção social” (e quem constrói o social?).
De forma muito abreviada, podemos caracterizar o debate que dá pelo desagradável nome de “guerra das ciências” da seguinte maneira: alguns autores defendem que não há uma realidade independente dos seres humanos, não existindo qualquer diferença entre, por exemplo, a guerra retratada nos filmes A Guerra das Estrelas, que é uma mera ficção, e as leis da gravidade ou a composição da atmosfera de Júpiter, que os cientistas pretendem ser coisas reais. Deste ponto de vista, as ciências como a física ou a biologia não descrevem uma realidade independente dos seres humanos: pelo contrário, criam essa realidade. Assim, o que a ciência diz serem verdades objetivas são, de facto, invenções inteiramente subjetivas, não respondendo a quaisquer critérios exceto os preconceitos dos cientistas (incluindo preconceitos racistas, sexistas, classistas, colonialistas, etc.).
Alguns cientistas sentem-se muito ofendidos com esta perspectiva, e respondem com a retórica do costume: que a ciência é perfeitamente objetiva, que a ciência é a Verdade, que as leis da gravidade são reais e não meras ficções, e convidam quem duvida disto a atirar-se da janela para testar a realidade da gravidade — é o caso de Richard Dawkins, por exemplo. Esta reação é análoga à do Dr. Johnson, que declarou que a filosofia imaterialista de Berkeley se refuta dando um chuto numa pedra. A compreensão filosófica do eminente lexicógrafo britânico não era evidentemente proporcional à sua competência noutras áreas. Pois o imaterialismo de Berkeley dá perfeitamente conta do carácter involuntário das sensações: tal como num sonho também damos pontapés em pedras sem que tais pedras existam exceto na nossa imaginação, Berkeley defendia que o mundo não tinha qualquer materialidade, apesar de as nossas sensações não serem por isso menos involuntárias ou menos sólidas. Analogamente, atirar-se da janela poderá ser uma boa ideia por outros motivos, mas não resulta para refutar o pós-modernismo. Pois a ideia pós-modernista é que não há qualquer diferença entre afirmar que se cai da janela por força da gravidade ou que se cai porque um deus nos puxa, ou um diabo, ou porque uma força oculta está em ação. Há certos debates que não podem ser enfrentados se nos recusarmos a estudar filosofia seriamente — ou se, fazendo-o, não tivermos capacidade para compreender ideias e argumentos complexos e subtis.
Este debate ingênuo recebe um tratamento aprofundado na filosofia, sendo Karl Popper e Thomas Kuhn os seus precursores e ainda hoje duas referências importantes. Segundo uma certa leitura de Karl Popper, a melhor ciência aproxima-se assimptoticamente da verdade das coisas; segundo Thomas Kuhn, o próprio conceito de verdade só faz sentido no interior de um “paradigma”. Por “paradigma”, Kuhn entende coisas subtilmente diferentes em passagens diferentes, mas em geral é um conjunto de ideias que condicionam o modo como outras ideias serão avaliadas. A noção de paradigma torna impossível afirmar, defende Kuhn, que a física de Newton é realmente melhor do que a de Aristóteles; são apenas diferentes, como diferentes filmes ou diferentes romances.
Este debate intelectual é importante e merece a nossa melhor atenção. Infelizmente, alguns cientistas têm dificuldade em sair do discurso irônico e cheio de retórica vácua quando se trata de o enfrentar, em parte porque têm tendência para ignorar a filosofia, considerando-a uma espécie de pré-história da ciência. Ironicamente, aceitam algumas ideias filosóficas desastrosas que não deveriam aceitar sem discussão. Assim, tornou-se quase moeda corrente falar-se de paradigmas científicos. Mas a ideia de Kuhn de que há realmente paradigmas é profundamente discutível.
O que provoca por vezes discussões azedas no que respeita à guerra das ciências é a acusação dirigida aos defensores do relativismo cognitivo de desonestidade intelectual — é esta a ideia central do livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais. Os relativistas cognitivos acusam por sua vez os cientistas de desonestidade intelectual — e o debate perde interesse, deslocando-se da universidade para a peixaria (ou para o parlamento, já agora). Curiosamente, o verdadeiro problema que precisa de ser discutido é o papel da crítica na vida intelectual e os processos de controlo de erros. É por isso que o prefácio de Jorge Buescu a O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias vale por mil discussões sobre a guerra das ciências. Porque neste prefácio o autor explica o que caracteriza a ciência: a crítica constante (o que implica a recusa da tradição e da autoridade como argumentos últimos) e o controlo sistemático de erros (o que implica blind refereeing nas revistas e conferências acadêmicas e, uma vez mais, abertura à crítica). Quando se vê as coisas deste modo, a diferença entre física e astrologia torna-se evidente: ao contrário do que acontece no primeiro caso, não há no segundo qualquer abertura à crítica, tudo depende da tradução e interpretação de textos “sagrados” que não podem ser colocados em causa, e não há a prática generalizada de tentar encontrar erros nos trabalhos dos colegas.
O respeito pela argumentação e pelas provas, em substituição da tradição e da autoridade, foi introduzido pelos gregos antigos no séc. V a.C. Nas fontes gregas vemos sistematicamente os autores a criticar-se mutuamente, distanciando-se do que consideram erros, explicando por que razão são erros, argumentando e apresentando provas. Nos textos de outras civilizações nunca encontramos tal coisa. É isto que marca a diferença entre a ciência e a bruxaria. Mas isto é igualmente o que marca a diferença entre qualquer prática académica séria (história ou química, filosofia ou física) e os usos ideológicos da academia ou as práticas pseudo-acadêmicas, como a astrologia, a bruxaria, a alquimia, etc.
O problema das ideias de Kuhn não é o seu conteúdo, que pode e deve ser submetido à discussão racional, mas o facto de, nos círculos relativistas ou pós-modernistas, tais ideias terem o estatuto de Verdade Revelada. Talvez Kuhn tenha razão, mas não se pode ter a ingenuidade de pensar que as suas ideias estão firmemente estabelecidas nem que não há poderosos argumentos contra elas. É por isso que as acusações de desonestidade intelectual fazem sentido: em alguns casos, os críticos da ciência ignoram os argumentos e provas contrários às suas ideias preferidas, e escondem-se na citação e referência dogmática aos autores com os quais concordam, repetindo-se expressões análogas a “Como dizia Kuhn…”. Acontece que Kuhn dizia e Popper negava e Haack nega os dois e não há maneira de fugir do trabalho acadêmico sério: a análise cuidadosa, paciente e tão conscienciosa quanto possível das razões a favor e contra tais ideias. Este é o espírito crítico que nasceu com a filosofia e se tornou a alma da academia moderna — mas que tarda a tornar-se prática universitária corrente nos meios acadêmicos mais débeis.
Imagine-se que alguém deseja escrever um livro para defender que a ciência não é objetiva — que é uma mera construção social. A primeira coisa a fazer é formular muito claramente a ideia central, distinguindo-a de ideias semelhantes mas com força teórica radicalmente diferente. Por exemplo, há um sentido trivial segundo o qual a ciência é obviamente uma construção social: no sentido em que são as pessoas que fazem a ciência; a ciência não desce dos céus como os Mandamentos Divinos. Mas este sentido da expressão “construção social” não precisa de fundamentação teórica: é óbvio. O problema é haver outro sentido — longe do óbvio — que, se não distinguirmos cuidadosamente deste, dará origem a falácias de ambiguidade. O outro sentido é este: os conteúdos da ciência, as afirmações científicas, não são verdadeiras ou falsas independentemente do que as pessoas pensam; são construções sociais radicais, como Sherlock Holmes, que existiu apenas na imaginação do seu criador e nos livros por ele escritos. Neste sentido, a gravidade é uma ficção como Sherlock Holmes.
Se não distinguirmos claramente os dois sentidos de “construção social”, acontece o seguinte: quando alguém argumenta contra o sentido forte da expressão, procurando mostrar que é incoerente conceber a ciência como uma construção social, os defensores da ideia começam a usar a expressão no sentido fraco e desinteressante. Isso dá-lhes a sensação de que conseguiram defender adequadamente a sua ideia. Mas quando se trata de retirar consequências das suas ideias, usam a versão forte. Esta forma de proceder, consciente ou não, é falaciosa. Daí que quem quiser defender a ideia de que a ciência é uma construção social tenha de começar por explicar cuidadosamente o que entende por “construção social”, distinguindo pelo menos os dois sentidos anteriores.
O segundo passo de quem quer defender tal ideia é apresentar argumentos a favor dessa ideia. Apresentar mil e um autores que defendem tal ideia não é um bom argumento, dado que existem outros mil e um autores igualmente importantes que defendem o contrário. Quando os especialistas discordam, os argumentos de autoridade não têm qualquer valor.
O terceiro passo é apresentar claramente e discutir os argumentos contrários. Se vamos estudar unicamente os autores com os quais já concordamos, e não nos damos ao trabalho de avaliar cuidadosamente os melhores argumentos e teorias contra as nossas próprias ideias, estamos a fazer um mau trabalho. Estamos pura e simplesmente a suprimir dados relevantes.
Uma estratégia falaciosa para defender que a ciência é uma construção social é assim a seguinte: começa-se por não dizer claramente o que queremos defender, e não distinguimos diferentes versões das nossas ideias centrais. Isto permite responder aos críticos sempre da mesma maneira: “eu não estava a defender isso”. De seguida, apresenta-se uma pretensa história do desenvolvimento da ciência, não como uma interpretação polémica da história da ciência, mas como um inventário de “factos” evidentes — o que é incoerente, dado que o objetivo final é mostrar que não há “factos” científicos. Apresentar esta pretensa “história” é uma estratégia falaciosa, pois em vez de ser claro para o leitor que se trata de uma forma particular e polémica de interpretar, talvez abusivamente, a história da ciência, o leitor mais desavisado entende que se trata apenas de um “levantamento” dos factos. Ao apresentar essa história, cita-se e faz-se referência a vários autores que concordam conosco. O leitor mais tímido agacha-se logo — como vai ele cometer a blasfêmia de discordar de grandes filósofos como Kuhn ou Feyerabend? Acrescentam-se rapidamente alguns resultados da própria ciência, sob a suposição não claramente explicada de que tais resultados vindicam a nossa ideia. E está o trabalho feito. Não é preciso ter uma sólida formação filosófica para ver que este modo de proceder é falacioso.
Usar resultados da mais avançada ciência de ponta para vindicar a perspectiva de que a ciência é como a bruxaria exibe uma dialética argumentativa surpreendente — pois se a ciência é uma mera construção, como pode a própria ciência provar o que quer que seja, incluindo que a ciência é uma construção, ou que está em crise? Isto é tão absurdo como provar que a astrologia é mera superstição traçando um “mapa astral” dos astrólogos. Mais irônico é o facto de se apelar sistematicamente à teoria da relatividade de Einstein e ao teorema de Gödel — irônico porque ambos os resultados são contrários à ideia de que é tudo relativo e de que é tudo uma construção.
À relatividade de Einstein pode-se chamar “teoria das invariâncias”, pois não se trata de dizer que “tudo é relativo” mas antes que algumas coisas não são relativas (como a velocidade da luz). A teoria de Einstein não é, por isso, amiga das doutrinas relativistas — pelo contrário, se for verdadeira, mostra que nenhum objeto pode, em absoluto, ultrapassar a velocidade da luz, e que a velocidade da luz é constante e não relativa à velocidade a que nos deslocamos. Como pode esta teoria científica ser usada sistematicamente para vindicar as ideias relativistas é algo que deixa qualquer pessoa perplexa.
Analogamente, o teorema da incompletude de Gödel de 1931 procura provar precisamente o contrário do que pretendem os partidários de que a ciência é uma mera construção social. O teorema da incompletude demonstra que a matemática não é uma mera construção que se limita a obedecer à sua “lógica interna”. Esta era a ideia dos formalistas, como Hilbert, a que Gödel se opunha. Hilbert defendia que a matemática era apenas um jogo simbólico, um jogo formal, sem qualquer conteúdo além desse jogo, sem qualquer verdade para além do jogo. Esta é a ideia, precisamente, dos críticos da ciência — se bem que estejam longe da sofisticação intelectual de Hilbert. Mas mesmo a versão mais sofisticada de Hilbert enfrenta uma dificuldade imensa: o teorema de Gödel, que os relativistas, estranhamente, consideram um aliado. O que Gödel mostrou foi que qualquer sistema formal que procure dar conta da matemática é necessariamente incompleto, isto é, haverá sempre verdades matemáticas exteriores a esse sistema. Gödel vindica assim a sua visão de que há realmente verdades matemáticas, ou seja, que a matemática não é um mero jogo formal de símbolos nem uma mera construção lógica. Assim, o teorema da incompletude é um rude golpe contra quem pensa que a ciência em geral e a matemática em particular são meras construções sociais, sem qualquer referencial exterior a elas mesmas.
A explicação mais plausível para o uso da teoria da relatividade e do teorema da incompletude por parte dos críticos da ciência é o desconhecimento. Estes autores deixaram-se levar por uma compreensão superficial e popular destas ideias científicas, e construíram sobre elas fantasias elaboradas, sem se darem ao incómodo de ver se estariam a compreender corretamente as coisas. Como a teoria da relatividade se chama “relatividade”, parece mesmo que vem a jeito para defender que é tudo relativo. E como o teorema da incompletude parece falar dos limites da lógica, parece que vem mesmo a jeito para falar dos limites da racionalidade. Mas nem sempre o que parece é, e estes são dois dos casos em que o que parece não é.
Curiosamente, é precisamente o facto de os autores anti-ciência e anti-racionalidade cometerem este tipo de erros que revela algo muito significativo: revela que se trata de uma comunidade alicerçada em práticas académicas iniciáticas e dogmáticas, cujos pares não se avaliam crítica e distanciadamente — pois, se o fizessem, eles próprios já teriam descoberto que as suas ideias não resistem à discussão racional aberta e frontal, sem dogmas nem autoridades. Numa comunidade académica séria, as ideias apresentadas são criticamente avaliadas pelos nossos pares, que procuram ativamente erros nos nossos raciocínios e provas. Nas comunidades pseudo-acadêmicas, não se procura refutar os nossos colegas, porque isso é considerado de mau gosto.
Os críticos da ciência têm tendência para puxar a filosofia para o lado das chamadas “humanidades”, afastando-a da ciência, porque pensam que nas “humanidades” não se podem aplicar os processos de prova e crítica racional comuns na ciência. Mas isto é falso e revela um positivismo insustentável. Infelizmente, este positivismo é moeda corrente em muitos meios, nomeadamente científicos — que neste aspecto, ironicamente, concordam com os críticos da ciência.
É evidente que não devemos acabar com as classificações. As classificações são úteis — temos de dar nomes às coisas. Também é evidente que a história e a física são disciplinas muito diferentes. O ponto é saber se essa diferença é de grau ou de espécie, e se é avisado pensar que metade do mundo é pateta porque anda a fazer “humanidades”, sem a seriedade e a cientificidade da ciência — o reverso da medalha são os relativistas cognitivos, que concordam com o positivismo, mas depois declaram que são as pessoas que andam a fazer ciência que são patetas e não dispõem dos métodos adequados para responder ao que queremos ver respondido.
A ciência, a história, a filosofia, as artes e a religião pertencem todas à mesma família: são diferentes atitudes de tentar dar sentido ao mundo e a nós próprios. Só uma atitude positivista insustentável pode fazer pensar que a ciência é algo que está à parte do que nos preocupa como seres humanos, algo que, fria e objetivamente, ignora o que é para nós importante. Pelo contrário, a ciência, como as artes e a religião e a filosofia, nasce e procede da mesma sede humana de dar resposta a problemas humanos. E não há problema mais humano do que o de tentar compreender o mundo que nos rodeia e o nosso lugar nele. A única diferença radical que separa estas atividades é a atitude crítica e o recurso à argumentação e à prova — a religião usa a tradição e a autoridade em vez destes instrumentos, ao contrário da ciência, da história e da filosofia.
A visão positivista das coisas tem duas frentes. Por um lado, pensa-se que é possível escapar aos preconceitos filosóficos ao fazer ciência “positiva”, pura e dura. Acontece que esta atitude é, em si, um preconceito filosófico. Relativamente aos preconceitos filosóficos, tudo o que podemos fazer é examiná-los criticamente — e fazer isso é fazer filosofia. Fingir que não temos preconceitos filosóficos é fútil.
Por outro lado, a visão positivista é refém da ideia de que a ciência se faz como se fosse uma máquina de salsichas, metendo dados empíricos de um lado, para do outro lado saírem as teorias científicas. Contudo, a ciência não funciona desse modo. O que caracteriza a ciência é o mesmo que caracteriza qualquer atividade académica séria: a atitude crítica perante todas as ideias e propostas, o deitar mão de tudo o que for possível para testar ideias, a exclusão da ideia de blasfêmia, a procura incansável da verdade para além do que nós gostaríamos que fosse a verdade.
O positivismo dá origem ao relativismo pós-modernista ao insistir na ciência “pura” como modelo da racionalidade. Quando se descobre que este modelo é uma fantasia, nasce o pós-modernismo — uma reação birrenta que declara toda a racionalidade uma fantasia. A verdade é que a racionalidade é algo bastante mais subtil do que o positivismo pensava e portanto a sua falência não implica de modo algum o lema pós-modernista de que tudo vale e vale quem tem mais força (política, social, económica ou militar).
No lugar da racionalidade positivista, o pós-modernismo elege as chamadas “políticas da identidade”. Deste ponto de vista, o que conta é o que conta para nós. Mas isto é falso, porque o que de mais importante conta para nós é o que conta, objetivamente. Viver numa ilusão dada pela minha identidade como membro de um povo, de uma seita, de uma nação, de um partido ou de uma religião é uma condição suficiente para uma vida destituída de sentido, provinciana e desumana. O que nos faz humanos não é a pertença à tribo; é a independência crítica e a autonomia racional dos seus membros que faz uma tribo ser humana e não uma manada.
É esta sede de conhecimento universal, não distorcido pelos nossos preconceitos e dogmas acriticamente aceites, pelas nossas tradições tantas vezes injustas e opressoras, o que de mais humano há nos seres humanos. A incapacidade para compreender esta característica tão humana dos seres humanos explica o tipo de dualismos que procura os incomensuráveis: para um lado vão as “humanidades”, onde “é tudo muito subjetivo”, e para outro as ciências, objetivas, frias e apartadas das nossas preocupações e ansiedades.
Deve-se resistir a este convite ao dualismo por dois motivos: por emanar de uma incompreensão radical da natureza humana e da natureza da ciência e da racionalidade, e por ter como consequência a paralisia do pensamento crítico, usando critérios diferentes para avaliar as afirmações do padre da aldeia e o professor de física. Começamos por usar critérios diferentes para a religião e as humanidades e as ciências e as artes e acabamos por não compreender qualquer uma destas atividades e — mais sinistro — ficamos prontos a aceitar todo o fanatismo, porque afinal tudo é incomensurável e relativo.
Pensemos, por exemplo, nas mulheres ou nos mais pobres. As mulheres devem ter os mesmos direitos e oportunidades do que os homens porque é irracional não o reconhecer — os argumentos a favor da discriminação das mulheres são falaciosos ou baseiam-se em falsidades. As terríveis situações que os mais pobres enfrentam, nomeadamente nos países do terceiro mundo, exigem medidas para lhes pôr cobro porque é irracional não o reconhecer — os argumentos a favor da ideia de que os pobres merecem o estado em que estão são falaciosos ou baseiam-se em falsidades. Esta é uma das razões pelas quais o pensamento pós-modernista e o relativismo cognitivo são profundamente desumanizantes. Ao recusar a universalidade da racionalidade e da verdade, o relativismo cognitivo sanciona a força bruta e irracional de quem discrimina, explora ou maltrata, seja em nome da tradição, do dinheiro, da ciência ou da religião. Se afinal ninguém tem razão porque a razão é uma ficção, se não há verdades objetivas porque tudo é uma construção social, não vale a pena mexer uma palha em prol de um mundo melhor para o maior número de pessoas — porque nem é irracional explorar e maltratar nem é realmente verdade que há pessoas exploradas e maltratadas. É por isso incoerente defender o relativismo cognitivo e ao mesmo tempo afetar poses de solidariedade para com os mais desprotegidos. A racionalidade e a verdade são as melhores armas a favor dos desprotegidos — e é por isso que ao longo da história humana os poderes ditatoriais sempre limitaram cuidadosamente estes dois bens preciosos, controlando o acesso a ambos.
O pensamento crítico e público, racional e honesto, são os piores inimigos dos totalitarismos e das injustiças. Contudo, pode-se argumentar que a ciência envolve um elitismo que cultiva desigualdades injustas, apresentando-se os cientistas como “donos da verdade” — uma verdade que contraria a visão que o senso comum e a tradição tem das coisas, pois subitamente uma barra de ferro é apenas composta por átomos e vazio, a Terra não está no centro do universo e no céu há nuvens, mas não o paraíso.
Na melhor das hipóteses, este argumento torna urgente um ensino de maior qualidade para um maior número de pessoas — mas não mostra que a ciência é o inimigo a abater. Na verdade, muitas sociedades tradicionais são mais elitistas do que as sociedades fortemente baseadas na ciência, como as sociedades ocidentais. Argumentar que quem domina a ciência tem mais poder e que por causa disso devemos eliminar a ciência é como argumentar que quem tem saneamento básico e direito ao emprego tem mais poder e que por causa disso devemos eliminar esses bens. Se a ciência dá poder às pessoas — e não há dúvida que dá — isso significa apenas que devemos procurar que cada vez mais pessoas possam ter acesso a um ensino de alta qualidade da ciência.
Por outro lado, não é verdade que só a ciência introduz um fator de “desigualdade epistémica” ao traçar uma diferença profunda entre o que o senso comum e a tradição nos dizem sobre a natureza das coisas e o que a ciência nos diz que a realidade de facto é. É verdade que qualquer pessoa sem instrução científica pensa que os objetos mais pesados caem mais depressa, ou que a Terra está parada, ao passo que a ciência declara que tais conhecimentos são ilusórios: o peso não determina a velocidade da queda dos objetos e a Terra não está parada. Mas a mesma descontinuidade que existe entre o senso comum e a ciência existe entre o senso comum “puro” e as tradições sapienciais ou religiosas. Faz parte da natureza humana compreender a distinção entre a aparência e a realidade, ou seja, entre as crenças verdadeiras e as falsas. Esta é uma prerrogativa da racionalidade, que não é acessível à generalidade dos outros animais, incluindo os mais inteligentes. A capacidade para rever crenças à luz de novos dados ou argumentos é parte integrante da racionalidade e portanto dos seres humanos. De modo que em todas as tradições e religiões se dá esta descontinuidade epistémica — a vida parece razoavelmente aleatória e plena de males e sofrimento inútil, mas muitas religiões declaram que há um ser superior que zela por nós; no céu só se vê nuvens, mas algumas religiões declaram que para lá das nuvens habitam deuses; na água nada se vê senão água, mas muitas religiões declaram que há água que contém espíritos malignos ou benignos, ou que há água benta. A ideia de que só a ciência introduz uma descontinuidade epistémica é falsa. A descontinuidade epistémica existe sempre desde que existam seres racionais razoavelmente sofisticados e que se ponham a pensar. Se não quisermos descontinuidades epistémicas, o melhor é desligar partes substanciais do cérebro, até ficarmos ao nível dos golfinhos, talvez.
A verdadeira diferença é que, por um lado, a descontinuidade epistémica introduzida pela ciência é muito mais difícil de recusar e, por outro, esta descontinuidade não é introduzida dogmaticamente mas em função do livre exercício da capacidade de pensamento autónomo e crítico. Os dois aspectos estão intimamente relacionados, e marcam uma diferença fundamental em relação às religiões e às tradições. Se uma pessoa pensa que os objetos mais pesados caem mais depressa, é possível demonstrar-lhe que isto é falso. Mas se alguém pensar que não há distinção entre a água benta e a água não benta, não há qualquer forma de a persuadir racionalmente de que está enganada: tudo o que se pode fazer é proibir dogmaticamente tais ideias, contrárias à tradição religiosa que se quer impor. A ciência convida-nos a pensar, e não aceita autoridades arbitrárias nem tradições acríticas; por isso, quando a ciência determina que os objetos mais pesados não caem mais depressa, ninguém anda de pistola na mão a prender e matar ou excomungar quem não acredita nesta ideia. A força da verdade é suficiente.
Assim, a ciência é intrinsecamente contrária às hierarquias, aos elitismos e ao dogmatismo, ao passo que as tradições iniciáticas, religiosas ou não, só sobrevivem em ambientes fechados, onde o pensamento crítico é desencorajado e substituído pela relação fascizante entre o mestre, que não pode ser colocado em causa, e o discípulo, que tem por único objetivo compreender — mas não avaliar criticamente — as ideias do mestre. De modo que quem está preocupado com as clivagens sociais, os elitismos e as injustiças, tem um aliado poderoso no pensamento racional e crítico próprio da ciência e da filosofia, e um obstáculo poderoso em todas as formas de tradicionalismos e autoritarismos epistémicos, que declaram um acesso privilegiado e privado à Verdade Absoluta.
“Os quatro satélites de Júpiter e os companheiros de Saturno só surgiram nos céus quando começámos a vê-los e não antes? Não existiam inúmeras outras estrelas fixas antes de o homem começar a vê-las? As nebulosas eram pequenas manchas brancas; fomos nós, com os nossos telescópios, que as tornamos aglomerados de muitas estrelas brilhantes e belas? Oh!, presunçosa e atrevida ignorância da humanidade!” — GALILEU GALILEI
Um dos mitos do nosso tempo é a ideia de que “é tudo muito subjetivo”. Nesta expressão popular pretende exprimir-se a ideia segundo a qual tudo depende da perspectiva de cada um. Infelizmente, as coisas tornam-se muito menos claras quando se procura saber o que quer dizer “subjetivo”, neste contexto. Uma primeira ideia é que por “subjetivo” se entende tudo o que depende da perspectiva de um sujeito cognitivo, de uma pessoa. Assim, ao passo que uma pessoa pode gostar da música de Wagner, outra pode detestá-la. O domínio da subjetividade seria, assim, irremediavelmente “perspectivo”.
Uma analogia que se costuma avançar para esclarecer esta ideia envolve, precisamente, o recurso à perspectiva espacial. Assim, uma pessoa que observa uma estrada do cimo de um monte diz que “a estrada desce” o monte; uma pessoa que observa a mesma estrada a partir do vale diz que “a estrada sobe” o monte. Curiosamente, já Heráclito dizia precisamente o mesmo no conhecido fragmento 60: “o caminho a subir e a descer são um e o mesmo”. E aparentemente os partidários do perspectivismo não entenderam a mensagem de Heráclito: sob a diversidade e até a aparente oposição das coisas, esconde-se uma unidade fundamental — a que Heráclito chamava o Logos.
A analogia espacial põe em evidência a confusão básica que envolve o subjetivismo e permite começar a compreender a dificuldade que esta ideia enfrenta. A confusão é pensar que só porque é possível ver a mesma coisa de diferentes perspectivas isso assinala uma falha de objetividade. Que isto é uma confusão compreende-se melhor se percebermos que alguém que do cimo do monte dissesse que “a estrada sobe” estaria objetivamente errado. Não há lugar para subjetivismos ou perspectivas: na situação em que essa pessoa está, a estrada tem um ângulo descendente e não ascendente. A confusão consiste em não olhar para a totalidade da situação, confrontando apenas as afirmações aparentemente opostas das duas pessoas. Mas as suas afirmações não são opostas; só parecem opostas se não olharmos para a situação de um ponto de vista mais alargado. O que faz ambas as afirmações opostas serem verdadeiras é o mesmo ângulo da mesma estrada.
O mesmo acontece com as frases “Hoje é sexta-feira” e “Hoje não é sexta-feira”. É uma confusão pensar que estas frases são necessariamente contraditórias. Só parecem necessariamente contraditórias se olharmos apenas para as frases e não para as proposições ou ideias que as frases exprimem. Por exemplo, alguém que profira a primeira frase a uma sexta-feira e no dia seguinte profira a segunda não estará a contradizer-se. Pois ambas as proposições expressas serão verdadeiras. Isto acontece porque a palavra “hoje” é um indexical; e, por isso, é o contexto de uso que ora permite exprimir uma proposição ora outra, consoante o dia em que a frase for proferida. Quando olhamos para a totalidade da situação e compreendemos que proposição está realmente a ser expressa, desaparece a ideia de que as duas frases são necessariamente contraditórias.
O subjetivista poderá argumentar que é precisamente a necessidade de incluir o contexto ou de olhar para a totalidade da situação que evidencia a subjetividade das perspectivas. Mas este argumento não nos leva muito longe, pois trata-se de um sentido de “subjetividade” perfeitamente trivial e indisputável. Claro que se partirmos as coisas aos bocados, elas são subjetivas no sentido em que tudo depende de como as completamos posteriormente. Assim, se eu tirar os travões do meu automóvel, fico com um automóvel cuja travagem é “subjetiva” — mas apenas porque tudo depende dos travões que lhe colocar depois: se forem bons, o automóvel passa a travar bem, objetivamente bem, se forem maus, o automóvel passa a travar mal, objetivamente mal. Analogamente, se eu partir a frase “A neve é branca” e disser apenas “A neve é”, tudo dependerá da palavra que lhe acrescentar; se lhe acrescentar “branca”, a frase fica verdadeira, objetivamente verdadeira, e se lhe acrescentar “preta”, a frase fica falsa, objetivamente falsa.
O subjetivismo não ganha, pois, em fazer apelo à metáfora espacial. Tudo o que esta metáfora mostra é que se olharmos para as coisas de forma suficientemente completa, a aparente contradição e subjetividade desaparece. Claro que Coimbra fica a norte se estivermos em Lisboa e a sul se estivermos no Porto, mas isto não é subjetividade alguma — é apenas uma consequência perfeitamente objetiva do facto de Coimbra estar entre Lisboa e Porto e do Porto estar a norte de Lisboa.
Esta forma “perspectívica” de compreender a subjetividade é, pois, deficiente: enquanto não se desfaz a confusão, parece um subjetivismo profundo; mas, mal se pensa um pouco, ficamos com um subjetivismo banal e sem consequências sérias, pois é compatível com a objetividade. Na verdade, este subjetivismo banal só pode existir contra o pano de fundo da objetividade, pois é o que “sobra” de uma situação objetiva, digamos assim, quando não a vemos na sua totalidade.
Uma versão mais forte de subjetivismo, que não usa a desastrosa metáfora espacial da perspectiva, sublinha a ideia de que há afirmações cujo valor de verdade não depende do modo como as coisas são independentemente dos seres humanos, mas antes do modo como diferentes seres humanos reagem às coisas. Assim, uma pessoa pode gostar de salada de alface e outra detestar a mesma coisa. E nada mais há a dizer, porque estamos no domínio do puramente subjetivo. Analogamente, as afirmações morais ou acerca da natureza última das coisas seriam como gostar ou detestar salada: tudo dependeria da pessoa em causa.
Esta forma mais sofisticada de entender o subjetivismo enfrenta dois problemas. O primeiro é que, uma vez mais, não parece estar a considerar a situação na sua totalidade. O modo como os seres humanos reagem às coisas não é arbitrária e é susceptível de uma descrição perfeitamente objetiva. Alguém vê a neve branca quando determinadas frequências de luz atingem a sua retina e provocam uma determinada resposta neurológica. Se duas pessoas olham para o mesmo objeto e veem cores diferentes, há uma explicação perfeitamente objetiva para isso — talvez uma delas tenha uma estrutura neurológica que a faz reagir de forma diferente a determinadas frequências de onda.
Isto conduz-nos ao segundo problema: não é possível compreender a subjetividade sem o pano de fundo da objetividade. A subjetividade é apenas o que acontece quando diferentes agentes cognitivos com diferenças objetivas no processamento cognitivo reagem de formas apropriadamente diferentes aos mesmos estímulos. Mas este é um facto tão objetivo acerca de agentes cognitivos como dizer-se que dois elementos químicos reagem de maneira diferente na presença de um terceiro — o oxigénio, por exemplo. A diferença de reação não torna o oxigênio subjetivo, nem são subjetivos os elementos químicos consoante reagem à presença de oxigênio de uma ou de outra maneira.
O subjetivismo parece por vezes estar enredado num certo cartesianismo, que faz do aparato cognitivo humano uma coisa do outro mundo. Seria essa diferença radical entre o aparato cognitivo dos seres humanos e o mundo que explicaria a subjetividade espiritual do processamento humano da informação e a objetividade carnal do mundo exterior. Mas esta é uma oposição dificilmente sustentável. Os seres humanos são animais complexos que evoluíram num dado planeta, e as suas capacidades cognitivas são fruto dessa evolução, e tão objetivas e materiais quanto uma árvore.
A versão mais plausível do que se poderá ter em mente com a ideia de subjetividade talvez seja a seguinte: Retomando o caso da salada, não se trata de negar que há processos perfeitamente objetivos que ocorrem igualmente quando alguém gosta de salada e quando alguém não gosta de salada. Trata-se, antes, de sublinhar que gostar ou não de salada é perfeitamente aleatório — nenhuma das duas opiniões é melhor do que a outra. Umas pessoas gostam de salada, outras não gostam de salada, e é tudo. Este seria o sentido mais forte e não trivial de subjetividade que estaria em jogo no caso dos juízos morais, por exemplo, ou até nos juízos relativos à natureza última do mundo, ao sentido da vida, etc. Este subjetivismo sofisticado poderá aceitar que há certos domínios que permitem alguma objetividade, mas declara que noutros domínios as coisas são subjetivas no sentido acabado de apresentar.
A ideia subjacente desta versão de subjetividade é que as preferências das pessoas são aleatórias, não respondendo a quaisquer razões. Assim, ter uma preferência por Wagner ou pela Tonicha é perfeitamente aleatório, não existindo explicação alguma para qualquer das duas preferências. Isto é implausível, dado que em geral as pessoas gostam de uma coisa ou de outra por várias razões: uma pessoa pode gostar da Tonicha porque lhe faz lembrar outros tempos, outra pode gostar de Wagner porque a sua música invoca emoções épicas e trágicas. As preferências das pessoas não são aleatórias. Para cada preferência há fatores que a explicam: se uma pessoa nunca teve oportunidade de ouvir música clássica com atenção e conhecimento de causa, por exemplo, é pouco provável que goste de música clássica; se tudo o que uma pessoa procura na música é entretenimento superficial, não vai gostar de Wagner.
A ideia de que as preferências das pessoas são subjetivas no sentido apresentado é implausível porque não é verdade que não exista explicação objetiva para as variações de preferências pessoais. Se no caso da salada não nos damos ao trabalho de tentar saber por que razão os gostos das pessoas diferem, é porque é tão sem importância que a explicação para qualquer dos casos não tem interesse. Mas se alguém declarar que prefere a Tonicha a Beethoven já procuramos uma explicação para o caso — e ficaríamos surpreendidos se não descobríssemos que essa pessoa não teve pura e simplesmente oportunidade para compreender a música de Beethoven. A aleatoriedade das preferências torna-se ainda mais implausível quando consideramos assuntos mais graves do que a gastronomia ou a música. Se as preferências das pessoas são aleatórias e igualmente aceitáveis, então a preferência por torturar seres humanos por prazer e a preferência por aliviar o sofrimento dos que estão a morrer à fome são ambas igualmente aceitáveis. Mas isto é falso. Quem gosta de torturar pessoas é incapaz de justificar a sua preferência com o mesmo grau de consistência, solidez, plausibilidade e articulação do que a pessoa que procura aliviar o sofrimento alheio. Claro que quem gosta de torturar pessoas tem tendência para dizer que “é tudo muito subjetivo” — mas isso é apenas uma forma de disfarçar a incapacidade para defender articuladamente e com o mínimo de plausibilidade a preferência em causa.
Assim, mesmo que aceitemos que há alguma aleatoriedade nas preferências das pessoas, essa aleatoriedade não é global. Ainda que seja aceitável no caso dos gostos gastronómicos, é menos plausível nas artes ou na ética. É menos plausível porque é falsa a ideia de que é impossível explicar por que razão a música de Wagner é melhor do que a música da Tonicha, ou por que razão aliviar o sofrimento alheio é melhor do que torturar pessoas indiscriminadamente. Claro que os seres humanos erram e podem ter preferências irracionais — basta pensar em quantas pessoas hipocondríacas fumam tranquilamente vários cigarros por dia, apesar de acreditarem que o tabaco é cancerígeno. Mas o domínio das razões a favor ou contra uma preferência é independente dos erros humanos e é algo que procuramos descobrir refletindo tão cuidadosamente quanto possível. É evidente que as escolhas das pessoas não são sempre as mais razoáveis; mas só podemos afirmar isto se abandonarmos a ideia de que todas as escolhas são igualmente boas porque são todas subjetivas.
Quem defende a teoria moral de Hume — que recusa à razão um papel de destaque, declarando que a razão é e deve ser escrava das paixões — tem em mente outra concepção de subjetividade. Neste caso, trata-se de uma das falácias mais recorrentes na história da filosofia, e que consiste em começar por restringir severamente o domínio da razão, para depois declarar que largos domínios do que pensávamos serem perfeitamente susceptíveis de serem guiados pela razão são-lhe na verdade totalmente exteriores. O problema é saber o que se entende agora por “razão”. Hume declarou que, do ponto de vista estritamente racional, nada há de errado em preferir a morte de um milhão de estranhos num continente distante ao incómodo de mexer o dedo mindinho para o evitar. O problema desta ideia é que o que Hume quer dizer com “razão” é de tal forma limitado que pouco mais é do que o raciocínio geométrico e lógico. Mas deste ponto de vista é evidente que há imensas coisas — e não apenas a moral — que escapam à razão. A própria filosofia de Hume, para começar, escapa à razão, neste sentido restrito.
Contudo, será que nada há entre o raciocínio geométrico e lógico e a completa aleatoriedade exterior à razão? Quando se coloca as coisas deste ponto de vista parece evidente que há imensas ideias, preferências, motivações, etc., que podem umas ser mais razoáveis do que outras, umas mais solidamente defensáveis do que outras, umas mais sensatas do que outras. E quando nos apercebemos disto compreendemos que apesar de não ser irracional — no sentido de violar qualquer regra da geometria ou da lógica — preferir não nos incomodarmos a mexer o dedo mindinho para salvar milhares de desconhecidos de uma morte terrível, essa preferência é perfeitamente inaceitável à luz de quaisquer considerações que possamos tecer de forma imparcial e sem sofismas. O que significa, afinal, que do facto de algo não pertencer estritamente ao domínio da geometria ou da lógica não se segue que pertence ao domínio da aleatoriedade a-racional. A racionalidade é muito mais lata do que Hume pensava.
Como é evidente, se for tudo muito subjetivo, a afirmação de que tudo é muito subjetivo é talvez também muito subjetiva, e se for muito subjetiva, pode perfeitamente ser falsa para muitas pessoas; e quem aceita que é verdadeira não pode dizer que essas pessoas não têm razão. A afirmação é, pois, claramente auto-refutante. Mas, além deste problema elementar, é a própria noção de subjetividade que está envolta em confusão, como vimos. Não parece possível encontrar qualquer noção de subjetividade que não tenha como pano de fundo a objetividade — o que exclui a possibilidade do subjetivismo global. Por outro lado, a ideia de que as preferências das pessoas são todas igualmente defensáveis e todas igualmente razoáveis é pura e simplesmente falsa; umas preferências são melhores, outras são piores. O que não temos é um algoritmo que nos permita decidir as coisas, nem podemos reduzir a nossa avaliação racional a meia dúzia de preceitos geométricos ou lógicos. Mas não há qualquer razão para pensar que essa é uma boa concepção da racionalidade, e há boas razões para pensar que essa é uma concepção falsa — e empobrecedora — da racionalidade.
A ideia de que é tudo muito subjetivo está associada ao relativismo pós-modernista e esta ideia, por sua vez, emana de um antropocentrismo que teima em abandonar o pensamento humano. Alguns cristãos fizeram da ideia de que a Terra estava no centro do universo um cavalo de batalha irracional, desumano, tirânico e a todos os títulos vergonhoso para o próprio gênero humano — ou pelo menos para aquela parte dele que procura prosseguir a tradição socrática de pensar claramente sobre as coisas. A ideia de que a Terra estava no centro do universo era aparentemente reconfortante para alguns cristãos, que cultivaram a ideia a todos os títulos extraordinária de que o universo tinha sido inteiramente criado para nós — ou, pelo menos, para eles.
Quando os indícios contra o geocentrismo começaram a acumular-se, tornou-se insustentável continuar a pensar daquela forma. Esta revolução custou vidas humanas, graças à impressionante intolerância e desumanidade de quem se dizia cristão. Mais tarde, começámos a habituar-nos à ideia. Mas ainda éramos (nós, europeus brancos do sexo masculino) muito importantes; a Terra não estava no centro do universo, mas estava o nosso pensamento, com os seus valores. Na época vitoriana, porém, a revelação de que existiam populações e continentes inteiros com religiões diferentes, diferentes códigos de conduta e — imagine-se! — práticas sexuais diferentes, foi uma novidade arrasadora. Os valores pretensamente universais e as condutas sexuais pretensamente prescritas por Deus ficaram abaladas. Afinal, a maior parte do mundo desconhecia pura e simplesmente a existência do Deus cristão, que tinha sido estranhamente parco na sua revelação.
Entretanto, Darwin faz ruir a ideia mais querida de todas: a de que éramos ainda muito especiais porque descendíamos de Adão. Afinal, dizia agora Darwin, somos o produto da evolução natural. Pouco depois, a antropologia científica começa a conseguir olhar para os outros povos não como meros primitivos, mas como povos com uma cultura, com convicções como as nossas e que partilham conosco as mesmas origens. Perde-se assim não apenas a centralidade dos europeus brancos, mas também a centralidade dos próprios seres humanos na criação. Os nossos valores deixam de poder ser acriticamente aceites, pois há outros povos com outros valores. O nosso valor como espécie fica em causa, porque somos apenas o produto da evolução natural. Muitas pessoas não estavam preparadas para isto. Eram ainda demasiado antropocêntricas para conseguirem encarar a realidade. E assim nasce uma das motivações centrais do relativismo pós-modernista, do subjetivismo, do perspectivismo e do neopragmatismo atual — a que Susan Haack chama o Novo Cinismo, pois vê tudo em termos de manipulação e jogos de poder. Se afirmarmos que tudo é relativo, que a verdade é o que nós pensamos e que a realidade se molda ao nosso pensamento, conseguimos manter a nossa centralidade. “Será que existiram dinossauros?” Resposta: isso é uma construção — social, linguística, científica. “Será verdade que o Holocausto existiu?” Resposta: mas verdade para quem? Depende da perspectiva.
E assim uma das distinções mais importantes da humanidade, explicitamente introduzida por Platão, a distinção entre o que pensamos que sabemos e o que sabemos realmente, tal como a noção de que o conhecimento é factivo (ou seja, implica a verdade), desaparece irresponsavelmente — para dar lugar à completa confusão, em que se afirma que as verdades mudam ao longo do tempo, quando o que realmente acontece é que o que nós pensamos que é verdade muda ao longo do tempo. Afinal, é muito mais fácil pensar que nenhuma das nossas ideias pode realmente estar errada — porque tudo é relativo — do que pensar que algumas delas estão erradas, outras não, e que é preciso um trabalho paciente, rigoroso e honesto para distinguir umas das outras. Deste modo, somos outra vez donos do universo inteiro. Não somos apenas uns animais que sabem pensar e que procuram descobrir um universo que já existia muito antes de nós e que vai continuar a existir muito depois de nós; somos o próprio Criador, pois as nossas crenças e convicções criam a própria realidade. Quantos electrões existem num átomo de hidrogênio? Depende da teoria; e as teorias criam a realidade.
Para este deplorável estado de coisas contribuiu, infelizmente, a filosofia, mesmo se nos restringirmos aos seus sectores mais sólidos. A filosofia das ciências e a epistemologia, ensimesmada com os avanços da lógica do séc. XIX e com as ideias erradas de Hume acerca da indução (ou, pelo menos, com uma certa maneira de compreender Hume), procura descobrir o método científico. No sentido forte do termo, “método” quer dizer “algoritmo” — uma espécie de máquina de salsichas, em que de um lado se mete a carne e do outro saem as salsichas. Os filósofos desesperaram: nunca descobriram um algoritmo que explicasse o sucesso da ciência. Nunca descobriram uma maneira de meter na máquina observações do mundo de tal modo que do outro lado saíssem teorias científicas inexpugnáveis.
Surgem então os relativismos em filosofia da ciência: Kuhn e Feyerabend são os mais famosos. A estratégia é a mesma de todos os subjetivismos e de todos os relativismos: dar uma vez mais ao ser humano um papel central, criador, quanto à natureza última das coisas. E diz Kuhn: a ciência de Aristóteles não estava realmente errada, afinal. Só está errada para nós. Assim, a Terra ora gira em torno do Sol ora é o centro do universo, consoante as nossas teorias — consoante a decisão dos Criadores (nós, claro). Por outro lado, evita-se também o rude golpe que é compreender que a nossa capacidade para descobrir verdades é limitada e que a probabilidade de engano, de auto-engano e de puro erro tolo é muito elevada. Se afinal tudo é uma construção, não nos podemos enganar. A teoria de Ptolomeu é “tão verdadeira” quanto a de Einstein e nenhum deles está enganado. Isto, claro, isenta-nos de procurar o rigor, a verdade e o controle de erros e dá-nos o toque de Midas: seja o que for que acreditemos, isso é verdade, porque “verdade” quer dizer “verdade para mim” (ou “para a nossa comunidade” ou “para o nosso tempo” ou “para o nosso sexo” ou “para o meu partido político”).
Estas ideias são falsas e incongruentes. Mas desempenham bem o papel de continuar a manter o antropocentrismo humano, pois é uma maneira de insistir que o nosso pensamento determina a maneira como o mundo é, invertendo completamente as coisas. E dá-nos carta branca para fazer da filosofia e do pensamento um mero jogo de palavras, fazendo-se passar subterraneamente as ideias que às claras jamais seriam aceites por um número significativo de pessoas. Afinal, como é óbvio, os partidários destas ideias relativistas e pós-modernistas até querem convencer-nos de certas coisas — o que é surpreendente, depois de nos terem dado carta branca para podermos pensar o que quisermos sem errar.
Se tudo depende das nossas teorias e se tudo são apenas construções teóricas, como apareceu o universo e como aparecemos nós e quando viveram os dinossauros? Deste ponto de vista, o universo foi criado depois de termos formulado os primeiros mitos sobre a criação do universo. E o Big Bang só aconteceu depois de os astrofísicos terem começado a falar dele nos anos cinquenta do séc. XX. Mas como pode ser tal coisa? Para podermos ter criado mitos sobre a origem do universo, este já tinha de existir. O mesmo acontece com o Big Bang. E os dinossauros, afinal, começaram a existir no séc. XIX, quando se começou a compreender os indícios da sua passagem pela Terra? Mas como pode isso ser? E — mais aterrador e de consequências sinistras — o Holocausto é apenas uma construção? Uma maneira de construir a realidade? Foram ou não assassinados oito milhões de judeus pelos nazis? Isso depende do modo como olhamos para as coisas? Estas ideias são incoerentes, e ética e politicamente graves. Mas desempenham bem o papel de reconfortar os seres humanos que se sentem perdidos num universo cuja imensidão lhes escapa e os faz sentirem-se pequeninos — e isenta-os da procura paciente, humilde e rigorosa da verdade das coisas.
Só na nossa galáxia há o mesmo número de estrelas (sem contar, pois, com os planetas que as orbitam) que o número de segundos que existem em três mil anos. E isso é só a nossa galáxia. Conseguimos avistar pelos telescópicos cem biliões de galáxias. Isto é assustador. Nem conseguimos imaginar estes números. Mas se dissermos que as galáxias são meramente uma construção teórica e que no tempo de Aristóteles não existiam porque ele nada sabia sobre elas, então ficamos muito poderosos — e isso parece reconfortante para quem não é muito exigente intelectual, emocional e espiritualmente. Mas que representa um défice da compreensão das coisas e de nós mesmos é a conclusão que parece razoável aceitar se nos detivermos a pensar cuidadosamente.
“Na propaganda nazi defendia-se que a verdade científica não poderia ser estabelecida através de métodos “judaicos” como a investigação empírica ou a submissão de hipóteses a testes experimentais; as ciências da natureza tinham de ser “espirituais”, enraizadas no espírito natural do Volk. Os judeus, defendia-se, abordavam o mundo natural por meio da razão, mas os verdadeiros alemães alcançavam uma compreensão mais profunda por meio do instinto criativo e do amor pela natureza.” — AVISHAI MARGALIT E IAN BURUMA
Pode-se caracterizar a filosofia como uma forma de pensamento crítico aplicado a um dado conjunto de problemas filosóficos. Mas isto enfrenta a seguinte objecção: Esta caracterização está errada porque não contempla o zen e outras formas de abordagens não críticas da filosofia. A forma crítica e argumentativa de fazer filosofia aplica-se unicamente à filosofia mais comum, declara o argumento, e até outras tradições da filosofia ocidental serão excluídas com esta caracterização — a filosofia de Kierkegaard, por exemplo, ou de Heidegger (ou até de Wittgenstein). O objetivo deste capítulo é responder a esta objecção.
O primeiro aspecto a ter em conta é que a filosofia não é hoje apenas o tipo de filosofia de língua inglesa habitual na década de 1950. Muitos filósofos deste período sofriam, em vários graus, de cientismo e positivismo. Hoje em dia a maior parte dos filósofos não são assim. Robert Nozick é um dos casos a ter em consideração. No seu livro Philosophical Explanations, declara que em filosofia prefere “explicações” a “demonstrações” ou tentativas de demonstração; e considera até falta de educação tentar persuadir as pessoas dos nossos próprios pensamentos filosóficos. Este tipo de afirmações fazem-se habitualmente nas primeiras páginas de uma obra filosófica e, quando continuamos a ler, encontramos o mesmo de sempre: argumento, contra-argumento, objecção, contraexemplo, etc. A diferença é apenas esta: ou os argumentos são claramente apresentados ou são confusamente aludidos. A ideia de que há filosofia sem argumentos é ilusória. Mas ao refletir sobre o que se faz em filosofia alguns autores parecem querer livrar-se do que não nos podemos livrar: argumento e pensamento crítico. Tentar acabar com a argumentação em filosofia envolve uma falácia subtil e confusão. Comecemos com a falácia.
Suponha-se que vou ensinar astronomia a alguém. Pode-se pensar que a astronomia é uma questão de factos e conexões legiformes entre factos. Assim, ensinar astronomia é uma questão de verter esses factos e conexões legiformes no espírito astronomicamente vazio dessa pessoa. Tudo o que essa pessoa tem de fazer é compreender o que digo; não faz sentido argumentar, e eu não tentarei persuadir essa pessoa. Presumamos que isto é verdade, apesar de haver aqui uma confusão a esclarecer mais tarde.
Ainda que seja verdade, a filosofia está muito longe deste Éden de Conhecimento. Os filósofos discordam mesmo relativamente às questões mais básicas. Fingir que se ensina filosofia como se fosse astronomia envolve uma falácia que ainda não tem nome (suponho): tomar o que só pode ser um ensaio argumentativo como se fosse a Verdade Indisputável. A forma mais comum de o fazer é explorar a confusão entre a linguagem argumentativa e a linguagem informativa. Quando procuramos informação, como numa reportagem de jornal ou num manual de astronomia, abstemo-nos normalmente de pensar criticamente. Se uma coisa qualquer não faz muito sentido, pensamos que é uma questão de má compreensão da nossa parte, e não uma indicação de que algo pode estar errado nas ideias apresentadas. Não procuramos contestar argumentativamente o que acabamos de ler; ao invés, procuramos conselho e tentamos colocar-nos num estado de espírito no qual essas ideias comecem a fazer sentido.
Qualquer ensaio que explore a confusão entre a linguagem argumentativa e a linguagem informativa é falacioso. A maneira mais óbvia de o fazer — tanto em filosofia como noutras áreas — é apresentar as nossas próprias intuições como se não fossem aspectos disputáveis, mas antes ideias solidamente estabelecidas que só o espírito filosoficamente vazio do leitor desconhece, precisando de ser informado acerca delas. A falácia é mais difícil de descobrir do que se poderia pensar porque a maior parte dos ensaios não são puramente argumentativos nem puramente informativos. Um ensaio argumentativo contém informação que não faz sentido disputar argumentativamente (como a informação aqui apresentada relativa ao livro de Nozick). E alguns relatórios informativos contêm argumentos que procuram estabelecer a verdade de um dado facto que tem de ser inferido de outros factos, estando esta inferência aberta à discussão. Assim, o leitor pode facilmente ser enganado e pensar que o que está a ler não está aberto à discussão, não porque o autor seja dogmático quanto ao que está em causa, mas porque o ensaio parece não ser argumentativo — apresenta-se como uma espécie de relatório sobre o reino filosófico do conhecimento estabelecido. A tarefa do leitor não consiste em contra-argumentar, mas apenas em compreender e aquecer a alma à luz da Verdade Revelada.
A versão de Nozick desta falácia consiste em presumir que as explicações não estão abertas à discussão, argumento, contra-argumento, contraexemplo, etc. É claro que não é assim que Nozick é lido e discutido. Tanto os seus colegas filósofos como os estudantes — concordem ou não com as suas “explicações” — detectam argumentos, levantam objecções a esses argumentos, concebem contraexemplos, etc. E Nozick é lido como se estivesse de facto a tentar persuadir-nos de que as suas “explicações” são verdadeiras ou pelo menos plausíveis, e não como se estivesse apenas a fazer um relatório dos seus próprios Pensamentos Profundos que-não-são-para-avaliar-criticamente. O mesmo acontece com outros filósofos que não parecem dar-se ao incômodo de apresentar argumentos a favor das suas ideias: lemos os seus livros como se apresentassem argumentos, concebemos argumentos a favor das suas ideias e depois discutimos objecções a esses argumentos.
Por quê esta obsessão com argumentos e contra-argumentos? Não é isto até uma falta de educação? Pode-se argumentar, como Nozick, que este tipo de filosofia persuasiva é incompatível com a liberdade e direito de cada um de não ser forçado a concordar conosco ou a responder com contra-argumentos apropriados, refutações e toda esta história do pensamento crítico. Por que razão não cultivar um tipo mais afável de filosofia?
Esta ideia de Nozick é tão estranha que pode parecer que estou a inventar; mas não estou:
Discutir com alguém é tentar manipulá-lo verbalmente. Mas uma discussão filosófica não é assim — ou é? […] Um argumento filosófico é uma tentativa de fazer alguém acreditar algo, quer essa pessoa queira quer não. Um argumento filosófico bem sucedido, um argumento forte, impõe a alguém uma crença. […] Por que razão querem os filósofos forçar os outros a acreditar coisas? É isto uma forma bem-educada de nos comportarmos? (Robert Nozick, Philosophical Explanations, pp. 45)
E Nozick cita aprovadoramente o que Hannah Arendt afirma de Lessing:
Não só não queria que ninguém o coagisse, como também não queria coagir ninguém, nem pela força nem pela demonstração. Encarava a tirania dos que procuram dominar o pensamento através de raciocínios e sofismas, através de argumentação convincente, como algo mais perigoso para a liberdade do que a ortodoxia. (Ibid, p. 651, nota 1)
Note-se, nesta citação, a mistura falaciosa entre força (física) e demonstração, a indistinção deliberada entre o raciocínio correto e o raciocínio falacioso, e a sugestão de que argumentar é uma questão de forçar os outros contra a sua própria vontade.
A confusão envolvida neste tipo de perspectiva é a estranha ideia de que as pessoas são obrigadas a fazer ou acreditar algo se nos dirigirmos à sua própria inteligência e às suas capacidades para raciocinar. Na verdade, é o oposto que obriga as pessoas a fazer algo ou a acreditar no que pode muito bem ser contrário ao seu melhor juízo, se lhes déssemos oportunidade para pensar criticamente. Um ensaio “sugestivo” consiste em não apresentar as nossas próprias ideias como algo aberto à discussão mas antes como relatórios sobre Verdades Superiores. “Convida-se educadamente” o leitor a colocar-se no estado de espírito apropriado à aceitação passiva das nossas perspectivas. Chamar a este tipo de ensaios “sugestivos”, “mais educados” ou “convidativos” é apenas uma forma de não lhe dar o nome correto: manipulação. Tentamos manipular os outros quando tentamos persuadi-los contra o seu melhor juízo e interesses, escondendo habitualmente o próprio facto de que estamos a tentar persuadi-los. É, pois, uma confusão pensar que apresentar argumentos às pessoas é falta de educação ou um ataque à sua liberdade. O que é realmente má educação e um ataque à liberdade e autonomia dos outros é enfiar-lhes ideias pela cabeça abaixo sem lhes dar a oportunidade de as colocar em causa. A maior parte dos filósofos limitam-se a ignorar este tipo de estratégia “sugestiva” e “convidativa” e prosseguem a velha história de avaliar ideias criticamente.
Esta velha história de avaliar ideias criticamente tem 2500 anos e é reveladora. Foi inventada pelos gregos antigos, quando começaram a basear-se em argumentos e provas em vez de na autoridade e na tradição. O raciocínio sistemático, a argumentação e a autonomia não eram práticas comuns. Lloyd resume a novidade deste modo:
Podemos passar a pente fino o que chegou até nós da medicina, matemática e astronomia egípcias e babilónicas à procura, em vão, de um único exemplo de um texto no qual um autor individual se distancie explicitamente e critique a tradição por forma a reclamar originalidade, ao passo que as nossas fontes gregas o fazem repetidamente. (G. E. R. Lloyd, The Revolutions of Wisdom, p. 153)
O raciocínio e argumentação sistemáticos constituem uma nova atitude, e não é muito natural. É natural — e racional — confiar nas pessoas mais velhas e sábias. Provoca desorientação e é assustador colocar em causa velhas crenças, por mais que estejam mal fundadas. Quem sabe aonde isso poderá levar? Pensar livremente é uma tarefa intimidante. As pessoas que gostam de correr riscos podem tomar isto como um argumento a favor do pensamento crítico. Mas isso é só porque podem estar a pensar no risco negligenciável de pensar quando pensar nada tem a ver com coisa alguma. Um pensamento falsamente arriscado dá um certo estilo confortável de rebelde romântico quando não passa de papéis pintados com tinta. O risco é menos atraente quando consideramos o pensar que afeta as nossas vidas porque afeta as nossas decisões, o pensar acerca de questões de vida e de morte, o pensar que faz a diferença entre uma vida feliz e uma vida desgraçada. Não é absurdo, à partida, preferir a tradição e a autoridade à prova e à razão. Parece mais promissor e menos arriscado.
Contudo, isto é uma ilusão. Pois apesar de ser natural e racional confiar nas pessoas mais velhas e sábias, não devemos confiar cegamente nelas; devemos estar atentos às provas e às razões porque a alternativa não é muito recomendável. As pessoas erram; e as pessoas mais velhas e sábias também são pessoas. Além disso, o que pode passar despercebido quando alguém está às apalpadelas a pensar acerca de algo pela primeira vez pode ser rapidamente detectado pelo neófito que se baseia nas ideias anteriores. Mas para que o neófito consiga detectá-lo, o pensamento crítico tem não apenas de ser aceite, mas encorajado. O neófito não pode estar apenas a tentar compreender as ideias anteriores; tem igualmente de se entregar à procura ativa da verdade, avaliando as ideias dos filósofos. Caso contrário, o neófito irá apenas repetir as ideias dos filósofos, como se fossem textos sagrados. Isto é algo que acontece, na realidade, quando as universidades e os acadêmicos abandonam o pensamento crítico:
Apesar de Al-Razi declarar que era um discípulo de Galeno, escreveu também livros em que critica alguns dos seus ensinamentos; foi o primeiro a distinguir a varíola do sarampo. Ibn al-Nafis criticou também diretamente Galeno, fazendo notar que o sangue passa pelos pulmões e não entre as cavidades do coração, como Galeno tinha afirmado. Em contraste, as obras de Galeno eram por esta altura tratadas como textos sagrados na Europa cristã e não se fazia tentativa alguma para progredir a partir delas. (Charles Freeman, The Closing of the Western Mind, p. 331)
Imagine-se que nos escritos de Galeno não há argumentos nem provas. Imagine-se que Galeno apresenta as suas ideias como Intuições Inefáveis da Verdade, escondendo os argumentos e fingindo que se trata apenas de fazer relatórios de ideias que não estão abertas ao debate. Será que isto é realmente relevante no que respeita ao ensino e à investigação? Na verdade, não. A nossa tarefa é introduzir argumentos nesses escritos e discutir criticamente as ideias de Galeno, apesar de toda a sua afetação. E fazemos isto porque qualquer argumento a favor da ideia de que os pensamentos de Galeno estão para além do erro é mais fraco do que o argumento a favor da conclusão de que as pessoas erram e que mesmo as pessoas muito espertas e sábias erram. Só quando não temos em consideração explicitamente estes argumentos aceitamos acriticamente, contra o nosso melhor juízo, que as ideias de Galeno são A Verdade.
Logo, quando se trata de caracterizar a filosofia, não é relevante que a filosofia zen ou as filosofias de Kierkegaard ou de Heidegger sejam apresentadas sem argumentos ou escondendo os argumentos. A nossa tarefa ao aprender a pensar filosoficamente é entregarmo-nos à discussão crítica, e não fazer relatórios das ideias alheias. Fazer relatórios das ideias alheias não é filosofia, de todo em todo; e propor ideias filosóficas sem argumentos ou escondendo os argumentos não passa de má filosofia. Contudo, mesmo os maus filósofos podem ter intuições importantes — e é por isso que nos damos ao incómodo de os ler. Mas nunca saberemos se as suas ideias são importantes se não as submetermos à nossa melhor avaliação crítica.
Um argumento contra a necessidade de pensamento crítico na filosofia é o seguinte: Não podemos presumir que os mestres zen ou Kierkegaard ou Heidegger cometem de fato erros como as pessoas comuns. Este pressuposto é falso. A verdade foi revelada a estas pessoas, não através de argumentos e provas, mas através da Experiência Religiosa. Logo, é um erro tratar as suas afirmações como se estivessem ao mesmo nível das afirmações de qualquer outra pessoa.
O problema deste argumento é que, uma vez mais, qualquer argumento a favor da ideia de que a Experiência Religiosa revela a verdade — e não, digamos, ilusões psicológicas profundas — é mais fraco do que os nossos argumentos a favor da ideia de que as pessoas erram. E estes erros podem incluir a crença de que tivemos uma Experiência Religiosa genuína (presumindo que há tal coisa) quando tudo o que tivemos foi uma alucinação.
Além disso, não nos leva muito longe a ideia de que na filosofia zen ou nas filosofias de Kiekegaard ou de Heidegger se trata de nos entregarmos às atividades da vida, sendo uma questão de atitude existencial e emocional e não de razão fria e lógica. A falácia aqui envolvida consiste em começar por restringir a razão ao raciocínio sobre fatos e verdades, deixando as emoções, práticas e atitudes perante a vida para lá de qualquer deliberação racional — e depois queixamo-nos dos limites da razão. Mas isto é um erro.
O melhor argumento a favor do casamento de João com Joana é que ele está apaixonado por ela e ela está apaixonada por ele e não há qualquer razão forte para não casarem. Compare-se isto com o caso em que Pedro está loucamente apaixonado por Maria, mas ela se está nas tintas para ele, usando a sua paixão para o torturar emocionalmente. O melhor que Pedro tem a fazer é tentar libertar-se da sua paixão, e consideramo-lo com razão pouco razoável se ele nem sequer tentar fazer precisamente isso. Compreendemos, claro, que no calor da situação ele poderá não ver as coisas assim. As pessoas erram, mesmo no que diz respeito à sua felicidade e bem-estar. É por isso que os verdadeiros amigos de Pedro tentarão persuadi-lo de que os seus melhores interesses exigem uma mudança de atitude. E, se forem verdadeiros amigos, não tentarão manipulá-lo. Tentarão raciocinar com ele e discutir cursos alternativos de ação e resultados previsíveis, tentando ajudá-lo a ver mais claramente todas as opções à sua disposição e a escolher as melhores, tendo em consideração os seus sentimentos e emoções.
Logo, mesmo que a filosofia seja uma questão de práticas e atitudes perante a vida — e parte da filosofia é precisamente isso — daí não se segue que temos de suspender o pensamento crítico e de embarcar em dogmáticas proclamações zen, tentando manipular os outros de modo a aceitarem cegamente práticas que provavelmente não aceitariam se lhes fosse dada a oportunidade de pensar criticamente.
A natureza da filosofia é a sua abertura à discussão crítica. Não interessa se as ideias sob escrutínio foram apresentadas criticamente ou não, desde que as avaliemos criticamente. Mas se não examinarmos ideias criticamente, deixamos de fazer filosofia, ainda que estejamos a repetir as melhores ideias críticas dos melhores filósofos. Quem começa a repetir ideias filosóficas sem as examinar criticamente já deixou de fazer filosofia; essa pessoa está a fundar uma religião. E isso é uma coisa completamente diferente.
Não é apenas a filosofia, contudo, que deve ser sempre aberta à discussão racional. Qualquer área acadêmica o deve ser. Infelizmente, nem sempre o é. As pessoas tendem a aceitar acriticamente o que aprenderam com algum esforço, fechando os seus espíritos a novas ideias, recusando até considerá-las seriamente. David Hume e René Descartes são apenas dois dos muitos exemplos de filósofos inovadores que nunca tiveram um lugar na academia; e o mesmo acontece noutras áreas da investigação. É uma vergonha que isto aconteça. E isto acontece quando as universidades voltam a cair na aceitação acrítica de um qualquer conjunto preferido de ideias, traindo o próprio coração da academia: a procura racional e livre da verdade e do valor.
É por isso que é um erro supor, mesmo no caso da astronomia, que o seu ensino é só uma questão de transferir Conhecimento Fixo para o espírito vazio do estudante. Se o fizermos, estaremos a enganar o estudante, fazendo-o pensar que a astronomia nada tem a ver com a discussão crítica e a avaliação de teorias e perspectivas opostas; estaremos a apresentar-lhe o que tomamos como conhecimento estabelecido como se fosse realmente conhecimento. Mas a história tem mostrado vezes e vezes sem conta que o que as pessoas mais espertas e sábias tomam como conhecimento estabelecido é por vezes apenas ilusão sofisticada. Não deveria o estudante ter consciência disto desde o início? Parece razoável pensar que sim.
Restam duas objecções mais profundas à centralidade da argumentação e das provas. A primeira é a seguinte: A razão não é o único instrumento na procura da verdade. Na realidade, não é possível defender a razão enquanto a única ou a melhor via para a verdade sem argumentar de forma circular. Tudo o que podemos fazer para defender a razão é apelar aos princípios da própria razão; e tudo o que podemos fazer para levantar objecções a outras vias para a verdade é uma vez mais apelar à razão. Mas isto é circular. Logo, aceitar ou não a razão e o pensamento crítico é uma questão de preferência pessoal ou arbitrária.
As pessoas que aceitam este tipo de argumento podem encarar a razão e o pensamento crítico como importantes e interessantes. Mas encaram-nos também como uma espécie de “jogo”, em última análise sem fundamento, ao mesmo nível de outros “jogos” (como a tradição, a autoridade e a revelação religiosa); e estas pessoas pensam que não é possível decidirmo-nos, com base em quaisquer princípios, a favor de um dos “jogos” em detrimento de outro.
Este argumento está errado porque não tem em consideração todas as alternativas à nossa disposição. O argumento centra-se no suposto dilema de defender a razão (e levantar objecções à desrazão) recorrendo à razão ou a qualquer outro meio. A primeira alternativa do dilema é circular, a segunda arbitrária. Logo, conclui o argumento, não se pode defender a razão (nem levantar objecções à desrazão) de forma apropriada.
Habitualmente o argumento fica-se por aqui. Mas com certeza que temos de considerar a alternativa: como poderemos defender a desrazão ou a tradição, autoridade e revelação religiosa? Uma vez mais, temos um dilema: ou o fazemos racionalmente ou não. Não podemos defender a desrazão usando a razão porque isso é auto-refutante. Se há boas razões a favor da tradição, autoridade e experiência religiosa, então estas não são formas a-racionais de procurar a verdade. Nesse caso, limitámo-nos a alargar o domínio da razão. Se, por outro lado, defendermos a desrazão usando a desrazão, estaremos a usar o mesmo modo circular de raciocinar que usámos para defender a razão. Assim, qual das alternativas é melhor? Defender a razão circularmente ou defender a desrazão circularmente? Defender a desrazão circularmente é pior porque não é apenas circular: é também arbitrário. Defender a razão circularmente não é arbitrário. A circularidade aqui envolvida é muito geral e é informativa. Qualquer estudante de lógica sabe como se faz para avaliar criticamente as próprias regras de inferência que usamos para raciocinar. Temos de usar um conjunto de regras para avaliar criticamente outro conjunto, mas qualquer conjunto pode ser e tem de facto sido criticamente avaliado pelos lógicos e filósofos. Só não podemos avaliar todas as regras de inferência ao mesmo tempo usando nenhumas regras de inferência. Mas o mesmo acontece com qualquer análise da desrazão: também aí teremos de usar regras de inferência, o que é auto-refutante se estamos a tentar argumentar contra todas as regras de inferência (isto não funciona nem mesmo por reductio, pois os próprios argumentos por reductio são apenas um tipo de regra).
A escolha não é, então, entre dois “jogos” igualmente sem fundamento e arbitrários, a razão e a desrazão. A escolha é entre a arbitrariedade circular (a desrazão) e a não arbitrariedade circular ou circularidade crítica (a razão). Claro que sempre que alguém apresenta uma razão a favor de algo, incluindo uma razão para preferir a não arbitrariedade à arbitrariedade, podemos — e devemos — colocar essa razão em causa. Mas isso é apenas o pensamento crítico em ação e, portanto, em si, uma refutação do pensamento acrítico.
A segunda objecção mais profunda é a seguinte: não devemos comparar o zen e outros tipos de filosofia não crítica como o cepticismo radical ou pirronismo com seja o que for que se assemelhe à procura da verdade e do valor. O que está em causa nestes casos é antes “aprender a” e não “aprender que” — aprender a alcançar a beatitude perfeita ou a ataraxia. Logo, ensinar zen não é como ensinar astronomia, mas antes como ensinar a andar de bicicleta ou a falar uma língua.
A primeira coisa a ter em consideração é que qualquer analogia entre o zen ou outro tipo qualquer de filosofia como o zen e falar uma linguagem é enganadora porque não há grande discórdia entre especialistas sobre, digamos, a gramática portuguesa ou a sua fonética, nem é difícil avaliar criticamente a qualidade do ensino de uma língua pelos resultados. Mas o zen ou qualquer outro tipo de filosofia como o zen é apenas uma filosofia muito discutível entre muitas outras filosofias concorrentes, e é muito mais difícil avaliar a qualidade do seu ensino. Mesmo assim, o que está em causa é que o zen é mais como aprender a preparar comida, por exemplo, e não como aprender um conteúdo proposicional qualquer. Certamente que não se pode aprender qualquer prática se estivermos sempre a fazer perguntas, enlouquecendo o professor ao exigir justificações constantes para tudo.
Esta objecção baseia-se numa confusão com dois aspectos. Em primeiro lugar, o que está em causa com a paralisação do processo de “aprender a” se exigirmos justificações constantes para tudo ao mesmo tempo aplica-se igualmente ao “aprender que”. Isto sugere que “aprender a” e “aprender que” não são assim tão diferentes no que respeita à avaliação crítica. É claro que se alguém está a ensinar seja o que for, aceitamos várias coisas — que a pessoa realmente sabe o que está a ensinar, que não quer enganar-nos e que é imparcial. Contudo, isto não nos impede nem deve impedir-nos de avaliar criticamente o que essa pessoa está a ensinar. Esta é a segunda parte da confusão: a atitude crítica que os gregos antigos introduziram no mundo exige um equilíbrio delicado entre a confiança e a abertura à crítica. É necessário algum grau de confiança nos professores, mas é ao mesmo tempo necessário avaliar criticamente o que eles estão a ensinar. É irrelevante se estamos a aprender a cozinhar ou a praticar zen ou a aprender epistemologia — temos de nos perguntar se o que nos estão a ensinar resiste à crítica. Será verdade que preparar a comida de uma certa maneira a torna deliciosa? Haverá uma maneira melhor de a preparar? Será verdade que dessa maneira a comida fica mais nutritiva? Será verdade que podemos atingir a ataraxia dessa maneira? Haverá uma maneira melhor? E será uma boa ideia tentar alcançar a ataraxia? Será verdade que o conhecimento é uma crença verdadeira justificada? Será todo o conhecimento baseado na experiência?
Excluir as práticas humanas do alcance do pensamento crítico é um empobrecimento da experiência humana — empobrecimento enganador e que resulta de confusão. Tal como as ideias de que a argumentação e a razão são obstáculos à liberdade e autonomia humanas, e que no que respeita às emoções e atitudes a razão nada tem a dizer, esta ideia resulta de confusão e é enganadora porque o que torna a experiência humana tão rica é precisamente o nosso poder para avaliar criticamente as nossas próprias práticas. E isto exige por vezes uma mudança nas nossas práticas. Deverão as mulheres votar e ter os mesmos direitos dos homens? Deverão a escravatura e a homossexualidade ser permitidas? Tudo isto são práticas, como o zen, e todas têm a ganhar se as avaliarmos criticamente. Analogamente, o zen e qualquer outro tipo de práticas devem ser criticamente avaliadas. E se quisermos entender o zen como filosofia e não apenas como mais uma prática religiosa, então são os próprios mestres zen que têm de pensar criticamente sobre a sua prática. Caso contrário, o zen não é filosofia. Em qualquer caso, caracterizar a filosofia como pensamento crítico sobre um dado conjunto de problemas em aberto parece apropriado.
Regressemos às ideias de Nozick sobre este tema. Ele argumenta (p. 5) que devemos usar argumentos unicamente em “autodefesa” (o termo é meu e não dele) — uma espécie de “karate intelectual” (o termo é dele e não meu). A ideia é que poderíamos argumentar e usar os poderes da razão unicamente para derrotar quem usar essas mesmas armas, apesar de nós não acreditarmos, por assim dizer, na eficiência ou nos fundamentos dessas armas.
Esta ideia está mergulhada em confusão. Para começar, é pura e simplesmente falso que o karate só possa ser usado em autodefesa. As técnicas de combate são neutras relativamente aos seus usos. Poderemos e talvez devamos ter uma ética das artes marciais — o mote poderia ser “usa-as apenas como autodefesa e nunca como armas de ataque”. Mas isto nada tem a ver com a autonomia das técnicas de combate. Na verdade, tais técnicas são autônomas; tanto podem ser usadas para atacar como para defender. Não são como que poderes mágicos que uma pessoa absorve das outras para usar contra elas sem que essa pessoa tenha esses poderes; isto não faz sentido. Analogamente, o raciocínio não é um poder mágico que só o “oponente” tem, e que eu irei usar sem me apoiar nesse poder, unicamente para o refutar. Para mostrar que as ideias de outra pessoa implicam inconsistências tenho de me basear no raciocínio. Em primeiro lugar, porque tenho de raciocinar para mostrar que a implicação existe. Em segundo, porque tenho de retirar alguma conclusão de tal inconsistência (nomeadamente, que as ideias do oponente não são verdadeiras). Em ambos os casos estou a seguir regras de inferência. Essas regras de inferência são autônomas e podem ser igualmente aplicadas para avaliar tudo, incluindo as diretrizes zen para alcançar a beatitude perfeita. O raciocínio não é um instrumento mágico que possa ser usado unicamente para refutar aquelas ideias de que não gostamos. Quando se abre a caixa de Pandora do pensamento crítico, nada fica para lá do seu domínio de aplicação.
Em segundo lugar, a metáfora das artes marciais sugere uma ideia que faz todo o sentido, mas não é favorável a quem despreza o pensamento crítico e o argumento claro em filosofia. A ideia é que devemos manter o nosso espírito como uma “tábua rasa”, por assim dizer, nada acreditando, e usando unicamente o poder da argumentação para mostrar que o resto do mundo está enganado acerca de tudo, incluindo o poder da argumentação. Já mostrei por que razão a ideia de que podemos usar a razão para argumentar contra a razão na sua totalidade está errada, e não irei insistir nisso. Mas há aqui outra ideia: a ideia de que devemos avaliar todas as ideias criticamente, ainda que condicionalmente. Por “condicionalmente” quero dizer o seguinte: qualquer argumento tem de se basear em premissas e em regras de inferência (não necessariamente nas regras da lógica dedutiva). Logo, num certo sentido, toda a argumentação é condicional: podemos sempre pôr em causa, em princípio, as premissas ou as regras de inferência (ou ambas).
Este é o aspecto superficial da condicionalidade da argumentação. Mas há um aspecto mais profundo de que todo o bom estudante de filosofia tem consciência. Por exemplo, ao discutir o problema do mal não temos de acreditar que há um deus. Tudo o que estamos realmente a discutir é se o mal e o deus teísta são compatíveis. Esta é uma discussão condicional neste sentido: mesmo que não acreditemos que existe um deus, a questão é interessante porque a nossa crença de que não existe um deus não é mais plausível do que as crenças sob escrutínio nesta discussão. Logo, não é como se soubéssemos em absoluto que deus não existe. Se soubéssemos em absoluto, a discussão seria uma perda de tempo. Mas dado que não sabemos em absoluto, tudo o que podemos e devemos fazer é discutir essas ideias condicionalmente.
Neste sentido, todas as atividades racionais — a filosofia, a física, a história ou a manutenção de motos — são condicionais. Os seres humanos erram, e as pessoas espertas e sábias também erram. É por isso que temos de ter em mente que o que pensamos que sabemos pode ser falso. Mesmo que seja auto-refutante a crença geral de que todas as nossas crenças são falsas, é plausível pensar que dada uma qualquer crença particular, essa crença pode ser falsa. Precisamos do mesmo tipo de equilíbrio que referi relativamente à atitude a ter perante os nossos professores: não podemos lucidamente em nada acreditar (apesar de podermos ter a niilista crença ilusória de que o podemos fazer — e note-se que isto é uma crença) mas também não devemos aceitar como definitivo tudo aquilo em que acreditamos. Uma das ilusões humanas mais perigosas é a ilusão cartesiana ou axiomática: a ideia de que podemos partir de primeiros princípios auto-evidentes e avançar passo a passo usando apenas regras de inferência auto-evidentes. Isto é perigoso porque fecha os nossos espíritos para a possibilidade de que esses próprios primeiros princípios “auto-evidentes” sejam falsos. E, mesmo que tais primeiros princípios sejam auto-evidentes (como a validade do modus ponens, por exemplo), não se segue que devam ser aceites como atos arbitrários de fé: qualquer estudante de lógica sabe que mesmo os mais elementares e auto-evidentes princípios da lógica podem e têm sido racionalmente discutidos e analisados.
Devemos então abandonar toda a aprendizagem e toda a procura de uma melhor compreensão de nós mesmos e das nossas práticas? Não me parece. É absurdo pensar que a investigação tem de parar porque não podemos ter a certeza de que temos razão. É o oposto que é verdade: se pudéssemos ter a certeza de que temos razão — como tantas religiões afirmam — não haveria necessidade de continuar a investigar a verdade e o valor. A academia moderna deveria ser — e infelizmente por vezes não é — a incarnação da ideia dos gregos antigos de que tudo deve ser criticamente avaliado e de que nenhuma crença está para lá da crítica. A filosofia e a ciência e a história não são uma questão de ter A Verdade. São uma questão de argumentar para avaliar criticamente o que pensamos que são as nossas melhores crenças sobre tudo. E para podermos fazer isso temos de nos basear condicionalmente em várias outras crenças, que avaliaremos também criticamente — mas não podemos avaliá-las todas ao mesmo tempo. Nem devemos iludir-nos, aceitando a crença falsa de que podemos suspender, numa atitude niilista, todas as nossas crenças ao mesmo tempo e viver uma vida sem crenças. Uma vida sem crenças é impossível porque todos os organismos têm de representar o mundo em alguma medida para sobreviver; as crenças mais rudimentares são proto-crenças. Voltar às proto-crenças é um empobrecimento niilista da experiência humana. Devemos avaliar criticamente as crenças, e estar dispostos a abandonar aquelas crenças que não resistem à crítica. Mas fingir que podemos viver uma vida sem crenças é apenas uma ilusão, ao mesmo nível da ilusão que consiste em acreditar que alcançámos A Verdade.
Parece razoável concluir que a arte da manutenção da filosofia exige pensamento crítico ainda que estejamos a estudar a filosofia zen ou as filosofias de Kiekegaard ou de Heidegger. O pensamento crítico é o coração de toda a procura séria da verdade e do valor. A filosofia — ou, na verdade, qualquer disciplina acadêmica — morre sempre que aceitamos ideias que se recusam a ser criticamente examinadas. Pois se recusarmos o exame crítico, a filosofia transforma-se em mais uma religião, com os seus tabus, verdades reveladas que se fecham à discussão e a tendência para não evoluir ao longo de centenas e por vezes milhares de anos. E a compreensão humana da natureza das coisas fica certamente mais pobre.
“As histórias habituais da filosofia do séc. XX não dão conta de grande parte dos resultados mais animadores, exatos e criativos do último terço desse século: a reativação da teorização metafísica, de espírito realista, muitas vezes especulativa, muitas vezes de senso comum, associada a Saul Kripke, David Lewis, Kit Fine, Peter van Inwagen, David Armstrong e muitos outros: trabalho que, para citar apenas um exemplo, tornou anacrónico rejeitar o essencialismo por ser anacrônico.” — TIMOTHY WILLIAMSON
O objetivo deste capítulo é explicar a importância de um aspecto da evolução da metafísica nos últimos cinquenta anos. Esse aspecto é o facto de uma certa tendência anti-realista se ter vindo a esbater, para ser substituída por teorias amplamente realistas. Para efeitos ilustrativos usa-se o problema da natureza da necessidade.
O realismo e o anti-realismo são duas formas opostas de entender a natureza das coisas, numa dada área. Uma filosofia realista declara que os aspectos fundamentais dessa área não são meras construções humanas, resultados da linguagem ou de esquemas conceptuais; são aspectos da natureza intrínseca das coisas. Uma filosofia anti-realista, pelo contrário, defende que os aspectos em causa são meras construções humanas — resultados da linguagem ou de aspectos conceptuais, e não aspectos da natureza intrínseca das coisas. Esta caracterização algo vaga do realismo e do anti-realismo procura ser tão abrangente quanto possível, se bem que se deve ter em mente que há várias versões nem sempre compatíveis de realismo e anti-realismo. O realismo (tal como o anti-realismo) não deve ser entendido como uma posição filosófica definida, mas como uma família de posições que mantêm entre si algumas semelhanças. Por exemplo, em relação à ética, uma posição anti-realista defende que os princípios morais são meras construções humanas sem qualquer fundamento na natureza das coisas.
O anti-realismo está geralmente associado ao relativismo, se bem que as duas posições não sejam sempre coincidentes. O relativismo não é apenas a ideia de que “as coisas são relativas” — algo que o não relativista pode aceitar — mas a ideia mais radical de que as coisas são irredutivelmente relativas. Assim, por exemplo, o relativismo em ética não é apenas a ideia de que em diferentes situações e condições históricas, por exemplo, os seres humanos são levados a aceitar juízos éticos diferentes. Esta ideia é aceitável para o antirelativista, que todavia acrescenta que o princípio ético geral é de facto o mesmo, mudando apenas as consequências da sua aplicação em função do contexto — do mesmo modo que a regra não relativa do indexical “aqui” (“aqui” denota o local em que se encontra o locutor) dá origem a diferentes referências relativas ao local em que se encontra o locutor. O relativismo ético defende algo mais radical: a ideia de que não só não há acordo racional possível em questões éticas de pormenor, como não há princípios gerais que regulem as diferenças em questão — uma cultura poderá ser racista e a outra não, mas a oposição é racionalmente insolúvel.
O relativismo não coincide exatamente com o antirealismo; pretende antes ser uma consequência do antirealismo: dado que, como defende o anti-realista, nada na natureza intrínseca das coisas tem qualquer relação com a nossa concepção delas, a nossa concepção delas é radicalmente relativista. Apesar desta diferença subtil, o relativismo e o anti-realismo costumam andar a par. A partir deste momento não faremos distinção entre as duas posições.
As posições anti-realistas globais têm sido uma tentação constante ao longo da história da filosofia. Estas posições distinguem-se do anti-realismo local pela sua abrangência. Ao passo que o anti-realismo local declara que um certo domínio do pensamento (como a ética, no exemplo dado) não está ancorado na natureza das coisas, o anti-realismo global declara que nenhum domínio do pensamento está ancorado na natureza das coisas. O anti-realismo global disputa a própria expressão “natureza das coisas”. Ao discutir o que se entende por “natureza das coisas” (o modo como o mundo é) o anti-realista declara que isso é ilusório, não existindo uma natureza das coisas independente da nossa concepção delas. Este tipo de posição parece basear-se numa compreensão deficiente do alcance do cepticismo radical. O anti-realismo global parece pensar que é coerente aceitar argumentos que visam sustentar que nenhum argumento pode sustentar coisa alguma.
Não deve confundir-se o cepticismo radical com o cepticismo no sentido moderado do termo, que é apenas um sinónimo de pensamento crítico. O cepticismo moderado é a alma da investigação séria, pois é o que leva o investigador a procurar argumentos e indícios a favor e contra as ideias que estão em causa no seu estudo. O cepticismo radical é incompatível com qualquer investigação séria, pois se não há quaisquer verdades, nada obriga o investigador a procurar cuidadosamente distinguir a verdade da ilusão e do erro, a procurar argumentos e indícios a favor e contra as suas ideias predilectas. Assim, o cepticismo radical é incompatível com a própria ideia de academia.
A metafísica tem geralmente sido a primeira vítima do anti-realismo, declarando o céptico radical a sua impossibilidade e encorajando-nos a deitá-la à fogueira. Os herdeiros da Academia de Platão, os chamados Acadêmicos, adoptaram o cepticismo socrático, competindo com os adeptos de Pirro na crença de que todas as crenças são infundadas. Antes da sua conversão, Santo Agostinho abraçou as doutrinas cépticas radicais da Academia platónica, e este tipo de perspectiva foi reativada em França, no séc. XVI, por Montaigne. Todos defendiam que qualquer teoria sobre questões metafísicas era destituída de sentido. Contudo, os ataques mais explícitos à metafísica só surgiram depois do famoso conselho de Hume para deitar às chamas toda a especulação metafísica — o que inclui o seu próprio trabalho. Kant pensava que qualquer conhecimento metafísico, no sentido próprio do termo, era impossível dado que o domínio numênico era incognoscível — mas não conseguiu explicar de forma convincente como sabia ele isso exatamente. E Carnap pensava que toda a especulação metafísica era destituída de sentido por não ser empiricamente verificável nem analiticamente verdadeira — o que deita por terra a sua própria teoria. Mas os rumores acerca da “Morte da metafísica” eram algo exagerados e na segunda metade do séc. XX, assim que os filósofos começaram a abandonar o positivismo lógico, a metafísica floresceu de novo.
O anti-realismo local não é radicalmente incoerente. O anti-realismo ético, por exemplo, não é radicalmente incoerente, apesar de poder ser falso por outras razões. Mas qualquer forma de anti-realismo global, ou cepticismo radical, é radicalmente incoerente. Isto não é surpreendente. Pois não se pode estar a dizer a verdade quando se diz que não é possível, de todo em todo, dizer a verdade. E responder a esta objecção com algo como “Este paradoxo só mostra os sérios limites da Razão” revela uma incapacidade para distinguir entre afirmações paradoxais e auto-refutantes. A afirmação “Esta frase não é verdadeira” é paradoxal; a afirmação “Nenhuma afirmação é verdadeira” é auto-refutante. A primeira é paradoxal porque a sua verdade implica a sua não verdade e a sua não verdade implica a sua verdade. A segunda é auto-refutante porque a sua verdade implica a sua não verdade mas a sua não verdade não implica a sua verdade. Da não verdade de “Nenhuma afirmação é verdadeira” segue-se apenas que algumas afirmações são verdadeiras; nada se segue quanto à afirmação original — nomeadamente, não se segue que é verdadeira.1 Mas se a afirmação “Nenhuma afirmação é verdadeira” for verdadeira, segue-se que a afirmação não é verdadeira. Logo, o único resultado que se segue de “Nenhuma afirmação é verdadeira” é que esta afirmação não é verdadeira — e é por isso que é autorefutante.
O cepticismo global revela falta de cepticismo moderado, isto é, revela dogmatismo e falta de espírito crítico. Para sustentar a tese do cepticismo global é necessário apresentar um argumento qualquer. Este argumento pode ser, e é habitualmente, bastante complexo. A resposta habitual dos críticos é apontar os problemas desse argumento, como acabámos de fazer no parágrafo anterior. Uma reação não aceitável por parte do céptico radical consiste em recusar toda e qualquer regra de lógica ou princípio racional que possamos usar para levantar problemas ao seu argumento. Esta reação é incoerente, pois se se duvida de todos os princípios lógicos, por mais plausíveis que sejam, então não se pode aceitar a conclusão do argumento do céptico radical. Isto acontece porque tal conclusão não se segue como que por magia das premissas do argumento céptico. Pelo contrário, o argumento do céptico repousa sobre regras da lógica, talvez até sobre as mesmas que o crítico está a usar ao discutir tal argumento. A estratégia do céptico radical é pura e simplesmente arbitrária se o uso do pensamento crítico for aceitável quando se argumenta a seu favor, mas inaceitável quando se argumenta contra ele. Com igual arbitrariedade pode-se aceitar todas as críticas dirigidas ao cepticismo radical, e recusar considerar quaisquer críticas dirigidas ao realismo. Logo, o cepticismo radical carece demasiadas vezes de cepticismo moderado — isto é, de pensamento crítico: a consideração racional de argumentos contra e a favor de uma dada ideia. Neste aspecto, o cepticismo radical não é muito diferente das afirmações pseudocientíficas, que são habitualmente muitíssimo racionais e críticas no que respeita às afirmações científicas, mas surpreendentemente acríticas relativamente às suas próprias afirmações.
Assim, o cepticismo radical, assim como a pseudociência, é incompatível com práticas académicas sérias. Pois uma prática académica que se deleita com a arbitrariedade de aceitar críticas às ideias de que não gosta ao mesmo tempo que põe de parte as críticas às suas ideias preferidas não é senão um disparate burlesco. A excelência da prática académica repousa na liberdade para avaliar criticamente todas as ideias — e isto é incompatível com tabus que procuram fazer parar o pensamento nos casos em que pensar é uma rota segura para deitar por terra as nossas ideias preferidas.
As posições anti-realistas no que respeita à modalidade não são formas evidentemente incoerentes de anti-realismo radical. São posições sofisticadas e ancoradas em algumas ideias que têm sido amplamente aceites ao longo da história da filosofia. É por isso instrutivo ver por que razão mesmo neste caso o antirealismo dificilmente é sustentável.
Podemos distinguir três tipos de modalidades: as semânticas, as epistémicas e as aléticas. A frase “Nenhum solteiro é casado”, por exemplo, é analítica, ao passo que a frase “Nenhum solteiro é feliz” é sintética. Neste caso, estamos a falar de modalidades semânticas. A definição de modalidade analítica não é isenta de problemas filosóficos, mas para os nossos fins podemos aceitar a seguinte definição: uma frase é analítica se, e só se, o seu valor de verdade é determinável unicamente com base no significado das palavras que ocorrem na frase e na sua forma lógica. A frase “Nenhum solteiro é casado” é analítica porque basta a sua forma lógica e o facto de “solteiro” significar “não casado” para se poder determinar o valor de verdade da frase.
Essa mesma verdade é, além de analítica, conhecível a priori, isto é, o seu valor de verdade é conhecível unicamente por meio do pensamento, distinguindo-se de afirmações como “O Brasil fica ao sul dos EUA”, cuja verdade só é conhecível recorrendo aos dados dos sentidos, isto é, a posteriori. Neste caso, estamos a falar de modalidades epistémicas: modos como as verdades podem ser conhecidas.
As modalidades aléticas não são semânticas nem epistémicas, pelo menos prima facie. Pois não dizem respeito ao significado das palavras nem ao modo como conhecemos verdades. Dizem respeito, ao invés, à natureza das próprias verdades. Por exemplo, é verdade que Sócrates era grego. Mas, intuitivamente, pelo menos, Sócrates poderia ter sido egípcio, se os seus pais tivessem emigrado para esse país. Diz-se, por isso, que Sócrates era contingentemente grego. Por outro lado, intuitivamente, pelo menos, Sócrates não poderia ter sido um cavalo de madeira, dado que era um ser humano. Diz-se, por isso, que Sócrates era essencialmente, ou necessariamente, um ser humano. As verdades necessárias contrastam assim com as contingentes: uma verdade é necessária quando não poderia ter sido uma falsidade, e é contingente quando o poderia ter sido.
O idioma dos mundos possíveis permite compreender mais claramente, pelo menos a um nível intuitivo, os conceitos de necessidade e contingência. Uma verdade necessária é uma verdade do mundo atual que se verifica igualmente em todos os mundos possíveis; uma verdade contingente é uma verdade do mundo atual que não se verifica em todos os mundos possíveis. Assim, podemos dizer que Sócrates é um ser humano em todos os mundos possíveis em que existe, ao passo que não é grego em todos os mundos possíveis em que existe.
Uma parte importante do atual debate em metafísica da modalidade, e em especial no que respeita ao debate entre o realismo e o anti-realismo, centra-se no estatuto e natureza dos mundos possíveis, dividindo-se os filósofos entre o realismo, que defende que os mundos possíveis são tão reais quanto o mundo atual, e o ficcionalismo, que defende que só o mundo atual é real, sendo os outros mundos possíveis meras maneiras de falar. Não é a este respeito, contudo, que iremos discutir o problema do realismo e do anti-realismo modal. Não trataremos do realismo relativo aos mundos possíveis, mas do realismo mais geral, relativo às verdades necessárias e contingentes. Um realista modal pode não ser um realista no que respeita aos mundos possíveis. Ser um realista modal significa apenas que se defende que as verdades são necessárias ou contingentes em função do mundo, e não em função do nosso pensamento acerca do mundo — mas não se fica obrigado a aceitar o realismo com respeito aos mundos possíveis.
Podemos distinguir dois tipos de posições dos filósofos clássicos relativamente às verdades necessárias. Os filósofos clássicos de tendência racionalista, como Leibniz e Espinosa, ou idealista, como Hegel, acolhiam as verdades necessárias como os paradigmas da certeza, procurando mostrar que as verdades aparentemente contingentes são, efetivamente, necessárias. Os filósofos de tendência empirista, como David Hume ou Quine, recusavam as verdades necessárias como meras ficções linguísticas, procurando mostrar ou que o mundo em si é estritamente contingente, ou que a própria distinção entre verdades necessárias e contingentes é falsa. Mas os racionalistas e os empiristas concordam no que respeita às relações entre as modalidades aléticas e epistémicas. Em ambos os casos, há a ideia de que todas as verdades necessárias são conhecíveis a priori, e viceversa, e que todas as verdades contingentes são unicamente conhecíveis a posteriori, e vice-versa. Esta posição é intuitivamente aceitável, pois ao determinar o modo como o mundo é, recorrendo aos sentidos, parece não ser possível descobrir senão contingências — os sentidos dizem-nos como as coisas são, mas não podem dizer-nos como as coisas não podem deixar de ser. Por outro lado, ao usar unicamente o pensamento para concluir algo, não se pode descobrir qualquer aspecto contingente deste mundo — o pensamento diz-nos como as coisas são necessariamente, mas não pode dizer-nos como as coisas são contingentemente. Assim, uma afirmação como “O Brasil fica ao sul dos EUA” é unicamente conhecível a posteriori e é contingente; e uma afirmação como “Nenhum solteiro é casado” é conhecível a priori e é necessária.
Para o empirismo do séc. XX não era suficiente aceitar que as verdades necessárias eram conhecíveis pelo pensamento puro. Era importante conseguir reduzir todo o conhecimento aparentemente a priori ao único tipo de conhecimento genuíno reconhecido pelo empirista: o conhecimento a posteriori. É por esta razão que o empirismo lógico procura reduzir as verdades necessárias e a priori à analiticidade; assim, todo o conhecimento tem por base os sentidos, e é com base neles que podemos erguer o edifício cognitivo. As pretensas verdades necessárias e o conhecimento a priori são unicamente o resultado do uso da linguagem: todas as verdades necessárias são conhecíveis a priori e todo o conhecimento a priori é conhecimento meramente linguístico, e não conhecimento do modo como o mundo é. Assim, a verdade de “Nenhum solteiro é casado” resulta unicamente da tautologia “Nenhum não casado é casado”, substituindo sinónimos por sinónimos, e é por esse motivo que pode ser conhecida sem recorrer aos sentidos. Mas este não é um verdadeiro conhecimento, é apenas uma consequência do modo como usamos a linguagem. Uma verdade como “O Brasil fica ao sul dos EUA” não se pode reduzir a uma tautologia substituindo sinónimos por sinónimos, e não é possível saber que esta afirmação é verdadeira com base unicamente na linguagem; é necessário recorrer aos sentidos. E precisamente por isso trata-se de verdadeiro conhecimento, que representa um aspecto do mundo. O empirismo transforma-se assim num anti-realismo ou convencionalismo em relação às verdades necessárias.
Aproximadamente a partir de 1970 começam a surgir novas ideias filosóficas, que reavaliam o anti-realismo modal, que até essa altura era comum. Dois dos resultados mais interessantes deste debate é a tomada de consciência de que pelo menos alguns argumentos anti-realistas habituais se baseavam numa confusão entre palavras e coisas, por um lado, e, por outro, que o projeto realista original dos filósofos empiristas dificilmente pode ser sustentado sem uma atitude realista quanto à modalidade. A primeira ideia é menos controversa do que a segunda.
Relativamente à primeira ideia, vale a pena avaliar um dos argumentos clássicos contra o realismo modal, e mostrar como resulta de uma embaraçosa confusão entre palavras e coisas. A resposta anti-realista à questão “Poderia Lula ter perdido as eleições?” é que isso depende de saber se estamos a falar de Lula enquanto presidente do Brasil, ou se estamos a falar de Lula enquanto candidato eleitoral. No primeiro caso, não poderia ter perdido as eleições, porque — numa leitura de dicto — é uma contradição dizer que o presidente do Brasil poderia ter perdido as eleições: por definição, o presidente do Brasil é o candidato que ganha as eleições. No segundo caso, poderia ter perdido as eleições porque a afirmação “O candidato perdeu as eleições” não é uma contradição. Deste modo, vindica-se o ponto de vista empirista de que as verdades necessárias são meramente o fruto de convenções linguísticas, não representando a natureza das coisas: tudo depende da maneira como nos referimos às coisas. Só as verdades contingentes representam a natureza das coisas.
A confusão que este argumento comete é hoje fácil de ver. Intuitivamente, a reação natural à complicada resposta empirista seria dizer que a nossa pergunta era diretamente sobre o próprio Lula, a pessoa de carne e osso, e não sobre seja qual for a pessoa que obedeça às descrições “o presidente do Brasil” ou “o candidato do PT”. Ao dizer que a resposta à pergunta sobre Lula depende do modo como o referimos é uma confusão entre palavras e coisas. A semântica dos nomes próprios, como “Lula”, é diferente da semântica das descrições definidas, como “o presidente do Brasil”. Quando se usa o nome “Lula” e se fala de uma situação contrafatual refere-se ainda a mesmíssima pessoa, nessa situação contrafatual. Mas quando se usa uma descrição definida como “o presidente do Brasil” e se fala de uma situação contrafatual podemos querer referir seja quem for que obedeça a essa descrição, pelo que podemos perfeitamente estar a falar de outra pessoa qualquer e não de Lula.
Chama-se “designadores rígidos” aos termos cuja referência não muda em contextos modais, como tipicamente acontece com os nomes próprios. E chama-se “designadores não rígidos ou flexíveis” aos termos cuja referência pode mudar em contextos modais, como tipicamente (mas nem sempre) acontece com as descrições definidas. E é esta diferença que, se não for claramente compreendida, provoca confusões entre palavras e coisas. Ao falar da circunstância possível em que Lula perdeu as eleições continuamos a falar de Lula se usarmos o seu nome; mas estaremos a falar de outra pessoa se usarmos a descrição “o vencedor das eleições”.
A perspectiva anti-realista é de tal modo forte que há a tendência para pensar que toda a necessidade é linguística e que a designação rígida prova precisamente esta ideia — pois é como se a necessidade de uma afirmação como “Sócrates era um ser humano” fosse unicamente o resultado de se usar um designador rígido. Isto é uma confusão. A designação rígida é neutra relativamente à existência ou não de verdades necessárias; tudo depende da nossa metafísica. A atenção ao fenómeno da designação rígida permite-nos apenas não confundir palavras com coisas. Se de acordo com a nossa metafísica há mundos possíveis em que Sócrates existe e não é um ser humano, então o nome “Sócrates” designa, nesses mundos possíveis, esse objeto que não é humano. Os designadores rígidos são como os indexicais. O indexical “hoje” refere rigidamente o dia de hoje, seja ele qual for; o nome “Sócrates” refere Sócrates, seja qual for a sua natureza.
Afirmei que o projeto realista original dos filósofos empiristas dificilmente pode ser sustentado sem uma atitude realista quanto à modalidade. É agora o momento de explicar porquê. Originalmente, o empirismo procura ser um afastamento do que era encarado como devaneios racionalistas e idealistas. É uma filosofia simpática à ideia de que o mundo dos sentidos é perfeitamente real, e que a ciência estuda as propriedades fundamentais do mundo exterior, recorrendo aos sentidos. Mas o empirismo cedo é arrastado para o cepticismo e para o idealismo antirealista, contrário ao seu próprio espírito original. A motivação empirista principal para o anti-realismo modal é a dificuldade em encontrar um método claro pelo qual possamos conhecer verdades necessárias que não sejam meramente linguísticas. Essa é a razão pela qual Hume declara que não há “conexões necessárias” na natureza: porque considera que só há duas fontes de conhecimento (as relações de ideias e as questões de facto) e porque de nenhuma das duas fontes brotam verdades necessárias relativas ao mundo natural — só das relações de ideias brotam verdades necessárias, mas estas, segundo Hume, não dizem respeito ao mundo natural.
Já na teoria original de Hume, a teoria do hábito, se pode ver a dificuldade que o anti-realismo modal representa para qualquer filosofia empirista. Hume defendeu a famosa teoria do hábito, segundo a qual ao assistir repetidamente a sucessões análogas de acontecimentos no mundo os seres humanos formam uma expectativa que os leva a pensar que há uma conexão necessária entre aqueles tipos de acontecimentos. Contudo, declara Hume, não há tal conexão necessária na natureza; é apenas uma ilusão. Ora, esta teoria é incoerente ou vácua. É incoerente se presumir que há uma conexão necessária entre sucessões de acontecimentos e o hábito mental que nos leva a ter certas expectativas — pois nesse caso pressupõe o que se propunha eliminar. E é vácua se afirmar que não há conexão necessária entre sucessões de acontecimentos e o nosso hábito mental, porque nesse caso nada explica (e esvazia de significado o termo “hábito”).
Contudo, o anti-realismo modal é contrário ao espírito empirista porque, em última análise, acaba por motivar o idealismo, um tipo de filosofia contrário ao espírito realista do empirismo. O anti-realismo modal motiva o idealismo de Kant de forma particularmente nítida. Kant achava, e com razão, que os fundamentos da ciência ficariam destruídos se aceitássemos a teoria do hábito de Hume e a ideia de que tudo no mundo da natureza é meramente contingente. Pois Kant pensava que as leis fundamentais da ciência teriam de captar aspectos mais sólidos da natureza do que meras contingências. Por exemplo, é uma contingência do mundo da natureza que existem vacas; elas poderiam não ter existido. Mas não parece uma contingência que a água é H2O; esta é, aparentemente, uma característica fundamental do mundo natural, que não poderia ter sido de outro modo. Contudo, se aceitarmos a teoria empirista de Hume, somos forçados a dizer que é tão contingente a água ser H2O como é contingente a existência de vacas.
O caso da água, muito usado na metafísica contemporânea a partir dos anos setenta do séc. XX, é particularmente interessante por ilustrar o tipo de posição anti-realista a que o empirismo, contra o seu próprio espírito, acabou por dar lugar. A reação antirealista ingénua consiste em começar por declarar que a frase “A água é H2O” é necessária, mas analítica. Esta reação não resiste por muito tempo, pois é evidente que, apesar de hoje sabermos que a água é H2O, a composição química da água não faz parte do significado, estritamente falando, da palavra “água” — pois se fizesse, não teria sido necessário que os cientistas tivessem descoberto este facto empírico acerca da água. Nunca foi necessária nem nunca será necessária qualquer investigação empírica para descobrir que os objetos vermelhos são encarnados, pois neste caso há realmente uma relação de sinonímia entre os termos.
A segunda reação empirista, menos evidentemente frágil, consiste em confundir palavras com coisas, afirmando que apesar de ser verdade que chamamos “H2O” à água, poderíamos perfeitamente não lhe chamar tal coisa. Que isto é uma confusão entre palavras e coisas torna-se nítido se pensarmos que não é pelo facto de mudarmos o significado da palavra “pobre” de maneira a significar “muitíssimo rico” que um pobre passa a ser realmente rico. Igualmente, se mudarmos o significado da palavra “carbono” de maneira a significar óxido de dihidrogênio, dizer que a água é carbono é apenas outra forma de dizer que a água é H2O — e portanto não é um exemplo da alegada contingência da afirmação de que a água é necessariamente H2O.
A terceira reação empirista é uma confusão modal e consiste em defender que, apesar de nós pensarmos que a água é H2O, podemos estar perfeitamente enganados e vir a descobrir que a água é afinal XYZ. Trata-se de uma confusão porque a afirmação realista original é uma condicional: se a água for realmente H2O (e toda a nossa melhor ciência parece confirmar que é), então a água é necessariamente H2O. Se viermos a descobrir que afinal estávamos enganados e que a água não é H2O, mas sim XYZ, isso não refuta o realista — apenas falsifica a antecedente da condicional realista. A condicional geral que o realista defende continua incólume: seja qual for a composição química da água, essa é uma característica necessária da água.
Finalmente, pode-se defender ainda outro tipo de anti-realismo modal, declarando que a água é necessariamente H2O — mas que o tipo de necessidade em causa é meramente físico e não metafísico. À primeira vista, esta não parece sequer uma forma de anti-realismo modal, dado que aceita verdades necessárias que não são logicamente necessárias. Mas esta aparência é enganadora, pois “fisicamente necessário” quer apenas dizer “derivável das leis da física”, tal como “necessidade lógica” quer apenas dizer “verdade lógica”. Ou seja, a necessidade física não é irredutivelmente modal: é redutível a noções inteiramente não modais. Por outro lado, é trivial que é fisicamente necessário que a água é H2O, tal como é trivial que é logicamente contingente que a água é H2O; e também é trivial que as leis da física são logicamente contingentes; o que é informativo é saber se as próprias leis da física são metafisicamente contingentes ou não, e saber se a água é necessariamente H2O mesmo que as leis da física sejam metafisicamente contingentes.
A postura anti-realista, que consiste em recusar a existência do que se tem dificuldade em explicar como pode ser conhecido com segurança, é inaceitável. Todavia, pode-se argumentar que se não temos razão alguma para aceitar a existência de verdades necessárias que não sejam lógicas ou analíticas, e se não temos qualquer explicação de como podemos conhecer tais verdades, então uma certa aplicação do princípio da economia de Ockham leva-nos a recusar a existência dessas pretensas verdades. Este argumento tem alguma força e o realista modal tem de lhe responder.
Essa resposta é a seguinte: Em primeiro lugar, temos razões para aceitar a existência de verdades necessárias não analíticas. Em termos pré-teóricos parece intuitivo aceitar que a água é necessariamente H2O, ou que um dado ser humano não poderia ter tido pais biológicos diferentes dos que efetivamente teve. Estas são intuições essencialistas acerca da natureza última das coisas que não temos qualquer razão para recusar, exceto a incapacidade empirista para as explicar. Tratase de intuições que não só não colidem com o nosso melhor conhecimento das coisas, como se apoia nele, e até o explica em parte — pois é plausível pensar que o que levou os cientistas a procurar a composição química da água e a estrutura genética dos organismos foi precisamente este tipo de intuições realistas acerca da natureza última das coisas. Por outro lado, é até difícil compreender como seria possível fazer ciência se se considerasse que todos os factos do mundo estão ao mesmo nível, sendo todos estritamente contingentes, para já não falar da dificuldade em compreender como poderiam os organismos sobreviver se não distinguissem o necessário do contingente no mundo que os rodeia.
Em segundo lugar, o realista modal tem um modelo plausível de como é possível conhecer as verdades necessárias naturais. Esse modelo relaciona-se com o famoso necessário a posteriori de Kripke. Como vimos, tanto os racionalistas como os empiristas clássicos concordavam com a ideia de que todas as verdades necessárias eram analíticas e conhecíveis a priori, e vice-versa, e que todas as verdades contingentes eram sintéticas e unicamente conhecíveis a posteriori, e vice-versa. Kant, como é sabido, procurou resolver o problema deixado em aberto por Hume — um mundo unicamente povoado por contingências — defendendo a existência de verdades sintéticas a priori.
A solução de Kant, contudo, é uma forma de antirealismo: pois as verdades necessárias (que Kant continua a pensar, como os empiristas e os racionalistas, que só podem ser conhecidas a priori) são sintéticas mas não se referem ao mundo em si — referem-se apenas à nossa representação do mundo. Este “véu da representação” que Kant faz intervir é um dos mais perversos e persistentes erros da filosofia, alimentando muitos anti-realismos e idealismos. No caso de Kant este véu é particularmente grave porque faz incluir a própria causalidade nas estruturas cognitivas do sujeito; deste modo, uma das explicações mais evidentes para a conexão entre o nosso pensamento e o mundo em si (nomeadamente, o facto de o mundo se impor causalmente à nossa representação dele) torna-se impossível. Não é difícil ver na recente anti-filosofia de autores como Derrida o resultado céptico da aceitação passiva deste dogma de Kant: pois se estamos como que isolados do mundo em si, movendo-nos no interior das nossas próprias “representações” (que não são realmente representações, pois nenhuma relação têm com o mundo em si), todo o pensamento realista fica coarctado, reduzindo-se os problemas da filosofia à relação entre “textos” ou “interpretações”, sem referência ao mundo em si.
A solução de Kripke é surpreendentemente simples e elegante. Consiste em mostrar que há verdades necessárias unicamente conhecíveis a posteriori, e como se processa tal conhecimento. Esta solução permite defender uma posição realista em matérias modais, ao mesmo tempo que fornece o que Hume procurou sem sucesso e que conduziu Kant ao idealismo: um modelo de como se conhecem verdades necessárias sobre o mundo. Kripke não dedica mais do que algumas frases a expor este modelo:
[…] conhece-se por análise filosófica a priori uma condicional da forma “Se P, então necessariamente P”. […] Por outro lado, sabemos por investigação empírica que P, a antecedente da condicional, é verdadeira […]. Podemos concluir por modus ponens:
P ➝ ◻ P
P
∴ P
[ …] esta conclusão é conhecida a posteriori porque uma das premissas na qual se baseia é conhecida a posteriori. (Saul Kripke, “Identity and Necessity”, p. 88)
A solução é tão simples que é embaraçoso pensar como pode ter escapado aos filósofos anteriores que procuraram um modelo do conhecimento de verdades necessárias com conteúdo empírico. O modelo de Kripke combina dois domínios de conhecimento — o conhecimento a priori e o conhecimento a posteriori — e é dessa combinação que resulta o conhecimento a posteriori de verdades necessárias. Assim, neste modelo, as verdades necessárias de carácter empírico não podem ser primitivamente conhecidas; o seu conhecimento é derivado.
Ao procurar a fonte do conhecimento de hipotéticas verdades necessárias com conteúdo empírico, tanto Kant como Hume olharam apenas para proposições isoladas, que tomavam como axiomáticas, e cujo conhecimento teria de ser não inferencial. A diferença entre o conhecimento inferencial e não inferencial é a seguinte: se uma dada proposição é conhecida inferencialmente, isso significa que a obtemos por dedução ou indução a partir de outras proposições; assim, o conhecimento dessa proposição não é primitivo — é derivado.
Algumas histórias da filosofia não resistem à tentação de procurar uma espécie de progresso filosófico semelhante ao científico, e é comum apresentar-se Kant aos estudantes como o filósofo que superou a dicotomia entre racionalistas e empiristas. Apesar de Kant se entender a si próprio desse modo, o preço que pagou por tal superação foi o idealismo, que em última análise deu origem aos movimentos anti-filosóficos que proclamaram a “Morte” da filosofia e da “Razão”. Pode-se assim afirmar com alguma legitimidade histórica que a verdadeira superação entre empiristas e racionalistas teve de esperar por Kripke, cujo modelo do conhecimento de verdades necessárias sobre o mundo implica a combinação, a um nível fundamental, do conhecimento a priori com o conhecimento a posteriori.
Compreende-se agora que o erro de Hume consistiu em não ter considerado a possibilidade de se combinar, num raciocínio, dois tipos diferentes de conhecimento. Segundo o modelo de Kripke, o conhecimento de verdades como “A água é necessariamente H2O” é inferencial:
Se a água é H2O, é necessariamente H2O.
A água é H2O.
Logo, é necessariamente H2O.
A primeira premissa é a priori e a segunda a posteriori. A conclusão é a posteriori porque não é possível conhecê-la sem recorrer à premissa a posteriori. Só há um aspecto deste modelo que vale a pena disputar: Como sabemos que a primeira premissa é verdadeira? A resposta do próprio Kripke, como vimos, é que sabemos da sua verdade por análise filosófica. Mas o que é a análise filosófica?
Curiosamente, as teorias mais populares de análise filosófica, na filosofia contemporânea, são incompatíveis com o tipo de análise filosófica necessário para o modelo de Kripke. Os anti-realismos mais abrangentes, mesmo que não sejam completamente globais, são dificilmente conciliáveis com as atividades cognitivas como a ciência ou a filosofia. O positivismo lógico, com a sua doutrina verificacionista, atraiçoa o seu próprio propósito de construir uma filosofia realista não só compatível com a ciência, mas que pressupõe que a ciência é uma das mais credíveis formas de conhecer a verdade das coisas. Do ponto de vista do positivismo lógico, os dados dos sentidos eram como que “átomos axiomáticos” a partir dos quais todo o edifício do conhecimento poderia ser construído, de uma forma algorítmica ou tão próxima disso quanto possível. O resultado deste sonho é o anti-realismo. Segundo os positivistas, dado que a filosofia não poderia ser empírica, como a física, e dado que o conhecimento a priori era apenas o resultado do uso da linguagem, a filosofia teria de reduzir-se a uma forma de análise conceptual puramente linguística. Este modelo é incompatível com o modelo epistemológico de Kripke, o que mostra bem quão longe vai a filosofia contemporânea na recusa do positivismo lógico e na defesa de uma concepção realista ou não linguística da própria filosofia.
Segundo o positivismo lógico, a análise conceptual é meramente linguística. Trata-se de esclarecer o significado dos termos filosóficos fundamentais, mas não mais do que isso. Não há qualquer conhecimento envolvido, no sentido substancial do termo; tudo o que se faz é esclarecer o significado dos termos. Deste ponto de vista, tudo o que a análise filosófica pode estabelecer são verdades analíticas. Ora, o tipo de condicionais que o modelo epistemológico de Kripke exige para explicar o necessário a posteriori, apesar de serem o resultado da análise filosófica, não podem ser verdades analíticas. A condicional “Se a água é H2O, é necessariamente H2O” não é uma verdade analítica: o significado da antecedente não implica a verdade da consequente. Compare-se com a verdade analítica “Se o João é solteiro, não é casado”; neste caso, o significado da antecedente implica a verdade da consequente. Este é um dos motivos pelos quais ainda hoje alguns filósofos têm dificuldade em aceitar algumas necessidades a posteriori — porque, como os positivistas lógicos, não aceitam que a análise filosófica possa produzir mais do que verdades analíticas. Contudo, há um tipo de condicionais requeridas pelo modelo de Kripke que mesmo os positivistas lógicos poderiam aceitar, dado tratar-se de condicionais analíticas. Trata-se de condicionais com a forma “Se a = b, então necessariamente a = b”. Na verdade, esta condicional é uma verdade lógica — logo, analítica — e portanto aceitável para os positivistas. Daí que alguns filósofos insistam em entender a afirmação “A água é H2O” como uma identidade — pois assim transformam a condicional respectiva numa verdade analítica. Claro que quem adopta esta posição é depois forçado a recusar que seja uma verdade necessária que Sócrates era filho dos pais biológicos de quem era efetivamente filho, pois não há maneira de transformar numa verdade analítica a condicional “Se Sócrates era filho de a e b, então era necessariamente filho de a e b”. Que vantagem oferece esta posição? Aparentemente, nenhuma; limita-se a recusar à análise filosófica o poder para descobrir verdades não analíticas só porque não há um modelo epistemológico para este tipo de descoberta que exclua o erro de forma automática.
O modelo de Kripke permite compreender que as condicionais essencialistas funcionam como hipóteses metafísicas que regulam a compreensão do mundo e promovem a descoberta das suas estruturas fundamentais. As condicionais essencialistas como “Se Sócrates era filho de a e b, era necessariamente filho de a e b” são casos particulares de intuições metafísicas estruturantes, sem as quais qualquer esperança de explicar o conhecimento em geral parece vã. Essas intuições, quando enunciadas, parecem verdades evidentes: a origem biológica de um dado organismo é intrínseca a ele e não poderia ser diferente do que é; a estrutura última de um organismo, que hoje sabemos ser o seu código genético, não poderia ser diferente do que é; a estrutura última da matéria, que hoje sabemos ser a composição química e a estrutura atómica, é intrínseca a cada tipo de matéria e não poderia ser diferente do que é. Mas transformar estas intuições em pontos de partida axiomáticos e irrefutáveis seria um erro. Algumas destas intuições podem revelar-se falsas, nomeadamente em função do desenvolvimento científico. Por exemplo, antes dos recentes desenvolvimentos em biologia genética, um filósofo poderia ser tentado a pensar que a estrutura biológica de um dado organismo é suficiente para o diferenciar de outros organismos. Mas hoje sabemos que isto é falso, pois dois organismos diferentes podem ter exatamente o mesmo código genético, como acontece com os gémeos verdadeiros. Descobrir que esta intuição metafísica está errada é descobrir que há outra intuição metafísica semelhante que é ainda verdadeira (nomeadamente, que um dado organismo não poderia ter um código genético diferente do que tem). O conhecimento da estrutura última do mundo não parece possível a menos que avancemos hipóteses metafísicas englobantes. Não faz sentido procurar descobrir a composição química da água que tenho num copo à minha frente se a sua composição química for algo tão contingente quanto o facto de esta porção de água estar na minha casa, ter vindo do supermercado e estar prestes a ser consumida. É preciso pensar que a sua composição química capta algo importante quanto à natureza da água. E este é um dos aspectos mais inovadores do realismo modal contemporâneo, pois rompe com uma tradição largamente anti-realista, restaurando intuições realistas que remontam a Aristóteles. O anti-realismo modal é insustentável, ainda que não seja estritamente incoerente, pois é incapaz de apresentar um modelo fecundo quer da estrutura do mundo quer do nosso conhecimento dele. Felizmente, o realismo é cada vez mais uma hipótese explorada por vários filósofos. A expectativa de que o abandono das perspectivas antirealistas possa trazer avanços fecundos na nossa compreensão das coisas não parece, pois, infundada.
“Seria bom se houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os maus. Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podem falhar de diversas maneiras [...]; e devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas de erro. Mas isso não é surpreendente. A aplicação mecânica de métodos rotineiros nunca é um substituto satisfatório da inteligência crítica, seja em que área for.” — JAMES RACHELS
Nem todos os argumentos válidos (dedutivos ou não) têm conclusões verdadeiras: os argumentos válidos com premissas falsas poderão ter conclusões falsas. De modo que a validade é uma condição necessária mas não suficiente da boa argumentação. Chama-se “sólidos” aos argumentos que, além de válidos, têm premissas verdadeiras (Aristóteles chamava-lhes “demonstrações”). Num argumento sólido é impossível (ou improvável, no caso dos argumentos não dedutivos) que a sua conclusão seja falsa. Contudo, nem todos os argumentos sólidos são bons. Um exemplo óbvio de um argumento sólido mau é o seguinte: “A neve é branca; logo, a neve é branca”.
Neste capítulo apresenta-se um diagnóstico deste tipo de argumentos sólidos maus segundo o qual a boa argumentação tem de obedecer a certos requisitos epistemológicos. Procura-se explicitar esses requisitos e mostrar que consequências se seguem deles, as mais importantes das quais são as seguintes: 1) A qualidade da argumentação é relativa aos agentes cognitivos envolvidos; 2) Há circunstâncias em que é racional rejeitar argumentos sólidos e em que é irracional aceitar argumentos sólidos.
A argumentação ou persuasão racional é o processo através do qual se procura estabelecer uma dada conclusão, com base num dado conjunto de premissas. A lógica formal permite compreender alguns aspectos de certo tipo de argumentos: os argumentos cuja validade ou invalidade pode ser explicada recorrendo exclusivamente à sua forma lógica. Dado que existem outros tipos de argumentos, este facto seria, só por si, suficiente para tornar evidente que a lógica formal tem de ser complementada pela lógica informal, se quisermos compreender cabalmente a argumentação. Contudo, como veremos, também no caso dos argumentos cuja validade ou invalidade pode ser explicada recorrendo exclusivamente à sua forma lógica é necessário complementar a lógica formal com outro tipo de considerações, se quisermos compreender a argumentação correta.
A lógica formal permite compreender e explicar o fenómeno da validade de argumentos como os seguintes:
Se Deus existe, a vida faz sentido.
Mas a vida não faz sentido.
Logo, Deus não existe.
Se Kant era parisiense, era francês.
Mas Kant não era francês.
Logo, não era parisiense.
A validade destes argumentos pode ser explicada recorrendo unicamente à sua forma lógica, que pode ser representada como se segue:
Se P, então Q.
Mas não Q.
Logo, não P.
Isolando as proposições simples (expressas pelas frases “Deus existe”, “A vida faz sentido”, “Kant era parisiense”, “Kant era francês”) e distinguindo-as dos operadores verofuncionais (“Se…, então…”, “não”), compreende-se que a validade dos dois argumentos acima é explicável recorrendo unicamente à sua forma lógica: podemos usar quaisquer proposições no lugar de “P” e “Q” que, se mantivermos a estrutura do argumento, o argumento será válido.
O tipo de validade aqui em causa é a validade dedutiva, que difere da não dedutiva. Alguns autores preferem não usar o termo “validade” no caso dos argumentos não dedutivos, mas esta não é uma boa opção.[1] Num argumento dedutivamente válido é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. O mesmo não acontece no caso da validade não dedutiva. Num argumento válido não dedutivo a verdade das suas premissas torna improvável (mas não impossível) que a sua conclusão seja falsa. Além disso, a validade não dedutiva nunca depende inteiramente da forma lógica dos argumentos em causa; mas alguns tipos de validade dedutiva (não todos) dependem inteiramente da forma lógica dos argumentos em causa. Vejamos alguns exemplos de argumentos indutivos (um dos tipos de argumentos não dedutivos):
Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, todos os corvos são pretos.
Todos os corvos observados até hoje viveram antes do ano 2100.
Logo, todos os corvos vivem antes do ano 2100.
Estes dois argumentos têm a mesma forma lógica; contudo, ainda que possamos defender que o primeiro é válido, o segundo é claramente inválido. A forma lógica não é, pois, tudo quanto basta para distinguir os argumentos não dedutivos válidos dos inválidos.[2]
Também há argumentos dedutivos cuja validade não depende inteiramente da sua forma lógica. Os seguintes argumentos, por exemplo, são dedutivamente válidos:
A neve é branca.
Logo, a neve tem cor.
Kant era solteiro.
Logo, não era casado.
Contudo, a validade destes argumentos não pode ser estabelecida recorrendo unicamente à forma lógica, dado que o seguinte argumento tem a mesma forma lógica do segundo, mas é claramente inválido:
Kant era solteiro.
Logo, não era feliz.
Alguns tipos de validade dedutiva dependem não apenas da forma lógica dos argumentos em causa, mas também das relações conceptuais ou semânticas presentes no argumento.[3] Podemos, assim, traçar o seguinte quadro da validade:
A validade é uma condição necessária da boa argumentação, mas não suficiente. Isso é evidente se pensarmos em argumentos válidos mas com premissas falsas, como o seguinte:
Se a neve é branca, a Lua é feita de queijo.
A neve é branca.
Logo, a Lua é feita de queijo.
Apesar de válido, este argumento é mau porque a primeira premissa é falsa. Chama-se “sólidos” aos argumentos que, além de válidos, só têm premissas verdadeiras. A diferença crucial entre os argumentos sólidos e os argumentos meramente válidos é que os segundos podem ter conclusões falsas, mas os primeiros não. A solidez é uma condição necessária da boa argumentação, dado que um argumento válido mas não sólido pode ter uma conclusão falsa.
Todavia, apesar de a solidez ser uma condição necessária da boa argumentação, não é suficiente. E este é o aspecto que desejamos esclarecer aqui. Considere-se o seguinte argumento:
A neve é branca.
Logo, a neve é branca.
Este argumento é válido porque é impossível que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. E é sólido, porque a premissa é verdadeira. Contudo, trata-se de um exemplo extremo de um mau argumento. Porquê? A explicação comum é que se trata de uma versão óbvia da conhecida falácia da petitio principii ou petição de princípio: a conclusão limita-se a repetir a premissa. Mas o que há de errado com a petição de princípio? Afinal, do ponto de vista estritamente lógico, o argumento dado é tão válido quanto outro qualquer. Como podemos esclarecer o problema da circularidade na argumentação?
Não parece possível esclarecer o problema da circularidade na argumentação por meios puramente lógicos. Porque do ponto de vista estritamente lógico nada há de errado com os argumentos circulares. O problema dos argumentos circulares não é estritamente lógico, no sentido formal do termo; é lógico, mas no sentido amplo do termo, que inclui a lógica informal. É a lógica informal que procura explicar e sistematizar fenómenos argumentativos que não dependem exclusivamente da forma lógica — e que, por isso, não podem ser explicados nem sistematizados pela lógica formal. Tome-se o caso simples da noção de falácia. Do ponto de vista estrito da lógica formal não há falácias: há apenas argumentos inválidos. Mas nem todos os argumentos inválidos são falácias. O seguinte argumento inválido não é uma falácia:
Sócrates era grego.
Logo, a neve é branca.
Apesar de este argumento ser inválido, é tão obviamente inválido que não se qualifica como falácia. Pois uma falácia é, por definição, um argumento mau ou inválido que tem a aparência de ser bom ou válido. Vejamos o seguinte argumento falacioso:
Se Sócrates era ateniense, era grego.
Sócrates era grego.
Logo, era ateniense.
Este argumento é falacioso porque parece válido, apesar de ser de facto inválido. Contudo, do ponto de vista da lógica formal, o argumento é apenas inválido, não se distinguindo de outros argumentos inválidos que não são falaciosos porque não parecem válidos. Assim, a noção de falácia não pode ser definida pela lógica formal, pois introduz elementos epistemológicos ou até psicológicos que lhe são alheios. A lógica formal não lida com agentes e por isso não pode explicar fenómenos argumentativos que resultem das reações dos agentes que usam a argumentação. É a lógica informal que abrange as relações entre os argumentos e os agentes cognitivos envolvidos (quer sejam os argumentadores ou os destinatários da argumentação). É porque a lógica informal abrange estas relações que pode definir a noção de falácia.
A própria noção de argumento não pode ser definida pela lógica formal. Do ponto de vista da lógica formal tudo o que se pode dizer é que de um dado conjunto de proposições se deriva ou não outra proposição dada; mas a lógica formal não tem recursos para distinguir conjuntos de proposições que são argumentos de conjuntos de proposições que não são argumentos. Isto porque a noção de argumento implica uma intenção de um agente: alguém tem de ter a intenção de sustentar uma proposição com base noutras. Dado que a lógica formal não lida com agentes, não pode definir a noção de argumento, tal como não pode definir a noção de falácia. A lógica formal encontra-se, pois, na situação nada invejável de não ter sequer recursos teóricos para definir o seu próprio objeto de estudo: a argumentação. O que é mais uma razão para pensar que a lógica tem de ser tomada como um todo que engloba a lógica formal mas também a informal.
A mesma limitação fundamental da lógica formal ocorre no que respeita à explicação da circularidade ou da petição de princípio na argumentação. O fenómeno em causa não é formal; é um fenómeno argumentativo no sentido mais amplo, que inclui aspectos relacionados com os agentes cognitivos envolvidos.
Qualquer explicação do que há de errado na circularidade argumentativa deve ser tão ampla quanto possível e deve detectar formas análogas do mesmo erro em argumentos que não sejam, estritamente falando, petições de princípio. Considere-se uma vez mais o seguinte argumento:
Se Deus existe, a vida faz sentido.
Mas a vida não faz sentido.
Logo, Deus não existe.
Este argumento é dedutivamente válido. Mas será um bom argumento? A resposta é negativa, pois dificilmente encontraremos alguém que aceite a inexistência de Deus com base neste argumento. E há boas razões para isso.
O problema que este argumento tem em comum com qualquer petição de princípio é o seguinte: as suas premissas não são mais plausíveis do que a sua conclusão. Tal como no caso da noção de falácia, que introduz uma noção relativamente vaga e intratável em termos de lógica formal (a noção de “parecer” válido ou bom), também aqui a lógica informal introduz uma noção vaga e intratável em lógica formal: a noção de plausibilidade relativa. Antes de esclarecer melhor esta noção, vejamos como nos ajuda a esclarecer o que há de errado tanto com as petições de princípio como com argumentos como o último exemplo dado.
Tanto num caso como no outro, os argumentos falham porque não partem do mais plausível para o menos plausível. Dado que a função de um argumento é persuadir um agente cognitivo da verdade ou plausibilidade da conclusão em causa, isso tem de se conseguir partindo de algo que o agente considere mais plausível do que a conclusão. O agente tem de ser compelido racionalmente a aceitar a conclusão por ver que é impossível ou muito improvável que a conclusão seja falsa dadas as premissas; mas isto significa que o agente tem de pensar que as premissas são mais plausíveis do que a conclusão, caso contrário recusará o argumento recusando pelo menos uma das premissas.
Tanto no caso do argumento sólido cuja premissa é exatamente igual à conclusão, como no caso do modus tollens sobre Deus e o sentido da vida, a premissa ou premissas dos argumentos não são mais plausíveis do que as suas conclusões. Ambos os argumentos são, por esse motivo, destituídos de poder persuasivo; são ambos maus ou fracos, apesar de serem ambos dedutivamente válidos e apesar de pelo menos um deles ser claramente sólido.
Considere-se agora o seguinte argumento:
Se quem não tem deveres também não tem direitos, nem os recém-nascidos nem os deficientes mentais têm direitos.
Mas é falso que nem os recém-nascidos nem os deficientes mentais têm direitos.
Logo, é falso que quem não tem deveres também não tem direitos.
Este é um argumento bom ou forte porque, além de válido, as premissas são mais plausíveis do que a conclusão. Muitas pessoas pensam que quem não tem deveres também não tem direitos. Essas pessoas acham muito implausível a conclusão do argumento acima. Mas essas mesmas pessoas acharão ambas as premissas deste argumento plausíveis. E por isso este argumento pode persuadir racionalmente essas pessoas a mudar de ideias quanto à relação entre deveres e direitos.
Esta noção de argumento bom ou forte, baseada na noção de plausibilidade das premissas, pode suscitar algumas objecções. Uma das mais evidentes é a seguinte:
A caracterização de argumento bom ou forte com base na plausibilidade falha o alvo porque a qualidade da argumentação é independente do que os agentes pensam. Um agente pode perfeitamente pensar que um dado argumento é bom ou forte, mas esse argumento pode ser muito mau, ou pode basear-se em premissas falsas. Assim, tudo o que precisamos para compreender a argumentação é a velha noção de solidez: a validade, juntamente com a verdade das premissas, é tudo o que precisamos para caracterizar a boa argumentação. O resto é psicologia e, como tal, é logicamente irrelevante.
A primeira reação óbvia a esta objecção é voltar a chamar a atenção para o problema dos argumentos circulares. Estes argumentos são claramente maus, e no entanto podem perfeitamente ser sólidos. Contudo, o mais importante é sublinhar que não estão em causa fenómenos “meramente psicológicos”, mas sim o estado cognitivo do agente, ou seja, fenómenos epistémicos. Sendo a argumentação uma atividade racional, seria estranho que nesta atividade o estado cognitivo do agente não tivesse qualquer relevância. Por “estado cognitivo” do agente entende-se o conjunto de crenças ou convicções que o agente tem, aquilo que o agente julga saber, o que ele pensa ser falso, o que ele aceita apenas parcialmente, o que ele duvida, etc. O estado cognitivo do agente é a base a partir da qual o agente avalia não só os argumentos que lhe são apresentados, mas toda e qualquer nova informação.
Eis alguns exemplos: a Mariana diz ao João que ontem foi ao supermercado mas não havia leite. O João acredita porque nada do que a Mariana diz entra em conflito com a informação geral que ele tem das coisas, isto é, com o seu estado cognitivo. Compare-se agora com duas outras situações: A Mariana diz-lhe o mesmo, mas o João acabou de vir do supermercado e viu que havia leite. Neste caso, o João não aceita o relato da Mariana: talvez ela não tenha visto bem, ou talvez lhe esteja a mentir deliberadamente por qualquer razão. Noutra circunstância, a Mariana diz ao João que ontem foi ao supermercado, mas o supermercado tinha sido desintegrado por extraterrestres. Mesmo que o João não tenha ido ao supermercado nos últimos dias, a afirmação da Mariana é de tal forma implausível que requer informações adicionais; dado que o João não ouviu falar de tão portentoso acontecimento nos jornais, na Internet, na televisão, nem aos vizinhos, parte do princípio de que a Mariana está a contar lérias — ou talvez se prepare para lhe contar uma piada. Em qualquer caso, dado o estado cognitivo do João, a afirmação da Mariana é recebida com justificada descrença.
Contudo, repare-se que, apesar de estar a agir de forma perfeitamente racional, dando mais ou menos crédito às afirmações da Mariana em função das convicções gerais que tem acerca do mundo, o João pode estar errado em todos os exemplos dados. Apesar de muitíssimo improvável, é possível que o supermercado tenha sido desintegrado por extraterrestres; apesar de tal coisa entrar em conflito com o estado cognitivo do João, é uma situação possível. Daqui segue-se que em certas situações é perfeitamente racional não aceitar verdades — e até pode ser irracional aceitar verdades. Em que situações? Quando, relativamente ao estado cognitivo do agente, tal verdade é improvável e o agente não tem qualquer razão independente para a aceitar.
Os exemplos dados poderão parecer artificiosos. Mas ilustram algo que é comum e perfeitamente visível no desenvolvimento da ciência e de outras atividades racionais. Por exemplo, dado o estado cognitivo de Ptolomeu, era racional aceitar que a Terra estava parada — nem ele nem os seus contemporâneos tinham razões fortes para pensar que a Terra se movia. Quando surgiram novas informações, a ideia de que a Terra estava imóvel foi-se tornando menos plausível. Mas dizer que surgiram novas informações é outra maneira de dizer que o estado cognitivo das pessoas se alterou: as pessoas passaram a saber ou a acreditar em coisas que antes não sabiam ou não acreditavam.
Torna-se agora mais claro por que razão não se pode aceitar que a força ou qualidade de um argumento é independente do estado cognitivo dos agentes envolvidos. A verdade é independente do que os agentes pensam que é verdade, e o mesmo acontece com a validade. Por isso, a solidez é independente dos agentes cognitivos. Um argumento é sólido ou não independentemente do que os agentes cognitivos possam pensar. Mas o mesmo não acontece com a força ou qualidade de um argumento, pois neste caso trata-se de procurar influenciar o estado cognitivo do agente. Ora, a única maneira racional de reagir quando alguém procura influenciar o nosso estado cognitivo é avaliar cuidadosamente essa proposta; e não há outra maneira de o fazer exceto usando os elementos relevantes do nosso estado cognitivo. Não se trata de dizer que avaliamos tudo segundo o nosso próprio ponto de vista, fazendo de cada agente cognitivo uma espécie de ilha cognitiva, isolada e incomensurável. Se alguém recusa aceitar novas informações empíricas claras, por exemplo, porque colidem com as suas crenças prévias, essa pessoa é dogmática e irracional. Mas se essa pessoa aceitar toda e qualquer afirmação que colide com o seu estado cognitivo, ainda que essa afirmação não tenha maior base de apoio ou plausibilidade do que o simples facto de alguém lho ter dito, então essa pessoa pode estar igualmente a ser irracional. A racionalidade é algo que se situa entre o dogmatismo e a leviandade. É o que acontece quando um agente avalia cuidadosamente as novas informações, contrastando-as com o seu estado cognitivo, procurando ver se deve dar maior crédito à nova informação que o obriga a rever algumas das suas crenças, ou se pelo contrário a nova informação não merece maior crédito do que as suas crenças anteriores incompatíveis.
Assim, torna-se claro que há situações nas quais é racional rejeitar argumentos sólidos: Se o estado cognitivo de um agente for tal que lhe dê razões para pensar que um dado argumento não é sólido, depois de uma análise ponderada, então o agente deve rejeitar o argumento. Contudo, o argumento pode perfeitamente ser sólido e acontecer apenas que o agente não está em condições de o saber. Vejamos um exemplo simples:
Se a Terra não estiver no centro do universo, a cosmologia de Ptolemeu está errada.
A Terra não está no centro do universo.
Logo, a cosmologia de Ptolemeu está errada.
Hoje temos razões para pensar que este argumento é sólido porque temos razões para pensar que as suas premissas são verdadeiras (e sabemos que o argumento é válido). Mas sem telescópios e sem outros elementos científicos, tanto fruto da observação direta como da elaboração teórica, muitos agentes cognitivos estiveram durante séculos numa situação tal que tinham razões para pensar que este argumento, apesar de válido, não era sólido.
A situação inversa é também óbvia: podemos estar numa situação cognitiva tal que seja racional pensar que um dado argumento é sólido quando, na verdade, esse argumento não é sólido.
A solidez é, pois, independente dos agentes cognitivos. E os agentes cognitivos podem estar errados na sua avaliação da solidez dos argumentos, pela razão prosaica de que não são omniscientes. Mas é precisamente porque não são omniscientes que a plausibilidade é uma noção muito diferente da verdade ou da validade. A verdade e a validade são independentes dos agentes e isto significa que uma pessoa pode pensar que um argumento é sólido quando o argumento não é realmente sólido. Mas não faz literalmente sentido dizer que um agente pensa que uma dada afirmação é plausível apesar de essa afirmação não ser plausível, dado que “plausível” significa “plausível para essa pessoa”. É verdade que faz sentido dizer algo como “Ptolemeu achava plausível que a Terra estava imóvel, mas estava enganado”. Mas este tipo de locução é literalmente falsa; o que se quer dizer é uma de três coisas diferentes (e nenhuma delas corresponde à afirmação literalmente expressa).
A primeira é que Ptolemeu acha plausível algo que nós não achamos plausível. Evidentemente, do facto de não ser plausível para mim que a Terra está imóvel não se segue que Ptolemeu estava enganado quando pensava que era plausível. Para ele, era plausível.
O segundo significado da locução é que, dado o estado cognitivo de Ptolemeu, era plausível para ele que a Terra estava imóvel; mas se ele alterasse o seu estado cognitivo, de modo a integrar o conhecimento que hoje temos, veria que afinal não é plausível que a Terra esteja imóvel — pois nós hoje sabemos que a Terra não está imóvel. Mas isto significa apenas que Ptolemeu estava enganado quanto à verdade da afirmação “A Terra está imóvel”; não significa que estava enganado quanto à plausibilidade dessa afirmação. Dado o estado cognitivo em que Ptolemeu se encontrava, a afirmação era plausível para ele, apesar de ser falsa sem ele o saber. Se um agente for racional e se pensar que uma dada afirmação é implausível, depois da sua avaliação honesta e cuidada, não se pode dizer que está enganado. O que se pode dizer é que se a sua situação cognitiva se alterar, talvez por força de alguma descoberta ou inferência, ele passará a achar plausível a afirmação que antes achava implausível. Mas isto só acontece porque o estado cognitivo do agente se modificou.
O terceiro significado da locução ocorre quando alguém está a ser casmurro ou apresenta uma falha de compreensão ou de raciocínio. Neste caso, podemos dizer algo como “O João acha plausível que a Maria o ama, mas está enganado”. O que queremos dizer é que o João não está a avaliar com cuidado a informação de que já dispõe acerca da Maria, ou não está a inferir corretamente o que se segue da informação de que já dispõe, ou é incapaz de compreender o significado de certos comportamentos e afirmações da Maria. Ou é pura e simplesmente casmurro e recusa-se a aceitar a realidade. Em qualquer destes casos, o que se está a dizer é que o João está num estado cognitivo tal que, desse estado, é forçoso pensar que é implausível que a Maria o ama; mas o João está a ser irracional, recusando-se a admitir que é implausível que a Maria o ama — um pouco como alguém que está a ver que a neve é branca, mas só para não perder uma discussão continua a afirmar que a neve é verde. Quando os agentes não avaliam cuidadosamente as afirmações e não pesam de forma minimamente imparcial os prós e os contras, limitando-se a ser conduzido pelos seus preconceitos e ideologias, estão a ser irracionais ou pelo menos irrazoáveis. A racionalidade envolve restrições quanto ao que um dado agente pode aceitar como plausível. Um partidário ferrenho da pena de morte, por exemplo, que se recusa a avaliar a sua crença, pesando a sua plausibilidade relativamente a outras crenças que ele também tem, é pura e simplesmente irracional e não se pode dizer que do seu estado cognitivo a pena de morte é plausível; o que se passa é que ele se recusa a avaliar racionalmente a sua crença.
Dado que, no que respeita à força ou qualidade de um argumento, a relação de plausibilidade entre as premissas e a conclusão desempenha um papel central, e dado que a plausibilidade é relativa a agentes, segue-se que a força ou qualidade da argumentação é parcialmente relativa aos agentes. Este relativismo da argumentação, contudo, não é global; não é um relativismo cognitivo. Um relativista cognitivo em relação à argumentação é alguém que defende que os argumentos são sólidos ou não em função dos agentes; ou alguém que defende que qualquer avaliação de um argumento por um agente é tão boa como outra qualquer. Não é este relativismo cognitivo que se defende aqui. O relativismo que se defende aqui não é cognitivo porque não torna tudo igual a tudo, porque não faz qualquer avaliação de um dado argumento ser tão boa quanto outra qualquer. Um agente que não avalie cuidadosamente um argumento e se limite a declará-lo mau porque a sua conclusão lhe desagrada, é dogmático e irracional — porque, ao contrário do que ele afirma, não é verdade que, relativamente ao seu estado cognitivo, ele tenha razões para pensar que o argumento é mau. Este agente não tem razões algumas para pensar que o argumento é mau; é apenas casmurro e irracional.
Por outro lado, apesar de os agentes não poderem estar enganados quanto à plausibilidade das afirmações, podem estar enganados quanto à força de um argumento. Há três condições necessárias para que um argumento seja forte: ser válido, ter premissas verdadeiras e ter premissas mais plausíveis do que a conclusão. Assim, um agente pode pensar erradamente que um argumento é forte porque para ele as premissas são mais plausíveis do que a conclusão e porque sabe que o argumento é válido; mas, sem ele o saber, as premissas são de facto falsas. Por exemplo:
Se a Terra não estivesse imóvel, sentiríamos o movimento.
Mas não se sente o movimento.
Logo, a Terra está imóvel.
Ptolemeu poderia pensar que este argumento era forte, dado que é válido, e dado que para ele as premissas são mais plausíveis do que a conclusão. Mas a verdade é que o argumento é mau porque a primeira premissa, sabemo-lo hoje, é falsa. Assim, este argumento é mau porque não é sólido, mas Ptolemeu não o sabia.
É importante distinguir as afirmações que são plausíveis para qualquer agente cognitivo, ou para a generalidade dos agentes cognitivos, das afirmações que são plausíveis para alguns mas não para outros agentes cognitivos. Vejamos os seguintes dois exemplos:
Se o assassínio gratuito de inocentes for permissível, a vida não é sagrada.
Mas a vida é sagrada.
Logo, o assassínio gratuito de inocentes não é permissível.
Se o Papa defende que não se deve tomar a pílula, não se deve tomar a pílula.
O Papa defende que não se deve tomar a pílula.
Logo, não se deve tomar a pílula.
O primeiro argumento é fraco porque a segunda premissa é menos plausível, para qualquer agente cognitivo, do que a conclusão. Mesmo para uma pessoa religiosa, e que aceite que a vida é sagrada, esta ideia não é mais plausível do que a ideia de que o assassínio gratuito de inocentes não é permissível. Assim, podemos dizer que fraqueza deste argumento é universal, apesar de relativa ao estado cognitivo dos agentes. Isto acontece porque há certas afirmações cuja plausibilidade é partilhada por todos os agentes cognitivos.
Por outro lado, a força do segundo argumento depende de estados cognitivos que não são amplamente partilhados. Para um católico, o argumento pode ter bastante força, se ele achar mais plausível a primeira premissa do que a conclusão. Mas quem não é católico acha a primeira premissa implausível.
Podemos agora compreender melhor por que razão alguns argumentos válidos são maus ou fracos, ainda que sejam sólidos. Vejamos o seguinte exemplo:
Se a vida é sagrada, o aborto não é permissível.
A vida é sagrada.
Logo, o aborto não é permissível.
Este tipo de argumento é usado muitas vezes perante destinatários que acham qualquer das premissas muitíssimo implausíveis. Em consequência, este tipo de argumentos não é racionalmente persuasivo. Regra geral, para argumentar a favor de uma dada conclusão, é preciso usar argumentos válidos cujas premissas sejam plausíveis para quem não aceita a conclusão.
Podemos objetar que muitas vezes nós já aceitamos uma dada afirmação e queremos apenas procurar justificação racional para ela. Esta objecção não colhe porque se a nossa procura for realmente racional, e não meramente ideológica, teremos de reunir duas condições: 1) iremos procurar argumentos a favor da afirmação que já aceitamos, mas as premissas desses argumentos têm de ser mais plausíveis do que a conclusão; 2) teremos de estar dispostos a abandonar ou a suspender a nossa crença caso não encontremos bons argumentos a seu favor.
É evidente que há sérios problemas de pormenor, nomeadamente uma compreensão rigorosa da dinâmica da aceitação e rejeição racional de crenças. Mas sejam quais forem os aspectos de pormenor dessa dinâmica, parece claro que uma condição necessária para a aceitação racional de uma crença por meio de um argumento é que as premissas desse argumento sejam mais plausíveis para o agente em causa do que a conclusão.
Assim, podemos afirmar que a qualidade da argumentação é o resultado de três tipos de fatores:
1. O fator lógico, que por vezes é exclusivamente formal, é a validade (dedutiva e não dedutiva). A validade garante que é impossível ou improvável que as premissas de um argumento sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. A validade é independente do estado cognitivo dos agentes.
2. O fator metafísico é a verdade. A verdade das premissas é uma condição necessária da argumentação de qualidade, pois torna impossível ou improvável, juntamente com a validade, que a conclusão seja falsa. A verdade é igualmente independente do estado cognitivo dos agentes.
3. O fator epistemológico é a relação de plausibilidade existente entre as premissas e a conclusão do argumento. Num argumento bom ou forte as premissas são mais plausíveis do que a conclusão. A plausibilidade é relativa ao estado cognitivo dos agentes.
É o fator epistemológico que explica alguns fenómenos interessantes da argumentação. E sem este fator não podemos explicar como podem os seres humanos, epistemicamente finitos e falíveis, avaliar racionalmente os argumentos, pois teremos de pressupor uma falsidade evidente: que são omniscientes. É o fator epistemológico da argumentação que permite explicar o processo de avaliação racional de argumentos por parte de agentes cognitivos não omniscientes.
É agora claro que não é uma boa ideia usar o termo “validade” apenas para a validade dedutiva, usando o termo “força” no caso da validade não dedutiva: pois apesar de a validade dedutiva ser discreta, ao passo que a validade não dedutiva é contínua, a qualidade global da argumentação, seja ela dedutiva ou não, é contínua, sendo natural e adequado comparar a força relativa de dois argumentos igualmente válidos, sejam dedutivos ou não, em função da relação de plausibilidade existente entre as suas premissas e conclusões.
“O conceito de blasfêmia sempre foi uma arma com que os ortodoxos procuraram silenciar os não ortodoxos. Os julgamentos de Galileu, Sócrates e de Jesus Cristo basearam-se em acusações de prática do crime de blasfêmia, e todos os veredictos confirmaram as suas condenações. E, no entanto, foram essas “blasfêmias” que lançaram os fundamentos da ciência, da filosofia e da religião europeias.” — SALMAN RUSHDIE
A novidade introduzida pelos gregos da antiguidade clássica não foi a tentativa de explicar os fenômenos do mundo sem recorrer a deuses — pois muitos filósofos e cientistas eram religiosos, e recorriam a explicações de carácter semirreligioso. A novidade foi esta: os filósofos da Grécia antiga expunham as suas ideias e desafiavam os interlocutores a discuti-las livremente. Isto gerou uma novidade absoluta na história da humanidade: a cultura da liberdade intelectual. Esta liberdade está na base da universidade e da escola moderna, apesar de a realidade académica e escolar ficar demasiadas vezes aquém do ideal fundador. A liberdade intelectual permite ter uma atitude crítica, opondo-se à atitude subserviente própria da natureza humana, sempre ciente das autoridades e hierarquias. Os gregos antigos introduziram uma atitude que dificilmente floresce em sociedades fechadas: o controlo do pensamento é a primeira coisa que todo o ditador, religioso ou político, procura impor. Ao longo de vinte e cinco séculos, assiste-se na civilização europeia ao constante conflito entre a exigência de liberdade de discussão e as atitudes autoritárias e hierárquicas, que aniquilam o estudo e a criatividade.
Nas sociedades fechadas — por força da Inquisição, do fascismo, do comunismo, do fundamentalismo ou da tradição — pode-se fazer filosofia durante alguns períodos, mas geralmente às escondidas e contra as próprias academias, que deviam ser os primeiros bastiões da liberdade de pensamento. Só nas sociedades liberais e democráticas, que respeitam a liberdade de opinião e expressão, a filosofia pode florescer. Mas não basta este respeito formal pela liberdade de opinião e expressão; é preciso um ativo comprometimento institucional, cultural e pessoal com a discussão racional e os princípios a ela associados. A pior proibição do pensamento não é a explícita, mas a que se insinua e oculta, pois é mais difícil combater e reconhecer a sua existência. A proibição velada existe sempre que as academias não ensinam a discutir ideias, sempre que substituem a discussão de ideias pelo formalismo acadêmico e sempre que se ensinam os estudantes a repetir diligentemente o que dizem os pensadores da moda.
Há duas estratégias principais para tornar a liberdade de discussão inócua.
A primeira consiste em reduzir a filosofia à sua história e a ciência aos seus resultados. Em ambos os casos, transmite-se ao estudante — e portanto à sociedade — a ideia de que nada há para pensar. A competência profissional e académica é uma questão de saber repetir muito bem o conhecimento empacotado que foi feito alhures. O que não se ensina é a fazer esse conhecimento. Ensinar a repetir acriticamente as ideias de Mill sobre a liberdade ou as ideias de Sagan sobre o espírito científico é uma das estratégias mais subtis para impedir isso mesmo que Mill e Sagan defendem: a liberdade fundamental para discutir ideias. Quando a filosofia se reduz à história da filosofia, o estudante fica impossibilitado de desafiar as Autoridades: torna-se uma blasfêmia impensável perguntar se Kripke ou Heidegger terão ou não razão. Onde há liberdade para pensar não se pode aceitar a noção de blasfêmia: tudo se pode discutir e todas as autoridades podem ser colocadas em causa.
A segunda estratégia para tornar a liberdade de discussão inócua é o relativismo cognitivo. Sob a capa de uma novidade triunfante, o pós-modernismo filosófico e cognitivo (não confundir com correntes artísticas com o mesmo nome) é incompatível com o ideal grego. Pois se é ingênuo pensar que existem verdades independentes de nós, se é óbvio que tudo é relativo, então não vale a pena discutir ideias. Discutem-se ideias quando se pensa que as nossas ideias são boas ou más, verdadeiras ou não, independentemente da nossa opinião sobre elas — e por isso queremos submetê-las à discussão pública e especializada, para procurarmos eliminar tanto quanto possível o erro e a ilusão. Galileu foi brutalmente silenciado pela Igreja Católica, e condenado a prisão domiciliária para o resto da vida. Mas pior, porque menos óbvio, seria a igreja ter declarado que há várias “bolhas de verdade”, e que Galileu tem a sua, que todavia não é a verdade da igreja. Isto aniquila a possibilidade de progresso porque isenta as ideias da necessária avaliação crítica. Não há “bolhas de verdade”: se Galileu tem razão, a Terra move-se. A Terra não fica imóvel quando quem pensa nisso é o Papa, passando a mover-se quando é Galileu que pensa nisso.
Dada a relação complexa que a democracia e a liberdade mantêm com a filosofia e o conhecimento em geral, estas estratégias não aniquilam apenas a filosofia e o conhecimento; ao fazê-lo, aniquilam também a própria possibilidade de uma democracia e liberdade genuínas e profundas. Ensinados a evitar a discussão real de ideias e a repetir ideias feitas, os profissionais — dos políticos aos médicos, dos juízes aos engenheiros, dos empresários aos cientistas e filósofos — não conseguem resolver os problemas da sua sociedade. A menos que tal solução venha em algum manual estrangeiro do qual se possa fazer um relatório muito certinho, a sociedade sente-se perdida e sempre à espera que um Encoberto venha resolver os seus problemas: a democracia está sempre sob ameaça, é sempre vista com desconfiança, nunca é parte integrante do tecido cultural. Sempre que há problemas, a solução que vem ao espírito assustado de todos é mais centralismo e menos liberdade — impedindo assim os profissionais de cada sector de resolver os problemas da sua própria especialidade.
É por isso que um ensino correto da filosofia no secundário é uma oportunidade de ouro para contrariar uma cultura secularmente avessa à democracia e à liberdade. Mesmo que em filosofia se discuta o valor da democracia e da liberdade (temas centrais da filosofia política), esta discussão é em si um aprendizado para a democracia e a liberdade. Esta discussão, corretamente praticada nas escolas, é a única esperança de mudar uma cultura que, por ser fechada e avessa à liberdade, não consegue resolver os seus problemas nem atingir um grau de desenvolvimento e de bem-estar adequado.
Contudo, do mesmo modo que a pior censura de Galileu teria sido a relativização cognitiva das suas ideias, também o pior serviço que se pode prestar à filosofia e à sociedade é transfigurar a filosofia, tornando-a inócua e eliminando dela o seu cerne: a discussão livre de ideias. Ensinar filosofia corretamente é ensinar a discutir ideias filosóficas; não é ensinar a repetir as ideias de Kuhn ou de Popper, mas ensinar a discutir essas ideias. Terá Kuhn razão? Será a incomensurabilidade entre paradigmas uma realidade? Haverá de todo em todo paradigmas, como ele afirma? Será que a teoria falsificacionista de Popper é plausível? Ensinar filosofia é ensinar a formular estas e outras perguntas — e a dar-lhes resposta. E para isso a lógica — formal e informal — é fundamental.
Para cada maneira correta de ensinar algo há mil maneiras de o desvirtuar, e o ensino da lógica é mais um exemplo desta máxima. Se tornarmos a lógica um mero formalismo de símbolos que nada dizem, se eliminarmos a sua componente informal, tornar-se-á um instrumento sem aplicação na discussão de ideias. As demonstrações da lógica são instrumentos para estudar a argumentação — não são o objeto de estudo da lógica. Uma demonstração é uma maneira de mostrar metodicamente que uma forma argumentativa é válida. É o fenómeno da validade, as suas componentes e subtilezas, que é estudado pela lógica formal. Mas a validade só derivadamente é uma propriedade de formas lógicas; a validade é primariamente uma propriedade de argumentos particulares. A lógica formal estuda o tipo de validade que pode ser estudado recorrendo exclusivamente à forma lógica, mas daqui não se segue que estudar este tipo de validade é abandonar o estudo da validade tal como ocorre nos argumentos reais que usamos todos os dias.
Argumentar é defender ideias com razões — e por isso o pior inimigo das sociedades fechadas. Quando Peter Singer foi sistematicamente impedido de proferir conferências nos países de língua alemã o que estava em causa não era saber se tinha ou não razão. O que estava em causa — e é isso que provoca horror e permite compreender a raiz do nazismo — era impedir que os seus argumentos fossem expostos e discutidos. Nenhum ditador quer defender as suas ideias com razões, ou mostrar com razões que as ideias a que se opõe são falsas. O que os ditadores querem é acabar com a possibilidade da argumentação, isto é, da discussão de ideias. A “Verdade” é apenas para ser anunciada, e compete aos súbditos adotá-la sem pensar muito.
Também neste caso o relativismo cognitivo desempenha o seu papel nefasto. Se considerarmos uma ingenuidade pensar que se possa argumentar melhor ou pior, bem ou mal, porque tudo o que conta é o resultado — conseguir-se ou não persuadir o auditório — domesticámos a argumentação e retirámos-lhe a sua força libertadora. De instrumento de procura de verdades, a argumentação transforma-se em instrumento de manipulação irracional. Pior do que impedir alguém de defender as suas ideias com razões é relativizar toda a argumentação e declarar que, do ponto de vista do autor, aquele argumento é bom, mas, claro, tudo depende do ponto de vista — e de outro ponto de vista, aquele argumento é mau, pelo que é uma ingenuidade perder tempo a discutir argumentos.
O ensino da lógica na filosofia, para desempenhar o seu papel de instrumento argumentativo, não pode ser formalista nem relativista. Não pode ser formalista porque a lógica formal não pode analisar a argumentação sem usar a lógica informal. E não pode ser relativista porque as abordagens relativistas da argumentação são incapazes de dar conta da noção de falácia.
Um argumento é falacioso quando é mau mas parece bom. Esta noção central para a compreensão da argumentação não pode ser definida se aceitarmos o relativismo cognitivo na argumentação — pois nesse caso qualquer argumento será bom, desde que convença o interlocutor. Mas se qualquer argumento é bom desde que convença o interlocutor, o trabalho a desenvolver não é argumentativo, mas sim manipulador e até psicológico — basta pensar nos artifícios usados na publicidade e pelos políticos menos honestos para ver onde nos conduz o relativismo cognitivo em matéria de argumentação.
Um bom ensino da lógica e da filosofia terá de ensinar a avaliar argumentos reais e a apresentar bons argumentos, distinguindo-os dos maus. No ensino correto da lógica e da filosofia aprende-se a discutir ideias, respeitando os seguintes princípios elementares do debate racional.
1 . Respeitar e ouvir atentamente as pessoas que discordam de nós
Discordar racionalmente de alguém é diferente de tentar impedir a outra pessoa de exprimir as suas ideias, metralhando-a com um discurso repetitivo que nunca acaba. Tentar impedir as pessoas de quem discordamos de explicar as suas ideias é empobrecedor e uma atitude arrogante, pois pressupõe que só nós temos a Verdade e que as outras pessoas estão todas enganadas.
Qualquer pessoa habituada a trocar ideias racionalmente com outras sabe que grande parte da sua sofisticação intelectual se deve ao confronto com quem discorda de nós. São essas pessoas que nos obrigam a repensar as coisas, a ter em consideração aspectos que antes tínhamos desprezado, a compreender que as nossas ideias podem ter consequências implausíveis que não tínhamos visto, etc. Pensar seriamente exige pensar outra vez com alguém. Por mais inteligente e informada que seja uma pessoa, se não ouvir nem respeitar os outros, o seu pensamento será inevitavelmente provinciano, superficial e pouco sofisticado.
Assim, para que uma discussão seja um momento privilegiado de aprendizagem e crescimento é necessário respeitar as outras pessoas e dar-lhes tempo para exprimirem as suas ideias e apresentarem os seus argumentos, objecções, contra-exemplos, etc. Isto significa que numa discussão correta as pessoas devem falar de forma precisa e económica, parando de falar nos momentos certos, convidando os outros a responder e a reagir. Se estamos o tempo todo a falar e obrigamos a outra pessoa a interromper-nos para conseguir falar, estamos desde logo a envenenar a discussão — porque a mensagem que estamos a transmitir é que o que a outra pessoa tem a dizer não tem importância alguma e só relutantemente a deixamos falar.
Ouvir as pessoas, por sua vez, não é um mero formalismo acústico. O que é realmente necessário é responder com sinceridade e frontalidade ao que a outra pessoa está a dizer. Não devemos ignorar as objecções, os argumentos, os contra-exemplos, etc., que a outra pessoa nos está a apresentar. Devemos responder-lhes e, se não lhes soubermos responder, devemos admiti-lo. Ninguém é obrigado a ter pensado em tudo antes de começar uma discussão. Uma das razões pelas quais vale a pena discutir ideias é precisamente para descobrirmos aspectos em que nunca tínhamos pensado.
2. Estar disponível para mudar de ideias se os nossos argumentos não resistirem à discussão
Estar aberto à discussão não é a mesma coisa do que gostar da gritaria em que cada qual procura “brilhar” com as suas afirmações bombásticas e as suas referências eruditas. Uma discussão não é uma luta em que se procura deitar o parceiro ao chão; isso é uma gritaria. Numa discussão, o objetivo é descobrir a verdade, independentemente de saber quem está do lado da verdade. Numa gritaria, o objetivo é silenciar a outra pessoa, independentemente de saber de que lado está a verdade. Uma boa discussão implica honestidade intelectual e isto, por sua vez, implica a disponibilidade para abandonar as ideias que somos incapazes de defender honestamente. Quem vai para uma discussão para silenciar os outros está à partida a viciar a discussão e a transformá-la num circo. Uma discussão não é um jogo de forças; é uma forma de descobrir a verdade e o valor.
Isto não significa, evidentemente, que sejamos obrigados a abandonar as nossas ideias mal fiquemos sem resposta perante um argumento. Podemos ficar sem resposta mas mesmo assim permanecer na dúvida, ou com a sensação de que algo está errado no argumento a que somos incapazes de responder. Nesse caso, manda a honestidade que se declare isso mesmo: que não temos resposta, mas que precisamos de mais reflexão porque ainda não ficámos convencidos.
3. Não mudar de assunto para assunto sem antes discutir adequadamente o que estava em discussão
Uma discussão de ideias não é uma forma de exibirmos a nossa erudição, referindo nomes de filósofos ou outros autores em catadupa, mudando de assunto para assunto e impedindo a análise serena de cada assunto. Usar a discussão de ideias para exibir credenciais intelectuais, sociais ou académicas, mudando de assunto para assunto, é prostituir a discussão de ideias.
Qualquer discussão implica uma capacidade para pensar hipoteticamente; tudo é discutível, mas não podemos discutir tudo ao mesmo tempo. Por isso, temos de ser organizados e discutir um assunto de cada vez, procurando esgotar, ou pelo menos explorar suficientemente, cada assunto antes de o abandonarmos e passarmos ao seguinte.
4. Distinguir o central e relevante do periférico e acessório
Em qualquer assunto há sempre imensas considerações e aspectos laterais, com diferentes importâncias relativas. Discutir proficientemente implica focar a atenção no que é central e relevante, abandonando o periférico e acessório. Por vezes, podemos estar enganados quanto ao que é relevante numa discussão, e o nosso interlocutor pode chamar-nos a atenção para isso. Devemos estar dispostos a corrigir a nossa avaliação do que é central, mas temos de resistir à tentação de fugir à discussão do que é central desviando a discussão para um aspecto acessório.
5. Não usar ataques pessoais de qualquer espécie
Se numa discussão se começa a atacar pessoalmente quem discorda de nós, a probabilidade de se poder continuar a discutir de forma razoável é mínima. As emoções fortes toldam a razão e se as pessoas responderem aos ataques pessoais, a discussão anterior perde-se e passa-se a discutir outra coisa. Claro que muitas vezes é precisamente isso que quer quem não tem argumentos para defender o que está a defender. Mas isto significa apenas que essa pessoa quer fingir que está a discutir ideias, para dar um ar de sofisticação intelectual e legitimidade racional ao que está a defender — tal como os ditadores de repúblicas das bananas gostam de fingir que fazem eleições livres, para dar legitimidade aos seus regimes ditatoriais e corruptos.
Regra geral, é mais difícil provar que os ataques pessoais têm um fundo de verdade do que provar o que está em discussão. Isto acontece porque muitas vezes esses ataques pessoais se referem a intenções ocultas da outra pessoa. Mas, por definição, se as intenções são ocultas, não podemos saber quais são. Por exemplo, imagine-se uma pessoa que defende que uma determinada regalia social deve ser dada exclusivamente às pessoas que estão numa certa circunstância — que, por estranha coincidência, é precisamente a circunstância em que essa pessoa está. Poderemos ser levados a pensar que essa pessoa é pura e simplesmente interesseira, não tendo qualquer desejo de discutir racionalmente o tema. Mas como vamos provar isso? Não podemos abrir a cabeça da pessoa para saber. Por isso, o melhor é pura e simplesmente discutir diretamente se só as pessoas que estão naquela circunstância devem ter aquela regalia. O resto é irrelevante.
Claro que se o oponente mostrar completa falta de argumentos razoáveis, se não responde aos nossos contra-argumentos e objecções, limitando-se a insistir dogmaticamente e a gritar, então a discussão chegou ao fim. Se chegou ao fim porque a pessoa é interesseira e desonesta ou porque é pouco inteligente e não sabe discutir, não interessa. Outras pessoas mais sensatas podem prosseguir a discussão, tentando avaliar de forma imparcial se haverá razões a favor do que o interesseiro ou tolo tinha em mente mas era incapaz de explicar claramente. Em qualquer dos casos, insultar o interesseiro ou tolo não contribui nem para prosseguir nem para acabar a discussão. As discussões prosseguem quando as pessoas são razoáveis e respondem a argumentos, objecções, contra-exemplos, pedidos de explicação, etc.; e param quando as pessoas não fazem nada disso.
6. Dominar (ainda que intuitivamente) os aspectos elementares da lógica informal
Evidentemente, as pessoas não têm de estudar lógica informal ou pensamento crítico antes de poderem discutir. Apesar de qualquer pessoa dever ler um bom livro introdutório à prática argumentativa, não devemos excluir uma pessoa de uma discussão só porque nada leu sobre como se discute de forma razoável. Todas as pessoas dominam intuitivamente os aspectos elementares da lógica informal, tal como todas as pessoas dominam intuitivamente os aspectos elementares da gramática, ainda que não a tenham estudado explicitamente. Mas tal como compete a cada pessoa ter atenção à gramática, ainda que não a tenha estudado, também lhe compete ter atenção à lógica. Todas as pessoas que participam numa discussão devem ter consciência de que há bons e maus argumentos e de que há maus argumentos que parecem bons. Por isso, devem estar abertas à disputa argumentativa: eu afirmo algo e dou um argumento para isso, mas tenho de ter consciência de que esse argumento pode e deve ser contestado.
Um argumento não é uma afirmação. Um argumento é o que oferecemos quando damos razões a favor de uma afirmação. “O aborto não é permissível” é uma afirmação. Se nos limitarmos a fazer afirmações, não estaremos a dar à outra pessoa qualquer razão para concordar ou discordar de nós. “O aborto não é permissível porque a vida é sagrada” é um argumento, porque apresenta uma razão a favor da conclusão. Discutir ideias é discutir argumentos a favor dessas ideias. E discutir argumentos é discutir duas coisas: se as premissas usadas são plausíveis e se o argumento em si é válido. Usar uma premissa como “A vida é sagrada” para defender que o aborto não é permissível não é uma ideia muito boa, dado que esta premissa é tão discutível quanto a conclusão. Para ser bom, um argumento tem de ter premissas menos discutíveis do que a conclusão.
Um argumento é válido quando é impossível ou pelo menos muito improvável que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. Imaginar situações em que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa é uma forma elementar de mostrar que o argumento original não é válido.
7. Conhecer a bibliografia relevante
A discussão séria de qualquer assunto pressupõe que quem o está a discutir tem algum conhecimento da matéria em causa. Caso contrário, será melhor ficar calado e assistir à discussão de outras pessoas que têm conhecimento da bibliografia relevante; ou ir para casa estudar a bibliografia relevante.
Daqui não se segue que uma pessoa tenha de ser um especialista para discutir seja o que for. Sem dúvida que todos temos muitas opiniões e gostamos de discutir com os nossos amigos assuntos acerca dos quais pouca ou nenhuma informação relevante temos, exceto o que vimos na televisão ou lemos nos jornais. Mas o grau de seriedade de uma discussão é diretamente proporcional à informação relevante que os seus participantes têm. Não se deve fazer um debate sobre o aborto na televisão, por exemplo, com pessoas que desconhecem quase em absoluto a bibliografia especializada sobre o tema. Um debate deste gênero é uma farsa, uma mera troca de opiniões superficiais e desconhecedoras. Cada um de nós tem de ter a honestidade de dizer “não” a um debate para o qual não está preparado; ou, se aceitarmos o debate, temos a obrigação de nos informarmos conscienciosamente sobre o tema em causa, estudando a bibliografia especializada relevante.
8. Ter refletido de forma razoavelmente sistemática no tema em causa
Só devemos estar dispostos a debater publicamente um determinado tema se tivermos refletido de forma razoavelmente sistemática no tema em causa. Se avançamos para um debate unicamente porque temos uma ideia, faremos baixar a qualidade do debate. É preciso que, além de termos uma ideia, lhe tenhamos dado alguma reflexão; é preciso que nos tenhamos perguntado se teremos realmente razão e que argumentos há contra o que defendemos. Não podemos ter a ingenuidade de pensar que só porque uma ideia é nossa é maravilhosa.
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Se estes princípios elementares da discussão racional não forem ensinados nas escolas ou nas universidades (explícita ou implicitamente, pela prática da própria discussão escolar e académica), não serão com certeza ensinados nos jornais, na televisão ou nos corredores do parlamento. E se não forem ensinados, a discussão racional será rapidamente substituída pela sua imitação de contrabando: a manipulação.
Para distinguir a discussão racional da mera manipulação não precisamos, felizmente, de uma teoria da racionalidade — como todos os problemas centrais e fundamentais do conhecimento, saber claramente o que é a racionalidade é um problema em aberto. Uma discussão racional apela à inteligência do interlocutor e é frontal; a manipulação procura furtar-se à inteligência do interlocutor, procurando fazê-lo aceitar o que ele não aceitaria se lhe fosse dada oportunidade para refletir cuidadosamente.
Fruto de uma confusão arrepiante, defende-se por vezes que a racionalidade é responsável pelos males da humanidade, como o Holocausto. O que está por detrás desta ideia é a constatação de que ao montar o seu regime antissemita, os nazis planearam, escolheram, pensaram e executaram. Mas esta constatação não nos diz ainda se tais planos, escolhas e pensamentos eram defensáveis com base numa argumentação aberta, livre e rigorosa — isto é, não nos diz se eram racionais. Como é evidente, não são planos, escolhas e pensamentos defensáveis racionalmente — e era por isso que os nazis fuzilavam quem ousasse discutir as suas ideias. Esta confusão é arrepiante porque mostra até que ponto a própria mentalidade nazi e antirracional está entranhada ainda hoje. Esta é a mentalidade que defende serem os ditames do sangue e da razão “Verdades Absolutas” que nenhuma argumentação pode destronar — mentalidade esta que era a própria essência do nazismo.
Quem não dispõe de uma formação lógica e filosófica adequada pode não distinguir adequadamente entre bons raciocínios e raciocínios sofísticos, e entre a persuasão racional — fruto da argumentação cuidada — e a persuasão irracional (a manipulação) — fruto da sofística. Mas esta diferença é crucial. Se podemos dizer que o Holocausto foi horrível é porque há argumentos fortes a favor desta ideia; e se o nazismo é inaceitável é porque não há quaisquer argumentos fortes a seu favor. Uma pessoa não é manipulada se está a afirmar que não há leite no frigorífico e nós lhe abrimos a porta do frigorífico para ela ver que há. Não há aqui qualquer manipulação; há apenas persuasão racional. Analogamente, uma pessoa não é manipulada se pensar que matar judeus é bom porque é necessário purificar a raça ariana e se nós lhe mostrarmos que não há qualquer argumento forte a favor de tão pavorosa ideia. A manipulação ocorre quando se usam sofismas, ameaças e outros dispositivos psicológicos mais subtis — e tanto mais perigosos por isso mesmo — para persuadir as pessoas, de forma ilegítima, a fazer ou a pensar o que elas não quereriam fazer ou pensar se lhes fossem fornecidos os dados relevantes e se lhes fosse dada uma genuína oportunidade para pensar cuidadosamente.
A argumentação livre é uma das condições de possibilidade de uma verdadeira democracia e liberdade, e vice-versa. Mas a argumentação tem de ser ensinada e praticada. Quando não se faz tal coisa, as pessoas tomam o argumento mais honesto, rigoroso e cuidadosamente exposto como um sofisma, ao mesmo tempo que se deixam convencer por qualquer tolice colorida. Há razões psicológicas para isto: se manipularmos cuidadosamente os medos, as esperanças e as ansiedades das pessoas, poderemos fazê-las aceitar o que não têm interesse em aceitar, porque as fazemos crer erradamente que essas coisas são o caminho correto para o que elas querem. Pelo contrário, se somos frontais e honestos, as pessoas sentem-se desconfiadas perante uma proficiência argumentativa que não dominam. Por isso, é crucial que as universidades e escolas ensinem a argumentar e a avaliar a argumentação alheia. Se não o fizerem, a manipulação estará sempre em vantagem — para gáudio daqueles que percebem que o relativismo cognitivo e a desconfiança em relação à racionalidade são as armas ideais para fazer o contrário do que os relativistas desejariam: uma sociedade livre e democrática, aberta e justa.
É por esta razão que as atuais teorias da cidadania dão tanta importância à educação. Sem uma cidadania ativa não há democracia real, ainda que subsista uma democracia institucional e formal. Se os cidadãos não tiverem preparação para discutir racionalmente e pensar criticamente, a democracia fica em perigo por dois motivos. Em primeiro lugar, os cidadãos serão facilmente manipulados, de modo a votar e escolher contra os seus próprios interesses. Sem formação apropriada, as pessoas têm muitas vezes crenças e desejos inconsistentes, que podem ser explorados pelos manipuladores políticos e económicos. Por exemplo, muitas pessoas desejam estabilidade total no emprego, ordenados elevados e preços baixos. Mas estes três desejos são em grande parte incompatíveis. Se tivermos estabilidade no emprego, não haverá concorrência entre empregadores e portanto os ordenados não aumentam; se tivermos ordenados elevados, os preços ao consumidor terão de ser elevados porque esses preços dependem substancialmente dos encargos dos empregadores com os ordenados. Em segundo lugar, sem preparação para discutir racionalmente e pensar criticamente, os cidadãos passarão a reger-se pelo princípio irracional NIMBY — not in my backyard (“no meu quintal, não”). Isto é, os cidadãos serão incapazes de pensar racionalmente, de forma imparcial. A discussão pública, que deve ser racional e imparcial, transforma-se em negociação irracional: é a guerra hobbesiana de todos contra todos, ainda que se trate de uma guerra de palavras e decisões.
Em ambos os casos, é a sociedade no seu todo que fica pior — quer porque se decide em função dos interesses dos mais eficientes em matéria de manipulação, quer porque os próprios cidadãos não atendem à necessidade de pensar e decidir de forma imparcial. Sem uma formação adequada em lógica e filosofia, o cidadão adopta o mito de que em matéria “científica” há verdades que não podem ser contestadas porque estão provadas, ao passo que noutras matérias — legais, morais, económicas, políticas — é o reino da negociação irracional porque não há “provas científicas”. Isto revela uma incompreensão básica tanto das “provas científicas” — que mais não são do que a aplicação cuidada e sistemática da observação e argumentação racional — como da argumentação legal, moral ou política — que, adequadamente praticadas, têm exatamente o mesmo grau de objetividade do que a argumentação científica.
O ensino e a prática da filosofia (assim como das ciências ou das artes) não prosperam em ambientes fechados. Precisam de liberdade para discutir ideias, corrigir teorias, reformular problemas, avaliar argumentos. É esta liberdade das ideias que se difunde depois pela sociedade no seu todo e está na origem dos atuais regimes democráticos liberais. Não foi a liberdade política que criou a filosofia, pois a Grécia antiga não era mais livre do que outras sociedades anteriores e posteriores que nunca criaram filosofia; foi a filosofia que inventou a liberdade política — porque a opressão política é racionalmente indefensável. Assim, se queremos desenvolver e aprofundar a liberdade, temos de desenvolver e aprofundar o estudo e o ensino de qualidade da filosofia, num clima de liberdade académica e escolar. Quem for exposto a um ensino de qualidade da filosofia leva consigo esse legado invisível cuja importância é difícil exagerar: dará valor à liberdade e à discussão racional, à argumentação cuidada e à ponderação rigorosa. Em suma, terá descoberto a capacidade fundamentalmente humana para nos reinventarmos.
A discussão livre de ideias — no parlamento ou na televisão, num tribunal ou num jornal, nas universidades ou nas escolas — é uma das maiores conquistas da civilização. É uma conquista frágil e que urge defender. É importante defendê-la porque todas as pessoas cometem erros e só a discussão pública permite a correção mútua dos nossos erros. E é isso que permite tomar melhores decisões, decisões que de um ponto de vista imparcial melhorem as nossas vidas — e não as decisões que favorecem quem grita mais alto, ou quem tem mais poder. Ironicamente, uma sociedade que sistematicamente beneficie quem tem mais poder ou grita irracionalmente mais alto será sempre uma sociedade com menos bem-estar e mais pobreza do que uma sociedade que sistematicamente procure determinar, pela discussão livre, o que é imparcialmente melhor para o maior número de pessoas.
Poucas pessoas conhecem as disciplinas filosóficas com impacto na vida pública, como a ética aplicada. Por isso, não sabem que mesmo os filósofos que se opõem à ideia de que os animais não humanos têm direitos, ou que sejam de qualquer outro modo objeto de consideração moral, defendem a ideia de que o modo como tratamos os animais não humanos é eticamente importante. Não há virtualmente especialistas em ética aplicada que defendam que todas e quaisquer experiências laboratoriais com animais não humanos são defensáveis, nem que o modo como são tratados pela indústria alimentar é aceitável. Os filósofos — como aliás os cientistas — interessam-se sobretudo pelos problemas em aberto e consequentemente pelo que ainda está em disputa. O leitor incauto de ética aplicada pode ser levado a pensar que há um grande desacordo entre os filósofos sobre o modo como devemos tratar os animais não humanos. Que há desacordo é verdade, mas esse desacordo é muito mais de carácter acadêmico e de pormenor do que prático e geral; na prática, a generalidade dos especialistas em ética aplicada defende que é moralmente inaceitável tratar os animais não humanos como atualmente são tratados pela indústria alimentar e pelos laboratórios que testam produtos tóxicos em animais não humanos.
Os defensores da importância moral dos animais não humanos dividem-se em dois grupos: os que defendem que os animais não humanos têm literalmente direitos (como Tom Reagan), e os que defendem que não têm direitos (como Peter Singer), mas que é eticamente errado fazer os animais não humanos sofrer sem qualquer razão adequada. Os que defendem que os animais não humanos não têm direitos defendem-no por pensar que a linguagem dos direitos é enganadora e confusa. Defendem que os animais não humanos não têm direitos porque, literalmente falando, ninguém tem direitos — nem os seres humanos. O que os seres têm é interesses, a satisfação dos quais deve ser garantida na máxima extensão possível.
Os filósofos que se opõem aos defensores dos animais não humanos fazem-no em geral do ponto de vista dos direitos. E o axioma básico dos que se opõem aos direitos dos animais não humanos é a ideia de que só quem tem deveres pode ter direitos. É muito difícil defender adequadamente esta ideia, pois é necessário entrar em labirintos argumentativos para demonstrar que um bebé, um deficiente mental profundo ou um doente terminal em coma têm ainda direitos, apesar de não terem obviamente deveres. Todavia, admita-se a título de hipótese que estes filósofos têm razão — que os animais não humanos não têm direitos, ao passo que todos os membros da nossa espécie têm direitos.
Resta saber se, sob esta hipótese, é moralmente permissível torturar animais não humanos ou fazê-los sofrer. Filósofos como Michael Allen Fox e David Oderberg consideram que, apesar de os animais não humanos não terem direitos, não podemos dispor deles como se fossem meros objetos. A ideia é que apesar de moralmente não termos obrigações para com os animais não humanos, não devemos ser cruéis. Dado que muitas das práticas atuais da indústria alimentar, da experimentação científica e do desporto são cruéis, devem ser abolidas. Do ponto de vista do público, pouca diferença faz que estes filósofos se oponham à ideia de que os animais não humanos têm direitos, ou à ideia de que é moralmente inaceitável fazê-los sofrer, porque na prática acabam por defender que não devemos ser cruéis para com os animais não humanos.
Por “ser cruel” entende-se, neste contexto, “provocar sofrimento evitável”. Em igualdade de circunstâncias, uma pessoa cruel é moralmente pior do que uma pessoa que não seja cruel, independentemente do objeto da sua crueldade. Assim, mesmo que o sofrimento dos animais não tenha relevância moral, é moralmente inaceitável provocar-lhes sofrimento evitável porque quem o faz é moralmente pior. Para os filósofos consequencialistas, a crueldade é um mal moral em virtude das consequências que é legítimo prever; para os não consequencialistas, a crueldade é um mal porque é em si moralmente inaceitável, ainda que as suas consequências morais sejam nulas. Se multiplicarmos a crueldade, tornando-a uma indústria, como é o caso da indústria alimentar, teremos uma situação eticamente indefensável tanto para consequencialistas como para não consequencialistas. Como nas sociedades desenvolvidas de hoje temos acesso a um vasto leque de produtos vegetarianos que permitem ter uma dieta pelo menos tão saudável, variada e saborosa como uma dieta que inclua animais, mas sem a crueldade associada ao consumo de animais, o fardo da prova está do lado de quem quer continuar a comer animais.
Uma forma de poder continuar a consumir animais não humanos é eliminar o sofrimento a que estes têm de ser sujeitos. Assim, o defensor da dieta que inclua animais pode sublinhar que apesar de o modo como a indústria trata os animais não humanos ser inaceitável, em princípio poderíamos ter uma indústria mais humana, que eliminasse o sofrimento provocado; e, nesse caso, comer animais seria eticamente aceitável. Este é um dos argumentos mais usados — contra o qual se levanta o argumento minimalista a favor do vegetarianismo. Mesmo alguns defensores do igual peso moral dos interesses dos animais não humanos defendem que seria eticamente correto comer animais desde que tal prática não provocasse sofrimento nos animais. Uma experiência mental torna mais claro o que há de errado nesta posição.
Imagine-se que todos os meses alguém vai passar um fim-de-semana ao campo e que ao passar por um dado caminho atropela sempre uma raposa; por um motivo qualquer, há sempre raposas naquele caminho particular e a pessoa conduz sempre de maneira a não evitar atropelar as raposas. Todavia, bastar-lhe-ia desviar ligeiramente a trajetória do carro para não matar a raposa. Não evitar matar a raposa é eticamente inaceitável, ainda que as raposas não tenham quaisquer direitos nem os seus interesses peso moral, porque é cruel: elas sofrem com essa morte. Se nada custa desviar ligeiramente a trajetória, a insistência em matar todos os meses uma raposa é eticamente inaceitável. Compare-se com passar todos os meses por cima de uma pedra; como tal ação não envolve qualquer crueldade, não é em si moralmente condenável. Ora, a situação imaginária das raposas é análoga ao nosso estilo de vida atual no que respeita ao modo como os animais não humanos são tratados. Nada custa alterar muito ligeiramente o nosso estilo de vida, deixando de comer animais e produtos lácteos. Persistir em fazê-lo, ainda que os animais não humanos não tenham direitos nem interesses com peso moral, é moralmente equivalente ao atropelamento das raposas, porque implica crueldade: os animais sofrem. Argumentar que podemos comer animais desde que encontremos formas de eliminar o seu sofrimento é equivalente a dizer que é moralmente aceitável que se atropele as raposas, desde que tome medidas para que morram sem sofrer. Contudo, é absurdo pensar que alguém se possa dar ao trabalho de tentar garantir que as raposas morram sem sofrimento com o atropelamento, quando é muitíssimo mais simples desviar a trajetória do automóvel. O ponto importante é precisamente a facilidade com que se pode mudar de dieta, de uma semana para a outra, sem com isso perder a variedade, o requinte e o valor alimentar da dieta. É fácil ter um estilo de vida que exclua a crueldade para com os animais não humanos. Na verdade, é um pouco desesperante que seja tão difícil persuadir alguém a tornar-se vegetariano por motivos éticos, ao passo que é muito fácil persuadir as pessoas a tornarem-se vegetarianas por motivos exclusivamente dietéticos.
O que está em causa na experiência mental é que não faz sentido, moralmente falando, conceber e pôr em prática formas cada vez mais sofisticadas de criar e matar sem fazer sofrer os animais não humanos que queremos comer. Não faz sentido dado que fazer isso é muitíssimo mais trabalhoso do que o abandono puro e simples da alimentação que inclua animais. O aspecto importante torna-se talvez mais claro quando se pensa em animais não humanos com os quais mantemos uma relação especial, como os cães e gatos. Admitindo que os cães e gatos não têm quaisquer direitos nem interesses com peso moral, criar cães e gatos em boas condições para depois os matar sem sofrimento para os comer não é, todavia, eticamente aceitável; é cruel e desumano, mesmo que matemos os animais sem lhes provocar sofrimento, porque implica a manipulação e manutenção das suas vidas com o objetivo de lucrar com a sua morte.
Um contra-argumento a esta ideia é o seguinte: só porque na nossa cultura temos uma relação de grande proximidade com cães e gatos é que poderemos achar eticamente inaceitável matá-los para comer. Noutras culturas é comum criar cães, por exemplo, para comer. A resposta a este contra-argumento é a seguinte: o facto de estarmos mais próximos de cães e gatos mostra precisamente que se dermos atenção aos animais não humanos que nos dispomos a matar para comer, ao invés de pensarmos neles apenas como um produto que se compra no supermercado, as nossas intuições éticas vão no sentido de não matar nem comer esses animais, porque a crueldade que isso implica torna-se evidente. A cultura é um filtro poderoso, que nos pode cegar para o que é fácil compreender ser inaceitável, se o considerarmos imparcialmente. A escravatura é um caso extremo; o facto de estar culturalmente instituída faz pessoas que de outro modo são eticamente justas ficar cegas para a injustiça do esclavagismo. O mesmo acontece no caso da desigualdade das mulheres e dos seus direitos mais básicos, como o direito de voto. Assim, a cultura atual não nos cega em relação a cães e gatos, quando nos faz pensar ser eticamente inaceitável comê-los; ao invés, cega-nos ao fazer-nos pensar que comer outros tipos de animais não humanos é eticamente aceitável.
Um segundo tipo de argumento a favor de incluir animais não humanos na nossa alimentação é o seguinte: se não consumirmos os animais que consumimos, como vacas, porcos, peixe, galináceos e outros animais, serão os seus predadores naturais a comê-los. Assim, esses animais serão igualmente mortos, por vezes com bastante sofrimento, com a única diferença de que não serão mortos e criados por nós com vista a alimentar a nossa dieta. Dado que esses animais serão em qualquer caso mortos e comidos, não pode ser eticamente inaceitável que sejamos nós a matá-los e comê-los. A resposta a este argumento é a seguinte: se deixarmos a natureza correr o seu curso, os seres humanos farão muitas vezes parte da ementa dos seus predadores naturais; mas daí não se segue que seja eticamente aceitável matarmos seres humanos para comer. Pode-se argumentar que isso acontece unicamente porque os seres humanos têm direitos ou interesses com peso moral, ao passo que os animais não humanos não os têm (esta é a nossa hipótese de partida). Contudo, apesar de os cães e os gatos terem predadores naturais, consideramos cruel e inaceitável matá-los para os comer; não é por isso verdade que basta que os animais não humanos não tenham direitos ou interesses com peso moral e que tenham predadores naturais para que seja eticamente aceitável matá-los para os comer. O mundo da natureza é brutal e selvagem; faz parte da civilização e da reflexão ética adoptar práticas diferentes das do mundo da natureza, onde reina a lei do mais forte. Procurar orientação moral no mundo da natureza é algo que tanto os filósofos consequencialistas como os não consequencialistas não fazem. Na natureza, os animais não humanos fazem todo o tipo de coisas que não estamos dispostos a imitar, e não há razão para os imitar neste caso em particular só porque queremos comer um bife grelhado, que podemos facilmente substituir por uma feijoada vegetariana. Assim, também este argumento é insuficiente para justificar eticamente a nossa dieta baseada em animais.
Um terceiro tipo de argumento a favor da inclusão de animais na nossa dieta é o seguinte: em muitas culturas, como a esquimó, é pura e simplesmente impossível sobreviver sem comer e matar animais para todo o tipo de fins. Logo, o vegetarianismo falha em obedecer a um axioma fundamental da ética: o impossível não pode ser um dever moral. A resposta a este argumento é a seguinte: colocados em certas situações extremas, alguns seres humanos já se viram na necessidade de comer os seus mortos, ou de matar os seus companheiros para comer. Daqui não se segue que tais práticas se possam aceitar em geral; são talvez aceitáveis em certas situações, mas precisamente porque são horríveis, procuramos planear a nossa vida de modo a que não ocorram. Ora, o mesmo podemos dizer de culturas que dependem fortemente da crueldade. Grande parte da história da humanidade baseou-se na exploração cruel de escravos para conseguir feitos que hoje consideramos admiráveis, como as pirâmides do Egito. Mas daqui não se segue que devemos preservar este tipo de culturas cruéis; pelo contrário, devemos reformar essas culturas de modo a que as suas práticas cruéis desapareçam, dando lugar a uma cultura mais humanitária. Por outro lado, o vegetarianismo é praticado em muitas culturas humanas. Uma das vantagens do estado de conhecimento geral das culturas humanas a que chegámos é o de podermos escolher as melhores práticas das várias culturas conhecidas. É verdade que em muitas situações um ser humano não pode subsistir sem comer animais, por não ter à sua disposição produtos adequados para uma dieta vegetariana equilibrada. Mas numa sociedade da abundância como é o caso da ocidental, que é precisamente onde se come mais animais, é tão fácil ser vegetariano como não o ser: em ambos os casos, basta ir ao supermercado.
Um argumento associado a este faz notar que certos requisitos para uma alimentação saudável só estão facilmente acessíveis em produtos de origem animal. Na verdade, o consumo de carne poderá ter sido um fator importantíssimo para a nossa evolução como espécie. Logo, é permissível consumir animais não humanos, ainda que tenhamos o dever de evitar o seu sofrimento tanto quanto possível. A resposta a este argumento é dupla. Por um lado, é falso que hoje em dia tenhamos de recorrer a produtos de origem animal para ter uma alimentação saudável. Numa sociedade de pobreza relativa e com pouca diversidade de produtos isso poderá ser verdade, mas não o é nas sociedades ocidentais da abundância — que são precisamente as sociedades onde mais se consomem produtos de origem animal. Por outro lado, mesmo que para a nossa evolução tenha sido importante consumir carne, hoje isso não é necessário porque podemos obter os mesmos nutrientes consumindo alimentos vegetarianos. Logo, não há realmente uma boa razão para continuar a consumir produtos que provoquem sofrimento aos animais.
Pode-se chamar “remotos” a um tipo de argumentos a favor do consumo de animais não humanos; são remotos no sentido em que exploram possibilidades remotas. Eis alguns desses argumentos: ainda que nos abstivéssemos de matar animais para comer, poderíamos criar um sistema que nos permitisse comer os animais mortos pelos seus predadores naturais. Ou poderíamos distinguir entre os animais que provavelmente não têm a possibilidade de sentir dor ou sofrimento, que aceitaríamos matar e comer, e os outros. Assim, não mataríamos vacas, porcos, aves ou peixe, mas mataríamos moluscos para comer, por exemplo.
A resposta a este tipo de argumentos é sublinhar o facto de o consumo de animais ser perfeitamente supérfluo; os seres humanos não precisam de consumir animais para ter uma dieta variada, saudável e rica. Explorar algumas possibilidades remotas é inútil. Talvez os caracóis, por exemplo, não tenham um sistema nervoso suficientemente desenvolvido para sentir dor e sofrimento quando são cozidos vivos. Mas não há qualquer razão para os continuarmos a comer quando podemos comer muitos outros petiscos inteiramente vegetarianos. É neste sentido que, num certo sentido, o melhor argumento a favor do vegetarianismo é um bom livro de receitas vegetariano, ou um bom restaurante vegetariano. Quando se descobre a enorme variedade de pratos vegetarianos não se sente necessidade de complementar a dieta com produtos de origem animal. Só uma cultura excessivamente baseada em produtos de origem animal pode fazer pensar o contrário — como talvez nas culturas em que é normal comer cães seja difícil de conceber uma dieta que não inclua caninos.
Outro tipo de argumento remoto é defender que se não consumíssemos animais, existiriam muitíssimo menos galinhas, porcos e vacas do que existem. Uma vez mais, este é um argumento insuficiente contra o vegetarianismo; sem dúvida que existiriam menos animais domésticos, mas existiria mais vida selvagem, cuja observação é cada vez mais uma fonte de grande prazer para grande parte dos seres humanos.
Em conclusão, não há quaisquer razões a favor do consumo de animais, mesmo sob a hipótese de os animais não humanos não terem quaisquer direitos nem interesses com peso moral. Há dois fatores que conduzem a esta conclusão: por um lado, é muito fácil ter uma dieta vegetariana rica, variada e saudável; por outro, matar animais para comer é um ato cruel porque eles sentem dor. A conjunção destes dois fatores torna muito difícil defender a ética do consumo de animais. Claro que não será impossível de defender; com um pouco de criatividade podemos encontrar argumentos para tudo, que podem parecer convincentes, apesar de serem muito maus — basta pensar nos argumentos nazis a favor do racismo. Assim, a conclusão mais razoável é um argumento cautelar: ainda que se levantem alguns argumentos a favor do consumo de animais, o facto de uma dieta vegetariana ser tão fácil, variada, rica e saudável impõe a recusa do consumo de animais como uma medida de cautela moral. Mais vale errar porque podemos consumir alguns animais de que nos abstemos, do que errar porque consumimos alguns animais de que nos devíamos eticamente abster.
Há uma tendência para pensar que os animais não humanos não podem ser objeto de proteção jurídica. Esta ideia baseia-se na premissa de que os animais não humanos não têm relevância moral. O argumento mais intuitivo a favor desta premissa baseia-se na ideia de que os animais não humanos não têm direitos porque não têm deveres. Mas este argumento é muitíssimo fraco dado que os bebés não têm deveres mas têm direitos. O mesmo acontece com os idosos senis ou as pessoas em coma profundo. Em nenhum destes casos essas pessoas não têm direitos só porque não têm deveres. Para escapar a este contraexemplo óbvio, pode-se defender uma posição mais sofisticada: um membro de uma dada espécie só tem direitos se outros membros dessa mesma espécie têm deveres. Deste modo, os bebés ou os idosos senis têm direitos, apesar de não terem efetivamente deveres, porque outros membros da sua espécie têm deveres. Mas os animais não humanos não têm direitos porque nenhum membro das diversas espécies não humanas de animais tem deveres.
O problema desta ideia é não haver qualquer razão independente para escolher a espécie como fronteira moral relevante. Podemos com igual arbitrariedade escolher o gênero ou a família (no sentido biológico), e dizer que um membro de um gênero biológico tem direitos se pelo menos alguns membros desse gênero têm deveres. Esta ideia até é mais plausível, dado que quem defende o argumento original não quereria provavelmente aceitar que se acaso descobríssemos um grupo de Homo habilis algures no planeta, esses hominídeos não teriam direitos. Mas isto significa que a escolha da espécie em detrimento do gênero ou da família é arbitrária. É por isso que o argumento original é especista: do mesmo modo que os racistas ou os colonialistas introduzem distinções moralmente arbitrárias entre certos grupos humanos, este argumento introduz uma distinção moralmente arbitrária entre espécies biológicas. As distinções deste tipo são moralmente arbitrárias porque não é possível defendê-las de forma não circular. A única defesa da ideia de que os membros de uma dada raça não têm direitos, ou têm menos direitos, é porque pertencem a essa raça; a única defesa da ideia de que os animais não humanos não têm direitos é porque não pertencem à nossa espécie.
Uma segunda versão do mesmo argumento contra os direitos dos animais não humanos é a seguinte: os animais não humanos não têm direitos porque os direitos são o resultado de uma espécie de contrato social entre os membros de uma comunidade. Dado que os animais não humanos são incapazes sequer de compreender tal contrato social, não têm direitos. A fraqueza deste argumento é, curiosamente, a sua força aparente. A sua força aparente resulta do apelo que faz a uma dada teoria dos direitos, a teoria do contrato social. E isso dá-lhe um ar de sofisticação e profundidade teórica. Contudo, é falacioso argumentar a favor de algo com base em teorias tão ou mais discutíveis do que a conclusão que se deseja alcançar. Se não fosse falacioso argumentar dessa maneira, teríamos de aceitar todos os argumentos a favor dos OVNI, por exemplo, que se baseiam em teorias da conspiração muito elaboradas. Ora, o que torna estes argumentos fracos é o facto de tais teorias da conspiração serem tão ou mais implausíveis do que a conclusão que procuram estabelecer.
Algo de semelhante acontece quando se procura estabelecer uma conclusão qualquer com base em teorias filosóficas que estão longe de ser consensuais. A teoria contratualista é uma dessas teorias. Logo, qualquer argumento que use esta teoria como premissa é muito fraco. A força de um argumento nunca é superior à plausibilidade da sua premissa menos plausível. Dado que a teoria contratualista dos direitos, sendo plausível, está longe de ser universalmente aceitável, segue-se que qualquer conclusão baseada nesta teoria, ainda que seja plausível, está longe de ser universalmente aceitável.
Curiosamente, uma das fraquezas da teoria contratualista dos direitos é precisamente o facto de implicar uma arbitrariedade: a arbitrariedade de considerar que os bebés, idosos senis, doentes em coma, etc., apesar de serem incapazes de fazer qualquer contrato social conosco, têm contudo direitos. A única justificação para defender que tais membros têm direitos é outra vez a ideia de que outros membros da sua espécie ou do seu grupo têm a capacidade para compreender e fazer contratos. Mais uma vez, apela-se a uma arbitrariedade especista para resolver o problema de fundo da teoria em causa.
Um segundo tipo de argumento contra a proteção dos animais não humanos é a ideia de que a lei não protege os animais não humanos; como a lei não os protege, não os deve proteger. Este argumento é muito fraco, dado que se o aceitamos, temos de aceitar que o apartheid ou a escravatura ou as leis que impediam as mulheres de votar eram perfeitamente aceitáveis só porque eram leis. O que está em discussão é saber se a lei deve passar a proteger os animais, ainda que não o faça hoje em dia. É a ética que deve determinar a lei, não é a lei que deve determinar a ética — caso contrário, teríamos de aceitar como eticamente corretas todas as leis antissemitas de Hitler, por exemplo.
Curiosamente, este argumento falha também por se basear numa premissa falsa: a ideia de que os animais não humanos não são protegidos pela lei. Os animais não humanos são efetivamente protegidos pela lei e é o seu bem-estar que está em causa em muitas leis que regulam o transporte de animais não humanos vivos, por exemplo, ou o modo como têm de ser abatidos nos matadouros. O problema legal que temos é a inconsistência em que nos encontramos. Algumas das leis que temos só fazem sentido se aceitarmos que o bem-estar dos animais não humanos tem de ser levado em linha de conta. Mas ao mesmo tempo não somos consistentes com essa ideia e não encaramos com seriedade o que tem de ser feito para proteger adequadamente os animais. Somos como uma sociedade esclavagista, que nega aos escravos a proteção legal mais elementar, mas depois tem várias disposições que só fazem sentido sob a suposição de que os escravos têm direito à proteção legal.
Outro argumento semelhante a este baseia-se na ideia de que, à luz da lei, os animais são coisas, sendo tratados como propriedade e não como agentes autónomos. Uma vez mais, este argumento falha o alvo porque a questão não é saber o que a lei determina, mas saber o que a lei deve determinar à luz da ética. As leis esclavagistas determinavam igualmente que os escravos eram propriedade de alguém, mas não estavam menos erradas por isso. Logo, do facto de os animais não humanos serem efetivamente tratados como propriedade pela lei não se segue que o devam ser. E mesmo que possam ser tratados como propriedade, daí não se segue que não devam ser protegidos pela lei. Os animais não humanos são de facto protegidos pela lei, apesar de serem propriedade — mas essa proteção é tímida, muitas vezes inconsequente e inconsistente.
Outro tipo de argumento contra a proteção dos animais não humanos faz apelo a noções de “superioridade” e “inferioridade”. A ideia é que os animais não humanos não podem ter o mesmo tipo de proteção do que os seres humanos, porque são inferiores aos seres humanos. Curiosamente, num certo sentido da palavra “inferior”, as coisas devem passar-se exatamente ao contrário, pois é precisamente porque as crianças, por exemplo, são “inferiores” aos adultos, num certo sentido, que merecem uma proteção especial. Mas o argumento tem uma certa plausibilidade: não faz sentido lutar pelo direito de voto das pulgas, por exemplo. Contudo, quem defende a proteção legal dos animais não humanos não defende que todos os animais não humanos merecem exatamente a mesma proteção. O que está em causa não é tratar todos os animais não humanos por igual, mas antes dar aos animais não humanos a proteção adequada às suas características biológicas moralmente relevantes. De entre as características biológicas moralmente relevantes destacam-se três:
1. A capacidade para sentir dor;
2. A capacidade para sofrer; e
3. A capacidade para ter certos aspectos da consciência de si.
É verdade que, dadas as suas capacidades para se projetarem no futuro, para sentir sofrimento e não apenas dor, para ter projetos de longo prazo, etc., os seres humanos têm interesses muito complexos que qualquer enquadramento legal tem de ter em consideração. Mas daqui não se segue que os animais não humanos não tenham quaisquer interesses e não sejam dignos de enquadramento legal adequado.
Finalmente, há o argumento de que é ridículo proteger os animais não humanos porque para andar de automóvel, por exemplo, matamos imensos mosquitos, para curar doenças matamos imensas bactérias e para salvar vidas humanas fazemos experiências cruciais em animais não humanos. Este argumento é muito fraco, pois proteger os animais não humanos não implica que não podemos fazer experiências científicas com eles, nem que não podemos matar mosquitos. O mundo não é a preto e branco. Matar mosquitos é uma coisa muito diferente de fazer uma tourada, ou de tratar os animais como são tratados na indústria alimentar. Fazer experiências científicas para salvar vidas humanas é uma coisa muito diferente de fazer experiências para saber quais são as reações dos cães ao serem metidos vivos em fornos, ou para determinar o grau de toxicidade de um novo cosmético. Do facto de ser moralmente aceitável provocar algum sofrimento em prol de um bem maior não se segue que provocar todo e qualquer sofrimento é moralmente aceitável. Com certeza que não podemos evitar matar mosquitos ao andar de automóvel, mas isso é muito diferente de fazer touradas ou de criar vacas industrialmente em condições que lhes provocam imenso sofrimento, para depois as comermos. Com certeza que poderemos ter de fazer algumas experiências científicas cruciais em animais não humanos — tal como fazemos em seres humanos — mas daí não se segue que toda e qualquer experiência científica com animais é moralmente aceitável.
Conclui-se que os argumentos habitualmente usados contra a proteção dos animais não humanos estão errados. Os animais não humanos exigem proteção porque a dor e o sofrimento são males em si. E ainda que não seja possível expurgar totalmente a dor e o sofrimento do universo, dado que o mundo natural se baseia numa cadeia alimentar cruel e sangrenta, podemos pelo menos fazer o possível para não participar na crueldade natural. Não fazer isso é recusar dar um passo crucial na direção de uma vida moral e de uma sociedade civilizada.
Bertrand Russell foi um dos maiores filósofos do séc. XX e um dos fundadores da filosofia analítica. Verdade seja dita, Russell é parcialmente responsável por parte dos preconceitos que grassam contra este movimento filosófico. Russell ganhou o prémio Nobel da Literatura em 1950, e sempre foi uma figura pública, intervindo em várias frentes como humanista e pacifista, pelo que era relativamente conhecido mesmo no Portugal marcelista. Como muitas pessoas não conhecem mais filósofos analíticos exceto Carnap, e como ambos eram ateus, a inferência errada não se fez esperar e hoje pensa-se que os filósofos analíticos são todos ateus, ou que a sua maioria o é, ou que a filosofia analítica é intrinsecamente ateia. Isto é falso, pois Dummett, Swinburne, Plantinga e muitos outros filósofos analíticos muitíssimo importantes são cristãos e alguns católicos. Acresce que Russell nunca foi positivista lógico e sempre deplorou a recusa positivista da metafísica; além disso, sempre se opôs ao movimento da filosofia da linguagem corrente, o que mostra bem até que ponto a informação histórica sobre alguns dos movimentos filosóficos mais importantes do séc. XX está confundida, pois pensa-se por vezes que Russell era positivista lógico e partidário da filosofia da linguagem corrente.
O ateísmo de Russell resultou da sua mente inquisitiva, e manifestou-se muito antes de ter ajudado a fundar a filosofia analítica. Nascido a 18 de Maio de 1872 numa família aristocrática mas liberal, Russell foi criado pela avó. Os seus pais morreram quando Russell era ainda criança, de modo que não pôde usufruir do ambiente liberal e criativo cultivado por eles, que constituíam um casal controverso, trabalhando em prol de causas públicas como a livre contracepção. O ambiente formal, cinzento, puritano e frívolo em que Russell foi criado produziram nele solidão e isolamento. Russell tinha de simular ser o rapazinho de sociedade e boas maneiras que a avó queria que ele fosse — vivendo uma vida paralela secreta em que devorava livros e se refugiava no mundo do pensamento. Uma das suas primeiras alegrias foi a descoberta da geometria, que o maravilhou sobremaneira pelo rigor das demonstrações e pela certeza que ofereciam.
Russell cedo teve de enfrentar a sua terrível avó: apaixonou-se por Alys Pearsall Smith, uma quaker americana que a avó sentia não pertencer à classe social apropriada para o neto. Tentou demovê-lo usando os mais ultrajantes métodos, a que Russell se submeteu com tranquilidade, acabando por vencer esta batalha contra o preconceito. Ao longo da vida, enfrentou muitas vezes os preconceitos alheios, casando-se, divorciando-se, apaixonando-se e conduzindo uma vida sentimental maravilhosamente “escandalosa”.
Ao longo da vida, Russell lutou muitas vezes contra as ideias feitas sem se deixar abater. Quando a população britânica acolheu com júbilo a ideia de declarar guerra à Alemanha, em 1914, Russell resistiu. Quando os Estados Unidos procuraram, na sequência da segunda guerra mundial, tirar dividendos da situação de debilidade económica, social e militar da Grã-Bretanha, Russell foi também uma das poucas pessoas a opor-se terminantemente à subtil chantagem americana. Quando a guerra-fria estava no seu auge, Russell foi dos primeiros intelectuais a lutar contra as armas de destruição maciça. Aquando da Guerra do Vietname, Russell foi dos primeiros a denunciar publicamente as atrocidades que os americanos estavam a levar a cabo numa guerra sem sentido.
A independência intelectual, o espírito crítico, o poder de reflexão, o domínio da argumentação — os frutos e as armas da filosofia — não foram para Russell meras palavras sem conteúdo, mas antes princípios que orientaram a sua vida pública. Não é fácil entre nós conceber que a filosofia possa ser responsável pela independência de espírito necessária para colocar a felicidade e o bem-estar dos seres humanos acima dos cegos ditames do preconceito. Mas isto é o que acontece quando em filosofia se aprende a discutir ideias e a pensar autonomamente, em vez de nos limitarmos a associar palavras e a citar frases de filósofos mortos. A filosofia é uma atividade crítica, criativa e viva e a intervenção de Russell na vida pública é um dos exemplos do poder da reflexão para ultrapassar os preconceitos do nosso tempo.
Quando ingressou na Universidade de Cambridge para estudar filosofia, esta estava dominada pelo idealismo hegeliano. Os representantes britânicos de Hegel eram McTaggart e Bradley. O idealismo do filósofo irlandês George Berkeley era também influente. Apesar disso, o idealismo não era encarado como um pressuposto que fosse proibido discutir sob pena de excomunhão. Tanto Moore como Russell discutiam com os seus professores idealistas mesmo quando ainda eram estudantes; e a prática de apresentar conferências, muitas vezes proferidas por estudantes de pós-graduação, seguidas de verdadeiro debate, era já comum em Cambridge, no final do séc. XIX. O realismo que haveria de dar um traço distintivo à filosofia analítica nasceu desta oposição de Russell e Moore ao idealismo hegeliano. E apesar de anos depois os positivistas lógicos terem voltado a abraçar uma forma de idealismo, desta vez linguístico, a filosofia analítica voltou às suas origens realistas a partir dos anos setenta do séc. XX, nomeadamente com Saul Kripke.
O trabalho mais importante de Russell, que lhe assegurou um lugar definitivo junto dos maiores filósofos de sempre, situa-se na esotérica área da “lógica filosófica”, uma expressão que ele próprio introduziu. A lógica filosófica não é bem uma disciplina filosófica, como a metafísica ou a ética, mas antes um agregado de problemas de várias áreas e uma maneira de os enfrentar. A lógica filosófica ocupa-se de questões de metafísica e epistemologia, mas também de filosofia da lógica, usando com rigor instrumentos derivados da lógica. É um pouco como aplicar pela primeira vez a matemática à física, como o fizeram os fundadores da física moderna. Neste caso, trata-se de aplicar as técnicas de reflexão e análise que obtemos da lógica para enfrentar problemas e teorias de outras áreas da filosofia que não a lógica propriamente dita.
Toda a gente tem uma ideia, ainda que imprecisa e não muito correta, do que é a matemática. Uma das ideias que as pessoas têm é que a matemática é o domínio da exatidão e da certeza. Deve ser por isso difícil de compreender que o primeiro trabalho de Russell tenha sido a tentativa de tornar a matemática exata e precisa. Russell procurou fazer isso reduzindo a matemática à lógica. Isto é espantoso para o cidadão comum, pois a matemática parece estar bem de saúde e não precisar da ajuda da filosofia nem da lógica. Mas esta é em grande parte uma ilusão que resulta do facto de a matemática que hoje se aprende na escola, com todo o seu rigor, ser parcialmente o resultado do esforço de Russell para reduzir a matemática à lógica. Antes desta tentativa, só a geometria tinha algum rigor; o pensamento matemático baseava-se em princípios lógicos que não eram esclarecidos nem justificados: eram intuitivamente válidos, e era tudo.
A grande contribuição de Russell para a lógica contemporânea foi o facto de ter tido necessidade, para poder reduzir a matemática à lógica, de inventar uma nova lógica. O filósofo alemão Frege perseguia o mesmo objetivo, durante muito tempo sem ter conhecimento de Russell. A lógica de Russell e Frege constitui aquilo a que hoje se chama a “lógica clássica”.
Em 1903, Russell publicou The Principles of Mathematics. No decurso do estudo que conduziu a esta obra, Russell descobriu o trabalho de Frege, que procurava também reduzir a aritmética à lógica. Para isso, Frege tinha-se socorrido da ainda incipiente teoria dos conjuntos. Compreende-se o que Frege fez pensando assim: o que é realmente o número três? Claro, há uma marca no papel, que tanto pode ser “3” como “III” como “três”. E podemos fazer coisas, como contas, com essas marcas no papel. Mas essas marcas no papel referem-se a quê?
Uma boa ideia é pensar que o número três não é mais do que o conjunto de todas as tríades de objetos. Isto pode parecer um truque ridículo, pois parece circular: se eu não soubesse já o que é o número três, como poderia saber o que é o conjunto de todas as tríades de objetos? Mas não há qualquer circularidade envolvida, pois não é necessário usar os conceitos matemáticos de número para ver que dois ou mais conjuntos têm o mesmo número de elementos: limitamo-nos a fazer uma correspondência um a um, entre os elementos dos conjuntos. Por exemplo, mesmo sem saber contar, qualquer criança consegue ver se à frente de cada prato, numa mesa, há ou não o mesmo número de copos.
Assim, pode-se usar esta ideia para definir os números em termos puramente lógicos, socorrendo-nos da teoria dos conjuntos. O número nove, por exemplo, seria o conjunto de todos os conjuntos que têm o mesmo número de elementos do que um dado conjunto que sabemos ter apenas nove elementos. O conjunto de planetas tem nove elementos apenas, por exemplo. Logo, o número nove seria o conjunto de todos os conjuntos que têm o mesmo número de elementos do que o conjunto dos planetas. Podemos abreviar “ter o mesmo número de elementos” para “é equivalente”. Mas é necessário encontrar uma forma de definir em termos puramente lógicos conjuntos que tenham zero, um, dois, três objetos e assim sucessivamente, sem fazer apelo ao nosso conhecimento extra-lógico. Esta dificuldade resolve-se recorrendo ao conjunto de todos os objetos que não são idênticos a si mesmos. Dado que é logicamente impossível que um objeto não seja idêntico a si mesmo, esse conjunto é vazio. Logo, o zero é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes a esse conjunto vazio (). Uma vez que só há um conjunto vazio, podemos definir o número um como o conjunto de todos os conjuntos equivalentes ao conjunto dos conjuntos vazios ({}). E o número dois é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes ao conjunto cujos elementos são o zero e o um ({, {}}) — e assim por diante.
Esta forma de construir logicamente os números está errada porque dá origem a um paradoxo descoberto por Russell e apropriadamente chamado “paradoxo de Russell”. Se para construir conjuntos tudo o que precisamos é de uma condição qualquer, então podemos construir o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos. Por exemplo, o conjunto dos cães não pertence a si mesmo, dado que um conjunto de cães não é um cão. Mas agora temos de nos perguntar se o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos é ou não um membro desse conjunto. E temos uma contradição: se for membro desse conjunto, não pode ser membro desse conjunto, pois só são membros desse conjunto os conjuntos que não são membros de si mesmos; mas se não for membro desse conjunto, terá de ser membro desse conjunto, pois todos os conjuntos que não são membros de si mesmos são membros desse conjunto.
Um paradoxo não é uma falácia nem é apenas um jogo de palavras; um paradoxo revela que algo está errado nos conceitos que estamos a usar ou na maneira como estamos a usá-los. Mas um paradoxo não mostra que tudo está errado na nossa maneira de pensar, porque nesse caso teríamos de parar todo e qualquer pensamento. Um paradoxo é um problema em aberto, algo que tem de ser resolvido — como um crime cujo autor ainda não sabemos quem é. Desistir e afirmar que o crime é uma ilusão e que toda a investigação é inútil só porque é difícil ou declarar que é impossível só porque não se consegue é tacanho.
O paradoxo de Russell deu origem a um dos maiores dramas intelectuais pessoais do século. Quando Russell descobriu o paradoxo escreveu a Frege. Mas a obra de Frege onde este método era sistematicamente explorado estava já no prelo. Frege escreveu um apêndice tentando resolver o problema, mas sem sucesso. E foi o fim do grande projeto de Frege. Russell foi mais insistente. Passou dois anos a tentar resolver o paradoxo, conseguindo finalmente propor a teoria dos tipos, que é uma das melhores soluções para resolver um paradoxo que resiste ainda a uma solução completamente satisfatória.
Na monumental obra em três volumes intitulada Principia Mathematica (publicada entre 1910 e 1913), Russell, em conjunto com Whitehead, expôs então em pormenor a maneira de reconstruir a matemática em termos puramente lógicos. Dado que não podia socorrer-se da forma livre de formar conjuntos de conjuntos usada por Frege, pois era isso que provocava o paradoxo, Russell teve de socorrer-se de outra forma engenhosa de construir os números. Manteve a definição de zero proposta por Frege, mas definiu o número um assim: é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes ao conjunto cujos elementos são os elementos do conjunto vazio e qualquer objeto que não pertença a esse conjunto. O número dois é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes ao conjunto cujos elementos foram usados para definir o número um e qualquer objeto que não pertença a esse conjunto. E assim por diante. Já se vê que Russell precisa de um número infinito de objetos para poder continuar. De modo que teve de admitir um axioma do infinito, o que constitui uma mancha na pureza lógica do seu sistema, pois não é de todo em todo claro que a existência de um número infinito de objetos no universo, ainda que real, seja algo que se possa saber unicamente por meios lógicos.
Num certo sentido, o projeto de reduzir a matemática à lógica foi uma bancarrota. Mas permitiu alguns dos avanços mais importantes do séc. XX. E sem este trabalho exaustivo e de pormenor nunca teríamos os resultados da incompletude de Gödel, publicados em 1931, e onde se demonstra que, num certo sentido, nunca se poderá reduzir a matemática à lógica. Ironicamente, o resultado da incompletude de Gödel obtém-se à custa de um dispositivo semelhante ao paradoxo do mentiroso (que resulta de afirmar “Esta frase é falsa”), que por sua vez tem algumas semelhanças com o paradoxo de Russell. Se há uma lição a retirar deste drama intelectual é que não podemos limitar-nos a anunciar ideias em termos vagos e gerais: é preciso fazer o trabalho duro de pormenor, para ver até onde podemos realmente ir. Se o não fizermos, a filosofia parecer-se-á muito mais com preconceito do que com pensamento lúcido.
A contribuição de Russell para a lógica filosófica foi decisiva. O estilo rigoroso e claro de fazer filosofia — procurando construir teorias em vez de se limitar a delinear em termos gerais como tais teorias poderiam construir-se — é o maior legado de Russell. Ele próprio dificilmente poderia prever quão longe chegaria, na segunda metade do séc. XX, a maneira rigorosa de fazer filosofia que inaugurou. Mas também como figura pública Russell deixou um modelo a seguir; um modelo de razoabilidade e diálogo, mas também de firmeza; um modelo em que se procura fazer valer a voz da razão e não a do impulso primário.
Na área da filosofia da linguagem, a teoria das descrições definidas é outra das contribuições fundamentais de Russell. Esta teoria procura explicar a estrutura lógica de expressões como “O mestre de Platão”. Como é óbvio, esta expressão refere Sócrates. Mas como? Do ponto de vista de Russell, podemos reduzir este tipo de expressões, onde ocorre o artigo definido “o” (ou “a”), a expressões onde tal não ocorre. Assim, “O mestre de Platão” seria o mesmo do que “Há pelo menos uma pessoa que foi mestre de Platão, e não há mais de uma pessoa que tenha sido mestre de Platão”. Esta manobra é aparentemente trivial, mas revela a sua força quando pensamos em casos difíceis como “O atual rei da China é alto”. Dado que não há rei da China, a frase é verdadeira ou falsa? A teoria de Russell permite responder com lucidez a esta pergunta — apesar de estar longe de ser uma teoria consensual.
A longa vida de Russell nem sempre foi a mais feliz. Teve várias ligações amorosas, entregando-se a cada uma com uma paixão devoradora e saindo delas magoado e triste. Amava a poesia e morria por dentro com o sofrimento alheio. Procurou uma compreensão mais clara da natureza última da realidade e uma certeza inabalável, que resistisse a todas as dúvidas, mas não a encontrou. Não obstante, é um monumento ao que um espírito humano pode fazer no plano intelectual, espiritual e filantrópico.
“A filosofia analítica deu muitas voltas, ao ponto de ser impossível proporcionar-lhe uma descrição que satisfaça todos os seus discípulos. Com rigor, quanto mais se alargou e afirmou menos necessário foi usar a expressão “filosofia analítica”. As querelas entre analíticos furiosos e anti-analíticos enraivecidos têm já pouco sentido, não porque a análise filosófica se tenha desvanecido, mas antes porque chegou a uma situação na qual não é necessário perder tempo com defesas.” — JOSÉ FERRATER MORA
Uma das características da evolução da filosofia analítica no séc. XX é a mudança de atitude perante a linguagem e o seu lugar na filosofia. Esta mudança de atitude resulta de os seus praticantes exercerem plenamente a liberdade de pensar, criticando as ideias de colegas e antecessores, procurando refutar teorias, corrigir argumentos e eliminar confusões. Assim, numa primeira fase, a linguagem surge como a “água de alcatrão” cujo esclarecimento permitirá resolver definitivamente os problemas intrincados da filosofia. A teoria das descrições definidas de Russell era o paradigma da análise filosófica. O antigo problema do não-Ser, de Parménides e Platão, dissolve-se através da correta compreensão do funcionamento da linguagem. Este estado de graça, contudo, não iria durar muito tempo. Precisamente porque na filosofia analítica o espírito crítico é cultivado no seu mais elevado grau, os filósofos da geração posterior avaliaram criticamente a teoria das descrições de Russell. Foi o que fez Strawson; o seu artigo “On Referring” (Mind, 59, 1950) marca o início da segunda fase da filosofia analítica.
Nesta segunda fase, apesar de a linguagem continuar a ocupar um lugar de destaque, começa a emergir a ideia de que a linguagem é muito mais complexa, subtil e vaga do que sugeriam as análises da primeira metade do século. É este espírito que está presente nas Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, no referido Strawson e no chamado “movimento de Oxford”, a filosofia da linguagem corrente, comandado por Ryle e Austin. Entretanto, a filosofia americana era consideravelmente diferente. Influenciada sobretudo pelo positivismo lógico, passou um pouco incólume ao movimento reformista de Oxford. Quine e Davidson continuavam em grande parte a considerar a linguagem de um ponto de vista mais próximo da filosofia do princípio do século.
É a partir dos anos setenta que a filosofia se liberta resolutamente da “viragem linguística”, como Rorty lhe chamou, atingindo a sua maturidade e passando a enfrentar diretamente os problemas tradicionais da filosofia:
[...] Muitos filósofos contemporâneos repudiam a concepção de filosofia característica da viragem linguística, e adoptam a perspectiva de que é melhor conceber a filosofia como a compreensão reflexiva das implicações do nosso conhecimento de nós mesmos e do mundo, em particular o conhecimento alcançado através das ciências da natureza. (Thomas Baldwin, Contemporary Philosophy, p. 11)
Os nomes que se costumam associar com a filosofia analítica — Wittgenstein, Ryle, Austin, Strawson, Carnap, Quine, Davidson, Chomsky, Sellars, Dummett, Kripke, Putnam, Popper, Kuhn e Hare, entre outros — representam apenas uma pequena parte desta tradição; pequena porque ignora os filósofos analíticos que se especializaram em filosofia da religião, ética aplicada, filosofia política ou filosofia da arte.
O que há de emocionante na filosofia analítica é o seu debate contínuo e frontal de ideias. O seu sucesso reside na liberdade e no espírito crítico. Não há pressupostos metodológicos ou doutrinários — diferentes filósofos adoptaram ao longo do tempo diferentes métodos e doutrinas, e este facto é claramente visível em qualquer boa história da filosofia analítica. Infelizmente, é comum hoje em dia pensar que a filosofia analítica se reduz ao entretanto desaparecido positivismo lógico, ou à filosofia da linguagem comum. Isto é tão errado como pensar que a filosofia continental se reduz ao existencialismo ou à fenomenologia. A ideia de que a filosofia analítica se caracteriza metodologicamente por pensar que a solução dos problemas filosóficos reside na análise lógica da linguagem resulta de um desconhecimento da filosofia analítica dos últimos cinquenta anos; a maior parte dos filósofos analíticos não aceita hoje essa metodologia.
[...] Como filósofos, não temos um ponto de partida linguístico privilegiado e garantido, como tantos filósofos analíticos do passado imaginavam. O significado não é a fonte de todos os problemas filosóficos, nem a chave para os resolver a todos. Como a maior parte dos filósofos analíticos hoje sabem instintivamente, quer tenham articulado a ideia quer não, os problemas filosóficos não surgem de uma só maneira. Surgem em todo o lado — na matemática, nas ciências, nas artes e na maneira de pensar do senso comum. Não há também uma maneira única de resolver os problemas filosóficos; construção teórica, análise lógica, clarificação conceptual e até a observação informal das nossas práticas cognitivas e linguísticas — tudo isto tem um papel a desempenhar. (Scott Soames, Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. 2, p. 476)
A ideia de que a filosofia analítica reduz o seu objeto de estudo à filosofia da linguagem e disciplinas associadas é tão errada quanto a ideia de que a filosofia continental reduz o seu objeto de estudo à semiótica. É verdade que no início a filosofia da linguagem e os estudos lógicos constituíram o centro das preocupações de muitos filósofos analíticos; e o positivismo lógico ficou famoso por lutar contra aquilo a que chamavam “metafísica” (sem que, contudo, conseguissem eles mesmos evitar pensar sobre questões metafísicas), ao mesmo tempo que a ética era relegada para o domínio da expressão das emoções. Todavia, hoje em dia, a ética, aplicada e normativa (e não apenas a metaética), é a área da filosofia analítica mais estudada. E a metafísica floresce, tal como a filosofia da arte e da religião, a filosofia política e a teoria do conhecimento. Nestas disciplinas não se dá necessariamente proeminência à linguagem:
Grande parte da metafísica contemporânea não se ocupa primariamente, de modo algum, do pensamento ou da linguagem. O objetivo é descobrir que categorias fundamentais de coisas há e que propriedades e relações elas têm, e não como as representamos. Estuda substâncias e essências, universais e particulares, espaço e tempo, possibilidade e necessidade. Apesar de se terem tentado várias reduções nominalistas ou conceptualistas de todos este temas, tais teorias não têm qualquer prioridade metodológica e muitas vezes não fazem justiça ao que tentam reduzir. (Timothy Williamson, “Past the Linguistic Turn?”, pp. 110-111)
A própria ideia de “análise”, que por vezes se pensa que caracteriza a filosofia analítica, está longe de ser um pressuposto metodológico comum aos filósofos analíticos. Um dos artigos mais citados (e exemplarmente mais pequenos: duas páginas apenas) da filosofia analítica é o de Gettier, que mostra que as análises de conhecimento propostas até então estão erradas. No sentido robusto, uma análise de um conceito C consiste em apresentar um conjunto de outros conceitos mais simples C1,…, Cn tal que a frase “C é C1 e C2 e … e Cn” seria uma verdade analítica. Neste sentido robusto, a maior parte dos filósofos analíticos pensa hoje em dia que tal coisa não se pode fazer em relação a grande parte dos conceitos centrais da filosofia. Contudo, num sentido mais fraco, toda a filosofia é análise de conceitos: o trabalho filosófico é conceptual ou a priori e não experimental.
Paralelamente à confusão que resulta da palavra “análise” ocorre uma confusão no que respeita à palavra “continental”. A filosofia continental não se caracteriza por estar localizada no continente europeu. Nestes termos descritivos, grande parte da filosofia analítica dos primeiros tempos era continental — pense-se em Frege e no Círculo de Viena. As expressões “filosofia analítica” e “filosofia continental” não devem ser entendidas como descrições, mas como nomes. Isto é, a primeira expressão não descreve um modo de filosofar que proceda por análise (no sentido forte), e a segunda não descreve uma filosofia geograficamente localizada no continente europeu.
Outra ideia errada no que respeita à filosofia analítica é pensar que se trata de filosofia de expressão inglesa. Apesar de ser verdade que a maior parte da filosofia de expressão inglesa do séc. XX é filosofia analítica, nem toda o é. Apesar de ser verdade que a maior parte das filosofias de expressão alemã, francesa, italiana e espanhola do séc. XX são filosofia continental, nem todas o são. Hoje, em países sem grandes tradições analíticas, há cada vez mais filósofos analíticos, nomeadamente em Espanha, França, Alemanha, Itália e Portugal. Isto resulta, em parte, da imensa vitalidade da filosofia analítica, que lhe permite responder ao que os seres humanos querem ver efetivamente respondido.
Compreende-se melhor o que caracteriza a filosofia analítica se pensarmos no seguinte: Quem fizer um elenco das mais fecundas ideias filosóficas da tradição analítica e dos filósofos mais respeitados nesta tradição poderá verificar que, ao longo dos anos, todas essas ideias e todos esses filósofos têm sido objeto de crítica, discussão e tentativas (conseguidas ou não) de refutação. Uma conferência, um artigo ou um livro em que alguém procura mostrar que a teoria da verdade de Davidson (um dos mais respeitados filósofos analíticos) está errada é corrente na tradição analítica e encarada como normal, e não como um escândalo ou uma blasfêmia. A discussão direta das ideias dos filósofos é estimulada, por oposição à mera repetição das suas ideias. Esta liberdade de pensar tem permitido um progresso que nunca antes existiu na história da disciplina. Os problemas da filosofia são abordados de formas progressivamente mais rigorosas, compreensivas e subtis, as teorias são mais precisas e ricas, os argumentos usados mais sofisticados e criativos. Temos hoje uma compreensão dos problemas da filosofia como nunca houve no passado.
Outra ideia errada acerca da filosofia analítica é que os textos dos filósofos analíticos são claros. Donald Davidson, David Wiggins e Bernard Williams são extremamente obscuros, mas estão longe de ser filósofos continentais. A diferença não é entre a clareza e a obscuridade, mas entre o que é valorizado e o que é desprezado. Um estudante num contexto analítico vê o seu esforço de rigor ser não apenas recompensado mas positivamente estimulado; é obrigado a explicar-se direta e pormenorizadamente, evitando ambiguidades, e generalidades vagas; é obrigado a defender as suas ideias com argumentos criativos e claros, e a responder a contra-exemplos e contra-argumentos; os jogos de palavras são permitidos como forma de humor, mas não como substituto da argumentação sólida. O que é desprezado é o estilo grandiloquente e retórico, os jogos de palavras, o volume de páginas e citações, a “originalidade” das interpretações baseadas em associações aleatórias de ideias; o que não se cultiva é o respeito religioso pelos Mestres, pois não se aceita que os seus argumentos não se possam discutir frontalmente.
A influência da filosofia analítica estende-se aos historiadores da filosofia e ao modo como os estudantes encaram a disciplina. Com uma formação filosófica sólida, os historiadores da filosofia não se limitam a repetir as ideias dos grandes filósofos do passado: avaliam criticamente a plausibilidade das suas ideias.
[...] O volume de trabalho feito hoje em dia em história da filosofia, tal como a profundidade, a atenção ao pormenor e a perspicácia dos estudos sobre figuras históricas particulares é ímpar — tal como o número de diferentes períodos, e diferentes figuras desses períodos, que são objeto de intensa atenção de filósofos com uma formação mais ou menos analítica. (Scott Soames, Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. 2, p. 463)
Analogamente, os estudantes não podem limitar-se a repetir vagamente as ideias dos grandes filósofos do passado e do presente, sem espírito crítico mas com muitos símbolos de lógica, sem se perguntarem se tais ideias serão verdadeiras, quais serão os seus pontos fortes e os seus pontos fracos, sem estudarem as críticas mais importantes, e sem tomarem posição, exceto para dizer que o “mestre” tem razão. Os estudantes têm de tomar posição, entrar no debate, saber avaliar os problemas, teorias e argumentos da filosofia.
Uma das críticas mais famosas à filosofia analítica, e à filosofia em geral, é a de Rorty. Do seu ponto de vista, a filosofia está condenada porque não há um método seguro que nos permita distinguir a verdade da falsidade, de modo que estas categorias devem ser abandonadas. A crítica de Rorty resulta do mesmo tipo de pressupostos filosóficos que caracterizavam o positivismo lógico. A crítica de Rorty à filosofia, a crítica de Feyerabend e Kuhn (numa leitura radical) à ciência, e a crítica dos positivistas lógicos à metafísica têm um denominador comum: a ideia de que sem um processo automático de decisão, sem um modo de verificação a toda a prova, não há quaisquer outros critérios para distinguir as ideias melhores das piores. Curiosamente, o pragmatismo de William James, no qual Rorty se filia, é precisamente o oposto deste tipo de atitude. A ideia de William James não era a de que sem processos de decisão ou métodos de verificação a toda a prova nada podemos saber, mas antes que podemos saber sem dispormos desses processos ou métodos. O resultado é uma compreensão mais subtil da atividade científica e filosófica, que consiste em grande parte em tentativas e erros, numa atitude crítica constante perante os nossos próprios métodos, e a consciência de que esses métodos são falíveis. Daqui não se segue uma qualquer falta de confiança na “Razão”, mas antes a compreensão de que uma prática cognitiva é tanto melhor quanto melhores forem os seus métodos, e os seus métodos são tanto melhores quanto mais probabilidades tiverem de distinguir a ilusão da verdade e o erro do acerto, sem que essa probabilidade seja jamais um. Não se segue desta posição a ideia de que “vale tudo”, como pensa Rorty, como pensavam Feyerabend e Kuhn (numa certa leitura), ou como pensavam os positivistas lógicos em relação à metafísica e à ética. Esta ideia resulta de um verificacionismo insustentável:
[…] tudo pode ser colocado em causa; mas a ausência de um processo de decisão com respeito aos tópicos que emergem dos argumentos filosóficos não mostra que estes não se orientam pela verdade, mas antes que dizem respeito a questões tão fundamentais para a nossa compreensão de nós mesmos e do mundo que nenhuns pressupostos podem legitimamente ser encarados como algo que está para lá do que se pode colocar em causa. Quem pensar realmente que na ausência de um processo de decisão a questão da verdade é vazia ou ilegítima está simplesmente comprometido com a tese positivista auto-refutante de que as únicas verdades são as que podem conclusivamente ser estabelecidas como verdadeiras. (Thomas Baldwin, Contemporary Philosophy, p. 275)
Não há substituto automático para a criatividade, a argumentação, a capacidade para conceber novas explicações e teorias, e para as testar e refutar e refazer. Como Mark Twain comentou quando circularam notícias da sua morte, o anúncio da “morte” da filosofia é algo exagerado. A imensa floresta de novas ideias que a filosofia analítica continua a dar ao mundo é a prova desta asserção.
Pensa-se por vezes que se deve abandonar o pensamento filosófico enquanto não houver métodos científicos apropriados para investigar tais temas. Há nesta perspectiva dois aspectos que merecem reflexão. Em primeiro lugar, trata-se de uma ideia filosófica e não científica. Isto é, não se poderá provar num laboratório, ou através de um cálculo matemático, que devemos abandonar o pensamento filosófico. A filosofia é irrecusável porque mesmo para a recusar é necessário argumentar filosoficamente, o que é auto-refutante. Compare-se com a recusa da astrologia, que não exige que se argumente astrologicamente; e imagine-se quão ridículo seria um argumento contra a astrologia baseado num mapa astral. Pode-se recusar a reflexão filosófica sobre temas particulares, com argumentos filosóficos particulares que mostrem que tais temas são insusceptíveis de reflexão séria, mas não se pode recusar a filosofia em bloco sem usar argumentos filosóficos, o que acarreta uma contradição óbvia. A filosofia é apenas o exercício da capacidade para o pensamento crítico sobre qualquer tema susceptível de ser pensado sistematicamente, mas insusceptível de tratamento científico. E saber que temas são susceptíveis de serem pensados sistematicamente já é um problema filosófico.
Em segundo lugar, esta ideia denuncia uma incapacidade para compreender a natureza da própria ciência. A ideia falsa é que a ciência é um conjunto de resultados que devemos dominar para depois completar. A realidade, contudo, é muito diferente. São as perguntas, muitas vezes filosóficas, que pressionam o aparecimento de métodos de resposta — não são os métodos de resposta que determinam tudo o que há para perguntar (apesar de os métodos de resposta nos permitirem descobrir novas perguntas e novos tipos de perguntas). Argumentar que uma dada pergunta deve ser abandonada só porque não temos de momento qualquer método para lhe responder taxativamente é o primeiro passo para o obscurantismo (e é surpreendente ver hoje cientistas a usar o argumento que no passado os poderes eclesiásticos usaram contra eles). Se este tipo de obscurantismo tivesse prevalecido, não existiria ciência. Pois os métodos científicos de resposta foram estimulados pelas perguntas filosóficas mais importantes, que o obscurantista quer silenciar. Um exemplo particularmente nítido é a pergunta dos filósofos pré-socráticos pela natureza última das coisas, que motivou métodos científicos que permitiram descobrir a existência de moléculas, átomos, electrões e quarks. Declarar tontos os filósofos pré-socráticos porque faziam a pergunta sem ter métodos experimentais adequados é não compreender que sem essa pergunta nunca os métodos para lhe responder teriam sido concebidos.
O reverso da medalha do cientismo é a aplicação acrítica de métodos filosóficos ou falsamente filosóficos a campos de estudo inapropriados. Alguém que se ponha a dissertar filosoficamente sobre a natureza dos electrões, da consciência ou dos genes sem ter em consideração o conhecimento científico relevante que temos sobre esses campos de estudo não pode ser levado a sério. Mas daqui, e da reflexão precedente, não se pode inferir que a filosofia é apenas um preâmbulo da ciência. Por um lado, muitos problemas da filosofia parecem insusceptíveis de um tratamento experimental ou matemático, por maiores desenvolvimentos que a ciência empírica e a matemática possam sofrer. É o que acontece relativamente aos problemas mais centrais da teoria do conhecimento, da metafísica e da ética, por exemplo. Por outro lado, mesmo naquelas áreas em que as ciências, empíricas ou formais, apresentam resultados importantes, subsistem vários problemas filosóficos em aberto. É o que acontece no caso do tempo.
Santo Agostinho (354–430) comentou que se ninguém lhe perguntar, sabe o que é o tempo, mas que fica sem saber explicar-se se lho perguntarem. Referir este comentário é um daqueles lugares-comuns que George Orwell (1903–50) nos incita a nunca repetir porque significam em geral que não se está a pensar. Efetivamente, nada há de especial em relação ao tempo, neste aspecto, ao contrário do que o comentário de Santo Agostinho pode fazer pensar. Em relação a muitas noções centrais estamos na situação de sabermos usá-las corretamente sem todavia sabermos articulá-las e explicá-las de forma sistemática e explícita. É o que acontece com as noções de tempo, espaço, bem, verdade, conhecimento, existência ou arte, entre muitas outras. Compreender estas noções de forma explícita, articulada e sistemática é uma das tarefas centrais da filosofia. Mas não se deve pensar que a ausência de compreensão explícita revela a ausência total de compreensão.
Os problemas filosóficos sobre o tempo pertencem às disciplinas da metafísica e da filosofia da física. A metafísica é a disciplina filosófica que estuda a natureza última da realidade, sendo a ontologia (que estuda que categorias de coisas há) uma província sua. Infelizmente, a palavra “metafísica” foi muito maltratada no séc. XX pelos positivistas lógicos, que usavam o termo mais ou menos como sinônimo de pseudociência ou misticismo; mas a metafísica não é nada disso. Entre os problemas estudados pela metafísica contam-se a natureza do tempo, de que nos ocuparemos aqui, a natureza dos universais (qual é a natureza da brancura, aquilo que as coisas brancas têm em comum?), a natureza da modalidade (o que faz uma afirmação como “A água é H2O” ser necessária?), a natureza da substância (qual é a natureza do que pode ter propriedades mas não pode ser propriedade de coisa alguma?), a natureza da causalidade, etc. A metafísica contrasta com a epistemologia (teoria do conhecimento), que estuda a natureza do conhecimento, e com a lógica, que estuda a inferência válida. Estas são as três disciplinas centrais da filosofia no sentido em que todas as outras abordam problemas epistemológicos, metafísicos ou lógicos, em áreas delimitadas.
Tempo e ilusão
O debate moderno sobre a realidade do tempo tem origem nos argumentos defendidos por J. M. E. McTaggart (1866-1925) num famoso ensaio publicado em 1908. McTaggart defendeu que o tempo é uma ilusão. Para se compreender o seu argumento é necessário distinguir duas formas diferentes de localizar acontecimentos no tempo, a que McTaggart chamou “séries A” e “séries B”. Esta terminologia não é esclarecedora, pelo que iremos chamar “flexionadas” às primeiras e “não flexionadas” às segundas (poderíamos igualmente chamar-lhes “dinâmicas” e “estáticas”, respectivamente). Compreende-se a diferença contrastando duas formas diferentes de falar do tempo. Afirmar “Hoje está a chover em Londres, mas ontem esteve calor” envolve o uso de verbos com flexões temporais (“está” e “esteve”). Mas afirmar algo como “Chove em Londres em 29 de Julho de 2004, mas faz calor em 28 de Julho de 2004” não envolve o uso de verbos com flexões temporais — pois “chove”, neste contexto, é intemporal, como o “é” na expressão “A raiz quadrada de 16 é 4”. (Claro que podemos igualmente dizer “Chovia em Londres em 29 de Julho de 2004 “, caso em que o verbo “chover” surge igualmente com flexão temporal.)
Podemos, pois, localizar acontecimentos no tempo de duas formas diferentes. A primeira envolve o uso de termos como “passado”, “presente”, “futuro” ou “ontem”, “hoje”, “amanhã” ou ainda verbos com flexões verbais que apontam para o passado, o presente ou o futuro. Esta forma de localizar acontecimentos no tempo chama-se flexionada precisamente porque usa flexões temporais. A segunda forma de localizar acontecimentos no tempo não envolve flexões verbais, e recorre a datas ou a termos como “antes”, “depois” e “simultaneamente” para localizar acontecimentos no tempo.
O primeiro passo do argumento de McTaggart é a defesa de que o tempo envolve intrinsecamente a mudança. Esta ideia é bastante plausível. O tempo, poderíamos dizer, não se manifesta numa série discreta de momentos atemporais (como acontece nas fitas dos filmes, que são séries de fotografias temporalmente inertes), mas antes na mudança contínua e irredutível a uma série de momentos atemporais.
O segundo passo do argumento é que só as formas flexionadas de referência ao tempo permitem exprimir adequadamente a mudança. Esta ideia é também plausível, mas é objeto de disputa. A ideia é que as formas não flexionadas de expressão, usando datas, por exemplo, ou termos como “antes”, “depois” ou “simultaneamente”, podem localizar acontecimentos no tempo, mas não podem exprimir a ideia de que esses acontecimentos “fluem” no tempo. Assim, dizer “Chove em Londres no dia 29 de Julho de 2004” não dá conta do processo de chover, ao passo que “Está a chover em Londres” dá conta do processo de chover.
O terceiro passo do argumento é que as formas flexionadas de referir os acontecimentos no tempo implicam contradições, pelo que não podemos pensar que descrevem a realidade — limitam-se a descrever uma certa aparência enganadora da realidade. Esta é talvez a ideia menos plausível do argumento, mas não é obviamente falsa. A ideia é que se levarmos as formas flexionadas de expressão a sério, então devemos aceitar que exprimem verdadeiras propriedades dos acontecimentos. Assim, qualquer acontecimento tem três propriedades temporais: ocorrerá, ocorre e ocorreu. Mas um acontecimento como o assassinato de Kennedy, por exemplo, não pode ter as três propriedades: não pode ser um acontecimento futuro, presente e passado — pois se Kennedy foi assassinado hoje, não poderá ser assassinado amanhã nem pode tê-lo sido ontem, e se foi assassinado ontem não poderá ser assassinado hoje nem amanhã. Logo, o tempo é em si irreal: uma mera ilusão.
A objecção óbvia a este terceiro passo é dizer que se trata de uma confusão. Um mesmo acontecimento é presente, passado e futuro — mas não ao mesmo tempo, pelo que não há qualquer contradição. Um acontecimento como o assassinato de Kennedy, por exemplo, é passado agora, foi futuro antes de acontecer, e foi presente quando aconteceu. Mas McTaggart tem uma resposta igualmente óbvia a esta objecção: é verdade que o assassinato de Kennedy não é presente e futuro; mas não é menos verdade que foi presente e foi futuro, o que é mais uma vez uma contradição. A resposta a este argumento, por sua vez, é dizer algo como “O assassinato é futuro numa data e presente noutra data diferente”. Mas esta resposta dá razão a McTaggart, pois abandona o tempo flexionado, ao mencionar datas para localizar o assassinato.
Resumindo, o argumento de McTaggart pode ser formulado do seguinte modo:
1. O tempo envolve mudança.
2. Só as formas flexionadas de expressão podem exprimir a mudança.
3. Mas as formas flexionadas de expressão envolvem contradições. Logo, o tempo é irreal.
Os filósofos atuais dividem-se entre os que defendem teorias flexionadas e os que defendem teorias não flexionadas. Os primeiros aceitam a premissa 2, mas recusam 3, procurando mostrar por que razão as formas flexionadas não dão origem a contradições. Os segundos aceitam a premissa 3, mas recusam a 2, procurando mostrar que podemos exprimir a mudança sem usar formas flexionadas.
Ser e tempo
Um segundo problema filosófico central no que respeita ao tempo é o seguinte: O que é existir no tempo? Uma pessoa que existe ao longo de oitenta anos existe só parcialmente em cada dia da sua vida, ou existe completamente em cada um dos seus dias de vida? A discussão moderna do problema da persistência ao longo do tempo tem origem em David Lewis (1941 – 2001). Este filósofo defende que um particular só existe parcialmente em cada momento da sua existência; a existência total do particular dá-se ao longo de todo o tempo da sua existência. Assim, uma pessoa que vive oitenta anos é uma totalidade com oitenta anos; a cada dia, estamos apenas perante um “segmento temporal” dessa pessoa, mas não perante a pessoa na sua totalidade. Chama-se “perdurabilismo” a esta perspectiva, que se opõe ao “durabilismo”. O durabilismo é a perspectiva mais intuitiva segundo a qual os particulares existem completamente em cada momento do tempo. Assim, uma pessoa vive oitenta anos mas está totalmente presente em cada momento do tempo: quando falamos com ela, estamos a falar realmente com ela, e não com um “segmento temporal” dela.
Este debate sobre a natureza da persistência ao longo do tempo relaciona-se com a natureza do próprio tempo porque a perspectiva durabilista é geralmente presentista, ao passo que a perspectiva perdurabilista é geralmente eternalista. A perspectiva presentista defende que só o presente é real, havendo uma dinâmica temporal óbvia: os particulares temporais que existem no presente não existem no passado (existiram no passado) e não existem igualmente no futuro (mas existirão no futuro). Pelo contrário, a perspectiva eternalista entende que toda a existência é igualmente real, incluindo a existência no passado e no futuro, sendo a aparente dinâmica temporal uma ilusão comparável a alguém que percorre uma estrada e pensa que só o pedaço de estrada onde está existe.
O durabilista entende geralmente que o tempo é flexionado, ao passo que o perdurabilista entende geralmente que o tempo não é flexionado. Para um durabilista, não há segmentos temporais de particulares porque a temporalidade está inscrita, por assim dizer, no próprio modo de existência dos particulares; e a temporalidade é essencialmente uma realidade dinâmica, insusceptível de redução a propriedades não dinâmicas. Para um durabilista, os particulares persistem no tempo “deslocando-se” do passado para o futuro, em toda a sua totalidade. Esta é a perspectiva mais intuitiva. Pelo contrário, os perdurabilistas têm uma perspectiva eternalista da temporalidade, que é vista como uma realidade essencialmente estática; os particulares persistem ao longo do tempo porque são totalidades que habitam vários segmentos diferentes do tempo, do mesmo modo que uma pessoa habita vários segmentos diferentes do espaço (mas não está totalmente presente em nenhum desses segmentos do espaço: num desses segmentos tem as mãos, noutro os pés).
Tempo e substância
Um terceiro problema filosófico central no que respeita ao tempo, situando-se este sobretudo na área da filosofia da física, é o seguinte: Poderá o tempo existir sem mudança? Que a mudança não pode existir sem tempo é óbvio. Mas os absolutistas defendem que o tempo pode existir sem mudança: o tempo, defendem, é uma substância (razão pela qual a esta teoria também se chama “substantivismo”), e não um mero resultado da existência de particulares em mudança. Pelo contrário, os relacionistas defendem que o tempo não é coisa alguma além da mudança: sem esta, o tempo não existiria.
Aristóteles parecia aceitar uma perspectiva relacionista do tempo, mas foi Leibniz (1646–1716) que desenvolveu esta teoria, opondo-se a Isaac Newton (1642–1727) e ao seu defensor, Samuel Clarke (1675 – 1729). Leibniz pensava que a teoria absolutista estava errada porque implicava uma ideia absurda: a de que o universo poderia ter sido criado mais cedo ou mais tarde do que efetivamente foi. Pelo contrário, pensava Leibniz, o tempo surge com o próprio universo — não é uma substância que já existia antes do universo. Hoje em dia os físicos adoptam esta ideia, de uma forma mais ou menos ingénua, defendendo que antes do Big Bang não existia tempo. Mas a física contemporânea é compatível com o absolutismo, apesar de haver hoje maior tendência para aceitar o relacionismo por se pensar que esta teoria se acomoda melhor à teoria da relatividade.
O debate contemporâneo deve muito a um influente artigo de Sydney Shoemaker (n. 1931) publicado em 1969 e no qual se apresenta uma imaginativa experiência mental contra um argumento central a favor do relacionismo. Sucintamente, esse argumento é o seguinte: Admita-se, por hipótese absurda, que toda a mudança no universo esteve ontem suspensa durante duas horas. Isso significaria que, na verdade, o dia de ontem teve vinte e seis horas de duração. Mas a hipótese é absurda porque não há qualquer diferença entre a suspensão durante duas horas ou durante mil anos: nunca poderemos medir a duração de um tempo hipotético se não existir mudança. Logo, não pode existir tempo sem mudança e a tese absolutista está errada.
Este argumento, pelo menos numa versão pouco sofisticada, é uma falácia verificacionista: procura estabelecer a inexistência de tempo sem mudança com base na ideia de que nunca poderíamos saber da sua existência. Contudo, o argumento pode ser reformulado no sentido de afirmar que o absolutismo implica a existência de fenómenos temporais impossíveis de detectar em princípio, o que seria introduzir uma hipótese arbitrária: nunca teremos boas razões para pensar que existe tempo sem mudança, a menos que tal fenômeno seja em princípio detectável (ainda que na prática não seja detectável).
É esta versão sofisticada do argumento que a experiência mental de Shoemaker pretende refutar, mostrando que é possível ter boas razões para aceitar a existência de tempo sem mudança ainda que tal coisa seja indetectável em princípio.
Imagine-se que os astrónomos descobriam um dia que de quatro em quatro anos um dado planeta parecia ficar temporalmente suspenso durante um mês. Após esse período, tudo voltava ao normal, mas as pessoas desse planeta não notavam que tinham estado em suspensão. Imagine-se também que os astrónomos descobriam um segundo planeta onde o mesmo acontecia, mas de três em três anos. Durante muito tempo os astrónomos da Terra não conseguiam comunicar com os colegas desses estranhos planetas, mas ao fim de um tempo estabelece-se contato e faz-se uma conferência multiplanetária com representantes dos três planetas. Para espanto dos astrónomos da Terra, a primeira pergunta que os colegas dos outros planetas lhes fazem é “Por que razão no vosso planeta tudo para de cinco em cinco anos?”
Note-se que, até este momento da experiência mental, não estamos numa situação em que exista uma suspensão indetectável da mudança, pois a ausência de mudança num dado planeta é detectada nos outros planetas. O que o relacionista defende é que a suspensão (um tempo sem mudança) não pode acontecer em todo o universo simultaneamente. Mas nessa conferência multiplanetária rapidamente os cientistas têm de chegar a uma conclusão arrepiante, depois de fazer os cálculos apropriados: a cada sessenta anos, os três planetas ficam suspensos simultaneamente. Claro que eles não terão maneira de detectar tal suspensão diretamente. Imaginando que juntamente com os três planetas todo o universo fica suspenso, está tudo na mesma quando a suspensão acaba. Portanto, estamos perante uma situação na qual a suspensão da mudança é em princípio indetectável, mas em que há boas razões para pensar que ocorre.
A filosofia no nosso tempo
Estes são três dos problemas filosóficos sobre o tempo mais discutidos no nosso tempo — há outros igualmente centrais. As ideias apresentadas são apenas o princípio da discussão. A filosofia desenvolveu-se muito nos últimos sessenta anos e alguns dos seus problemas são hoje abordados com recursos extremamente sofisticados do ponto de vista técnico, recorrendo a instrumentos lógicos poderosos mas complexos. Contudo, a filosofia mantém a sua identidade, ocupando-se do estudo racional sistemático de problemas insusceptíveis de resposta empírica ou matemática, mas que não podemos recusar enfrentar sem empobrecer a nossa natureza de seres inteligentes.
Como deverá ser evidente nas páginas anteriores, os problemas apresentados são atualmente insusceptíveis de solução científica; contudo, são problemas reais e importantes sobre aspectos centrais do tempo. A física contemporânea diz-nos muito sobre a natureza última do tempo, mas não nos diz tudo.
Dada a imensa diversidade e vitalidade da filosofia de hoje, é sempre possível depreciar a filosofia por um ou outro motivo. Assim, pode-se depreciar a filosofia por não ser suficientemente acessível ao leitor comum porque, efetivamente, a generalidade do trabalho publicado nas melhores revistas da especialidade exige um domínio profissional da filosofia (tal como acontece nas revistas académicas de física ou musicologia). Mas também se pode depreciar a filosofia por ser demasiado generalista e parecida com “cultura geral”, nunca alcançando o profissionalismo e a precisão das “ciências sérias”. Em ambos os casos se comete a falácia da supressão de dados, pois a verdade é que há hoje em filosofia, como na ciência, os dois tipos de trabalhos: os especializados, que têm por destinatário os filósofos, e os de divulgação, que têm por destinatário o grande público.
Afirma-se por vezes que a filosofia se distingue de ciências como a física ou a biologia porque não há na filosofia aquela espécie de progresso que encontramos nessas ciências: um progresso por acumulação de resultados. Isto é parcialmente verdade mas, como muitas meias-verdades, é mais enganador do que iluminante. É parcialmente verdade porque, efetivamente, não há entre os filósofos o tipo de consenso que há entre os cientistas quanto a algumas teorias fundamentais. Mas é duplamente enganador. Pois, por um lado, nas fronteiras da ciência também não há consenso entre os cientistas — e é defensável que é aí que está a verdadeira ciência, e não na pilha de resultados acumulados. E, por outro, essa meia-verdade esconde os consensos que existem efetivamente entre os filósofos: os filósofos não concordam relativamente a muitas teorias que estão em aberto, mas concordam que muitas teorias são falsas, que muitos argumentos são maus e que muitas formas de compreender e formular os problemas da filosofia são enganadoras.
Há por isso razões para pensar que, se a humanidade não se autodestruir nem regressar à barbárie obscurantista, o clima atual de liberdade de investigação e o imenso número atual de filósofos muitíssimo criativos continuarão a trazer avanços fundamentais na nossa compreensão dos problemas da filosofia.
[1] Nomeadamente, porque, nesse caso, se usam termos como «força» para a validade não dedutiva, o que depois torna impossível usar o mesmo termo para o fenómeno da força dedutiva, que iremos esclarecer aqui.
[2] Note-se que estes são exemplos de generalizações, um dos dois tipos de induções — sendo o outro a previsão — mas não devemos esquecer que há outros tipos de argumentos não dedutivos importantes, como os argumentos de autoridade, os argumentos por analogia e os argumentos causais; é por este motivo que se usa aqui o termo «argumentos não dedutivos» em vez de «argumentos indutivos»
[3] O argumento formalmente inválido «O João é casado; logo, não é solteiro» pode transformar-se no argumento formalmente válido «O João é casado; nenhum casado é solteiro; logo, o João não é solteiro». O problema desta redução simplista é que não exibe a diferença relativamente a outra «redução» que ninguém aceita como redução: «O João é casado; nenhum casado é feliz; logo, o João não é feliz». Neste segundo caso, não se trata de uma redução porque a segunda premissa não diz respeito ao significado dos termos ou conceitos envolvidos. Mas isto significa que tudo o que estamos a fazer com a pretensa primeira redução é dizer que a inferência depende do significado dos termos e conceitos envolvidos, o que não é novidade, quando o que se queria era uma verdadeira redução destes factos conceptuais ou semânticos à forma lógica. E isso é coisa que não se fez.