A Construção da Liberdade
Eduardo Prado de Mendonça
São Paulo: Convívio, 1977
O ser humano é um fabricante de mitos. Não vamos criticar este fato. Vamos apenas constatá-lo.
Por que dizemos que é um fabricante de mitos? Porque este é um fato que ocorre espontaneamente. A vida humana comum não se caracteriza por uma caminhada segura no meio de uma estrada: ela, espontaneamente, marcha derrapando. É isto: a trajetória do homem é marcada ou ameaçada por derrapagens sucessivas. O ser humano se inclina sempre para fora da realidade. Ele é, por assim dizer, um animal incontido, ou dificilmente contido na realidade. Só um esforço constante de atenção o põe efetivamente diante da realidade. Poderíamos dizer, numa expressão aparentemente paradoxal, que a realidade fática da vida humana é sua inclinação para evadir-se da realidade.
Esta evasão se faz geralmente por duas formas: a fabulação e a rotina. Pela fabulação, o homem toma a realidade como referência a propósito da qual desenvolve a sua imaginação, e constrói paralelamente no real um outro plano que ordena sem maiores compromissos, impulsionado por uma aspiração de tranquilidade pessoal. Pela rotina, também verificamos um afastamento do real: o homem opera sobre certos clichês de linguagem, ou fixa-se em certos hábitos mecânicos, cujo automatismo reflete um certo torpor de consciência, pois a verdade é que agindo desta forma deixa de perceber tudo o que inova, tudo o que não é mera repetição no processo da existência. Desta forma, fabulação ou rotina são formas de devaneio, são modos de sonhar acordado. O mito nasce, então, desta fixação nas formas imaginativas ditadas pela tendência fabuladora ou pela tendência rotineira, porque se trata de uma relação com entidades de razão que não correspondem estritamente à realidade. Por isso mesmo Bergson dizia que ter bom senso é muito fatigante, devendo-se entender por bom senso a capacidade da razão humana de acompanhar a realidade em todas as suas nuances, em toda a sua singularidade, em toda a sua permanente originalidade. Podemos concluir daí que o homem dorme mais do que pensa dormir, e sonha mais do que imagina sonhar.
Dentro deste quadro, assume especial importância um falso conceito de liberdade. Julgando ser livre por não se subordinar às amarras impositivas de uma realidade extramental, a uma realidade determinante de um mundo exterior impondo-se a ele, mas contando poder subordinar esta realidade operando com ela segundo quadros que projeta sobre ela, oriundos de seu mundo interior, no mais das vezes o que ocorre simplesmente é que apenas liberta mecanismos subjetivos que operam no seu incontrolado automatismo, e, desta forma, o reino da fabulação deixa de ser de fato uma expressão de liberdade. Por outro lado, na ordem das ações, a rotina aparece também como uma libertação, porque o automatismo dos círculos reflexos de um comportamento exercitado na formação de um hábito dá a impressão de um domínio sobre situações que poderiam afligir o indivíduo, se diante de cada uma tivesse que refletir especialmente como que a enfrentar em cada uma um novo desafio.
Tanto uma quanto outra, estas colocações, ambas refletem um subjetivismo, uma falta de objetividade, em que a liberdade se reduz a um puro estado afetivo, mera convicção inconsequente, em que a aparente afirmação de si mesmo no ato do homem significa de fato uma pura acomodação, sustentada numa atitude meramente negativa.
No primeiro caso, rejeita-se a submissão a uma ordem da natureza, porque entende-se que o homem se afirma livre se ele impõe à natureza uma ordem determinada por sua vontade. No segundo caso, a formação dos hábitos parece afirmar a liberdade do homem na medida em que ele se exercita na execução de tarefas sem esforço, ou com o menor esforço possível, mas ao mesmo tempo mergulha num plano de acomodação, e rejeita a perspectiva da criatividade, que seria uma justa dimensão para o exercício da sua liberdade.
Desproporcionado com a realidade, o conceito de liberdade se transforma num mito. Em lugar de uma ideia-força, de uma diretriz, de servir de guia à estruturação de valores efetivos, de princípio capaz de fecundar criativamente a vida humana, transforma-se em fonte de desencanto e decepção. Não deixa de comover, não deixa de impressionar e atrair, e até mesmo ao contrário, por vezes aparece mais atraente, pela superficialidade e imediatismo do seu anúncio. Mas, as consequências se fazem sentir, cedo ou tarde.
Diante de um conceito de liberdade como pura espontaneidade, evidentemente que este é um anúncio atraente. Não envolve responsabilidade no sentido de alguém necessitar pensar nas consequências dos atos, ou pensar numa certa propriedade ao menos estética de um determinado comportamento. Por um lado, como dissemos, é atraente, mas não é natural, e não é satisfatório. E é por isso que essa atitude de espontaneidade tomada por liberdade nem sempre é descontraída e alegre. Muitas vezes, na verdade, não tem qualquer humor agradável. Ela é de fato pirrônica, ela aparece como contestatária. E assim o que parece espontâneo só o é de nome, de fato já é uma reação, já é uma posição pensada ao menos no sentido prévio de uma opção, que no fundo revela desencanto e até mesmo desespero. Na verdade, portanto, resta uma aparente espontaneidade, sem encanto e sem esperança.
Por vezes, esta posição não aparece diretamente. Ela escolhe um caminho mais sutil. Neste caso, não aparece então como uma atitude irracional ou simplesmente impensada. Diz-se que a liberdade consiste em cada um agir de acordo com a sua consciência. Isto significa que cada um tem o direito de arbitrar sem maiores compromissos o que lhe pareça bom ou mau, verdadeiro ou errado. O homem deve prestar contas à sua consciência. Não se considera se ele deve também prestar contas da sua consciência. Não se discute se ele deve bem formar a sua consciência. Não se pensa no trabalho de elaboração de uma consciência moral. E neste caso transfere-se o problema da espontaneidade para a consciência. Admite-se como válida a consciência na sua espontaneidade. Desta forma, considera-se validamente livre todo ato praticado por alguém de acordo com a sua consciência. Mas como isto supõe a eleição de certos valores, que sirvam de critério dos juízos práticos, o fato é que isso importa consequentemente em dizer que cada um de nós tem o direito de escolher a sua verdade. A consequência natural é que quando cada um pode arbitrar o que é verdade, o mesmo dizer que não há verdade, pois não há objetividade. Esta posição, embora mais artificiosa, porque transfere a espontaneidade para a consciência, de fato, é da mesma natureza da primeira. Neste caso, aliás, a consciência não funciona de maneira positiva, como qualquer elemento determinante da ação, mas apenas opera com uma função liberativa, e de maneira negativa: ela "não vê" nenhum impedimento para que a ação se realize. Ora, na expressão mais comum, não "vê pecado", "não acha que esteja errado", enfim, o "não ver", "não achar" abre a porta da ação sem freio ou coação, sem constrangimento, mas também sem nenhum elemento determinante que caracterizaria propriamente a liberdade pelo auto domínio do ato por aquele que a exerce.
Como uma forma particular da posição ora descrita, encontramos a ideia de liberdade identificada com a consciência do abandono, ou com o sentimento de não ter vínculos, ou estar solto no espaço e no tempo, sem qualquer dependência transcendental. O homem se sente independente, não no sentido forte do termo independente, mas num sentido que reflete em verdade uma perplexidade, ou um desajeitado encontro: o fato, a fatalidade, a condição necessária fundamental, o estado primordial de aparecer como um jato de existência, posto frente ao nada. Nenhuma determinação, nenhum vínculo, nenhuma essência: o ser do homem em si mesmo, para si mesmo, e sobretudo por si mesmo. O homem se afirma livre porque se sente solto, absolutamente, radicalmente solto. O que vê é igual a uma cegueira, ele age, e se sente agido, embora sofra como agente. Também é uma forma negativa de conceituar a liberdade. Não há referências, não há outros fundamentos, ele será o fundamento de si mesmo. Ele está posto aí, ao acaso. Cabe a ele, por ele mesmo, delinear sua existência. Não é difícil ver neste orgulho arrogante o traço nostálgico do sentimento de abandono. E a isso se chama liberdade.
Todas essas posições, que pretendem assumir a liberdade como um fato original, como um ponto de partida, na verdade não conseguem sustentá-la através de uma concepção positiva. São formas derivadas, são formas contestatórias, são formas de reação, e por isso mesmo supõem um diálogo com outras posições, frente às quais procuram afirmar-se. Julgando estar propondo o que seja a liberdade, o que fazem de fato dizer o que ela não é. E, apesar disto, postulam o seu culto. Fica, então, um nome, não mais. Na prática, fica um subjetivismo, uma espécie de racionalização, que não muda a face dos acontecimentos globais. Na ordem dos gestos, fica o individualismo, e a centralização no eu, e a absolutização do eu nada mais é do que o disfarce inconsciente da mais radical forma de solidão, agressiva, uma solidão capaz de congregar pessoas, formar movimentos, e grupos, mas grupos que não formam comunidades, agregações que não formam sociedades, amontoados de pessoas em torno de um culto comum, em que todos permanecem solitários.
Este o mistério trágico do que se denominou historicamente de liberalismo. Por um lado, a aspiração de liberdade, o desejo de ser livre, a ansiedade de ser livre, ao mesmo tempo que a efetiva incapacidade de o ser.
O chamado liberalismo exprime na história um movimento de ideias que representa um exemplo típico da apropriação do tema da liberdade transformado em mito. Mito, sob vários aspectos: primeiro, pela falta de fundamentação racional positiva do tema, o que coloca o seu tratamento em termos de pensamento pré-lógico, ou simplesmente irracionalista; segundo, porque o seu culto se exprime numa faixa de sentimentos que se identifica com a afetividade primária dos desejos instintivos, ou das ambições elementares. Esta conjugação de aspiração de satisfação dos desejos e de rompimento dos obstáculos, e de um pensamento dirigido pela imaginação, sem submissão crítica, faz do liberalismo apenas uma crença.
Se analisarmos bem, veremos que a posição reflete uma infantilidade persistente. A criança comanda seu pensamento pela imaginação, e sua vontade pelos desejos. É este estado que persiste como estrutura mental do liberalismo. É uma posição doutrinária que não decorre de uma investigação racional responsável. Ela brota de uma exaltação do indivíduo que delibera por sua própria conta ser o árbitro da verdade. Esta exaltação produz um otimismo absoluto relação a si mesmo, que se irradia e desdobra no culto da razão e no culto da vontade arbitrária: a razão humana é infalível (racionalismo), o homem é bom por natureza (naturalismo). Daí se seguem outras consequências, a principal sendo o culto do progresso, o progresso entendido como manifestação necessária e inconteste dos atos livres do homem, sendo bom por si mesmo. Esse clima de confiança, de otimismo, de ingenuidade prática, faz do liberalismo menos uma doutrina do que um estado de espírito, uma atitude. A liberdade é aí cultivada sem maiores exigências discursivas, e, por isso mesmo, como um mito.
A ideia fundamental do liberalismo se traduz na noção ou convicção de que o homem, entendido como o indivíduo, se satisfaz a si mesmo, é autossuficiente, isto é, não é necessário recorrer a nenhum conceito de ordem transcendental, pois o individuo encontra em si mesmo a fonte de sua destinação e sua lei. John Locke, que é um dos seus profetas, em seu livro Ensaio sobre o governo civil parte da ideia de que os homens, em seu estado natural, encontram-se em "um estado de perfeita liberdade, um estado no qual, sem pedir permissão a ninguém e sem depender da vontade de nenhum outro homem, podem fazer o que lhes agrade e dispor do que possuem e de sua pessoa, como bem entenderem, desde que se atenham aos limites da lei da Natureza". A noção de lei da Natureza, para Locke, refere-se ao mundo físico, e ao seu determinismo. Com relação ao homem, não aparece a consideração de que o ser humano pode ter uma "natureza", isto é uma essência própria, algo de determinado, a que a sua vontade e a sua inteligência devam atender com relação aos fins que lhe sejam adequados. A vontade dos homens aparece como soberana. Ela quer que o indivíduo seja considerado como ponto de referência absoluto, e neste sentido a razão aparece igualmente como fonte de verdade. Não se submete a razão à descoberta da verdade. E neste ponto o que caracteriza o racionalismo é exatamente a convicção de que a razão pode submeter a realidade a uma ordem proposta por ela, de forma que não é razão dependente de uma imposição da realidade exterior, mas a realidade é que se submete aos quadros categoriais da razão. Do mesmo modo, a vontade não é questionada quanto à sua submissão possível a uma intelecção objetiva do que seja o bem ou mal, mas simplesmente aparece para o liberalismo a convicção de que a vontade tem o direito de eleger arbitrariamente o que é o bem e o mal.
Na mesma sequência, põe-se o mito do progresso, porque a razão é boa em si mesma, a vontade é boa em si mesma, e assim também o que o homem produz, de tal forma que o progresso espontâneo é bom em si mesmo, e se efetua continuamente. Não se questiona o valor do progresso, ou seja que a obra do homem possa ser feita de tal forma que venha a contrariar suas intenções originais, e não é boa espontaneamente sobre o que é o bem e o mal, porque ele o quer; o progresso, porque é obra da ação humana, é contínuo, e necessariamente bom, porque ele o quer. Isto, porém, é uma utopia, que convence apenas na medida em que satisfaz no homem a sua inclinação para o menor esforço. Numa posição realista, devemos modificar frontalmente esta colocação, e retirar daí apenas o que existe de fundamentalmente legítimo: o homem aspira a ser um fator determinante com relação à sua própria vida; o homem aspira a que sua razão seja verdadeira; o homem aspira a que sua vontade se dirija ao bem; o homem aspira a que o progresso seja benéfico. Esta aspiração é válida. Apenas, é necessário mudar a colocação das questões, para que estas aspirações possam ser atendidas.
Para ser um fator determinante de sua própria vida, e não apenas joguete de forças cegas de um destino fatal, não pode considerar-se um ser completo e acabado, mas um ser capaz de acertar e de falhar, um ser capaz de aperfeiçoar-se, um ser capaz de cultivar-se, para afinal poder ser senhor de si mesmo. Para que sua razão seja verdadeira, é preciso conhecer seus mecanismos lógicos e psicológicos, considerar sua relação com a realidade e os problemas de adequação do seu conhecimento na ordem dos fatos, dos juízos de existência, e dos juízos, de valor, assim como cultivar um sentido de objetividade a que deve submeter-se para poder efetivamente construir seus projetos ideais. Para que sua vontade seja dirigida ao bem precisa distinguir entre os desejos imediatos e o que efetivamente representa atendimento objetivo das exigências do ser humano, para sua conservação, para seu desenvolvimento, para sua integridade. Para que o progresso seja benéfico ao homem, é necessário que ele considere sua natureza e seu valor, sua existência e suas consequências, os critérios que o informam, os princípios que o dirigem, os fins a que se destina.
Só neste contexto o homem pode ser livre, isto é, senhor de si mesmo. Ele não o será espontaneamente. Sua liberdade, ele terá de conquistá-la, construí-la, a partir da construção das condições de possuí-la, usá-la, e mantê-la. Esta é a perspectiva realista que propomos. Este é o convite, este é o chamado que fazemos. Que dizemos nós? É o chamado do próprio ser humano. Ele é chamado a realizar esse projeto, que deve e pode assumir.
Não é o chamado falaz, que atrai pelo aceno do menor esforço, e explora a ignorância e a incapacidade, sob a capa de uma atitude aparentemente altaneira, de um orgulho pueril, e ineficaz. É o chamado razoável da verdadeira inteligência, de uma consciência de limites que não sufoca a justa esperança. É o apelo da vontade forte, que não se acomoda nem se amesquinha, porque tem claramente o sentido de uma realidade que aparece como obstáculo, mas não como obstáculo invencível, e que se dispõe a ordenar a direção das ações por uma escolha efetiva diante de uma objetiva distinção e hierarquização de valores.
O homem comum, aquele que não pretende construir doutrinas ou fazer filosofia, o homem prático, esse, em geral experimenta a falta de liberdade. Ele não prega que o homem é espontaneamente livre. Ele prova as imposições externas, as restrições, as frustrações. Mas, toda esta experiência negativa, tem um significado positivo: ele o experimenta com desgosto, com sofrimento, com estranheza, com protesto. E todo esse mal-estar tem um significado altamente positivo: revela, pelo constrangimento, que a falta de liberdade não é uma situação natural, embora seja uma situação espontânea. Pode, então, descobrir que sua inclinação verdadeiramente natural e profunda é de lutar contra a falta de liberdade, é de lutar para conquistar a liberdade.
A liberdade se conquista, melhor dizendo se constrói. É necessário construir a liberdade. Esta concepção, que brota da experiência realista, é mais eficaz do que a enganosa afirmação da liberdade espontânea, que é encantadora e superficial como um mito, mas que acaba perturbando o verdadeiro destino do ser humano, porque o desvia do caminho que deve seguir na construção, no sustento de uma vida com liberdade. É sobre esta liberdade que desejamos tecer uma série de meditações, que colocamos à consideração daqueles que desejem fugir das ideologias fáceis, dos discursos demagógicos, e assumir com realismo o que o homem pode fazer com a sua própria vida. É nestes termos que desejamos tratar da liberdade sem mito.
A liberdade de uma pessoa não termina quando começa a liberdade da outra. Não houve erro de impressão: eu escrevi "não termina". Nego que a liberdade de um termine quando começa a liberdade do outro. Não existe uma geometria da liberdade, nem existe uma liberdade no espaço. A liberdade de cada não é uma espécie de posse física. O proprietário de um terreno sabe que seu terreno está limitado pela propriedade de outro ou de outros. Mas, a liberdade não se compara a um terreno particular. Em primeiro lugar, porque a liberdade não é apenas um bem particular e privado; e, depois, porque, assim como o amor, o seu limite é não ter limites.
Consideremos, por analogia, a figura de um gênio. Um homem de gênio é aquele que possui certos atributos pessoais em grau excelente. É claro qualidades são dele. Mas, poderemos dizer que o gênio que tais de um acaba quando começa o gênio de outro? Os gênios são inconciliáveis? São compartimentos estanques? Que significa a noção de posse, com relação ao gênio? A sua genialidade é dele, exclusivamente? Ninguém mais tem participação nela? Ninguém ganha todos mais com ela? Ou, diremos ao contrário, que ganham com a existência de um homem de gênio? Não ocorrerá a mesma coisa com o homem livre? De onde virá a ideia dos limites da liberdade?
Julgamos, de nossa parte, que quando dizemos que "a liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro" estamos assumindo um preconceito, do qual não temos consciência. De fato, a expressão parece tácita, evidente, indiscutível, por isso mesmo facilmente aceitável. Na verdade, é uma afirmação meramente superficial, que não suporta uma análise rigorosa. Que significa dizer que a liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro?
Primeiro, as noções de acabar e começar têm um significado temporal. Literalmente, portanto, o que dizemos não corresponde ao que pensamos. Ou seja: estritamente falando, isto significaria que cada um tem sua vez de ser livre. Quando um começa o outro acaba, quando um acaba o outro começa. Bem, não é assim, então. Não é no sentido temporal: é no sentido espacial. Quando se diz acaba e começa não se deve entender no sentido temporal. Diz-se apenas que "acaba", para dizer "vai até", e "começa" se diz no sentido de "início", ou "princípio", também "limite". Opera-se, então, com o conceito de liberdade tomando-o espacialmente: a área de liberdade de um não é a área de liberdade do outro. Na verdade, não é isso que se quer dizer: procura-se afirmar de fato que o direito à liberdade de um tem como limite o direito à liberdade do outro. Então, nem é no sentido temporal, nem espacial, mas moral o plano de nossa afirmação. Trata-se da ordem do direito, do direito de um com relação ao direito do outro. Pode-se, então, supor que cada um tem um direito à liberdade? Mas a liberdade de um não é a liberdade do outro, logo cada um tem uma liberdade diferente. Não existe um direito igual à liberdade? Bem, poder-se-á responder, é igual porque é de todos, mas é diferente porque é de cada um. Neste caso, o que difere é ser vário, isto é múltiplo? É de todos sendo de cada um. Mas, já agora nós o consideramos em termos de direito. E, dessa forma, qual o critério capaz de verificar que se trata de liberdade de cada um? Porque, evidentemente, tratando-se de direito, põe-se a questão do dever ser, e já não mais se admite o arbítrio, a licença, mas é preciso estabelecer os critérios para saber o que deve ser considerado livre.
Ora, o que a fórmula em questão evita, exatamente, é entrar neste ponto. Quando se diz que a liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro, o que se procura no fundo é evitar o questionamento do que deva ser a liberdade. A posição limita-se a considerar o seu exercício, sem maiores especulações sobre o que efetivamente possa ser considerado como liberdade. Nestas condições, admite-se como direito de liberdade de um ele realizar tudo quanto queira desde que suas ações não venham a interferir na vida do outro. O que não se admitem são os choques, os conflitos. Deste modo, teria eu o direito de fazer tudo quanto quisesse desde que não perturbasse a vida de outra pessoa. Sim, o sentido parece claramente ser esse. Mas, será isto aceitável? Primeiro, é possível todas as pessoas agirem de tal modo que cada um faça o que quer desde que não afete a vida do outro? Admitamos, teoricamente, que isto seja possível. Quais seriam as consequências? Ousamos dizer que as consequências estariam em que toda a vida humana seria perturbada. Como pretender não afetar a vida do outro, se naturalmente nossas vidas são afetadas umas pelas outras? Depois, não basta entendermos poder admitir a liberdade de um em separado da liberdade do outro, uma vez que faz parte legítima da liberdade de cada um esperar do outro aquilo que lhe é devido, ou seja não é possível escamotear o fato de que uns têm para com os outros deveres recíprocos.
A facilidade com que se aceita esta fórmula tão amplamente difundida é proporcional à dificuldade de analisá-la, e penetrar-lhe os pressupostos. Por outro lado, ela é fácil de aceitar porque se adapta a uma forma simplória de pensar. Ela decorre de um pressuposto individualista, e reflete uma concepção relativista, incapaz de atingir com propriedade o conceito de liberdade.
O pressuposto individualista não consiste apenas numa posição ideológica de exaltação do indivíduo com relação ao todo social. Ele parte da ideia simplória de que é possível pensar uma sociedade como a composição aritmética de unidades isoladas, unidades afetadas de vontade, e que deliberam unir-se por contrato. Esta ideia de antes e depois, de uma origem constituída de indivíduos solitários, e depois uma conjugação de vontades, ou a necessidade de harmonizar os possíveis entrechoques de vontades, eis o que está na sua base, e constitui uma posição fora da realidade.
Para John Locke, os homens, nas origens, nasceram num estado de independência e liberdade total. Depois, unicamente pelo consentimento recíproco originaram a sociedade. Esta concepção, além de individualista, é mecanicista. Trata a sociedade como o resultado da engrenagem de peças concebidas isoladamente umas com relação às outras. Parte, portanto, de uma concepção estática: cada indivíduo é uma peça separada; depois, estas peças se juntam. Não é esta, contudo, a realidade social. Por isso, Aristóteles já dizia: o homem é um animal social. Se é indivíduo, é porque é uma unidade dentro de um todo. Ao mesmo tempo que este indivíduo se afirma como pessoa, que é um conceito de valor moral, ele já desde o princípio se encontra comprometido com a ordem social. Esta ordem social pode ser mais perfeita ou menos perfeita, a consciência do valor das instituições, através das quais os homens se relacionam, pode refletir uma organização mais elaborada ou menos elaborada, mais refletida ou mais instintiva, mas, de qualquer maneira, o homem é desde as suas origens um ser social. Não podemos dizer que primeiro ele nasce isoladamente, e depois consente em formar uma sociedade. Desde o princípio ele deve aceitar a circunstância de existir numa sociedade.
Dentro da concepção mecanicista, o indivíduo é concebido originalmente como livre, sem amarras, sem restrições, sem compromissos. Na verdade, não existe tal liberdade. Ela seria apenas um conceito abstrato. A ideia de o homem encontrar-se radicalmente livre é a mesma que o vê radicalmente solto, isolado, sem relações, o que significa igualmente a impossibilidade de uma afirmação pessoal de si mesmo. Trata-se de abandono, e não de liberdade. Ora, a consequência imediata, à aproximação de uma realidade concreta, é verificar inclusive que a organização social não é obra de puro consentimento, ou de livre consentimento. Algo se impõe, é necessário aceitar e acatar a liberdade do outro. Então, aparece contraditoriamente esta dupla formulação: a sociedade é fruto do livre consentimento dos indivíduos, e por outro lado, é fruto de um consentimento necessário, porque é preciso garantir a sobrevivência das liberdades individuais. Daí a fórmula segundo a qual a liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro.
Do princípio de que liberdade é não conhecer limites, cai-se imediatamente na ideia de que a liberdade só pode existir dentro de limites determinados pelas exigências da convivência.
Dentro deste relativismo simplório, de fato não há critério objetivo para julgar sobre os limites da liberdade de cada um. Verifica-se imediatamente que se espera uma acomodação ditada pela pura espontaneidade existencial. Espera-se que esta delimitação ocorra ocasionadamente. Mas, efetivamente, as consequências práticas serão certamente impostas pelo choque de interesses, pelo conflito de vontades diversas, e, afinal, pela imposição do mais forte. Esta hipótese não está inicialmente prevista. Para John Locke, "é bastante evidente que criaturas de uma mesma espécie e de uma mesma ordem, que nasceram sem distinção, que participam dos mesmos favores da natureza, que têm as mesmas faculdades, devem da mesma forma ser iguais entre si, sem nenhuma subordinação ou sujeição".
Se, realmente, a sociedade humana fosse organizada em termos mecanicistas, constituída de homens iguais, com faculdades iguais, e iguais oportunidades naturais, com um consentimento igual, teríamos um resultado harmonioso. Mas, não podemos partir de uma suposição, em que os indivíduos humanos são conceituados tão abstratamente quanto as unidades matemáticas. A posição teórica de Locke é fruto da pura imaginação. É uma concepção sem fundamento na realidade. Curioso, no entanto, é verificar sua aceitação. Fácil aceitação, sem dúvida, porque fala ao sentimento, sem nada exigir de um esforço intelectual fiel aos fatos, que devem ser estudados e analisados. Com razão, diz Jacques Leclercq, em seu livro Leçons de Droit Naturel: "Movimento confuso, sentimental aspiração mais do que doutrina, exprimindo com toda a imprecisão todas as contradições dos impulsos sentimentais, o liberalismo é quase intangível, estado de alma mais do que sistema filosófico ou político. São movimentos deste gênero que encontramos habitualmente na origem das grandes transformações sociais e que lhe tornam tantas vezes as origens enigmáticas. Corrente sentimental bastante nítida: amor da liberdade e da igualdade, fé entusiástica na liberdade, convicção de que a liberdade dará felicidade aos homens e que o fim da sociedade é assegurar o máximo de liberdade".
O que verificamos de fato é que o conceito de liberdade aparece para o liberalismo sustentado por um discurso apologético, em que se exalta o princípio de espontaneidade como um direito original. A espontaneidade e o arbítrio. Exalta-se um sentimento que responde a uma aspiração natural, mas não a uma consciência natural. O homem naturalmente tem consciência dos obstáculos e das necessidades. Ele pode ter legitimamente a consciência de que aspira ser livre, o que não é a mesma coisa que poder afirmar-se originariamente livre. Curiosamente, o liberalismo põe o fato da liberdade como um dado primeiro, uma espécie de princípio de inércia do mundo psíquico. Seu enunciado seria o seguinte: todo homem nasce livre e permanece livre desde que nenhum obstáculo se interponha à sua ação. Mas, neste termos, a liberdade deixa de ser uma força efetivamente determinante, quando exatamente o que se pretende afirmar é o seu poder de estabelecer por sua conta os vínculos de sua vida, sua diretriz, seu alcance. Quer-se tratá-la como uma força, e trata-se como inércia. Quer-se concebê-la como a única ação determinante, e no entanto conceber-se-á como a que sofre limitações, restrições, alterações. Pensamos na sua ação, e de fato a tratamos como passividade. Esta é a trágica consequência de julgarmos a liberdade como simples espontaneidade. Fica faltando exata- mente o que lhe seria essencial: o princípio que faria da liberdade um poder determinante.
Trata-se a liberdade dentro de categorias de espaço e de exterioridade, quando seria necessário considerar a sua interioridade. Um sentimento repousa sempre sobre alguma ideia, que lhe configura o caráter. Assim, um sentimento de piedade supõe a ideia de uma obrigação para com o semelhante. Um sentimento de alegria supõe a ideia de um acontecimento benfazejo. Assim também o sentimento de liberdade supõe uma ideia, que o configura, e, por que não dizê-lo? que o determina.
O preconceito da liberdade consiste exatamente na ideia de que ela é um dado primeiro, absolutamente insubordinado, radicalmente indeterminado. E por isso mesmo, a ideia que se forma a seu respeito é vaga e confusa, indefinida. Supõe-se a possibilidade de um sentimento independente de uma ideia própria determinante. Na verdade, ela existe, apenas não é a que deveria existir. Há uma ideia que substitui a ideia de liberdade: é a ideia de aspiração da liberdade. E então, forma-se um tipo curioso de raciocínio, o que se costuma chamar de lógica afetiva. O raciocínio se desdobra conduzido por uma fixação afetiva, no caso o desejo de ser livre. E a inferência se produz nestes termos: desejo ser livre, logo sou livre; ser livre aparece como a possibilidade de fazer o que quero. Ora, se posso querer ser livre, e se penso que posso fazer o que quero, então sou livre. O raciocínio é sofistico, mas como quem admite tal posição não está interessado em submeter-se a uma ordem racional que obedeça a imposições que lhe são próprias, para ser verdadeira, a aspiração da liberdade aparece como um dado primeiro identificado com a opção da liberdade. Sou livre, quero fazer o que quero, penso poder fazer o que quero, logo posso fazer o que quero. Assim procede o raciocínio daquele que, como o partidário do liberalismo, entende ser livre de tratar arbitraria- mente o tema da liberdade.
Aí está sem dúvida alguma uma opção. Faz-se uma escolha. O problema do chamado livre-arbítrio se põe exatamente neste ponto. Não se discute quanto à escolha ser um fato. O que se discute é se quando há escolha a escolha é feita livremente, ou feita determinadamente. Ou seja: quando alguém faz uma escolha, ele é livre de escolher, ou é determinado a escolher? Do mesmo modo pode-se perguntar: uma escolha feita sem qualquer determinação, é livre? O preconceito liberalista supõe a liberdade como indeterminação absoluta. Neste caso, a liberdade dificilmente se distinguiria do acaso, da falta de razão de ser. E aí está o problema: saber se um ato verdadeiramente humano pode ser um ato meramente ocasional, em que o sujeito da ação ao mesmo tempo é fonte do ato, mas, este não tendo razão de ser, é o responsável pela ação, no plano físico, mas não é o seu responsável moralmente. O preconceito da liberdade consiste em pretender partir de um conceito irrealista, primeiro julgando a vontade intransitivamente, segundo tratando a ideia de liberdade sem considerar primordialmente que se trata da liberdade humana, e por isso mesmo não podemos deixar de ter presente tudo o que caracteriza ser efetivamente humano. O homem quer alguma coisa para algum fim ou por alguma razão. O querer por querer não caracteriza um ato que possa ser designado como propriamente humano.
O preconceito da liberdade consiste, portanto, numa pretendida exaltação da mesma, que, de fato, a dilui ou dissolve. O homem que pretende ser livre por uma deliberação arbitrária e meramente ocasional, experimenta apenas a possibilidade do risco, mas não é senhor de si mesmo. Ser livre é antes de tudo ser senhor de si mesmo, e portanto de suas faculdades, do seu uso, do seu domínio.
A liberdade não é um postulado, que deve ser aceito simploriamente. É a questão fundamental do ser humano, que está desafiado a resolvê-la. Há um caminho realista, que pede para ser trilhado por espíritos adultos, e este põe para o homem um problema que ele deve estar disposto a enfrentar. Ele é livre de não fazê-lo, mas necessita aceitar este desafio se quiser continuar livre. Eis a questão.
Schopenhauer conclui sua dissertação sobre O Livre-Arbítrio, citando Malebranche, que afirmou: "A liberdade é um mistério". Nós diremos apenas: "A liberdade é um problema".
Se o homem é livre, a liberdade é um problema. Se o homem não é livre, a liberdade não é problema. Gabriel Marcel fazia uma distinção entre mistério e problema, dizendo que existe um mistério por parte do ser, e um problema por parte do sujeito que conhece. Mas, nós não estamos falando de um problema na ordem do conhecimento, apenas. Falamos de um problema na ordem do ser, que supõe um problema na ordem do conhecer. É neste sentido que dizemos que, se o homem é livre, a liberdade é um problema.
Schopenhauer aceitou o problema da liberdade como um problema teórico, e o trata dentro de uma concepção determinista. Como um problema teórico, ele procura harmonizar conceitos que parecem antagônicos. Assim, concilia a ideia originária de um sentimento de liberdade com a ideia de uma causalidade determinista necessária, que aparece como princípio universal dos acontecimentos do mundo. Primeiro, transporta o problema da ordem dos atos para a ordem do ser. Para ele, em geral, o tema da liberdade é tratado com relação aos atos humanos. Considera-se se os atos são livres ou não são livres. Julga, no entanto, que os atos já são decorrências do ser. Argumenta com o princípio escolástico de que o ato se segue do ser, "agitur sequitur esse". E, na sua maneira de interpretar, diz que o homem quando age segue a sua vontade, escolhe, e por isso tem a impressão de ser livre. Mas, escolhe em razão do que ele é, e assim seus atos são determinados pelo que ele é. Para Schopenhauer, então, existe um determinismo do lado do ser, enquanto existe uma consciência de liberdade, porque a ação aparece como resultado de uma escolha. Na concepção de Schopenhauer, houve uma conciliação teórica entre duas posições aparentemente antagônicas.
Não vamos discutir no momento os fundamentos desta concepção. Bastaria trazer à discussão a posição de Bergson, quando afirma que nós agimos de acordo com o que somos, mas também o que seremos depende de nossas ações. A questão não ficaria tão simples quanto se mostra na colocação de Schopenhauer Por enquanto, o que desejamos ressaltar é que não se trata de um problema acadêmico. De fato, o discurso de Schopenhauer pretende responder ao tema proposto pela Academia Real da Noruega. Então, encontramos esse malabarismo intelectual, que tenta conciliar teoricamente posições divergentes.
Por isso, insistimos na questão. Liberdade é um problema no plano da realidade, antes de ser um problema puramente teórico. Mas não é um problema puramente prático. Envolve o ser humano em sua plenitude, o que significa que convoca todas as potencialidades do ser humano. Tem, então, uma dimensão também intelectual, pelo papel que a razão representa na vida humana.
Se o homem estivesse submetido a um sistema do mundo, conforme a concepção de Laplace, haveria um determinismo rígido, em toda a natureza, e com o aperfeiçoamento matemático, haveria uma possibilidade de previsão segura dos acontecimentos. Chegou ele a propor em duas organizações a que pertencia, que fosse adotada uma forma de escrutínio complicado pelo qual matematicamente poderiam ser escolhidos os candidatos mais dignos de eleição para os postos do "Institut" e do "Bureau des Longitudes". O processo foi abandonado, porque muitas vezes saíam escolhidos os mais medíocres. Mas, enfim, dentro de uma concepção mecanicista, determinista do mundo, todas as ocorrências poderiam ser previstas porque submetidas à lei de necessidade imutável. Nesses termos, não haveria problema de liberdade. Seria uma pura impressão subjetiva, uma ilusão da consciência psicológica. O problema seria explicar porque parece natural ao ser humano a consciência moral da responsabilidade.
Pode parecer simples que o problema da liberdade só se ponha para o homem se ele é livre. O que pretendemos dizer e mostrar é que, se o homem é livre, a liberdade deve colocar-se para ele como problema. Queremos dizer com isso que a liberdade não pode ser afirmada dogmaticamente. Defender a liberdade em termos de arbítrio, de ação espontânea, como o faz o liberalismo, é colocá-la num plano irracionalista, ou de cego voluntarismo. Uma razão que perde o sentido de orientação de sua atividade, de sua natureza e valor, ou uma vontade que não se domina a si mesma, não podem ser apanágio de ver- dadeira liberdade, pois esta só se compreende se o homem é senhor de si mesmo, tanto na determinação de seus atos, quanto na construção de seu próprio ser.
Que dizemos nós? Como pode o homem construir seu próprio ser? Aí está exatamente o ponto de partida para a elucidação realista do problema da liberdade. Se o homem é um ser completo e acabado, se ele possui um desenvolvimento pleno, e, portanto, num certo sentido é perfeito, então os seus atos não supõem nenhuma problemática, e decorrem com a mesma necessidade de um transbordamento vital. Se, contudo, o ser humano não é absoluto, mas contingente; se é imperfeito, mas inclinado à perfeição, capaz de aperfeiçoar-se; se a sua razão não gera por si mesma a verdade, mas está inclinada à sua descoberta; se a sua vontade não escolhe automaticamente o bem, mas está inclinada ao bem; então, nesta encruzilhada marcada pela consciência fática das circunstâncias envolventes, dos estados, e das situações, por um lado, e, por outro, a consciência das suas inclinações, aspirações, e aptidões profundas, disto resulta uma dinâmica interna de tensões, que define a posição existencial do homem. Neste conjunto, como expressão de uma aspiração de transcendência, ou de superação, ou de autodomínio, ou de equilíbrio, manifesta-se a ordem da sua consciência moral, na perspectiva do dever. Dever que se manifesta num duplo sentido: por um lado, o que é necessário cumprir, como exigência necessária, por outro lado, o que aparece como um direito, seja embora sob a forma de um ideal. Não se trata, no caso, de conciliar a necessidade e a liberdade: o atendimento ao necessário como condição é circunstancial e instrumental; ressalta na ordem dos valores, portanto, a primazia do direito, que está na ordem da liberdade. Esta ordenação, esta hierarquização constituem os termos em que se desdobra o problema da liberdade.
Não é a afirmação da liberdade pela rejeição da necessidade. Não é a posição da liberdade como espontaneidade, porque escamoteia a ordem das causas, e propõe-se o acaso em lugar da razão de ser. É a liberdade como uma elaboração. Neste caso, a colocação corresponderá à realidade do ser humano, que é um ser em elaboração. Em termos bem simples: assim como o homem é um ser que tem como perfeição o poder aperfeiçoar-se por seu próprio mérito, a liberdade do homem se integra nesta marca própria do que ele é, e a liberdade não é uma perfeição acabada, mas perfectível. A liberdade do homem consiste primordialmente em poder construir sua liberdade. Se a liberdade existisse para ele completa e acabada, como um dom recebido de graça, em que sentido seria "sua" liberdade? Ela é sua na medida em que ele participa na sua construção. Ele não é apenas senhor de uso, ele é dono legítimo porque foi elaborada principalmente por ele.
Esta visão dinâmica da liberdade é o primeiro passo para colocar o seu problema. Ele deve ser colocado concretamente. O primeiro ponto, que deve ficar bem claro, portanto, é definir esta colocação do problema. Não se trata de abordar o conceito abstrato de liberdade. Ele só nos conduziria a posições negativas, e por isso mesmo vagas e absolutamente imprecisas. Trata-se de considerar o problema da liberdade do homem. Neste caso, a questão assume uma certa precisão. Não é a liberdade de uma folha seca flutuando ao vento. Não é a liberdade de um pássaro voando no espaço. Não é a liberdade das moléculas de um corpo separadas por uma ação explosiva. Não é a liberdade das nuvens de variar suas formas no espaço. Em cada uma destas expressões a palavra liberdade é usada num sentido particular. Quando dizemos liberdade de uma folha seca e sem vida, atirada pelo vento, ao léu, apenas indicamos que ela perdeu seu vínculo natural com um galho de árvore, e está solta. Falamos na liberdade do pássaro voar, como de um peixe nadar mergulhado permanentemente na água, porque é alguma coisa que não podemos fazer naturalmente, e portanto esta expressão tem um sentido alusivo. Liberdade produzida por uma explosão, dizemos para exprimir uma ruptura com a ordem natural. Liberdade de formas das nuvens dizemos para exprimir que as nuvens não possuem uma forma substancial, como os seres da natureza. Nenhuma delas é a liberdade do homem.
Sendo uma questão capital, em torno de que se define a vida humana, muitas concepções se formaram em torno dela, através dos tempos. Ora sob um aspecto, ora sob outro, o seu tratamento vai-se ampliando cada vez mais, numa sequência de desdobramentos.
O homem é livre? Nasce livre? Nasce com a capacidade de ser livre? A liberdade se diz da natureza do ser humano ou de seus atos? O homem pode decidir suas ações em meio a outras possíveis? Pode agir sem ser impulsionado por uma necessidade externa ou interna? O ato deliberado é manifestação de independência? Quando age, o homem é senhor de si mesmo? Tem o domínio de seus atos? É ele a causa própria desses atos? Será apenas o reflexo de um equilíbrio de forças subordinado a um mecanismo inflexível da natureza?
Vários problemas se põem com relação ao pensamento científico. O ato livre rompe a continuidade dos fenômenos? Contraria a ideia de uma unidade de força na natureza? Pode-se falar num indeterminismo na natureza?
Vários problemas se põem com relação a certos conceitos filosóficos. O ato livre se opõe ordem da causalidade? Contradiz o princípio de razão suficiente? É uma forma de acaso?
Vários problemas se põem com relação ao pensamento religioso. A liberdade do homem se contrapõe à ideia de onisciência divina? O ato livre se opõe à providência divina? Como situar a liberdade humana frente à ideia de onipotência de Deus? O homem, sendo livre, é superior aos anjos, como diria o poeta inglês Marvel?
A ordem social e política não pode prescindir da ideia de liberdade. Como falar em justiça social sem a ideia de liberdade? Como falar em responsabilidade moral? Como falar em mérito ou falta? Como falar em recompensa ou castigo? As lutas políticas sempre ergueram a liberdade como bandeira, até mesmo os sistemas totalitários. Guido Gonela faz sobre isto inclusive um curioso comentário. Diz ele que o regime comunista anuncia o seguinte: "Primeiro vamos cuidar da justiça, depois tratamos da liberdade". Mas, pergunta ele, "como, primeiro justiça e depois liberdade? Se justiça é fundamentalmente dar a cada um o que propriamente lhe pertence, que existirá que mais propriamente pertença ao ser humano, se não é a sua liberdade?"
Dissemos que o problema da liberdade não pode ser colocado em termos abstratos. Isto porque se não tivermos presente a vinculação do problema ao ser humano, tiraremos conclusões inteiramente inadequadas. Devemos ter, portanto, um sentido de adequação ou proporcionalidade. Assim, se dissermos que homem pode querer voar como um pássaro e no entanto não pode voar, logo, ele não é livre, teremos que concluir, isto sim, que ele não é livre como o pássaro é livre, assim como o pássaro não é livre como o homem o é. O homem não possui asas, nem corpo de pássaro: não pode ter liberdade de pássaro. O problema é saber em que pode consistir a liberdade do homem. Só uma colocação justa do problema pode conduzir a uma solução adequada. O que em geral acontece é que julgamos poder colocar o problema arbitrariamente, e aí já pressupomos, o que seja a liberdade (agir arbitrariamente). Devemos, pois, questionar a questão. Pode ela ser posta de qualquer maneira? Então, não é necessário armar o problema. Escolhe-se a solução, sem tratar o problema. Também, neste caso, não se pode afirmar que se trata de solução. É uma tomada de posição dogmática, ou categórica. Não reflete a dinâmica natural do ser humano.
Além da colocação sistemática que o problema tem assumido na história, devemos considerar também a sua colocação propriamente histórica. Como se situa o problema no Oriente Antigo? Na Grécia clássica? Na Idade Média cristã? No Renascimento? Na Idade moderna e contemporânea? Ainda mais: é o mesmo o contexto do problema na Europa e na América Latina?
Dois aspectos devem ser acentuados a partir do testemunho da história. O tema da liberdade ora aparece positivamente, como guia de uma cultura. Ou aparece em termos reivindicatórios, como expressão de uma situação de luta. Chega a aparecer em termos paradoxais: a escravidão grega, por exemplo, é uma situação apresentada como libertação, pois o escravo se justifica na Grécia como aquele que optou por viver, quando a vitória na guerra dava o direito de morte sobre o vencido. E aqui vale notar o problema: é necessário saber se liberdade é um termo co-extensivo de libertação. A libertação da opressão garante por si mesma a liberdade?
Devemos, ainda, notar os diversos planos em que se apresenta o problema da liberdade. Na ordem da vida prática, no convívio cotidiano, no plano do conhecimento vulgar, a ideia de liberdade está correlacionada com o mundo da imaginação. No plano estético, o problema da liberdade relacionado com a capacidade criadora da atividade artística. No plano social, a liberdade relacionada com os valores do comportamento social. No plano político, a liberdade relacionada com o direito instituído e com os ideais nacionais. No plano metafísico, a liberdade em relação com a natureza do ser humano e com os atos humanos. No plano moral, a liberdade relacionada com os princípios morais, e o questionamento sobre a restrição ou efetividade dos princípios morais como garantia da superação do fático na ordem dos valores. No plano religioso, a liberdade frente à fé e ao dogma.
Dentro deste equacionamento põem-se os termos do problema da liberdade. Se o problema é complexo, exige na verdade uma atitude simples (não simplória) é assim que se põe naturalmente e concretamente o problema. Não nos cabe evitá-lo, ou desconhecê-lo. É necessário enfrentá-lo. A liberdade só pode ser a vitória sobre o necessário. Não ignorá-lo: conhecê-lo. Desvendá-lo. Aí está o problema da liberdade. De sua solução depende a vida humana. De nada vale escondê-lo. A vida não espera senão que o enfrentemos. A liberdade começa a ser conquistada no momento exato em que não amputamos os termos do problema, não o sacrificamos aos nossos caprichos, não o minimizamos, não o reduzimos. Devemos enfrentá-lo como ele existe. Isto é obra para homens livres.
A tragédia grega nos permite compreender o sentido da liberdade grega. Não se trata de uma frase de efeito. Não procuramos o paradoxo. Buscamos a exposição do problema da liberdade entre os gregos através de uma expressão típica.
A tragédia grega ocupa uma posição muito particular no campo da literatura, pois não significa apenas um momento da história das letras. Tem um significado cultural mais profundo. Ela fala à Filosofia, à Religião, à vida política. É curioso saber, por exemplo, que a tragédia ática fazia parte do serviço religioso oficial. A mentalidade moderna está inclinada a procurar no teatro uma diversão, embora requintada. Mas, a tragédia grega não se apresentava para distrair o público assistente. Tinha um sentido educativo. Visava construir interiormente o homem. Na vida da cidade, procurava "melhorar os homens", como diz Aristófanes, resumindo magnificamente o papel da tragédia, como era entendido na época.
Por um lado, a tragédia retomava os velhos mitos, que eram apresentados sob formas novas, de modo a torná-los acessíveis e instrutivos para os contemporâneos. Como diz M. Pohlenz, a natureza desta arte consistia em apresentar claramente certos destinos na sua individualidade. Mas, a cada apresentação, um traço sobressaía como o mais importante: o homem tem uma vida que o distingue dos outros animais. Ele carrega consigo alguma coisa de especial. Ele está em outro nível mais alto. É alguém que age de acordo com os seus juízos de valor. Ele é responsável por seus atos. Ele deve sofrer as consequências dos seus atos. Mas, se é responsável, é porque "é livre de decidir". A liberdade é o conceito básico que sustenta fundamentalmente tudo o mais.
Não se trata apenas de uma noção de relação de causa e efeito. O que caracteriza a tragédia grega é o sentimento ou a visão de que há uma desproporção entre as causas e os efeitos. Na tragédia de Shakespeare, por exemplo, encontramos a luta entre o bem e o mal, encarnados em personalidades boas ou más. Na tragédia grega, encontramos o fato inexorável do destino (a "ananké"), no qual se verifica que a intercessão de séries causais movidas por intenções boas resulta, no entanto, num efeito mau, que desafia à compreensão, e faz o homem contemplar o mal com perplexidade. Antígona, por exemplo, desobedece à lei política porque obedece à lei divina, e, cuidando praticar o bem, dá sepultura a seu irmão falecido. O rei Creonte, seu tio, porque julgara estar praticando um bem político, proibira o enterro do cadáver sob pena de morte. Seguem-se os efeitos desastrosos: fica obrigado a condenar à morte sua própria sobrinha, noiva de seu filho. Este mistério do mal resultante dá toda a profundidade da tragédia.
O sentimento de que é justo procurar o bem, a consciência de um impulso natural para a independência, isto se choca com certas forças exteriores, alheias à vontade humana, e que determinam os acontecimentos. "Ninguém pode escapar ao destino". Os sucessos pertencem aos deuses. Aos homens cabe o esforço. Isto, porém, e aí está a marca por excelência do espírito grego, não conduz a uma passividade. Há alguma coisa que o mais cruel destino não pode arrancar de suas mãos, que nenhum insucesso pode ameaçar, que o homem tem o sentimento de possuir: a sua atitude pessoal e livre frente aos acontecimentos. Por mais que os acontecimentos exteriores fiquem fora do seu domínio e do seu controle, a sua atitude lhe pertence e depende exclusivamente de si mesmo. E é a consciência disto que sustenta basicamente o sentimento de liberdade para o homem grego. A sua grandeza consiste em que sua arrogância ou orgulho não se deixam vencer ou abater pela convicção de que os fatos ocorrem alheios à interferência de suas intenções e de sua vontade.
Sófocles, na "Antígona", faz o Coro dizer: "Numerosas são as maravilhas da natureza, mas entre todas a mais maravilhosa é o homem". Os gregos pensaram os seus deuses à imagem e semelhança dos homens, com alegrias, rancores, aflições, ciúmes. O homem ocupa um lugar privilegiado. A vida é curta. Os acontecimentos fogem ao seu domínio. Mas o homem grego não foge ao combate, ele tem espírito de luta. Como diz Demóstenes, no "Discurso sobre a Coroa", "ele olhará como mais terríveis do que a morte a vergonha e os insultos que o farão padecer numa cidade dominada".
Para H.I.Marrou, Homero é o educador por excelência da Grécia. Através da "Ilíada" e da "Odisseia", fixa-se o modelo ideal e essencial do homem grego. Não que o decorrer dos tempos conserve sempre a feição cavalheiresca dos primórdios. Mas, é sua ética, o sentido de valor acentuado por Homero, que poderia conservar paralelamente ao seu valor estético, um alcance permanente. É através da atmosfera ética em que faz agir seus heróis, com seu estilo de vida, que Homero consegue influenciar toda a história grega. Como diz Marrou: "Esta vida tão curta, que seu destino de combatentes faz ser ainda mais precária, nossos heróis a amam rudemente, com um coração tão terrestre, com um amor tão franco e sem segunda intenção, que definem a nossos olhos um certo clima da alma paga. E, contudo, esta vida aqui de baixo, tão preciosa, não é a seus olhos o valor supremo. Eles estão prontos — e com que decisão — a sacrificá-la a alguma coisa de mais alto do que ela; e é nisto que a ética homérica é uma ética da honra".
A "areté" grega, a virtude num sentido social e cívico, o modo de ser, por um lado pessoal, mas com uma dimensão de repercussão pública, esse estilo de vida ou consciência coletiva, um sentido competitivo de vida, apesar da convicção da força inexorável do destino, isto que Jakob Burckhardt caracterizou como o "ideal agônico de vida", traduz-se na expressão pela qual se caracterizou a vida dos heróis em sua morte: "Ele tombou como bravo, assim como viveu." Esta bravura, misto de orgulho e magnanimidade, um espírito de coragem cuja única recompensa esperada seria o reconhecimento ou a fama, este era o fundamento do espírito de liberdade na Grécia antiga.
A ideia de liberdade grega está ligada a uma noção de participação do cidadão na vida da cidade. A liberdade de cada um dos cidadãos está vinculada intimamente com a liberdade de sua cidade. Daí a importância histórica da cidade grega. Até mesmo o rigor de vida do espartano, a feição totalitária do seu governo, todo esse esforço coletivo sob o controle da autoridade administrativa, era uma submissão consentida, fundada na convicção de ser necessária para a manutenção do poder do povo, e de sua defesa contra a ameaça estrangeira. A estrutura militarista assumida por Esparta foi uma forma de cultivar a liberdade, muito embora este culto se dimensionasse especialmente em termos de libertação das ameaças externas.
Em Atenas, o culto mais pessoal da liberdade, tendo embora sempre presente a conjuntura social e política, se exprime através do papel assumido pela Assembleia do povo, a "eclésia". Esta expressão se torna mais típica na democracia onde se procura realizar o ideal de "isonomia", que Heródoto designa como a "mais bela forma de vida política", em que as decisões não dependem da vontade caprichosa de um soberano, mas de uma lei comum, que une todos os cidadãos, e pela qual pobres e ricos têm os mesmos direitos. Por isso mesmo Tucídides não caracteriza essa democracia como o governo das classes mais simples e humildes em oposição a outras, mas como um regime que harmoniza os interesses de toda a comunidade e dá poder a todo o povo. Esse poder se manifesta sobretudo na possibilidade de opinar, de manifestar livremente a palavra durante as Assembleias. Assim, na "eclésia", a voz do arauto se fazia ouvir: "Quem deseja tomar a palavra? Quem tem um bom conselho para trazer ao povo?" Este fato, Eurípedes comenta em "As Suplicantes": "Não é isto a plena igualdade para todos os cidadãos?"
Esta foi, contudo, ao lado da grandeza, o princípio de degeneração do estado grego. Isócrates o denuncia, mostrando que o espírito de liberdade num sentido individualista vai conduzindo à perda do cultivo do sentido do bem geral e do respeito necessário à lei. A unidade política se dissolve se a cidade é vista apenas como um órgão de distribuição, em que apenas os interesses particulares parecem ter importância. Platão comenta: "Tu sabes como isso termina: não têm nenhuma atenção para com as leis, escritas ou não escritas, sob a alegação de não se submeterem a qualquer espécie de domínio" (563 d). Em sua "Politica", Aristóteles se refere a esta forma de democratismo, em que as leis passam a não ter valor, pois contam apenas as decisões da Assembleia do Povo, frutos de um instante. Isto significa o domínio arbitrário do "demos", que tudo regula arbitrariamente, do mesmo modo que um tirano déspota. Para ele, não pode haver Estado em tal regime, pois é necessário ao Estado que as leis estejam em vigor. Uma liberdade política sem obrigação se torna uma monstruosidade. "A liberdade do cidadão, dizia Péricles, tem seus limites na ordem jurídica do Estado".
Num resumo da situação da liberdade política na Grécia, diz M. Pohlenz: "Esta liberdade tem um limite natural. Pois, evidentemente, o próprio Estado democrático deve obter dos cidadãos a obediência às leis e às autoridades. A novidade proclamada por Péricles consistiu em que para Atenas esta obediência não devia repousar sobre a coação mas sobre a submissão voluntária ao conjunto. Não pode haver liberdade sem obrigação. Mas esta obrigação deve ser desejada livremente. Assim parecia resolvido o eterno problema da determinação das relações do indivíduo com o Estado. Mas este ideal não repercute diante da realidade. E isto foi trágico para o povo grego, pois o mesmo traço de caráter a que ele deveu sua grandeza lhe tenha sido fatal por sua exacerbação. Da mesma forma que nas relações das diversas cidades entre si a aversão de toda coação conduz ao particularismo, assim também, no interior de cada uma, o instinto de liberdade uma vez despertado cresce até o individualismo que exige para cada um o direito de "viver como queira", de sorte que a liberdade degenera em licença desenfreada que se aparta de toda obrigação, enxerga a coação em toda autoridade e cava assim o fosso da ordem pública. O indivíduo já não se sente membro de um todo, mas um parceiro de igual direito, e o Estado se torna uma organização que se considera como um estabelecimento de previdência, sem nada experimentar do antigo sentimento de deveres para com ele. Isto conduz à ruína da independência da cidade".
Na história da Grécia, desde as tribos comandadas pelos "basileus", verificamos um espírito de aristocracia fundada nos valores pessoais, e não nos títulos colhidos por herança. É um sentido de valor pessoal, movido por um sentido competitivo de ser o melhor. Mas, este sentimento e esta disposição se tornaram conscientes e marcantes a partir do momento em que se viram obrigados a defender sua independência contra as invasões persas. Frente aos persas, houve de fato a opção: lutar com todas as forças, vencer ou morrer. Não imaginava o homem grego poder suportar as humilhações de uma vida servil. Diante desta guerra surgiu para o homem grego a consciência de que não era suficiente, inclusive, afastar o perigo iminente, mas conservar de maneira permanente a liberdade duramente conquistada. Este fato merece uma consideração especial, pois frente a estas circunstâncias, verificamos que o problema da liberdade se põe predominantemente em termos de libertação, ou liberdade relativa, do que de uma autêntica consciência da liberdade como alguma coisa que se constrói no ser humano em sua individualidade, que se aperfeiçoa, tanto quanto em sua convivência, dentro de um ideal de progressivo aperfeiçoamento. A dificuldade de desenvolver na consciência do povo um culto de auto aperfeiçoamento, que exige esforço permanente, e a facilidade com que o arbítrio se sobrepõe a uma vontade responsável, produziu os efeitos de degeneração em que contraditoriamente o sentido de liberdade construiu e destruiu a cidade grega.
O clima do arbítrio produziu um fenômeno curioso no plano da cultura: o magistério dos sofistas, marcado por um ideal prático de educação, a "demagogia". Dado que a Assembleia do Povo garantia a liberdade de palavra, o sofista descobre que a palavra é um poder. Pela palavra, o indivíduo pode alcançar a liderança política. Este é o ideal proposto pelo magistério sofístico: formar o demagogo (demos, povo — agógein, condutor), o condutor do povo. O fundamento primeiro: descrença numa verdade objetiva, ou na possibilidade do conhecimento da verdade. Em consequência, a convicção de que as resoluções práticas decorrem pura e simplesmente da imposição da vontade que se fará pelo exercício da palavra. Daí a importância atribuída pelos sofistas à oratória, à arte retórica, como instrumento de convicção. Górgias, sofista grego, em seu "Elogio de Elena", diz o seguinte: "A palavra é uma grande dominadora, que com um pequeníssimo e sumamente invisível corpo, cumpre obras diviníssimas, pois pode fazer cessar o temor e tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade... Pois o discurso, persuadindo a alma, a obriga, convencida, a ter fé nas palavras e consentir nos fatos... A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como queira. A mesma relação tem o poder do discurso com respeito disposição da alma, que os remédios com respeito à natureza do corpo. De fato, tal como os diversos remédios expelem do corpo cada um diferentes humores, alguns fazem cessar o mal, outros a vida, assim também, entre os discursos alguns afligem, e outros deleitam, outros espantam, outros excitam até o ardor a seus ouvintes...
Frente a esse relativismo dominado pelos interesses imediatos, Sócrates desejou servir ao povo ateniense, pregando a liberdade a partir do interior do sujeito, e a partir de um sentido de objetividade dos valores morais. Xenofontes nos dá um diálogo de Sócrates em sua obra sobre o filósofo, "Os memoráveis": “— Crês que a liberdade constitui uma coisa bela e sublime, não só para a cidade, mas também para o homem? É certo, a mais bela e a mais sublime. — Pois bem, julgas livre a quem se tenha deixado dominar pelos prazeres do corpo ou convertido num incapaz de fazer o melhor? — De modo algum... — E, parece-te ou não que os intemperantes só se acham impedidos de fazer as coisas melhores, ou também compelidos a cometer as mais ignóbeis? — Não se encontram menos levados a estas do que impedidos para aquelas. — E que espécie de amos estimas tu aos que impedem fazer o melhor e impelem ao pior? — Da pior espécie possível. — E qual consideras a pior forma de escravidão? — Creio que a que sofre sob os piores amos. — Então, os intemperantes servem à pior das escravidões".
Conhecer-se a si mesmo, saber que a vida é provisória, porém é possível uma preparação conveniente para a vida definitiva, pelo aperfeiçoamento moral da alma humana, aí está o que Sócrates entendia dever pregar ao povo grego, despertando-o dos interesses puramente práticos e imediatos, para o culto de uma verdadeira liberdade. Platão, na "Apologia", nos faz ouvir da boca de Sócrates este testemunho: "Pois, sabeis vós, obedeço a Deus; eu creio que a cidade não possui maior bem que este serviço que presto a Deus, este meu constante andar aqui e ali não fazendo outra coisa senão convocar-vos, a jovens e a velhos, a não preocupar-se com o corpo nem com a riqueza, nem antes nem com maior zelo do que o que tenhais para com a alma, para que ela melhore o que for possível; dizendo que para os cidadãos como para a cidade a virtude não provém da riqueza, mas sim que a riqueza e qualquer outro bem depende da virtude. E acrescentarei: atenienses... ainda que me absolvêsseis, eu não faria outra coisa, nem mesmo no caso de que tivesse de morrer muitas vezes".
Dion, filósofo do século I, gostava de aplicar-se ao tema da liberdade e da escravidão, tema de sua preferência em suas conferências. Eis como coloca a questão: "Os homens em geral aspiram a ser livres e proclamam a liberdade o maior de todos os bens e a servidão ("dulia") a vergonha suprema e o pior dos males. Mas, em que consiste ser livre e escravo? Isto é o que ignoram, e por isso se privam da liberdade".
Com Alexandre Magno, o império grego se transformou num poder central de governo, produzindo a dissolução da "polis" com sua autonomia. Platão e Aristóteles tentaram construir uma ética em conexão com a política, de tal forma que se sustentasse em termos realistas o sentido de corresponsabilidade, em que se harmonizassem os direitos particulares e os deveres para com a vida pública. Com a dissolução da típica cidade grega, outras posições filosóficas procuram acomodar-se à situação, em lugar de representarem posições objetivas de sustento da ordem social e política. É assim que as escolas filosóficas menores mergulham no subjetivismo.
O estoicismo de Zenão dá o tom geral desta atitude. A liberdade se retrai na quietude interior. A razão humana não é mais a expressão de sua liberdade como guia de suas ações no domínio das circunstâncias. Temerosamente, sua função se retrai. Proclama-se a liberdade da razão. Mas, em que consiste esta liberdade? Ela pode desligar-se do significado objetivo dos acontecimentos. Ela é livre de interpretar. Ou fabular? A liberdade se submete a uma noção negativa de bem: bem é não sofrer. É padecer sem reclamar. É suportar. A razão, proclamada livre, é livre de acomodar a consciência. A "sinkatatese" é a faculdade da razão de tomar subjetivamente uma posição em face dos acontecimentos, projetar-lhe um sentido arbitrário, eximir-se de sentir sua influência. O homem espera poder encontrar sua felicidade pela quietude interior, rejeitando qualquer significado próprio ao mundo exterior.
Sem dúvida alguma é a liberdade do derrotado, do escravo. Ironicamente, a escravidão fora admitida na Grécia como uma concessão ao vencido que deveria morrer. O vencedor teria direito de morte sobre o vencido. A escravidão é o livramento da morte. Mas havia uma divisão entre homens livres e escravos. Agora, de fato, existem graus de escravidão, todos se sentem servos, possuindo unicamente a liberdade interior. A liberdade da "sinkatatese", de interpretar livremente, de elaborar sempre uma explicação que acomode o impulso de luta e de vitória, e conduza à quietude da apatia e da ataraxia. A liberdade política, aspiração de outros tempos, estava inteiramente afastada, em favor de uma liberdade subjetiva, individual, fruto de uma vontade cuja função seria conduzir o mecanismo racional a uma conclusão acomodatícia, que produzisse uma tranquilidade pessoal, descomprometida. O escravo também é dotado deste poder de interpretar interiormente os acontecimentos segundo a sua vontade.
A história da liberdade grega termina, assim, por um quadro melancólico, em que se torna impossível distinguir entre escravos e homens livres.
Rui Barbosa, em conferência no Politeama Baiano, em 26 de maio de 1897, a propósito da liberdade, nos deixa este testemunho: "A abafadiça magnificência das civilizações sem ideal não te entreviu. Nasceste, quando a inteligência principiou a devassar o infinito, no espírito dos que resgatavam com ostracismo, ou a cicuta, o amor da verdade e a independência da razão contra o Estado. Na Helenia se deu em dia a medida do teu valor, quando os embaixadores de Atenas, quatro séculos antes de Cristo, afirmavam a Esparta que os atenienses não negociariam a liberdade, para salvar o território. Mas uma organização que dividia os homens, perante o direito, em gregos e bárbaros, em cidadãos e ilotas, não podia resolver a tua incógnita. Foi a cruz do Nazareno que decifrou o teu mistério, levando-te num pedestal, que as maiores revoluções não combaliram, nem hão de combalir".
Não é o testemunho de um teólogo. Mas, a relação estabelecida entre a liberdade grega e a liberdade cristã é teologicamente válida, e de um alcance talvez bem maior do que o próprio Rui Barbosa pudesse supor.
Thomas Merton, em seu livro Tempo e Liturgia, no qual comenta as diretrizes sobre a Sagrada Liturgia, a partir da Constituição "Sacrosanctum Concilium", emanada do Concílio Vaticano II, tratando da reforma litúrgica, diz o seguinte: "Essa reforma brota de uma ideia básica sobre a natureza da liturgia como culto público, como atividade da Igreja operada pelo próprio Cristo em união com sua Igreja. A própria natureza dessa atividade exige a "participação plena, consciente e ativa de todos os fiéis". Não apenas isso, mas a tarefa de levar cada católico a participar ativamente no culto litúrgico tem prioridade sobre tudo o mais, pois uma reforma litúrgica por imposição de cúpula careceria de qualquer sentido de autenticidade. De fato, o Concilio não cogita de uma reforma autoritária desse gênero. Pelo contrário, a "Sacrosanctum Concilium" prevê como a grande renovação litúrgica será realizada pelos próprios fiéis — bispos, clero e, também, o laicato. Assim, "no restaurar e no promover a Sagrada Liturgia, essa plena e ativa participação de todo o povo de Deus é o objetivo a ser considerado antes de tudo o mais".
..."A liturgia não consiste simplesmente em cumprir um dever natural. Trata-se da celebração de nossa unidade no Amor redentor e no Mistério de Cristo. É a expressão da conscientização de um povo redimido. Se o próprio povo não tiver consciência de sua dignidade e nobreza de filhos de Deus em Cristo, como poderá ele afirmar e exercer de maneira convincente seus plenos direitos espirituais de cidadãos no reino de Deus?"
"Para compreendermos isso, temos de nos voltar para o clássico conceito grego da liturgia".
"A liturgia, no sentido original e clássico do termo, é uma atividade política. Leitourgia era uma "obra pública", uma contribuição do cidadão livre da polis celebração e manifestação da vida visível da polis. Como tal, distinguia-se da atividade econômica ou privada e da preocupação mais material de ganhar a vida ou dirigir as empresas produtivas da comunidade". A vida política era o domínio público e responsável cidadão livre — e só a ele se restringia”.
"A vida privada era propriamente a área dos que não eram considerados como sendo plenamente "pessoas", como, por exemplo, as mulheres, as crianças, os escravos, cuja aspiração em público era sem importância, pois não estavam habilitados a participar na vida da cidade. No que tocava à vida pública, não existiam. Nos dias da república ateniense, a atividade pública era, ao mesmo tempo, política e religiosa, uma vez que a vida da cidade-estado era basicamente religiosa".
"A noção mais antiga de liturgia não repousa numa distinção entre "sagrado" e "secular". Um exemplo de "liturgia" na democracia ateniense seria o ato de providenciar a realização da dança e procissão ditirâmbica ou a representação do ciclo-drama religioso que surgia do ditirambo. Nota-se como aqui, também, "arte", "cultura" e "religião" se unem numa só Leitourgia".
"É importante para nosso atual propósito repor o termo "liturgia" em seu contexto clássico helênico, onde aparece com maior nitidez e sentido. A celebração litúrgica, nesse sentido antigo e original, é um ato sagrado e público em que a comunidade, ao mesmo tempo religiosa e política, reconhece sua identidade no culto prestado".
Mas, é necessário também acentuar as diferenças entre o grego e o cristão. E Thomas Merton o indica nestes termos: "Na cidade cristã, todo cidadão maduro é um cidadão livre ninguém está privado, pela condição servil, de participar na vida da polis, a Cidade Santa, ou, melhor, o Povo de Deus. Cada pessoa, como membro de Cristo, tem o direito de fazer ouvir sua voz no culto público da Igreja, na "leitourgia", que é a mais elevada e excelente das "obras públicas" e, ao mesmo tempo, a mais perfeita expressão da "economia" que é a comunidade doméstica, não apenas a família do homem, mas do Pai do Céu. Nessa comunidade doméstica ninguém é escravo, são todos "filhos" e todos possuem o privilégio da palavra livre e espontânea (parrhesia) na Presença do Pai, seja individualmente ou em companhia dos outros filhos e co-herdeiros do Criador".
Assim também a palavra "igreja" traz em sua origem etimológica o sentido de assembleia (ekklesia). A palavra "ekklesia" (de ekkalein) designa especialmente uma assembleia de cidadãos convocados por um arauto público. Assim também a Igreja, enquanto Povo de Deus, é a assembleia católica (universal), de todos os que se reúnem por atendimento ao chamado (kérygma), esse anúncio da mensagem de salvação que é ao mesmo tempo uma convocação a um serviço público (liturgia). E esta noção conota a ideia de uma participação de homens livres, assim como a Assembleia do Povo, que encontramos entre os gregos.
Não se trata de um fato novo, trazido pelo Concilio Vaticano II, pois este retoma apenas a força da primitiva tradição cristã. A noção de Igreja (ekklesia) como Assembleia do Povo, de um Povo constituído de cidadãos livres, que atendem ao chamado, é essencial ao cristianismo, pois o pensamento cristão está centrado no princípio de participação e de união. União natural? União sobrenatural? Talvez união natural-sobrenatural. Como assim é sobrenatural, o natural envolvido pelo sobrenatural, porque essencialmente o cristianismo é uma mensagem de salvação, ou seja uma religião (re-ligação) de recuperação da natureza decaída pelo pecado original. Este, é a afecção da vontade, que torna o homem inclinado para o mal, quando fundamentalmente a vontade deve dirigir-se ao bem. Por isso mesmo, no cristianismo encontramos esse duplo aspecto do problema do homem: libertação do mal, e vivência livre no bem. Por um lado o despojamento do mal, por outro lado a vida no plano do amor ("agápe", caridade), que é a vida em estado de liberdade. Por isso, diz Sto. Agostinho: "Ama et fac quod vis".
Nesse duplo aspecto de encarnação (união com o mundo) e transcendentalidade (união com Deus), o ser do homem cristão assume esses dois problemas típicos: a libertação do mal (porque união com mundo não é unidade), e liberdade no amor (porque união com Deus não é unidade). Essa foi a distinção que a cultura grega não conseguiu visualizar nitidamente, que o cristianismo veio a perceber, mas cuja distinção nem sempre é mantida com normalidade, e mantém o ser humano num estado de constante esforço de recuperação, em lugar de um caminhar contínuo de construção progressiva. A civilização cristã em sua história mostra o testemunho desta luta, pelo fato de uma acentuação ora num sentido ora noutro, com exclusivismo e até confusão de uma dimensão com outra. Ora é o enfoque na liberdade, e a ameaça de angelismo, por uma alienação com relação aos problemas do mundo, ora é o enfoque na liberação, e a ameaça de maniqueísmo, por uma ética negativa.
Gregório de Nissa, em certa passagem do Diálogo sobre a Alma e a Ressurreição, diz: "Tendo deposto todo elemento estranho, quer dizer todo o pecado e tendo despido o medo de suas faltas a alma reencontra a liberdade ("eleuteria") e a segurança ("parrhesia"). Por um lado, o aspecto negativo da liberdade, a libertação; por outro, o seu aspecto positivo, a vida de amor, a vida de confiança, a segurança.
Fizemos referência a um estado natural sobrenatural. "Depor o que é estranho, escreve Gregório de Nissa, é para a alma retornar a seu estado natural". O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. "A alma é como uma imagem viva, que participa da dignidade e do nome do modelo". "O fato de ter sido criado à imagem de Deus quer dizer que um caráter de realeza foi atribuído ao homem desde a sua criação... O afastamento de todo o mal, isto constitui a semelhança com Deus". O pensamento filosófico ocidental entendeu por "natureza" do homem a união de sua vida animal e sua vida intelectual, a isto se acrescentando o "sobrenatural". Para Gregório de Nissa, a natureza do homem consistia na união de sua vida intelectual ("nous") e da vida sobrenatural ("pneuma"), e a isto se acrescentava a vida animal ("psiké"). Para o cristão, o conceito do homem como animal racional só tem sentido se se considera o racional com significado amplo de espiritual. Então, "animal espiritual", porém com sua natureza dividida pelo pecado, que é originalmente o desencontro da sua vontade com seus fins próprios, e a perda da liberdade como estado de perfeição.
O acontecimento, que é a vinda do Cristo, Messias, o tríplice ungido (profeta, rei, e sacerdote), é o Novo Testamento, é o Evangelho, a mensagem viva (caminho, verdade e vida) de recomposição, de reconciliação, a nova aliança, não apenas da lei que subordina, mas do amor que exprime o plano de Deus de um Reino de liberdade.
Em seu livro sobre Gregório de Nissa, Jean Daniélou nos diz: "Entre os bens que faziam parte do patrimônio do primeiro Adão e que a graça do Cristo restitui ao homem, é necessário destacar de modo especial esta realidade que Gregório chama com nome difícil de traduzir, a "parrhesia". Sabemos que é o termo pelo qual, no grego clássico, designava-se a liberdade de tomar a palavra na assembleia do povo, de falar francamente, que era o privilégio do cidadão livre por oposição ao escravo. Na língua cristã marca a segurança que resulta para o homem, em suas relações com Deus, por sua qualidade de filhos. Graças a ela, de fato, ele pode falar com uma certa igualdade — e não como um escravo se dirige seu senhor". A "parrhesia" se opõe ao medo, porque restabelece a inocência e a amizade. No Novo Testamento, conforme S. João, o Cristo diz aos apóstolos: "Eu não vos chamo servos, mas amigos". São Paulo, na Epístola aos Romanos, diz: "Não recebestes um espírito de servidão para ficar temerosos, mas um espírito de adoção, no qual nós dizemos: Abba! Pai! "Esta confiança é a marca da liberdade ("parrhesia"), fundada no estado de amor ("agápe").
A mensagem do Cristo é a revelação da união, da participação, da re-ligação. O Evangelho de S. João nos dá a oração universal do Cristo, que diz: "Não rogo por eles somente (os discípulos) mais ainda por aqueles que mediante a palavra deles, hão de acreditar em mim. Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti. Para que sejam também um em nós, e creia o mundo que tu me enviaste. Eu lhes dei a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um". A liberdade cristã se sustenta por esta consciência de união. É "agápe", é comunhão, sentimento de que não existe salvação isolada dos homens, mas que só pode existir salvação de uns em união com os outros. Esse plano de vida em liberdade, o homem se sentindo elevado a uma condição especial de participação e dignidade, não admite a ideia de liberdade como a situação de desligamento, ou de estar solto, mas de comprometimento mútuo, e sobretudo de co-responsabilidade. Também não é apenas a ideia de responsabilidade pessoal, com relação apenas a si mesmo: somos responsáveis uns pelos outros. A liberdade cristã não consiste apenas em que cada um é responsável pelos seus atos e por si mesmo. Há uma comunhão de responsabilidade, como há uma comunhão de liberdade.
O episódio da cruz é a expressão máxima de confirmação da vontade de Deus de adotar o ser humano em liberdade. Tivesse Deus a reação dos homens, e ameaçado de morte, revidaria com seu poder, para dominar os seus algozes. Não o fez, porque em seu plano deseja que o homem se submeta por amor, e não por coação. Aí está uma dimensão do nosso relacionamento com Deus, que muitas vezes aparece difícil à compreensão do homem: esse relacionamento em termos de liberdade. Muitos ateus o são exatamente em razão da concepção ideal que fazem de Deus: para eles, Deus seria todo poderoso; mas a noção que têm de poder é de um poder quantitativo, extensivo. Julgam, então, como um desafio, ou a busca de uma prova escolhida por eles, que se Deus existe, então ele é todo-poderoso, e ele, homem, não pode ter liberdade. Não pode ser livre de não crer em Deus. Ora, se Deus não o obriga, e não o submete na fé, então ele não é todo-poderoso, e então não existe. A noção cristã de Deus, no entanto, é a de que Deus é todo-poderoso exatamente porque pode permitir a liberdade ao homem, e pode realizar a sua vontade, sem que a sua grandeza se macule por permitir no homem a liberdade, e, com isso, a possibilidade do mal. Porque, do mal pode tirar um bem. O mal aparece como carência, como desordem, como desencontro entre os impulsos causais e os fins, mas não como uma força antitética do bem, e a equivalente em sentido contrário. Não há uma equipolência de bem e mal. Só o bem é substancial, o mal sendo apenas acidente. É porque o cristão crê na liberdade, e no relacionamento livre com Deus, que ele atinge um conceito próprio da grandeza e da onipotência de Deus.
É dentro desse espírito de liberdade que os primeiros apóstolos levam o anúncio de salvação, anúncio que é chamado para a "leitourgia", o serviço sagrado, na assembleia do povo de Deus Assim, a "didaké" é o catecismo dos primeiros tempos, ou o catecismo no seu sentido próprio e original. Não o "catecismo" de um ensino automatizado, mecânico, de uma doutrina aprendida de memória. A catequese, do verbo grego "katekéon", ressoar, significa exatamente que não se trata de uma aprendizagem passiva. A "didaké" é essa instrução, não uma preleção declaratória ou definidora, de tipo expositivo: ela verifica como ressoa, como repercute em cada um a mensagem transmitida. Ela considera o nível de cada um, o estado de cada um, o ser e o modo de cada um. Ela não é uma forma. Não um modelo uniforme e padronizado em que todos devem saber por igual. Ela atinge a cada um no momento e na situação. Ela tem em si o preceito da lei de Deus, mas opera pelo conselho.
A "disputatio" medieval, na estrutura magisterial da escolástica, em outra escala, em outro nível de estudos, retoma esse mesmo espírito. Não é o ensino categórico e autoritário. Respeita-se a autoridade da verdade. A "disputatio" não é o exercício querelante, não é o estímulo ao espírito de contradição: é o questionamento. É a análise de um tema dentro de um diálogo, no qual não se fecham os olhos para as diversas opiniões existentes, mas todas são levadas em conta, para que o debate se amplie, e o tema possa ser tratado sob as mais diversas perspectivas. Por esse método, as soluções são reconstruídas de maneira adulta e consciente, para uma adesão livre às conclusões encontradas, como espírito de objetividade e amor à verdade. Por isso mesmo, a Idade Média não apresenta um pensamento monolítico, mas, assim como hoje, as disputas teológicas apresentaram uma história dinâmica, a partir das acentuações pelas quais se caracterizavam as diversas escolas de pensamento cristão, o platonismo cristão, o aristotelismo cristão, o socratismo cristão, e suas encarnações mais específicas, o agostinismo, o tomismo, o escotismo, o suarezismo, etc.
A acentuação sobre o aspecto da libertação se torna mais típica diante da consideração da Igreja peregrina. Desde os primeiros tempos, o "êxodus" aparece como um símbolo da vida cristã. Como diz Thomas Merton, em seu livro O pão do Deserto, a história de Israel isto é a história do povo de Deus, a Igreja é também, em certa medida, a história de cada alma na Igreja. Como na ordem natural, cada homem é um microcosmo, também na ordem sobrenatural, cada alma é uma pequenina Igreja, um céu em miniatura e um templo de Deus. Como todo o povo de Deus, sempre em marcha ainda no deserto a caminho da Terra Prometida, passa pelo Jordão, trabalha em edificar Jerusalém e levantar o Templo de Deus em Sião, também cada alma deve, normalmente, conhecer algo dessa jornada, dessa mesma fome e sede, desses mesmos combates e orações, a luz e as trevas, os mesmos sacrifícios e lutas para construir, dentro de si mesma, a Santa Jerusalém". O "êxodus" é a libertação da escravidão do Egito pelo povo de Deus. A história dessa libertação prossegue.
O cristão hoje, no seu "êxodus", procura formas de vencer o estado de servidão, reflexo do pecado, para a encarnação do Reino de Deus a partir deste mundo. E aí se vê não só diante de suas deficiências pessoais, mas também diante das injustiças sociais, e de estruturas políticas inadequadas, frente aos valores cristãos, especialmente com vistas a uma situação de respeito à dignidade do homem, à sua liberdade. É neste sentido que se tem apresentado diversas linhas à procura de soluções, que aparecem sob as formas de teologia política, teologia do conflito, teologia da libertação, teologia da liberdade, etc.
Estas variações, estas tentativas de formulação, estas procuras de exprimir uma encarnação do cristão, como prolongamento da encarnação do Cristo, é o espetáculo dramático da consciência cristã em nossos dias. A responsabilidade de protagonistas da história, o sentido de presença diante dos sinais dos tempos, o espírito de liberdade e o anseio de libertação dão ao cristão hoje a expressão de sua participação no episódio da cruz, que prossegue.
Ressalta, assim, como um fato típico de nosso tempo o desejo por parte do cristão de assumir a missão profética. A ideia de libertação, contudo, não cobre suficientemente a ideia de liberdade. A ordem da operação não exaure a ordem da ação, que é também interior e de autoformação. Voltamos ao difícil problema de conciliar o que tradicionalmente se denominou a vida ativa e a vida contemplativa. A vida ativa se denomina aquela dirigida pelo intelecto prático, e se realiza na ordem da ação transitiva. A vida contemplativa se realiza na ordem da ação imanente, e tem por fim a perfeição do próprio sujeito da ação. Conciliar o fim justo na ordem da ação externa, com a expressão de perfeição do sujeito da ação, eis o problema. Assim também podemos dizer que hoje cabe conciliar com pleno equilíbrio e harmonia os atos de libertação com os atos de libere. Ou melhor: ter presente a subordinação da libertação à liberdade.
O risco de uma ação puramente libertadora é manter-se numa posição negativista. A rejeição do mal ou de uma injustiça não é por si só necessariamente a reposição do bem. Quando muitos cristãos supõem cumprir a missão profética apenas combatendo as injustiças do mundo não estão só por isso fazendo o anúncio das soluções globais de salvação. O compromisso com as consequências das denúncias obriga a assumir uma posição de engajamento na implantação dos substitutivos capazes de corrigir os males, com alguma perspectiva de continuidade.
Karl Rahner, em "Sobre a Teologia da Liberdade", capítulo do livro A Liberdade e o Homem, diz o seguinte: "... a autêntica natureza da liberdade, para a revelação cristã, emerge apenas da afirmação de que é ela o fundamento da salvação ou da condenação absolutas realmente definitivas e diante de Deus. Na experiência ordinária de todos os dias, pode figurar-se a liberdade de escolha à feição de algum ato particular humano imputável a um homem na medida em que tenha sido executado por ele, ativamente, sem haver sido causalmente fixado de antemão e, nesse sentido, forçado por alguma condição interior de homem ou por alguma situação de fora, que precedesse à decisão ativa. Tal conceito de liberdade de escolha, entretanto atomiza a liberdade em exercício porque a divide em nada mais que atos particulares de alguém, atos que são, assim, mantidos juntos apenas por alguma substância neutra como a identidade do sujeito que os realiza a todos, ou a sua capacidade de assim fazer, ou o simples espaço de tempo no qual a vida é vivida. A liberdade não seria, então, outra coisa senão liberdade de ação; seria a possibilidade de imputar algum ato particular a uma pessoa que permaneceria neutra em si e, por conseguinte, sempre capaz de se determinar a algo novo, na medida em que fossem mantidas as condições exteriores".
"Todavia, do ponto de vista cristão, o homem, através da liberdade, pode determinar-se e dispor de si como um todo, de uma vez por todas. Assim, ele não executa atos que possam ser pura e moralmente qualificados e que, então, se transformam em algo inteiramente transitório atos que lhe são imputados jurídica e moralmente. Ao contrário, por sua livre decisão, no âmago de seu ser e em toda a verdade, um homem é realmente bom ou mau, e de tal maneira que a sua salvação ou condenação definitivas já podem ser encontradas nessa decisão, mesmo se ainda se mantiver obscura. A liberdade na qual alguém tem de responder por si mesmo é assim transformada e aprofundada de um modo aterrador. A liberdade é, acima de tudo, liberdade de ser".
Em resumo, o que Karl Rahner nos mostra é que o problema da liberdade cristã se refere não apenas a atos livres tomados em si mesmos, mas em relação ao compromisso do próprio ser humano: se ele se determina a um plano de vida permanentemente livre ou não.
Esta visão é fundamental para ordenar a posição cristã frente ao problema da libertação e frente ao problema da liberdade. De um lado, diante do circunstancial e transitório, e das ações extrínsecas, e, por outro lado, diante de uma opção permanente, contínua, das ações intrínsecas, que moldam o próprio modo de ser humano. Como estes focos são acentuações, pois o homem sempre age interior e exteriormente, o problema da libertação e da liberdade estão intimamente relacionados, cabendo apenas distinguir a primazia extrínseca e a primazia intrínseca, e conjugar a transcendência e a imanência do comportamento e do ser humano.
As dificuldades são análogas às que se puseram nas vicissitudes por que passou a liberdade grega, porque é sempre o ser humano o seu sujeito. Mas no cristianismo, há um termo do problema que aparece como seu enfoque principal: é que a libertação só tem sentido para a realização da liberdade, na qual o homem cresce na perfeição do seu ser, e se recupera como imagem e semelhança de Deus.
A experiência de se sentir livre significa necessariamente que alguém seja livre? A impressão de ser livre se identifica com a experiência da liberdade? A consciência da liberdade autoriza afirmar a existência da liberdade? O que chamamos consciência da liberdade não será apenas consciência da experiência do sentimento de liberdade? Ter o sentimento de liberdade se identifica com ter a experiência da liberdade?
Jean Laporte, em seu livro La conscience de la liberté diz que "ou a liberdade não passa de uma palavra, ou é um dado da consciência. E então é à consciência que devemos interrogar". Ives Simon, em seu livro Traité du Libre arbitre diz que "o valor do testemunho da consciência como sinal de nosso livre arbítrio seria menos contestado se não tivéssemos cometido a falta de exigir da experiência interior mais do que ela pode dar".
Na posição de ambos, devemos fazer algumas distinções. Os erros decorrem no mais das vezes de sutilezas não percebidas. Há, nesta colocação, sem dúvida alguma, uma oposição a um tipo de psicologia dita científica, que rejeita o testemunho da experiência interior, porque entende que a este falta coletividade, por isso mesmo teor científico. É a psicologia "científica" do séc. XIX, de feição mecanicista, assim como, posteriormente, a corrente da psicofísica, e a corrente do condutismo ou comportamentismo ("behaviorismo"). Nesta linha, de fato, se se pretende tratar os fenômenos psíquicos a partir de uma observação exterior, de certo modo o problema da vontade parece dever ser excluído dos compêndios de Psicologia. Não vamos discutir o assunto no momento. O que nos interessa é questionar a colocação do problema em termos de interrogação sobre o "dado da consciência", ou seja a liberdade como um dado da consciência. Jean Laporte fala em "dado da consciência", como Ives Simon fala em "testemunho da consciência". Trata-se, então, daquilo que a consciência testemunha. E, que testemunha a consciência? A liberdade?
Aqui, exatamente, cabe acentuar a tradicional distinção entre noção psicológica de consciência e a noção moral de consciência. A consciência moral da liberdade se sustenta na noção de responsabilidade: moralmente, o homem é chamado livre enquanto responsável. A consciência psicológica da liberdade é uma experiência direta do sentimento de ser livre.
Neste ponto, exatamente, é que se pode questionar a relação entre sentimento de ser livre e liberdade. Poderíamos inverter a questão: o sentimento de não ser livre significa falta de liberdade? Ora, poderíamos exatamente buscar no testemunho deste constrangi- mento de não se sentir livre um sinal da natureza livre do homem, em razão de que ele estranha e sofre o impedimento do exercício da liberdade.
Verificaremos, em consequência, que a consciência psicológica de ser ou não ser livre se equivalem com relação ao problema da liberdade. Mas o "dado" ou o "testemunho" da consciência psicológica não são válidos por si mesmos, quer dizer como um indicador direto da existência ou não da liberdade. Temos o conhecido exemplo de uma pessoa nadando a favor da correnteza, ou contra a correnteza: se sente livre aquele exatamente que está sendo carregado pela correnteza, quando, de fato, aquele que consegue vencer a correnteza, apesar do sentimento de oposição, é que pode estar exercendo com mais plenitude a decisão de sua vontade. O exemplo vale apenas para dar uma ideia relativa da questão do sentimento com relação à realidade.
Não colocamos a questão, portanto, com relação a esse dado, ou testemunho.
Bergson, em seu livro Ensaio sobre os dados imediatos da consciência faz um longo estudo sobre os equívocos que impedem aceitar esse testemunho da consciência como válido. Trata-se de um estudo rico, e válido sob muitos pontos. Mostra o autor que a escola associacionista, do mesmo modo que a escola psicofísica da Psicologia tomam os fatos psíquicos em termos espaciais e não temporais, em termos quantitativos e não qualitativos, e, desta forma, se fixam sobre um aspecto mecânico do comportamento humano sem atingir-lhe propriamente a dinâmica. Sem negar toda margem de automatismos, que os comportamentos habituais da vida humana manifestam, distingue ele os níveis de atividade, que caracteriza pela denominação de "eu de superfície" e de "eu profundo". Nesses termos, as ações humanas seriam inclinadas, no "eu de superfície" pelos estímulos do exterior, no "eu de superfície" por um comprometimento total do sujeito. Dentro desta distinção, Bergson coloca a liberdade como expressão do "eu profundo". E neste caso, aceita o testemunho da consciência como um dado válido. Assim, diz Bergson: "Todo determinismo será então refutado pela experiência, mas toda definição da liberdade dará razão ao determinismo". Porque, para ele, o tratamento analítico da liberdade desdobra a sua realidade integra em elementos, que comprometem seu trata- mento com categorias espaciais, quando a existência do psiquismo humano tem sua dimensão no tempo, numa duração interior. Por isso, diz ele: "Agir livremente é retomar a posse de si mesmo, é recolocar-se na pura duração".
Toda a análise de recolocação do problema por Bergson é parcialmente válida. O que podemos concluir como validamente correto é que o dado da consciência pode ser verdadeiro. Ou seja: que pode haver o sentimento de liberdade, e este sentimento corresponder a um ato efetivamente livre. Então, o dado da consciência é válido. Mas, porque há consciência da liberdade não podemos inferir que corresponda necessariamente a um ato livre.
Para nós, do ponto de vista psicológico, o que interessa ao problema da liberdade não é propriamente a consciência da liberdade, mas tão somente o fato psíquico da consciência da liberdade. A consciência, pura e simples. Neste caso não propomos interrogar a consciência sobre o seu testemunho sobre a liberdade. Queremos, isto sim, questionar se ao problema da liberdade pode trazer algum elemento o fato que existir no psiquismo humano a consciência.
As palavras, único instrumento de explicitação do pensamento, é tantas vezes também fonte de equívocos. Muitas vezes a Psicologia moderna tem tomado a palavra consciência num sentido geral de espírito, de psiquismo, em substituição à palavra alma, de que se deriva o termo psicologia ("psiqué" alma). Mas nós a empregamos aqui no sentido estrito, como o fenômeno reflexivo pelo qual ao lado de uma ação humana se dá a percepção de sua realização, ao lado de uma percepção, de um conhecimento, de um sentimento, se dá também um registro paralelo, uma co-ciência, como se houvesse uma reafirmação, como se o homem se assistisse a si mesmo nos atos que pratica. Consciência, enfim, como expressão típica da capacidade auto-reflexiva do psiquismo humano.
O fenômeno da consciência, que parece típico do psiquismo humano, dá a ele um significado próprio, como o sinal de uma inclinação para a posse de si mesmo. Esta consciência psicológica, não é ainda uma posse real, não é o autodomínio, mas já é uma posse virtual, que o coloca num plano especial e distinto com relação aos demais fenômenos da natureza.
O psiquismo humano não é o homem. É parte dele. É um de seus aspectos, ou um dos níveis do seu ser. O trato do problema da liberdade na perspectiva psicológica só pode pretender, portanto, surpreender certos sinais ou inclinações. Não pode pretender também mais do que atingir o problema com relação aos atos, e não com relação ao ser, no seu todo. Mas pode perceber talvez, na consideração dos atos, alguma coisa que diga respeito à natureza do sujeito, sobretudo por se tratar de atos da interioridade do próprio sujeito.
Um fato primordial a ser considerado no psiquismo humano é o aspecto afetivo dos fenômenos psicológicos. Ao lado de um aspecto que pode ser chamado de intelectual, e que se refere de alguma forma ao conhecimento, os estados de consciência apresentam concomitantemente um aspecto afetivo. Por um lado, temos o fenômeno psicológico considerado em seu aspecto representativo, por outro lado ele se apresenta sob o aspecto de um valor, considerado no sentido mais amplo do termo. Isto significa que ao lado do conteúdo representativo, todo fenômeno psicológico é acompanhado de um tônus afetivo, que chamamos de sentimentos e emoções: é agradável ou desagradável, é atraente ou repugnante, é simpático ou antipático, etc. Este sentimento, por sua vez, pode ser objeto de conhecimento, e aparece então sob a forma de juízos de valor.
Entre os sentimentos mais elementares estão o prazer e o sofrimento. Dentro desta complexidade do psiquismo humano, em que há um entrelaçamento de impressões recebidas e ações pelo menos latentes, podemos verificar que o prazer está ligado a um desejo de prazer, e o sofrimento a uma aversão ao sofrimento. Este desejo e esta aversão, por sua estão ligados às tendências profundas do psiquismo de preservação da integridade do sujeito. Essas tendências se particularizam sob a forma de apetites. E, em função desses apetites variam os sentimentos de prazer e sofrimento. De fato, enquanto o aspecto de representação apresenta uma relativa estabilidade, o aspecto afetivo varia de acordo com o grau de apetite, de privação ou satisfação que apresente. Isto parece significar que as impressões produzidas pelo mundo exterior são recebidas pelo sujeito de acordo também com um estado mental fundamental que se projeta sobre o dado externo, influindo assim na determinação do seu valor.
É neste sentido que ao lado de uma lógica formal de teor puramente intelectual, mas que exige uma atitude especial e um comportamento próprio de atenção e de esforço intelectual, os psicólogos falam de uma "lógica dos sentimentos", ou "lógica afetiva". Nesse caso, no procedimento espontâneo de nossa vida, somos levados muitas vezes a conduzir nosso raciocínio muito mais pela simpatia ou antipatia, do que pelo estrito desdobramento racional segundo as exigências da objetividade.
Por um lado, o prazer pode ser simplesmente o sinal reflexo de satisfação de uma necessidade. Mas, ele é mais do que isso, e não se reduz a isso Ele acompanha certas inclinações profundas refletidas no psiquismo humano, que indicam que o ser humano não está limitado ao atendimento do necessário, ou a reflexos passivos que ocorram em reação às instigações produzidas pelos estímulos externos. A tendência fabuladora e interpretativa, que é uma característica do ser humano, torna esse fato evidente. O devaneio não apenas característico de certos temperamentos denominados românticos ou sonhadores. Ater-se à realidade exige esforço, é um ato de deliberação consciente. Espontaneamente, a realidade é mais um pretexto do que um obstáculo intransponível. Daí a tendência interpretativa arbitrária do espírito humano. No procedimento espontâneo, é mais fácil a imaginação projetar uma interpretação fabuladora sobre um acontecimento do que ater-se aos limites dados pela observação. Este fato parece indicar que o psiquismo humano é menos o produto reflexo do que é causado pelas impressões do mundo exterior, do que uma ação original que os dados externos apenas conseguem conter em certa medida.
Um cientificismo transportado para o terreno da Psicologia quis ver nos fatos psicológicos fenômenos redutíveis a leis deterministas estritas. Assim, a escola associacionista pretendeu ver no psiquismo humano apenas reflexos de atos produzidos pelo mundo exterior, reduzindo-se a razão a um mecanismo de associações, e os dados psíquicos a átomos mentais reunidos por leis extrínsecas. Também a escola da psicofísica e o "behaviorismo", dentro de uma perspectiva pretendidamente objetivista, de fato fizeram apenas uma redução epistemológica, que deformava os dados psicológicos nas suas características típicas. As críticas de Bergson, assim como da chamada psicologia da forma ("Gestalt") vieram a mostrar que os fenômenos psíquicos não podem ser conceituados em termos de especialidade ou justaposição, mas de integridade e interpenetração; não em termos de descontinuidade, mas de continuidade, e portanto de unidade interior; não de quantidade, mas de qualidade; não de passividade, mas de atividade do sujeito. Este fato do psiquismo humano é muito significativo: há no sujeito sempre um princípio original de ação. A realidade não se impõe a ele passivamente. Bergson examinou largamente o conceito das imagens puras, para concluir que elas não existem, isto é o espirito humano jamais recebe na percepção de um dado do mundo exterior a impressão como ela é produzida pelo objeto externo: esta impressão encontra do lado do sujeito uma projeção que com ela se encontra e se funde, e a conforma. Conformar-se à realidade como ela é, filtrando as projeções do nosso espírito sobre ela requer muito esforço. Por isso mesmo diz Bergson que ter bom senso é muito fatigante.
A própria psicanálise, apesar das suas origens materialistas e de um cienticismo determinada com Freud, veio revelar que o fenômeno de frustração só se explica por um conflito que realça os impulsos profundos do sujeito, essencialmente ativo; que o psiquismo humano tem em si um mecanismo de censura, de tal forma que este se torna fonte de juízos de valor, mesmo inconscientemente; que os sonhos revelam uma tendência construtivista do psiquismo humano, que se defende não passivamente, mas através de um processo de elaboração; que a sublimação é ainda um recurso mesmo inconsciente que evidencia o fato do psiquismo humano ter uma inclinação projetiva e não a marca da pura receptividade das determinações externas.
Um fato que tem também grande significação é o que se refere à formação dos hábitos. No ser humano, o hábito não se reduz a um reflexo condicionado. Quer dizer, se o comportamento habitual e rotineiro pode conduzir o homem a um certo torpor de consciência, e isto ocorre muitas vezes, sem dúvida alguma, esta não é contudo, a única dimensão do hábito para o ser humano. O hábito pode ser igualmente um elemento libertador. Quando um atleta faz todo um preparo físico de exercícios rotineiros aparentemente, na verdade está se preparando para uma performance, que nada tem de puramente repetitiva. Quando um pianista, por exemplo, leva horas de estudo de exercícios, isto o habilita especialmente para um desembaraço de execução, em que suas mãos obedecem de fato à sua vontade. A formação do hábito, portanto, no ser humano transcende o puro aspecto mecânico de adestramento, que se verifica nos outros animais, dentro dos quadros de um puro condicionamento determinante.
Poderíamos ainda chamar a atenção para um fato até certo ponto especial do psiquismo humano, bastante rico de significação: o sentimento estético. Aristóteles o caracterizava pelo efeito catártico. Não num sentido comum de purgação, mas como indicativo de um plano especial em que o sujeito se vê colocado acima da ordem prática, acima da ordem da necessidade, e experimenta o gozo de uma contemplação desinteressada. Bergson também vê no sentimento estético uma emersão do homem no plano não prático da vida. Para Bergson, o homem antes de ser "homo sapiens" é "homo faber": as necessidades o colocam imediatamente na ordem do pragmático, numa direção em que primariamente vê as coisas na medida dos interesses e da utilidade. Mas, o artista emerge deste mundo, e dele se destaca. Ele, espontaneamente, experimenta uma visão virginal, e realiza uma percepção original fora dos clichês originados dos relacionamentos práticos da vida social. Esta visão ele a transmite, e faz aos demais participar de uma experiência autônoma, e é isto o que caracteriza o sentimento estético. Neste ponto, o sentimento estético não se confunde com os sentimentos comuns. Muitas vezes uma falsa arte tem apresentado como estético o que unicamente significa uma excitação artificial de sentimentos e emoções. O estético, no entanto, é um sentimento e uma emoção de tipo especial. Pela experiência estética o homem se coloca num plano de existência no qual se desliga da ordem do necessário e do útil, e por isso dialoga com o objeto estético em termos de pura contemplação, sem outra ordem de interesses.
Não pretendemos aqui ter levantado um estudo sistemático sobre o psiquismo humano. E deliberadamente nos colocamos fora de uma apresentação tradicional que gira em torno da discussão dos argumentos do chamado determinismo psicológico. Não pretendemos, como Bergson, provar a liberdade refutando o determinismo. Julgamos mais válido tocar nos pontos de efetivo interesse para um tratamento positivo do problema. A Psicologia pode tratar apenas um de seus aspectos E, pelo que podemos colher da Psicologia, podemos afirmar que o homem apresenta sob a perspectiva psicológica certas condições essenciais à liberdade. O que a Psicologia, como ciência, nos pode indicar dentro de sua perspectiva, é que o ser humano apresenta certos índices de possuir um princípio de ação original, ou seja um princípio de ação que tem origem no próprio sujeito humano. Que ele não é apenas um objeto passivo, onde se imprimem certas impressões produzidas pelo mundo exterior. Que ele não se reduz apenas a um mecanismo de atos reflexos, que devolve em reações determinadas ou que os estímulos externos o compelem a produzir. Ele é sujeito de iniciativa. Jacques Monod, em seu livro Acaso e Necessidade, ao defender o princípio metódico de objetividade da ciência o faz propondo uma posição que se oponha à tendência projetiva do ser humano. Negou que a realidade tivesse um projeto, objetivamente falando. Mas, na verdade, o que fez foi reconhecer a objetividade desse fato: o homem se caracteriza como um ser projetivo. E isso é uma realidade.
O que podemos dizer, em conclusão, é que a natureza do psiquismo humano é projetiva. Existe uma iniciativa nos atos humanos que parte do sujeito. O ser humano em seu psiquismo conta com elemento determinante próprio. Estas são condições para que o homem possa ser livre, se o seu psiquismo for indicativo de sua natureza global, já que o seu ser não se reduz ao seu psiquismo. O que a Psicologia nos indica, porém, é que o psiquismo normal é capaz do exercício da vontade, e que os impedimentos deste exercício são tratados como fenômenos patológicos temporários, devido a certas perturbações transitórias, ou permanentes, se se trata de personalidades psicastênicas. Mas, normalmente, o psiquismo humano apresenta condições para que o homem seja livre.
"Liberdade, igualdade, fraternidade", este o lema que sintetiza a Revolução francesa. É também um ponto de referência básico relativamente à estrutura social e política moderna. Soberania do povo com relação ao governo autoritário, consciência de um direito fundamental de dirigir os seus próprios destinos.
Neste processo revolucionário do mundo moderno, o primeiro ato típico ocorreu com a independência das colônias inglesas da América. A 4 de julho de 1776, o Congresso continental vota a Declaração de Independência. Redigida por Jefferson, ela exprime no seu preâmbulo uma concepção filosófica: "Nós temos por evidentes por si mesmas as seguintes verdades: todos os homens foram criados iguais; eles são dotados por seu criador de certos direitos inalienáveis; entre estes direitos se encontram a vida, a liberdade e a procura do bem-estar. Os governos foram estabelecidos entre os homens para garantir esses direitos e seu justo poder emana do consentimento dos governados. Todas as vezes que uma forma de governo se torna destrutiva desse fim, o povo tem o direito de mudá-la ou de abolir e estabelecer um novo governo". Considerando a série de violações destas leis naturais por parte do rei da Inglaterra, que são enumeradas na Declaração, segue-se a conclusão: "Nós, Representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Congresso geral, apelando ao Juiz Supremo do Universo, que conhece a retidão de nossas intenções, publicamos e declaramos solenemente em nome da autoridade do Bom Povo dessas Colônias, que essas Colônias são e têm o direito de ser Estados livres e independentes..."
O processo da Revolução francesa também se encaminhou para uma fundamentação doutrinária. É assim que a 26 de agosto de 1791 a Assembleia Constituinte vota uma Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Proclama, então, o direito do homem às liberdades, o direito do cidadão à soberania. A aceitação do projeto apresentado por La Fayette fora muito reservada. Põe-se o problema da oportunidade de sua proclamação. O monarquista Maloret levanta o problema do perigo de tal anúncio, diante de uma sociedade que manifesta de fato tanta subordinação e desigualdade. "Direis aos homens assim que eles são livres?" A Assembleia se firma no ponto de que a Constituição deva conter uma declaração dos direitos do homem.
O Projeto inicial sobre a questão da igualdade, reflete essa insegurança: "Art. 4. — Cada homem tem um direito igual à sua liberdade e à sua propriedade; Art. 5 — Mas cada homem não recebeu da natureza os mesmos meios para usar esse direito. Daí nasce a desigualdade entre os homens: a desigualdade está pois na própria natureza; Art. 6 — A sociedade é formada pela necessidade de manter a igualdade dos direitos em meio à desigualdade dos meios". Mais tarde, sob pressão das opiniões, o texto finalmente adotado foi o seguinte: "Os homens nascem e permanecem... iguais em direito. As distinções sociais não podem ser fundadas senão na utilidade comum".
R. Mousnier e E. Labrousse, discorrendo sobre o XVIII século, na Histoire Générale des Civilisations, tecem o seguinte comentário: "Liberdades, igualdade civil, propriedade: um déspota esclarecido pode a rigor conceder tudo isso. Resta o problema da soberania. Certos Prussianos pretenderam que a monarquia fredericiana estabeleceu em nível alto, e com menos dificuldades, o essencial do regime que a revolução constituinte não fizera mais do que limitar. Mas esta revolução, vinda de baixo, proclama o direito dos cidadãos soberania. Ela crê no homem e não faz para ele senão o que ela faz através dele". Os mesmos autores nos dizem que todos os projetos levados à mesa da Assembleia sobre o princípio de soberania nacional estavam de acordo em tese, "abstrato". É sobre a aplicação do princípio que a batalha vai ser travada.
John Stuart Mill, em seu livro Sobre a Liberdade, toma o problema em categorias mais gerais. Diz ele: "Um tempo chegou, contudo, no progresso dos negócios humanos, em que os homens cessaram de julgar uma necessidade da natureza que seus governantes fossem um poder independente, de interesses opostos a eles. Pareceu-lhes muito melhor que os vários magistrados do Estado fossem mandatários ou delegados seus, substituíveis ao seu alvitre. Só dessa forma, parecia, poderiam ter uma segurança completa de que os poderes governamentais não seriam objeto de abusos em sua desvantagem. Paulatinamente, essa nova aspiração de governantes eletivos e temporários se tornou a matéria proeminente dos esforços do partido popular, onde este existisse, e invalidou, numa considerável extensão, os passos preliminares para limitar o poder dos governantes. Como prosseguisse a luta por fazer o poder dirigente emanar da escolha periódica dos governados, algumas pessoas começaram a pensar que se havia dado uma importância excessiva à limitação do poder em si. Isso (podia parecer) e constituía um recurso contra governantes cujos interesses eram habitualmente opostos aos do povo. O que se fazia necessário, agora, era que o interesse e a vontade deles fossem o interesse e a vontade da nação. A nação não carecia de se proteger contra a própria vontade. Não havia receio da tirania dela sobre si mesma". Para Stuart Mill, "o conceito de que o povo não precisa limitar seu poder sobre si mesmo, podia parecer axiomático quando o governo popular não passava de um sonho, ou de algo que se lia ter existido em algum período remoto do passado"; e, comenta o autor: "o povo... pode desejar oprimir uma parte de si mesmo, e precauções são tão necessárias contra isso quanto contra qualquer outro abuso de poder". E acrescenta: "Como outras tiranias, a tirania do maior número foi, a princípio, e ainda é vulgarmente, encarada com terror, principalmente quando opera por intermédio dos atos das autoridades públicas... A sociedade pode executar os próprios mandatos; e, se ela expele mandatos errôneos ao invés de certos, ou mandatos relativos a coisas nas quais não deve intrometer-se, pratica uma tirania social mais terrível que muitas formas de opressão política, desde que, embora não apoiada ordinariamente nas mesmas penalidades extremas que estas últimas, deixa, entretanto, menos meios de fuga que elas, penetrando muito mais profundamente nas particularidades da escravizando a própria alma".
"Liberdade, igualdade, fraternidade", eis o modelo ideal. Na prática, liberdade e igualdade são de fato valores antagônicos, que exigem um terceiro termo capaz de fazê-los subsistir eficazmente. A "fraternidade" na prática se transforma no problema crucial da soberania. Por um lado, o domínio da maioria efetiva sobre uma minoria; por outro, o domínio de uma minoria que assume o poder e governa em nome de uma maioria fictícia. Um terceiro fato, que desafia os sistemas políticos atuais: a marginalização política de certas minorias, que, por sua vez, passam a agir à margem das instituições e recorrem à legitimação de processos que violentam os próprios direitos naturais.
Retomemos um pouco mais profundamente a questão dos princípios e do espírito que modelou o quadro da liberdade social e política sob a forma da democracia. Quando tantos antropólogos e sociólogos modernos se sentem atraídos pelas categorias marxistas (mesmo grande número de pensadores cristãos), fundadas num determinismo de lutas de classes, seria interessante refletir sobre essa observação feita por Bergson, em seu livro As duas fontes da moral e da religião, na qual nos indica que, na verdade, as classes inferiores da sociedade historicamente têm sido despertadas para um desejo de ascese pelas próprias classes superiores. Diz ele: "É assim que os nobres colaboraram na revolução de 1789, que aboliu o privilégio de nascença. De uma maneira geral, a iniciativa das invectivas lançadas contra a desigualdade justificada ou injustificada é ainda oriunda do alto, do meio dos melhores favorecidos, e não de baixo, como se poderia esperar se não houvesse em presença mais do que interesses de classes. Assim, foram os burgueses, e não os operários, que exerceram o papel preponderante nas revoluções de 1830 e de 1848, dirigidas (sobretudo a segunda) contra o privilégio da riqueza. Mais tarde, foram os homens de classe instruída que reclamaram a instrução para todos". Assim, a democracia parece dominada por um ideal superior, que transcende as limitações particulares, quer individuais quer de classes. Diz Bergson: "Ela atribui ao homem direitos invioláveis. Esses direitos, para permanecerem inviolados, exigem da parte de todos uma fidelidade inalterável ao dever. Ela toma então por matéria um homem ideal, respeitoso dos outros como de si mesmo, inserindo-se nas obrigações que ele considera absolutas, coincidindo de tal forma com este absoluto que não podemos dizer se é o dever que confere o direito ou o direito que impõe o dever. O cidadão assim definido é ao mesmo tempo "legislador e sujeito", para usar a expressão de Kant. O conjunto dos cidadãos, quer dizer, o povo é então soberano. Tal é a democracia teórica. Ela proclama a liberdade, reclama a igualdade, e reconcilia essas duas irmãs inimigas lembrando-lhe que são irmãs, colocando acima de tudo a fraternidade. Se olharmos por esse ângulo a divisa republicana, acharemos que o terceiro termo desfaz a contradição tão frequentemente notada entre as duas outras, e que a fraternidade é o essencial: o que permitirá dizer que a democracia é de essência evangélica, e que ela tem como motor o amor".
Aí está, de fato, o cerne do problema. Temos exemplos das lutas que reivindicam a liberdade suprimida. Temos exemplos das lutas em favor da igualdade. Mas, qual a expressão política de um movimento de estímulo do amor entre os homens? No máximo, este movimento assume a forma dos nacionalismos, cujo veículo tem sido de um modo geral o sentimento acirrado de aversão ao estrangeiro. Uma ação direta de amor na ordem política, eis a dificuldade, e sem isso de fato a liberdade e a igualdade parecem permanentemente ameaçadas. E por isso mesmo, aos olhos da razão, compreende-se muito bem porque, à falta de amor, grasse a violência no mundo, o que é óbvio, mas ao mesmo tempo é possível ver que este não é o melhor caminho para sustentar a liberdade e a igualdade. Tenhamos a coragem de compreender que só o amor será capaz de restabelecer os direitos humanos e a ordem social e política, e quando falamos em ordem pensamos fundamentalmente na condição de exercício da liberdade. O ódio gera o ódio, numa cadeia inextinguível e incontrolável. Nenhuma sociedade livre pode ser construída sobre os alicerces dos ressentimentos produzidos pelo ódio.
Só o amor garante a fraternidade e sustenta a soberania política. E o amor é o único fator dentre os três denominadores comuns de uma sociedade digna do ser humano, que não pode ser imposto por coerção. Podemos mostrar que a fraternidade, que o amor é necessário: não teremos jamais os meios de impô-lo politicamente.
Esta evidência nos permite trazer à tona bem claramente um fato da maior importância para a solução do problema da vida humana no plano político. Os problemas políticos não podem ser resolvidos apenas no plano político. Ressalta a partir daí a necessidade de distinguir com muita clareza o plano do que é tipicamente social e o que é tipicamente político. Mescladas estas duas esferas, uma vez que na ordem prática não é possível separar em compartimentos estanques o que é social e o que é político, trata-se no entanto de duas esferas distintas de valores. A liberdade e a igualdade podem ser controladas até certo ponto pela ordem política, e nela encontrar os parâmetros que regulamentem o seu exercício; mas, para que este exercício seja efetivo, exige-se uma condição primeira, que só pode vir da ordem social, ou seja das virtudes humanas que precedem essencialmente o plano do relacionamento político. Esta ordem social se estrutura pelo conjunto de valores éticos que configuram a consciência de uma sociedade.
Sob o ponto de vista tipicamente social, temos uma ordem de valores que dizem respeito ao relacionamento dos homens enquanto homens. Trata-se dos valores comuns de convivência. Neste ponto, podemos dizer que estamos num plano que transcende os limites nacionais. É um plano de relação muito pessoal, e ao mesmo tempo universal. Nesse plano é possível construir alguma coisa de que depende a própria estabilidade da ordem política. Não pode haver liberdade social e política sem que o social possa adquirir esse carácter que responde pela fraternidade.
Espontaneamente, nós nos voltamos para fora, procurando estabelecer uma circunstância a que falta o elemento fundamental de efetiva vinculação e comprometimento de ordem interna. Estabelecem-se comportamentos por coação em lugar do estímulo a uma ação livre. Na dimensão da fraternidade, a liberdade perde a sua tonalidade individualista, tão acentuada pelo liberalismo, e adquire uma dimensão de participação. A socialização crescente a que está submetido o homem moderno pode ser enfrentada sem a sua despersonalização. Tarefa difícil, sem dúvida alguma, porém esta é o desafio atual proposto à liberdade do homem. Julgamos de nossa parte que o homem manterá a sua autonomia pessoal na medida em que se dimensionar a certos valores transcendentais ao plano da circunstancialidade. Sem se desligar dela, mas sendo senhor das suas determinações fundamentais. Ou, falando mais claramente: não existe fraternidade perfeita sem a dimensão de filiação de um mesmo pai.
Para Bergson, a invenção mecânica é um dom natural. Sempre existiu. Mas, o mundo moderno apresenta a este respeito um espetáculo surpreendente: a proporção atingida pelo desenvolvimento mecânico, e suas consequências. Para Bergson, há uma mística presente às origens desse desenvolvimento. Embora ele não o diga, de fato, com a abolição da escravatura, o homem moderno livre se viu frente à necessidade de curvar-se para o trabalho servil. O desejo de ser livre, de reduzir esta submissão, levou a um surto inventivo pelo qual se pretendeu multiplicar o trabalho artesanal em favor de uma liberação do homem. Os erros de distribuição dos bens, os vícios sociais e políticos permitiram as desproporções nos níveis de vida humana, com flagrantes injustiças. Por isto, diz Bergson: "As origens desta mecânica são talvez mais místicas do que se possa crer; ela não retomará sua direção verdadeira, ela não oferecerá os serviços proporcionados ao seu poder, a não ser que a humanidade que ela curvou ainda mais para a terra consiga por ela se reencontrar, e olhar para o céu".
Esse desvio de que nos fala Bergson tem sido paradoxalmente um estímulo a um desdobramento progressivo e complexo, que exige esforço e criatividade constante, ao mesmo tempo que se transformou num ideal escravizador. Em lugar do progresso existir para o bem do homem, é o homem que passa a existir para o bem do progresso.
Jean-Ives Calvez, em um estudo intitulado "Possibilidades de liberdade na complexa sociedade de amanhã", inscrito no livro A liberdade e o homem, nos diz: "Há, com certeza, uma crise de liberdade. Vinte anos depois de uma guerra cruel e da revelação de campos de concentração nazistas e soviéticos, dez ou doze anos depois do fim da era de Zhdanov e da ditadura de Stalin, não podemos esquecer a opressão da liberdade, de proporções mundiais, talvez a mais vil de todos os tempos, ocorrida durante a nossa própria vida. Mesmo atualmente, violações de liberdades básicas são comuns; podem ser de menor extensão, mas são também tratadas com menos indignação... Pior, há em muitos círculos uma crescente indiferença a respeito da liberdade... Em muitos dos países recém-libertados e independentes, os líderes dão atenção inadequada à liberdade dos cidadãos; não veem na liberdade qualquer vantagem política. O maior problema deles, não raro, é, antes, saber qual é a quantidade tolerável de coerção que podem impor a seus povos, a fim de atender aos requisitos do desenvolvimento econômico...
Para Jean-Ives Calvez a socialização é um fenômeno típico de nossa época, não que isto significa um sentido socialista no significado técnico do termo. Calvez, seguindo as pegadas do Papa João XXIII, na Encíclica Mater et Magistra não crê que a socialização crescente significa necessariamente a neutralização dos homens, condenados a perder assim a sua autonomia pessoal. Mas vê nitidamente os desvios que é necessário corrigir.
Diz ele: "Se não se pode esperar por uma autonomia absoluta esta não poderia ser benéfica para o homem a iniciativa e a responsabilidade têm, contudo, valor extremo para a auto-realização de homens engajados num mundo socializado ou numa sociedade mais complexa. Nossos tempos pedem iniciativa e responsabilidade; mas, acima de tudo, a mais valiosa entre as duas, a responsabilidade, a que se poderia chamar liberdade social ou o construtivo exercício da liberdade na sociedade e por meio dela. Como João XXIII disse, "se as estruturas e o funcionamento de um sistema econômico comprometem a dignidade humana dos que aí trabalham, ou enfraquecem o sentido da sua responsabilidade, ou tiram o seu poder de iniciativa, julgamos tal sistema injusto, ainda que as riquezas nele produzidas atinjam um alto nível e sejam distribuídas conforme as normas da justiça e da equidade". Justiça é algo mais do que designa o sentido comum da palavra; só se realiza através do possível exercício da iniciativa e responsabilidade por todos isto é, através do exercício da liberdade em sociedade.
"Assim, não somente a liberdade, no primeiro e elementar sentido do termo a autonomia, a ausência de coerção, encontra novas e melhores oportunidades em sociedades mais complexas, como também aqueles aspectos mais altos da liberdade, a iniciativa, responsabilidade (liberdade aparelhada para transcendência de si na direção do bem do outro) encontra, numa vida social mais densa, ocasião para manifestar-se e crescer. Nunca, num contexto simples, pode o homem ser tão livre quanto lhe é possível sê-lo, numa densa rede de interdependências".
O homem é de fato um animal social. Desta forma, não podemos esperar que realize o plano de sua liberdade a não ser dentro de um contexto social. A sua liberdade é na verdade uma co-liberdade. Ele constrói a sua liberdade em espírito de comunidade, dentro de um sentido de co-participação. Os atos de libertação só têm sentido em razão de um verdadeiro espírito de liberdade. A liberdade diz respeito ao próprio ser do homem, à sua capacidade de desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal. A ação libertadora manifestada nas suas relações externas só é legítima na medida em que se torna a expressão da liberdade pessoal. Os males do mundo moderno decorrem da divisão estanque entre libertação e liberdade, da ilusão de que uma e outra possam realizar-se separadamente, especialmente a noção enganosa de que é preciso começar pela libertação para chegar à ordem da liberdade. O projeto capitalista se realizou nessas bases: o culto da produção através da máquina para multiplicar o trabalho servil, e assim chegar a um momento futuro de bem-estar para o homem pela distribuição do conforto. Na verdade, os fatos históricos mostraram a implantação de uma sociedade tecnocrata e uma grande situação de desnivelamento social entre os homens. O projeto comunista segue caminho paralelo: primeiro, a liberação pela luta de classes, para ao fim da implantação do regime em dimensões internacionais atingir o estado de liberdade, em que uma nova humanidade brotaria da implantação do sistema. Para que esse projeto se realize eficazmente, no entanto, o marxismo propõe o absolutismo do Partido, que interpreta as necessidades e impõe as diretrizes. Este estado-maior impõe uma disciplina absoluta, cujas determinações são indiscutíveis, e devem ser acatadas sem discussão, e mesmo sem compreensão.
De um lado, o liberalismo partia da concepção de que o homem é espontaneamente bom, e por isso bastava deixar em aberto o exercício do seu arbítrio, pois tudo se ordenaria naturalmente pelo equilíbrio das forças livres concorrentes; de outro lado, o comunismo propõe a utopia de uma futura humanidade boa, que ressurgirá com uma nova natureza, desde o momento em que um poder unitário de governo implantar no mundo uma classe única de seres humanos.
A confusão entre a ordem da libertação e a ordem da liberdade decorre da não distinção entre a ordem política e a ordem social, e da redução dos dois planos a um só. Liberalismo e comunismo incidem no mesmo erro.
A fraternidade pertence à ordem do social, e só se assegura pelo culto de valores transcendentais, capazes de colocar o homem em sua dimensão de pessoa, com uma dignidade, cujo respeito se sustenta unicamente através de uma ordem de valores espirituais. Nessa perspectiva, é possível sustentar a liberdade do homem, como a sua autodeterminação numa direção de desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal, numa visão dinâmica de sua própria integridade. E isto se constrói nas relações também de tipo pessoal. E é isso que forma o contexto social básico, que funciona como a alma de uma sociedade. A liberdade se construirá através do seu exercício. E só assim também a humanidade se aperfeiçoará. Dentro de uma mentalidade desse tipo, que estrutura basicamente a sociedade, será possível construir uma ordem política também capaz de um aperfeiçoamento progressivo. A ideia de que é suficiente transformar as instituições e as estruturas para transformar a humanidade é uma utopia. E é frente a esse mito de uma humanidade perfeita "no futuro", que aparece o projeto da luta de classes como o instrumento de libertação do homem. Libertação sem liberdade, pois ela só se efetiva com o sacrifício da liberdade, que se transforma igualmente num mito a ser alcançado "no futuro".
Para nós, o grande desafio da ciência política atual é distinguir, considerar, e ordenar de modo próprio a dimensão do social e do político. Na dimensão do social, o grande desafio é o restabelecimento do culto dos valores capazes de dar ao homem a sua dimensão de transcendência sobre os acontecimentos, o que o fará poder exercer sua autodeterminação frente aos determinismos circunstanciais.
Julgamos válida a observação de Jean-Ives Calvez, em trabalho já referido, quando diz: "Liberdade é, pois, autodeterminação dentro da necessidade, uma vez que não há e nunca houve liberdade do homem — que não um ser absolutamente livre — fora do campo da necessidade. Quando a necessidade social de determinismos tomou o lugar dos determinismos naturais, houve apenas mudança na forma dos determinismos, não mudança fundamental na capacidade humana de autodeterminar-se. E, ainda, a situação se renovou no sentido de que a liberdade agora se apresenta em face de uma natureza já humanizada, mais na dimensão da história, do que da simples natureza".
O problema da liberdade, na perspectiva sócio-política, reflete os problemas do homem na sua vida de comunidade, por um lado definido por suas relações interpessoais, e por outro lado definido por suas relações funcionais. Sendo planos distintos, são inseparáveis, mas impõem exigências distintas. A liberdade se constrói nestes dois planos. Constrói-se na vida comunitária, no espírito de vida comunitária, de uns com os outros, enriquecendo-se mutuamente de suas experiências pessoais, dentro de um amparo mútuo, em que cada qual se pode aperfeiçoar ao estímulo dos demais. A liberdade não é uma posse que um indivíduo defenda contra os demais indivíduos, mas um valor que pode ser assumido, cultivado, e desenvolvido por todos e cada um. Ela existe na medida do seu exercício. Ela é comunicativa, e nesse sentido é a própria base de todas as virtudes sociais.
A luta por libertação por si só não garante que o homem não caia em outras tantas formas de subordinação. Ele precisa ter os olhos voltados para a liberdade, que não divide, mas harmoniza, que não colide, mas unifica, que não contrapõe, mas ordena, que não repudia, mas respeita, que não hostiliza, mas acolhe, que não inimiza, mas pacifica. A liberdade assim compreendida é aquela de homens senhores de si mesmos, que a exercem a partir de agora, e não como um sonho para depois, e a constroem progressivamente. Para isso, é necessário apenas uma sociedade plenamente fortalecida na sua consciência de valores fundamentais do ser humano, com um alto sentido de virtudes pessoais e de aperfeiçoamento, como alicerce seguro para a construção de uma estrutura política regulamentadora das ações funcionais dos seus cidadãos.
A liberdade não é um efeito automático da estruturação de condições conjunturais. É um bem de raiz para a vida do homem. E ela deve estar presente em todos os atos humanos do ser humano. Uma sociedade humana com, uma organização política humana deverá ter a marca atuante da liberdade. Não nos podemos enganar: a ousadia não é a coragem, e a violência não é a força. De tanto os homens lutarem pela liberdade como para libertação contra o poder da autoridade no governo político, descuraram de cultivar o fundamental da liberdade social e política, que reside na conquista da autoridade moral de uma sociedade.
Dado que a mentalidade contemporânea se armou de graves preconceitos com relação à Metafísica; dado que a própria noção de Metafísica está sujeita atualmente a todos os equívocos, pelo uso da palavra de maneira imprópria e indiscriminada, devemos esclarecer desde o início que neste ponto trataremos o problema da liberdade em relação com o ser do homem. Não se trata, portanto, de nenhum voo fora da realidade, mas, ao contrário, um mergulho em profundidade na própria realidade. Não se trata de nenhuma fuga imaginativa, mas, ao contrário, de amarrar o problema num ponto de referência decisivo: o problema da liberdade é o problema da liberdade do homem. Trata-se, portanto, de considerar fundamentalmente o que é o homem na sua integridade, ou naquilo que define a integridade do seu ser.
Estaríamos fugindo da realidade, isto sim, se tomássemos o conceito de liberdade abstratamente, para depois querer aplicá-lo a uma realidade, conformando essa realidade a uma categoria construída abstratamente. Assim, em termos abstratos, liberdade significaria não ter ligações, não ter amarras, estar absolutamente solto. Desta forma, seria um conceito incapaz de se aplicar a qualquer realidade, pois não conhecemos no mundo da observação nada de que se possa dizer que está absolutamente desligado de tudo.
O ser humano não existe sem vínculo. Sua natureza física o submete a uma série de determinismos do mundo natural. Seu psiquismo obedece a outros tantos mecanismos determinados. Sua natureza social e política o submete a certas leis próprias desta dimensão de sua vida. Do ponto de vista metafísico a integridade do seu ser e a sua subsistência e desenvolvimento se subordinam a certas exigências determinadas. Na ordem moral, igualmente, o bem não se apresenta para ele de qualquer forma ou de qualquer modo, mas segundo determinados procedimentos. O homem, portanto, está longe de ser indeterminado, ou de poder existir à parte de uma ordem de determinações. Por isso mesmo, um dos pontos capitais do problema da liberdade humana consiste no esclarecimento da compatibilidade possível entre liberdade e determinação.
Um tratamento polêmico do problema da liberdade, voltado sobretudo para o combate às concepções deterministas, marcou a questão de uma consideração mais negativa do que positiva. Desta forma, o elã de rejeitar o determinismo sacrificou muitas vezes a acentuação do papel da determinação no ato livre e na constituição do ser livre. Na verdade, liberdade e determinismo não são conceitos contraditórios, mas complementares. Liberdade é antes de tudo autodeterminação. Assim, conceber a liberdade fora da ordem das determinações é construir uma noção absolutamente vaga, informe, meramente negativa, e inteiramente ineficaz, quando positivamente a liberdade só pode ter significado se for considerada como uma ordem de causalidade autônoma, original, capaz de trazer um elemento novo na ordem das determinações. Quer dizer, a liberdade só tem sentido positivo por seu poder de determinação.
O problema metafísico da liberdade, portanto, se situa no ponto de saber se o ser humano é apenas um efeito causado pela ordem das leis determinadas do universo no qual está imerso, ou, se dentro desta ordem, ele representa um papel singular, e lhe cabe, numa certa faixa, um poder determinante, do qual ele é a causa original.
A oposição ao determinismo, doutrina que concebe uma ordem mecânica no universo, subordinada a uma espécie de fatalismo inexorável, trouxe ao trato do problema da liberdade uma feição sobretudo negativa. É assim que se consagraram as expressões latinas "libertas a coactione" e "libertas a necessitate", isto é liberdade de coação e liberdade de necessidade. Afirma-se o ser livre na ordem extrínseca se não está submetido à coação. Afirma-se o ser livre na ordem intrínseca se não está submetido à necessidade. Não rejeitamos a colocação. Verifica-se, porém, que ela facilita um entendimento superficial e infecundo. Pode-se entender que desde que um ato seja praticado sem ser por força de coação ele é livre. Pode-se entender que desde que um ato se exerça sem ser movido pela necessidade ele livre. Mas, neste ponto, deveríamos concluir tão somente que nestes casos o ato tem condições de ser livre. Não podemos julgar se o ato praticado sem coação ou sem necessidade só por isso é livre. Neste caso, correríamos o risco de julgar como livres atos que fossem meramente espontâneos. E a simples espontaneidade, embora esteja na linha da libertação, não constitui o que se nossa tipicamente denominar livre. O ato livre exige uma característica a mais: o autodomínio. Em que sentido poderíamos julgar que um ato impensado do homem porque não se exerceu por coação ou necessidade é consequentemente livre? Julgamos própria no caso a distinção entre atos do homem (atos praticados pelo homem) e atos humanos (atos que trazem a marca do que é propriamente humano). Será próprio entender a liberdade com relação aos atos do homem, tomados indistintamente, ou aos atos humanos?
Não basta considerar se o ato é livre de coação, ou livre de necessidade, porque neste caso a palavra livre tem um sentido meramente relativista. Devemos levar em conta não só se o homem está isento de coação ou necessidade, mas se é capaz de coagir e de necessitar. Não podemos tão pouco tratar a questão em termos estáticos, fazendo um corte na história e no tempo. Em termos dinâmicos a coação ou a necessidade não são sempre elementos opostos à liberdade. A coação e a necessidade podem criar também condições de liberdade. Um viciado que é coagido a receber um tratamento médico adequado, mesmo contra a vontade, pode com isso recuperar o exercício dessa mesma vontade. Assim, também, nos processos educativos ou de treinamento esportivo, a coação e a necessidade podem funcionar como elementos de desenvolvimento pessoal, que habilitam ao exercício da liberdade. Torna-se necessário, portanto, distinguir a questão na dimensão do tempo, se se trata de uma coação e uma necessidade permanentes, ou temporárias. Isso também, evidentemente, amplia o problema: ele não fica reduzido à consideração dos atos, tomados isoladamente, mas se transporta para a consideração do ser, que é sujeito dos atos.
De fato, o problema da liberdade não se reduz a atos, mas ao ser do homem. Claro está que na dinâmica da realidade não existe o ser sem atos, como não existem os atos sem o ser que os execute. Pois exatamente o que propomos é que não se trate o problema da liberdade abstraindo o ser ou os atos. Num caso, seríamos levados a colocar em tese a questão da liberdade e afirmar de uma vez por todas: o homem é livre, ou o homem não é livre. Afirmaríamos que o homem é livre ou não é livre, por sua natureza. Mas, a questão deve traduzir os termos desta afirmação. Quando dizemos que o homem é um ser racional por natureza, não quer isto dizer que ele aja sempre e necessariamente de modo racional, nem que faça sempre bom uso de sua razão. Nem que não seja possível e, embora racional, não possa criar hábitos que desviem a sua razão do plano próprio em que ela o poderia conduzir. Do mesmo modo, quando se diz que o homem é livre por natureza, que não possa desenvolver diversamente essa liberdade, inclusive no sentido de sacrificá-la. Ter a capacidade de ser livre, não é necessariamente viver em estado de liberdade. O homem não é um ser pronto e acabado: ele é, sem dúvida alguma, um ser distinto e separado, porém com a capacidade de desenvolver-se e assumir-se com relação a tudo o que potencialmente traz em si mesmo. A liberdade do homem reflete este mesmo drama da totalidade do seu ser.
Se focalizarmos o problema da liberdade com relação aos atos, tomados separadamente do sujeito, não definiremos adequadamente o problema da liberdade humana. Assim como um ato bom não é suficiente para definir o homem virtuoso, nem um ato mau para definir o homem viciado, assim também um ato livre ou não livre não caracteriza suficientemente a liberdade do homem. Curiosamente, o que é preciso notar é que ser livre significa poder agir livremente, mas também significa poder não agir livremente. De fato, se ser livre significasse que o homem por sua natureza necessariamente age livremente, isto seria dizer que ele seria compelido a agir livremente, o que sacrificaria o próprio significado de sua liberdade. Ser livre, então, é poder não ser livre. Não é apenas poder não ser livre, mas poder ser livre ou não ser livre. É, enfim, poder assumir ou não a liberdade. O que define o homem virtuoso é a continuidade dos atos bons. O que define o homem viciado é a continuidade dos atos maus. Um homem mau pode acidentalmente praticar um ato bom. Um homem bom pode acidentalmente praticar um ato mau. O que vai caracterizar a um ou outro, no entanto, é a formação por assim dizer de uma segunda natureza, criada pela continuidade devida a uma linha assumida como diretriz das suas ações, fundada numa ordem de valores. Do mesmo modo, a liberdade do homem: ela se caracteriza por uma continuidade de atos, que definem um estado do ser.
Vemos, assim, que não se trata apenas de considerar a possibilidade de atos livres, mas do estado de liberdade.
Em passagem de seu livro "A evolução criadora", diz Bergson o seguinte: "O retrato acabado se explica pela fisionomia do modelo, pela natureza do artista, pelas cores misturadas na palheta; mas, mesmo com o conhecimento do que explica, ninguém, nem mesmo o artista, poderia prever exatamente o que seria o retrato, pois predizê-lo teria sido produzi-lo antes que ele fosse produzido, hipótese absurda que se destrói por si mesma. Assim se possa com os momentos de nossa vida, da qual somos os artesãos. Cada um deles é uma espécie de criação. E do mesmo modo que o talento do pintor se forma ou se deforma, em todo caso se modifica, até mesmo sob a influência das obras que produz, assim cada um de nossos estados, ao mesmo tempo que sai de nós, modifica nossa pessoa, na nova forma que nós acabamos de nos dar. Temos razão então de dizer que o que fazemos depende do que nós somos; mas é necessário acrescentar que nós somos, numa certa medida, o que nós faremos, e que nós nos criamos continua- mente a nós mesmos. Esta criação de si por si mesmo é tanto mais completa, por outro lado, quanto melhor raciocinemos sobre o que se faz. Pois a razão aqui não procede como na geometria, em que as premissas são dadas uma vez por todas, impessoais, e em que uma conclusão impessoal se impõe. Aqui, ao contrário, as mesmas razões poderão ditar a pessoas diferentes, ou à mesma pessoa em momentos diferentes, atos profundamente diferentes, embora igualmente racionais. Na verdade, não são de fato as mesmas razões, uma vez que não são as da mesma pessoa, nem do mesmo momento. Eis por que não é possível operar com elas in abstracto, de fora, como na geometria, nem resolver por outro os problemas que a vida lhe põe. Cabe a cada um resolvê-lo de dentro, por sua conta. Mas não nos propomos aprofundar esse ponto. Procuramos somente qual o sentido preciso que nossa consciência dá à palavra "existir", e verificamos que, para um ser consciente, existir consiste em mudar, mudar em amadurecer, amadurecer em se criar indefinidamente a si mesmo".
Esta é a realidade do ser humano. E esta é a posição metafísica que considera o ser humano no que ele é, em realidade. E a partir daí é que podemos estabelecer o que seja a liberdade humana. O homem é na medida do que faz, ele faz na medida do que é, e nesse fazer que reflete o que é, e nesse ser que reflete o que faz, há um imponderável momento de criação. Uma criação em si mesmo, portanto uma criação que continua, na substancialidade do sujeito em que ela se realiza. Neste fato, o homem manifesta uma capacidade de assumir e transformar, uma espécie de digestão, que não apenas retém alguma coisa de necessário à subsistência: uma digestão criadora, porque se realiza numa ordem de valores, que dependem do próprio sujeito. Ele é, assim, princípio determinante, que recebe os influxos de determinações externas e internas, mas é capaz de dar-lhes uma nova dimensão e um novo valor, que decorre de sua ação pessoal. Ele é assim causa original. Ele é fonte de iniciativa. Ele determina pelo que aceita e pelo que impõe.
O problema da liberdade humana não se reduz portanto apenas a uma possibilidade de escolha entre objetos ou objetivos que lhe são apresentados numa situação estática. Ele pode transfigurar os valores dados objetivamente, por uma projeção que vem de si mesmo Ele pode, assim, reelaborar os dados que lhe são apresentados. Depois, ele se dimensiona também por um processo de continuada criação. Se ele não se cria a si mesmo como ser, ele cria em si mesmo alguma coisa no seu modo específico e pessoal de ser. E nesse ponto é que se decide a sua liberdade.
Quando cuida de seu corpo, e pelo domínio da razão constrói para si mesmo sua sanidade física, o que verificamos não é um determinismo que tolha a sua liberdade. Ao contrário, um corpo sadio é condição de liberdade. Um organismo, que se submete a uma alimentação sadia, a exercícios que desenvolvem a sua capacidade física, apresenta sem dúvida alguma melhores condições de liberdade.
Quando cuida de sua inteligência e a cultiva, em lugar de deixá-la entregue a um procedimento espontâneo ou habitual, ele terá como resultado evidentemente uma possibilidade de discernimento e de ordenação racional que lhe proporcionará efetivo domínio de sua intelectualidade, e isso o deixa de fato mais livre.
Quando cuida de sua vontade e não a deixa operar apenas por capricho, ou dirigida pelos voos da imaginação, ele não tolhe a sua liberdade, mas cria maiores condições para o seu exercício.
Quando cuida dos seus sentimentos e educa a sua própria sensibilidade, não está construindo amarras para o seu ser, mas desenvolvendo-lhe maior acuidade e distinção perceptiva, e por isso mesmo está proporcionando a si mesmo maiores condições de liberdade.
Ser livre, portanto, é, antes de tudo assumir-se a si mesmo, educar-se, e educar significa antes de tudo dirigir, por isso mesmo educar-se é dirigir-se, desenvolver em seu ser o que nele pode ser desenvolvido, mantendo o domínio sobre tudo o que nele se desenvolve. Este é o exercício fundamental de liberdade, que cabe ao ser humano: a criação do que em si mesmo pode ser criado.
Os atos pelos quais o homem vê refletida a construção continuada de seu próprio ser são atos não apenas imanentes, mas transitivos. São atos que se exteriorizam na produção de alguma coisa. Estes atos repercutem não apenas sobre o sujeito dos atos, mas sobre os outros homens. Assim como os atos dos outros se refletem nele. Esta dimensão social ou comunitária do ser humano manifesta o fato de que a liberdade não é um problema unicamente pessoal, mas coletivo, na medida em que uns e outros interferem no processo de criação de cada um e de todos.
Tomado num sentido positivo, o conceito de liberdade nos põe diante da possibilidade de criatividade do homem. Ela representa uma ascese, um processo de aperfeiçoamento não apenas individual, mas coletivo, não de uma coletividade amorfa, mas de uma comunidade de pessoas, que assumem conscientemente, e que em comum assumem um ideal de crescimento, com um alto sentido de co-participação neste processo de ajuda mútua, de amparo e estímulo ao desenvolvimento de cada um pelo desenvolvimento de todos.
A ideia de aperfeiçoamento é tomada aqui num sentido absolutamente realista, assim como a de criatividade. Ela significa que não se trata apenas de uma mudança, de uma simples variação, de uma simples diferenciação, de um mero evolver, mas de efetiva evolução, em que os estados anteriores são incorporados no processo, e não meramente substituídos. Essa é a consequência de uma noção de liberdade como estado de ser do homem, e não apenas como um ato tomado isoladamente. Mesmo porque a dimensão de ato humano faz referência a alguma coisa de permanente que caracteriza o sujeito humano enquanto humano.
A perda desta dimensão de aperfeiçoamento e construção progressiva do ser humano, a tomada do conceito de liberdade em termos equívocos e inadequados levou o homem contemporâneo a buscar a liberdade na excentricidade. Livre parece ser o homem contestatário, o que se diferencia pela oposição, ou o que se marginaliza da comunidade estruturada. Ou, então, o que se refugia num ideal de primitividade, e rejeita a civilização ou a cultura. Busca da liberdade na indeterminação. Busca da liberdade ao acaso. Busca da liberdade no descompromisso. Busca da liberdade na alienação. Ou busca da liberdade na revolta, ou na violência. Busca da liberdade nos entorpecentes, para a viagem fora da realidade. Busca da liberdade, enfim, pela rejeição da condição humana, com sua carga de determinismos e conjunturas, de uma herança histórica, de uma série de limitações que queremos rejeitar fechando os olhos para elas. Tudo isso decorre de uma noção negativa de liberdade.
Aprender a conviver com a coação e com a necessidade, e superando-as pela capacidade de ordená-las, que é a única forma de submetê-las, este é o desafio proposto aos que de fato desejarem enfrentar o problema da liberdade humana. Sabemos que uma pedra rija, dura, resistente, é mais própria para um trabalho de escultura: uma pedra que esfarela, uma pedra que produz lascas com facilidade, estas não se prestam para receber uma forma que o artista lhe queira impor. O problema também do exercício da liberdade não está em relação com a fragilidade do obstáculo à sua ação, mas do seu poder e capacidade de determinação. E é isto o que de fato decide da liberdade humana.
O homem não é livre na medida em que não encontre coação, ou ausência de necessidade interna. Ele é livre na medida em que puder criar em si mesmo e por si mesmo necessidade que se imponha a qualquer outra necessidade que opere na interioridade do seu ser; em que transforme a coação externa numa alavanca com a qual seja capaz de remover todas as coações. Ele é livre porque capaz de submeter hábitos e mecanismos dentro de uma direção determinada por ele. Ele é livre na medida em que tudo possa assumir como elemento de aperfeiçoamento e criação do seu próprio ser. Ele é livre na medida em que construir em seu ser um estado de liberdade, isto é um estado em que haja continuidade de atos livres, em que um ato livre permita a continuação de atos livres. O problema da liberdade, na perspectiva metafísica, isto é na dimensão do próprio ser do homem, exige que ele construa esta continuidade que só pode ser conseguida na medida em que seus atos signifiquem este aperfeiçoamento e criatividade do seu ser sob sua própria responsabilidade, consciente e senhor da direção de sua própria vida. Esta é a questão. Cabe ao homem responder no exercício de suas ações se é ou não um ser livre. Numa definição filosófica o que podemos dizer é que a liberdade do homem consiste em ele poder ou não poder ser livre.
O problema da liberdade se situa fundamentalmente no conceito de estado de liberdade. Não apenas na consideração de atos livres, tomados isoladamente. O problema consiste em saber se o homem é ou não um ser livre. Portanto, se a liberdade se reflete de maneira estável no seu ser. O estado do ser, que pode caracterizar-se como expressão de sua liberdade, será aquele em que os atos livres permitam a continuidade de atos livres. Temos, então, o problema colocado nos seguintes termos: em que condições os atos livres permitem a continuidade de atos livres? Será isso meramente ocasional? Qualquer tipo de ato livre conduz a outros atos livres, ou pode levar ao seu impedimento? No caso do vício, por exemplo, atos livres podem levar ao tolhimento posterior de uma sequência de atos livres, porque a vontade se ordenou numa direção que passa a impedir o exercício livre da vontade, agora submetida inteiramente pela necessidade.
É nesse ponto que se coloca legitimamente a dimensão moral. Ela entra no problema da liberdade exatamente como elemento que vai permitir a continuidade dos atos livres, ou seja a aquisição do estado de liberdade. A moral se justifica assim como o instrumento necessário à construção do estado de liberdade. Ela consistirá no discernimento dos princípios que conduzirão o comportamento humano de modo a construir, sustentar e desenvolver a capacidade do homem de ser livre, e fazer da liberdade um estado permanente do seu ser.
A linguagem filosófica utiliza O conceito de "Habitus" para significar este fato. Um homem, por exemplo, pode nascer com vocação artística. Ele não nasce um artista feito. Ele deve cultivar tudo aquilo que possa desenvolver a sua vocação. Ele no sentido geral do termo se educa, através de um mestre, ou através da própria experiência, mas, enfim, ele vai pouco a pouco adquirindo o domínio de sua arte. Ele forma em si, então, um "habitus", uma "segunda natureza", algo de si mesmo que se desenvolve e amadurece. Tem ele o domínio sobre o que nele se desenvolve. Ele atingiu assim um "estado", que é um modo de realização do seu próprio ser. Com a liberdade, Ocorre fato semelhante: ela é um "habitus" formado pelo ser humano, que desenvolve o que existe em seu ser sob a forma de uma vocação. O ser do homem é chamado a viver em liberdade, isto é, no estado de liberdade. Para isso, no entanto, ele precisa formação adequada: a diretriz desta formação ele a recebe da moral. A palavra "receber" não é jamais feliz para exprimir esse fato, pois não há ação moral que seja meramente passiva, mas exprimimos com isto apenas que há alguma coisa a que ele deva submeter-se necessariamente para conseguir a sua performance de liberdade. Esta submissão, como veremos, sendo instrumental, ela não colide com a liberdade. Ao contrário, o homem passa a ser livre porque aparelhado para sê-lo. Poder-se-ia mesmo dizer que um ser livre é um ser armado. O homem precisa de instrumentos para permanecer no estado de liberdade. Porque a liberdade sendo uma autodeterminação, precisa ter o domínio sobre os elementos determinantes que o farão livre. Liberdade não é indeterminação, nem é pura espontaneidade.
O homem moderno se habituou a olhar a moral sob reserva. A mentalidade atual pretende sacudir o jugo de tudo que pareça imposto de fora, de tudo que indique submissão, de tudo que surja sob a imagem da autoridade. Quer experimentar e concluir por si mesmo. Não são apenas os jovens. Também os adultos partilham desse clima psicológico-social. Para os adultos, a omissão do bom conselho se reveste sob a forma do respeito à liberdade do jovem, e sob o engano de que tratam o jovem na mais alta consideração anunciando-lhe que ele é o único responsável por seus atos. Que os seus atos ficam sob a sua responsabilidade. Na verdade, o que estão dizendo é que eles correm o risco de seus atos, ou que eles estão abandonados a si mesmos. Dirão no fundo, apenas, que eles serão responsabilizados pelo que fizerem, que sofrerão as suas consequências. E com isso pensam dar responsabilidade aos jovens, pensam educá-los como seres responsáveis. Atiram-nos, em verdade, à mercê da vida, medrosos ou ousados, jamais seguros. Nem o medo nem a ousadia, no entanto, são características da liberdade.
Para recompor a ordem das coisas, seria muito necessário refletir sobre a diferença que existe entre autoridade moral e autoritarismo em matéria de moral. Autoritarismo seria a imposição da moral por coação, impondo uma passividade que se opõe à ordem da liberdade. Outra, no entanto, é a autoridade da moral enquanto exatamente proporciona o efetivo exercício da liberdade. Neste caso, ela se impõe pela necessidade de se recorrer a ela para assegurar o estado de liberdade.
Precisamos considerar o conceito de moral, para que não se tenha a ideia de nos referirmos a um bloco maciço, a um corpo de doutrina inflexível, algo de absolutamente estanque, que se impõe sem discussão.
Moral se diz dos atos tipicamente humanos, isto é que envolvem a liberdade, e correlativa responsabilidade, e por isso mesmo consciência.
Moral se diz da ciência que estuda o comportamento humano com relação a seus fins adequados.
Moral se diz dos princípios que regem os atos da conduta humana em direção ao bem do homem.
Não vamos entrar aqui na exposição dos conflitos entre a Moral e a Sociologia, no que concerne a um conceito da moral que se reduz aos hábitos sociais exigidos por uma comunidade, com vistas à sua própria sobrevivência. Diremos apenas que se os valores morais se limitassem às exigências de ordem comportamental social, a sociedade como tal estaria isenta de qualquer avaliação moral, pois ela seria a fonte dos valores dessa ordem. Por isso, julgamos certo distinguir entre moral e ciência dos costumes. A ordem moral transcende no plano de valores a ordem social.
O ser humano tem com naturalidade a noção de uma distinção entre o bem e o mal, a noção de dever e responsabilidade, a noção de justiça e de injustiça, enfim, o que se chama uma consciência moral. Discute-se a relatividade ou não desses conceitos, inclusive em diferentes épocas e diferentes povos. Verifica-se, contudo, que por mais que variem em particularidade os modos de conceituar o que seja o bem e o mal, fato é que persiste sempre esta consciência moral inclinada a distinguir de uma forma ou de outra entre o bem e o mal.
Naturalmente, isto varia de individuo para indivíduo, na medida da formação de cada um. As pessoas não têm o mesmo grau de instrução. Não têm a mesma cultura. Não têm a mesma capacidade de raciocinar, e a mesma categoria de conhecimentos. Não têm os mesmos hábitos intelectuais. Não é de estranhar que sua forma de discernir entre o bem e o mal seja variável. O que não é a mesma coisa que dizer que se trata de valores puramente subjetivos e arbitrários. Assim também, do mesmo modo que um remédio para determinada doença deve ser aplicado em dosagens diferentes de acordo com o coeficiente de cada um, assim os princípios morais não se aplicam como formas rígidas e igualmente a todas as pessoas, mas sim proporcionalmente a cada uma, ou seja se aplicam adequadamente. Isso também dá a impressão superficial de uma variação e falta de objetividade, o que não é exato.
Como um resíduo persistente do liberalismo nós encontramos difundida em nossa época a ideia de um certo absolutismo da consciência moral. Cada qual age bem desde que aja de acordo com a sua consciência. Ninguém tem o direito de violar as consciências. Temos a obrigação de respeitar a consciência de cada um. E tudo isto é certo desde que a consciência não se torne apenas um refúgio do arbítrio, uma área onde se esconde o puro arbítrio.
A consciência moral, a inclinação do homem a distinguir entre o bem e o mal se manifesta naturalmente. Apenas, a noção de bem e de mal não é satisfatória, se constituída arbitrária ou espontaneamente. Trata-se de um conhecimento, e o conhecimento tem suas exigências próprias. Aristóteles dizia que o conhecimento é o que existe de mais fácil e de mais difícil: fácil, porque todos têm sempre algum conhecimento das coisas num certo grau; difícil, porque o conhecimento adequado de alguma coisa impõe muitas exigências. Nem sempre o que aparece como um bem é bem. Nem sempre o que agrada imediatamente se identifica com o bem. Depois, é necessário considerar o bem em diversas dimensões: é o bem do momento? é o bem estável? é o bem que tranquiliza? é o bem que constrói?
O problema seria simples se consistisse numa distinção teórica entre bem e mal. Ele se torna complexo quando descobrimos que toda a dificuldade está em distinguir entre o bem e o bem, em hierarquizar os bens, em separar o bem de superfície e o bem profundo, entre o bem acidental e o bem substancial, entre o bem aparente e o bem essencial.
Dentro de uma relação imediata, sem dúvida alguma, a responsabilidade decorre diretamente da consciência moral. Uma consciência moral mal formada fará de um homem que ele seja apenas relativamente responsável. Assim, ocorrem sem dúvida alguma graus diversos de responsabilidade. Um retardado mental, em estado de ignorância invencível não pode ser responsabilizado por seus atos, porque não tem condições de responsabilidade. Mas, também não é livre. Assim, se não se trata de ignorância invencível, mas de ignorância ou graus de ignorância por força de certas circunstâncias existenciais, o homem terá a sua responsabilidade diluída. Mas, também sua liberdade. Se o homem, porém, ignora por perversão, por desatenção deliberada para com o esclarecimento de noções que têm significação vital para sua vida, então ele é responsável, porém num sentido de refugiar a possibilidade de ser livre: ele se tornou indigno da liberdade; assim, embora responsável pelo sacrifício de sua liberdade, ele se transformou praticamente num irresponsável, e por isso mesmo imoral. Observe-se bem que, neste caso, ele é moralmente considerado imoral porque responsável por sua irresponsabilidade, e, enfim, porque livremente rejeitou a condição de ser livre.
A mentalidade moderna mais caracterizada é de tipo contestatório, em graus diversos. Não queremos acentuar apenas o seu aspecto negativista. É verdade que sob este aspecto contestatório exprime-se um desejo de maior autenticidade, em oposição a um comporta- mento formalista. Mas, por falta de critérios suficientemente definidos, assistimos a um fenômeno da chamada permissividade, que é apenas o sinal de uma perplexidade surgida da incapacidade de reação também por incapacidade de convicção com relação a valores positivamente estabelecidos. Não negamos o direito de questionamento, que é próprio da liberdade na atividade intelectual. Apenas, distinguimos questionamento de espírito de contradição. A possibilidade de contraditar põe o homem numa linha de libertação de tipo puramente negativista. Para o exercício de sua liberdade ele necessita assumir o questionamento como uma forma positiva de compromisso com o encontro de uma solução. A contestação pura e simples dá a impressão de superioridade com relação aos fatos, mas esta impressão é puramente subjetiva. Nós nos submetemos tanto ao que amamos quanto ao que odiamos. A negação como tal é uma forma de dependência daquilo que negado, pois isto permanece como o ponto de referência, que sustenta a negação. O verdadeiro questionamento exige a determinação de um critério adequado ao ajuizamento dos elementos questionados. E este critério impõe o estabelecimento de princípios, que serão tomados como base para um julgamento de valor.
Uma das posições metafísicas tradicionais de defesa da liberdade, como a posição defendida por Leibniz, é a chamada liberdade de indiferença dos motivos. Imagina-se que um indivíduo diante de uma situação de opção se encontra frente a dois objetos diante dos quais deve escolher um. Estes objetos lhe sendo indiferentes, isto é, um não representando um motivo mais forte do que o outro para ser escolhido, e havendo a escolha, esta seria devido à liberdade do sujeito. Dentro deste esquema, seria possível supor que havendo um motivo mais forte do que o outro, o motivo mais forte determinaria a escolha, e, neste caso, não se poderia afirmar a liberdade do sujeito. O existencialismo de Sartre deu nova forma ao conceito de liberdade, de indiferença. Para ele, o homem é livre, porque absolutamente solto. Não nasce com uma natureza determinada, aparece na existência como um jato sem razão de ser, por nada. Dentro de um mundo absurdo, sem sentido, nada está traçado. Cabe ao homem estabelecer seus fins, criar seus motivos de ação, escolher o que bem ou mal. Está separado do mundo por um abismo, e separado dos outros por um muro de hostilidade. Dentro desta solidão, nele se manifesta unicamente angústia.
Paralelamente a esta concepção, e dentro de uma posição realista, devemos verificar que esta visão é puramente superficial. Podemos de fato, por ignorância, olhar o mundo exterior como indiferente e caótico, mas podemos por um esforço de conhecimento descobrir nele uma certa hierarquia e distinção de natureza dos seres, situados em diversos planos, e também perceber um determinado tipo de relações entre nós e este mundo. Podemos, por ignorância, não discernir uma certa ordem no universo, nem um certo significado nas demais criaturas humanas, e mergulhar na angústia, mas por um esforço de conhecimento podemos perceber uma certa ordem de fins, uma distinção de valores objetivos, e um certo mistério em cada criatura humana por sua interioridade, por sua liberdade de poder desenvolver-se e prosseguir em si mesmo a ordem da criação, e tudo isto, em lugar de angústia, pode povoar-nos de esperança.
O problema da liberdade não está em fechar os olhos para os determinismos existentes, mas entrar nas suas regras, e utilizar a capacidade de também poder determinar alguma coisa, com relação a si mesmo e ao mundo exterior.
Alguns preconceitos têm prejudicado a compreensão do papel da moral, e do seu interesse para a vida do homem. Alguns destes preconceitos se originaram de procedimentos pedagógicos superficiais, que, para facilitar o entendimento das crianças, ou das mentalidades permanentemente infantis, povoou de imagens a expressão de alguma coisa que só pode ser efetivamente conceituada num plano de inteligibilidade superior. Desta forma, a moral é por vezes apresentada através de modelos a serem imitados, de receitas a serem seguidas, de fórmulas que devem ser repetidas, de normas de conduta que devem ser obedecidas. Com isto, exterioriza-se no comportamento aparente o que só tem sentido como expressão de autêntica liberdade. Porque só existe ato moral quando existe exercício da liberdade. Um comportamento meramente condicionado, um hábito de natureza puramente psicológico, isto não coloca o homem no plano devido da vida moral. Teríamos formas de mimetismo social, porém não atos autônomos, conscientes, livres, no sentido próprio do termo.
Um princípio moral não se confunde estritamente com uma regra ou norma de conduta. A regra é uma receita geral, a norma é um padrão. A regra, como a norma se referem a comportamentos rituais. Elas têm o seu significado, como uma espécie de conjunto de sinais, ou uma linguagem das ações. O ato moral, porém, diz respeito ao significado profundo, e fundamentalmente a um compromisso pessoal pelo consentimento ou pela singularidade autônoma do ato, no qual o sujeito se compromete conscientemente, deliberadamente, e adequadamente, exprimindo sempre o fato de ser senhor do ato, como sua causa original.
Tomemos o exemplo de um princípio moral. Seja a noção de bem. Trata-se do bem moral, portanto do bem do homem. Que é o homem? Um ser, mas um ser que não está todo dado, nem que é dado como um absoluto. Ele é contingente. Ele é um ser vivo. Ele tem vida, uma vida que deve ser mantida, sustentada. Ele tem a possibilidade de desenvolver-se. Ele é inteligente, o que significa que tem a capacidade reflexiva, isto é de voltar-se sobre si mesmo, e assumir-se. Que pode, então, ser o bem do homem? Considerando o que encontramos como determinação de sua natureza, o seu bem deverá ser proporcionado ao que ele é por natureza. E então, podemos estabelecer um conceito de bem, como um princípio, de sua atividade moral. Bem será tudo aquilo que mantém a sua integridade, proporciona o seu desenvolvimento, e permite o domínio de suas ações.
Este é um princípio. Ele é estabelecido racionalmente, a partir da própria consideração da realidade. Ele é aberto, isto é tem um valor universal, e não apenas particular. Ele não identifica o bem com este ou aquele objeto, com esta ou aquela ação em particular. Ele não aprisiona o sujeito a uma fórmula ou a um padrão. Ele é um instrumento, por outro lado, com o qual o sujeito pode realizar sobre as coisas e os atos juízos de valor. Desta maneira, ele pode superar as circunstâncias. Com este princípio, ele possui um critério para julgar. Quando julga, ele é senhor do seu ato de conhecimento, porque não se submete apenas ao dado percebido: ele o submete ao critério, como que opera para efetivar um juízo de valor.
Ele não tem com isso uma regra que compra automaticamente. Ele é levado a considerar o fato externo, a circunstância na qual está envolvido dentro de um relacionamento espontâneo. O ser livre exige dele uma atenção especial frente a cada nova circunstância. Ele deve realizar o esforço de alcançar esta circunstância em sua singularidade. Isso requer uma atitude pessoal, um ato de deliberação, não uma ação rotineira e habitual. Uma ação atenta, cuidadosa, desperta, alerta.
Como vemos, a moral, bem entendida, não é um elemento coercitivo, nem um fator de restrição da liberdade. Ao contrário, é instrumento de sua efetividade. O homem que se arma de princípios morais adquire a possibilidade de se colocar dentro de uma situação permanente, frente à temporalidade dos acontecimentos. Estes princípios se tornam elemento de estabilidade do seu ser, pela coerência na continuidade dos atos pelos quais participa das situações variadas da existência. Esta continuidade vai progressivamente definindo o caráter moral do indivíduo, isto é a estabilidade do seu ser pela coerência na continuidade apenas executa atos livres, tomados isoladamente um dos outros, de maneira descontínua, mas exerce atos livres porque adquiriu um estado de liberdade no seu ser.
É assim que entendemos que para o homem ser livre, de uma liberdade compreendida em relação ao seu ser, e não apenas a possíveis atos livres, conjugando atos livres e não livres, conforme as circunstâncias o permitam ou exijam, é o próprio sentido de sua vida que se torna livre. E, assim, compreendida como deve ser, a moral exerce um papel fundamental na construção da liberdade humana.
Direito de liberdade? Dever de liberdade? Fala-se tanto em direito de liberdade! Repete-se tanto que a liberdade é um direito fundamental do homem! E o que se pensa? O que se sabe? Se não temos um conceito definido de liberdade, ela pode ser tudo, ou não ser nada. Que fazemos da liberdade? Que fazemos ser a liberdade? É mera espontaneidade? É arbítrio? É irracionalidade? É ideal? É realidade? É mito?
Nunca se fala em dever de liberdade! Tantas vezes se repete que a todo o direito corresponde um dever. E, no entanto, com relação à liberdade parece ser diferente. No máximo se diz que liberdade implica responsabilidade. Mas, entende-se responsabilidade consequente do ato livre. Nunca se pensa na responsabilidade para com a liberdade. Por isso mesmo não ocorre em geral falar em dever de liberdade.
Fala-se no direito de ser livre. Não se fala em geral no dever de ser livre. E isto porque pensamos que somos "livres" de pensar a liberdade como quisermos. Teremos essa "liberdade"? Ou "tomamos" essa liberdade? Isto é, usamos indevidamente a liberdade, quando temos em primeiro lugar a obrigação de discernir com precisão a ideia que fundamenta e dirige nossos atos livres, e assegura o nosso ser livre.
Para o liberalismo, a liberdade se identifica com espontaneidade. Neste caso, porém, a liberdade seria meramente subjetiva. Porque, de fato, tomaríamos por liberdade a ação livre dos impulsos. Os impulsos agindo sem coação. Os impulsos operando sem obstáculos limitadores de sua ação. Neste caso, que seria a consciência? Seria apenas o conhecimento dos objetos que suscitam o desejo, dos objetivos que despertam a apetência. Não seria porém, uma consciência com o domínio dos atos. Seria apenas uma consciência que acompanha a sequência dos atos, uma "consciência sombra", ou "fantasma". Os impulsos espontâneos são, na verdade, impulsionados em razão de alguma coisa. Refletem um determinismo automático, e não um autodomínio na ação. Ninguém julgará que uma ação impulsiva exprime o domínio do sujeito sobre seus atos. Como a espontaneidade poderá ser tomada por liberdade?
Para o existencialismo, a liberdade se identifica com a imaginação. Seu ponto de partida é uma esquizofrenia consentida ou induzida. O que caracteriza o esquizofrênico, e o seu desligamento do real, a perda do sentido da objetividade. O existencialismo sartriano postula ao homem que ele se sinta estranho ao mundo. Que olhe o mundo como absurdo. Que não encontre sentido ou razão de ser nas coisas. Que veja os outros homens como estranhos e hostis. A partir daí, ele, que é um puro jato ocasional de existência, projetará arbitrariamente os valores segundo a sua imaginação. Ele, o homem, é apresentado como alguma coisa e como nada. Tem a consciência do nada em si mesmo: para Sartre o ser é originalmente existência pura, sem essência. No processo da existência, a essência lhe vai sendo imposta, determinada: ele aparece como produto do meio. O meio determina o que ele é. E ele se vê obrigado a escolher. Se não escolhe, ainda escolhe. Não escolher, é uma escolha. Mas, para Sartre, a escolha é feita, feita pelas circunstâncias, não há escolha livre, o homem é determinado na escolha. E, no entanto, por ter havido a escolha, ele é responsável. Ele não é responsável moralmente, ele é apenas responsabilizado. Ele tem consciência disto. Sua consciência, portanto, exprime esta estranheza da desproporção entre o não ter consciência de responsabilidade na escolha, e ter consciência de ser responsabilizado pela escolha. Aflora, então, a angústia, sinal da liberdade do homem, entendida no sentido de que ele está solto no mundo, sem amarras, sem amparo. O conceito de Sartre r flete o fato de ter querido construir uma metafísica a partir de um estado psicológico. Tomou como dado permanente um estado de espírito típico do após guerra, com mentalidades atordoadas com o sentimento de absurdo daquele que é envolvido numa guerra, que é obrigado a lutar contra quem não conhece, e sem ter uma razão plena para um risco total da própria vida. Torna-se, no entanto, um conceito de liberdade, que apela a uma consciência alienada. Rejeita a visão objetiva dos determinismos naturais. Fecha os olhos para a ordem causal da realidade. E conclui pela perplexidade diante das consequências.
Para o marxismo, a liberdade se identifica com libertação. A libertação, contudo, é uma dimensão meramente relativista, que não contém por si mesma um valor intrínseco. A libertação tomada como um fim em si mesma não garante a liberdade. Pode, inclusive, confundir a realização do projeto da liberdade. O marxismo, é um exemplo disso. Nele, o empenho de liberação é movido por um conceito alienante de liberdade. O marxismo fala muito em alienação. Denuncia a alienação. Convoca para ação efetiva, arregimenta para a luta, propondo retirar o homem do estado de alienação. A burguesia é alienação. A religião é alienação. Não lutar contra as estruturas vigentes nos países não comunistas é alienação. A religião é o ópio do povo. Mas, a verdade, é que o marxismo funciona com um conceito alienante de liberdade.
Por que o marxismo entende que a religião é o ópio do povo? Porque lhe parece que a religião se acomoda com o mundo. Porque lhe parece que a religião desestimula a luta pela justiça. Porque supõe que a religião pregue o espírito de sacrifício e aconselhe o sofrimento, como a forma de ganhar o céu. Só falta dizer que a religião alimenta a injustiça, e espalha a miséria no mundo, para proporcionar um maior número de almas sofredoras, com o céu, por isso, garantido. A alienação da religião consiste para o marxismo, em não colocar todas as esperanças de salvação neste mundo. Esquece que, para a religião só é possível ir para o céu pelas boas obras realizadas neste mundo, e que o pecado não é considerado apenas com relação aos atos, mas também aos pensamentos, e às omissões Para o marxismo, no entanto, o mal da religião consiste sobretudo nesta esperança do céu, que é uma esperança no futuro, quando o realismo marxista exigiria resolver tudo desde já e agora. Mas, o marxismo também tem o seu céu, e o seu futuro. E o que condena, adota. Não só adota, exige. E exige pela força. O sofrimento, o sacrifício, a vida, tudo é exigido pela "causa". O dever de aceitar, e calar. O dever de não discutir. O dever de submeter-se. Todos os direitos fundamentais são sacrificados. Não há direito de ir e vir. Não há direito de palavra. Não há direito de religião. Tudo deve ser sacrificado ao Estado. Tudo deve ser submetido ao Partido. O povo não pensa. O povo não delibera. O Partido pensa e delibera por ele. Tudo isso para conseguir um céu, um céu futuro. Neste céu, então, haverá uma outra humanidade. Quando o Partido dominar toda a terra, quando todos os povos forem um só povo, quando todas as nações forem uma só nação, sob uma nova estrutura econômica, de homens sem individualismos e sem sentido de propriedade, tudo isto garantido por uma vigorosa força policial e militar, então brotará, automaticamente, por magia, uma nova humanidade, educada à força de condicionamentos psicológicos, habituada a um comportamento controlado policialmente, dominada pelo medo, e acomodada pela impossibilidade de reagir, esta humanidade conhecerá a liberdade. E aí está o céu marxista, um céu futuro.
Esta é a sua essência. Esta a sua lógica. E, no entanto, é inegável o seu sucesso de fato no mundo. A visão imediatista dos homens garante o seu sucesso. A bandeira da libertação é atraente, e acomoda a consciência humana com relação às exigências da liberdade. A libertação se efetua diante de algo palpável, concreto, existente. A liberdade deve efetivar-se sobretudo diante de alguma coisa que pode existir, que deve ser criada, que exige mais do que apenas uma ação externa: exige criatividade interior e exterior. O homem em geral está mais disposto a ver os defeitos dos outros do que os seus próprios defeitos. O exercício da virtude tem as suas tentações: a maior delas é cuidar-se alguém de virtuoso por combater as faltas dos outros, em lugar de comunicar aos outros as suas efetivas virtudes. Há, de fato, um problema econômico a ser resolvido no mundo. Mas, o problema econômico não é um problema original. Ele já é consequência de uma civilização pragmatista, que valorizou os bens da produção acima do próprio homem. Conservar a mentalidade pragmatista e querer solucionar o problema econômico é condenar o poder capitalista de poucos, mas de qualquer maneira de vários, para adotar o poder capitalista de um só, embora este único patrão apareça sob o mito do Estado. Uma economia humanista não se resolverá apenas no plano econômico, mas envolve toda uma reposição de valores, isto sim, para ser feita desde já e agora, em que a pessoa humana, dignificada pelo respeito de sua verdadeira liberdade, possa ser considerada como um valor primordial.
Podemos compreender as razões que conduzem por vezes pessoas movidas das melhores intenções à aceitação de posições que as conduzirão apenas a uma mudança, e não a uma melhoria de vida. O Estado totalitário é um labirinto que tem entrada, mas não tem saída. O trágico da vida humana está exatamente em que a liberdade do homem consiste na sua possibilidade de ser livre, mas, também na possibilidade de não ser livre. Ele pode usar da liberdade para perdê-la.
Ter direito à liberdade não é o mesmo que ter direito de jogar com a liberdade, ao acaso. Não é ter o direito de saber ou não saber o que seja a liberdade. É o destino do homem que está em questão. É a oportunidade que tem de viver como homem, é isto que é dado ao homem. E ele deve aprender a viver humanamente. Viver humanamente é viver como ser livre. Viver como ser livre é saber construir-se pessoalmente, é objetivamente cultivar aperfeiçoamento do seu próprio ser, de suas relações a natureza, de suas relações com homens; é construir uma ordem social aberta, em que possa realizar-se, com a colaboração mútua, o aperfeiçoamento de todos; é construir uma política aberta, em que a função de governo não consista apenas numa ação relativista e agnóstica, amoral e cínica, de simples mecanismo harmonizador de tensões, sem a consideração de uma ordem de valores, que efetivamente edifique a vida humana.
Dentro de uma noção de criatividade, de construção da liberdade, o homem deve zelar pelos bens de cultura, para que eles sejam de fato a expressão de exercício da liberdade.
Liberdade na produção. O homem, como diria Bergson, é "homo faber" antes de ser "homo sapiens". As suas necessidades o obrigam a produzir. Pela produção, ele pode libertar-se das necessidades elementares. Pode, através da produção, conseguir alimento, vestuário, conforto, elevar seu nível de vida. Não pode tornar-se escravo da produção. Não pode tão pouco pretender uma livre produção estimulada unicamente pela procura, mas segundo um interesse efetivo e digno da vida humana. A indústria da pornografia, por exemplo, tem mercado, porque estimula os sentimentos primários. A liberdade de produzir deve obedecer ao critério do que é a liberdade: deve favorecer a subsistência e o desenvolvimento do ser humano. Dentro de uma consciência de liberdade, não se pode limitar a ideia de produção à industrialização, que atende a uma faixa de interesses, mas, pela padronização do produto, por vezes destrói a expressão pessoal e humana. Ao lado da indústria, deve sempre ser estimulado o trabalho artesanal, que sustenta um sentido de participação humana, e uma variação no produto, que é altamente saudável para o espírito humano.
Liberdade na arte. As artes exercem um relevante papel numa sociedade livre. O papel social do artista é romper a rotina da vida pragmática. A visão estética, que marca a verdadeira obra de arte, é uma expressão desinteressada e lúdica, que convida os homens meramente práticos a serem sacudidos de um certo torpor dos hábitos mecanizados. Isto se efetua, evidentemente, através de uma arte autêntica, que é livre porque essencialmente criadora. Uma arte submissa às diretrizes externas quanto à inspiração pessoal e singular do artista, uma arte dirigida por intenções partidárias ou religiosas, veículo de doutrinas de qualquer ordem, instrumento de movimentos sociais ou políticos, resulta uma arte apoucada, diminuída, secundária, de valor puramente decorativo, sem expressão própria. Uma sociedade livre respeita a liberdade na criação artística. Mas, dizemos liberdade artística. Quando o artista usa da liberdade para transformar sua arte em mero instrumento de propaganda a serviço de algum outro fim, que não seja o estético, é ela mesmo que está sacrificando a liberdade artística.
Liberdade na ciência. A ciência é uma expressão de cultivo da inteligência, e de desenvolvimento pessoal do homem. É obra dos cientistas. É obra dos filósofos. É obra também de todos os homens, porque, através dos pensadores, é toda a humanidade que é beneficiada por suas descobertas, por seus discernimentos. Ela responde a um anseio de liberdade, à revelação dos segredos da natureza e da existência em geral. A busca do saber pelo homem corresponde ao desejo de compreender a sua situação no mundo, no espaço e no tempo. A ignorância coloca o homem na insegurança e no temor, de que se povoam as primitivas lendas e teogonias, as formulações míticas, enfim, como que o homem primariamente registrava os fenômenos da sua existência. Uma ciência cultivada por mercenários, atrelada apenas aos interesses de grupos, perdida das razões profundas, que justificaram a sua razão de ser, e o seu compromisso básico com as inclinações sadias do espírito humano, não é uma ciência livre. Uma filosofia que se descompromete com o exercício do pensamento correto, com o culto da razão através do questionamento dos problemas centrais da vida humana, que descura a investigação discursiva dos critérios adequados para os julgamentos de valor, transforma-se em simples ideologia de feição sofistica, em que o apelo à afetividade, à comoção emotiva, à passionalidade, ocupa o lugar da justa demonstração ou pertinente argumentação intelectual. Uma ciência verdadeiramente livre tem o compromisso de não perder de vista a ordem global da realidade, para não levar a uma falsa ideia da estrutura efetiva das coisas. Uma filosofia verdadeiramente livre se compromete com a determinação de uma ordem hierárquica de valores, e com o cultivo de uma capacidade intelectual de distinguir e tratar com adequação os problemas humanos. Ciência e Filosofia exprimem os pontos mais altos da cultura humana. No seu trato, a liberdade se manifesta no espírito de isenção provado na objetividade do seu exercício. A submissão a compromissos imediatistas sacrifica a liberdade na ciência, e lesa a inteligência humana em uma das formas preciosas de expressão da sua liberdade.
Liberdade na educação. Houve uma revolução na pedagogia moderna: a libertação do autotarismo. A escola moderna é risonha e franca. Em lugar dos castigos e das punições, a motivação. Em lugar da transmissão teórica, a descoberta. Acontece, porém, que na medida em que se mascara a necessidade do esforço, que é exigido em todo o processo de criação, e se evita a experiência do obstáculo e da dificuldade, são criaturas despreparadas para a luta da vida que formamos para assumir as rédeas da sociedade. Uma educação que se esquiva do culto dos valores permanentes da vida humana, que descura a formação do caráter, e despersonaliza os mestres não pode ser considerada à altura de cumprir os deveres para com a liberdade. Uma educação inspirada no evolucionismo, que joga com as criaturas humanas como elementos experimentais, e considera liberdade não ter o que transmitir, porque condena velada ou explicitamente o sentido de tradição, é apenas instrutora de técnicas que colocam o educando entre a opção da adaptação passiva à situação reinante, ou às ações arbitrárias contestatárias de maneira mal definida. Não é de admirar que os pedagogos, à procura de um tratamento científico de sua especialidade, estejam voltados para os problemas de organização e administração mais do que para os conteúdos valorativos da educação. Uma educação livre deve compreender primordialmente o que é tipicamente humano. A escola livre é antes de tudo um lugar de culto, e não uma fábrica de homens amestrados. Se não houver este cultos do valores humanos como foco central da educação, os educadores serão transformados apenas em técnicos de comunicação, ou em engenheiros de administração escolar.
A cultura é a expressão do trabalho de elaboração do homem por sua ação e sua inteligência. Se não a fermentarmos com um espírito e com princípios condizentes com as exigências de nosso próprio desenvolvimento humano, ela se transforma na instituição de antivalores, que sacrificam a liberdade do homem.
É através de tudo isso que o homem constrói a sua liberdade, construção contínua e sempre renovada. Ele tem esse dever para com a liberdade. E por isso mesmo acentuamos este aspecto do dever de liberdade, frente à ideia tão comum de direito da liberdade.
A liberdade é um direito fundamental do homem. Assim como a vida. Mas, por que? Em que sentido é um direito fundamental? É um direito como a vida é um direito. Mas, não do mesmo modo. Não pelas mesmas razões. Ninguém tem o direito de tirar a vida porque a vida não é um bem produzido por nenhum ser humano. Assim o suicídio é considerado um crime, por ser uma apropriação indébita do direito à vida. O direito de viver de um modo ou de outro arquétipos enseja verificar bem as diferenças entre não é o mesmo direito de viver ou não viver. Nenhum ser humano pode tirar a vida porque nenhum deu a vida. O direito de liberdade, no entanto, está noutro plano. Do mesmo modo que com relação à vida, que é um dom primário, ninguém tem o direito de violar a possibilidade de um ser humano ser livre. Mas, há mais do que isso no fato da liberdade humana: ela é construída pelo próprio sujeito. Ele a constrói na medida em que se desenvolve e aperfeiçoa, e adquire domínio sobre seus atos, na medida enfim em que se torna senhor de si mesmo. É, assim, por- tanto, que ele se torna sujeito de direito pleno da sua liberdade. Ele a construiu, ela é obra de si mesmo sobre si mesmo, e em si mesmo. E neste caso, não temos apenas a relação de responsabilidade em decorrência do homem ser livre: temos o direito à liberdade em decorrência da responsabilidade assumida com a possibilidade de ser livre, manifestada no cumprimento do dever de construir a liberdade. Dever da liberdade, em primeiro lugar, portanto, porque submissão a tudo aquilo que exigido para o desenvolvimento do homem como um ser livre, para a realização em si mesmo da liberdade como um estado permanente do seu ser. Esta submissão é livremente assumida, porque não é passiva, mas significa o acolhimento de princípios através, dos quais o homem domina os seus atos, e se autodetermina no seu ser. O cumprimento do dever de construir a liberdade é o único fundamento eficaz e legítimo, que possibilita no mundo a implantação efetiva do direito de liberdade.
Se queremos enfrentar o problema da liberdade, assumimos o dever de procurar colocá-lo bem. Para Bergson, um problema só é colocado nos seus justos termos na medida em que ele é solucionado devidamente. Mas, existem graus no tratamento dos problemas, e nós podemos fazer uma avaliação também gradativa das etapas de abordagem de um tema.
Se não nos colocamos numa posição irracionalista, o primeiro momento desta investigação se configura ao aceitarmos o tema da liberdade como um problema. Quem diz problema se refere a algo que se põe para a inteligência, que o aborda como um objeto refletido, e não como um mistério em si mesmo. O problema é o objeto na perspectiva de quem o reflete, ou sobre ele reflete.
O primeiro passo desta reflexão consiste em perceber que o problema da liberdade se afirma na medida em que o homem percebe que o ato de liberdade indica um sujeito que se compromete. O ato de liberdade se define numa relação em que o homem se vê obstaculizado, ou capaz de superar uma dificuldade, impelido a agir em dissonância com sua vontade ou inclinado por ela, conquistando um benefício para o seu ser ou tendo que sofrer as consequências não previstas da ação praticada. O comprometimento anterior ou posterior dos atos realizados desvela o fato da situação do próprio sujeito e indica se ele transcende os seus atos particulares, ou neles se limita.
Por tudo isso, consideramos que colocar o problema da liberdade é um compromisso. Nesse compromisso se revela o problema conexo de saber como dever colocá-lo.
Fazer da liberdade um aceno de soberania é como um canto de sereia, atraente e mortal. Neste caso, a liberdade se manifesta apenas como decisão caprichosa. Na verdade, confunde-se com espontaneidade, e a pura espontaneidade com o fatalismo, que é uma forma radical de determinismo. Para a inteligência, esta é uma posição contraditória. Decorre de uma postulação do absolutismo do ser humano, que é na verdade uma opção arbitrária, de natureza prática, mas efetivamente abstrata e abstrusa, porque inadequada diante da realidade. A única pretensão legítima de assumir uma posição absolutamente válida, para o homem, será unicamente a que encontra uma posição adequada, que lhe seja proporcional dentro da contingência do seu ser. O puro arbítrio é simplesmente o dogmatismo calcado na tentação do menor esforço, ou do não esforço, a fuga de comprometer-se, que afinal o compromete indefensavelmente.
Em verdade, o homem é um ser comprometido. Como diria Pascal, ele não pode fazer de sua vida um jogo de apostas ao acaso, porque ele já está embarcado. E a liberdade, manifestada num ser comprometido, só pode ser talvez a expressão de uma capacidade de comprometer-se: de acordo com a forma pela qual o sujeito se compromete, ele será subordinado a um determinismo necessário, ou conseguirá uma situação de poder autodeterminar-se, e nisto consistirá a sua liberdade.
O preconceito relativo à liberdade é a expressão dos vícios espontâneos da razão humana, ou seja dos clichês, dos modelos, das categorias dentro de que se aprisiona a razão quando opera por pura espontaneidade, sem se tornar senhora de si mesma. Fundamentalmente, consiste numa visão "geométrica" das coisas e dos acontecimentos, numa procura fácil de tratar tudo em termos de localização, e na rejeição do esforço necessário para acompanhar um desdobramento de natureza espiritual e significativo dos fatos da existência. E é por isso que o homem se inclina a tratar o problema dos atos livres e sente dificuldade de tratar o problema, dos seres livres. No primeiro caso, ocupa-se de relações exteriores facilmente identificáveis, enquanto no segundo coloca-se diante de termos qualificativos, de desenvolvimento e aperfeiçoamento do seu ser. A confusão entre liberação e liberdade decorre da não distinção destes dois planos, ou dimensões de abordagem do tema.
A partir deste ponto, a questão pode ser situada em seus desdobramentos, e compreendida em suas diversas perspectivas. Do lado histórico, por exemplo, o conceito predominante de liberdade, e a sua problemática, em diversas culturas, na Grécia antiga, no mundo cristão medieval, na modernidade, pode levar-nos a uma reflexão através da qual certos pontos podem ser acentuados naturalmente em função dos complexos e diversos momentos históricos. De um ponto de vista sistemático, a abordagem do tema numa perspectiva psicológica, ou sócio-política, ou metafísica, ou moral, não constitui uma teorização abstrata, mas uma distinção de escalas de encarnação do problema. Com esta visão global, é possível perceber nos tratamentos comuns como um ou outro aspecto da questão é privilegiado em detrimento dos outros. Ora, o problema da liberdade em sua complexidade exige uma solução integrada, não permitindo o trato de um de seus aspectos sem relação com os demais.
Algumas questões aparentemente laterais encontram na aplicação ao problema da liberdade a exigência de um nítido esclarecimento. Assim ocorre, por exemplo, com o conceito de princípio diante dos conceitos de regras e normas, ou leis positivas. Muitos dos equívocos relativos à ideia da moral como forma de coação e cerceamento da liberdade decorrem da indiferenciação com que se opera com estes conceitos. Tornada nítida a noção de princípio, é possível compreender o papel da moral como instrumento de exercício da liberdade.
Outra questão que merece atenção é a distinção que fazemos entre os atos de liberdade e o estado de liberdade. A análise dos atos tomados em si mesmos rompe uma certa unidade do real, e dificulta a percepção da distinção entre liberação e liberdade. A focalização do problema do estado de liberdade envolve os atos no seu agente, ao mesmo tempo que, sem cair num conceito geral e abstrato de liberdade, encontra-a em situação existencial de processo e desenvolvimento do ser humano. Nestes termos, o problema da liberdade é tratado com relação ao ser do homem, considerado não apenas isoladamente, mas como ser social, numa dimensão em que o homem, como pessoa, reflete o plano do social, mas não se limita a ele, mantendo a sua singularidade. Será possível então compreender a inter-relação de pessoas no desempenho da liberdade, e seu valor transcendente.
A análise da formação do estado de liberdade, e as exigências de sua constituição, põe-nos diante da visão de que a espontaneidade representa para a liberdade apenas uma possibilidade de ser ou não ser efetivada. Compreendido o que seja liberdade, que não se confunde com simples liberação, nem com espontaneidade, mas como sendo a conquista de um estado em que atos livres permitem a continuidade de atos livres, é possível entender a importância do conceito de construção da liberdade.
O marxismo fala no homem que constrói o seu próprio ser pelo trabalho, no sentido de rejeitar a ideia de um vínculo metafísico devido à existência de uma natureza do homem; e dimensiona esta construção pelas ações exteriores do trabalho humano na produção transitiva. Não é esta a nossa posição, pois não partimos de um conceito abstrato do homem, nem de uma ideologia, e tal conceito é de fato demasiadamente limitado. Para nós, o homem manifesta uma dupla dimensão em sua atividade, tanto de imanência quanto de transitividade. Não está apenas voltado para uma ação extrínseca, para uma atividade de trabalho e de produção, sendo o seu valor sempre determinado pela ordem da imanência.
A distinção clássica entre as noções de agir e fazer, de ação interior e exterior, não é um requinte teórico, mas uma forma de ser realista. Nestas duas dimensões se realiza o homem íntegro, e sob estes dois aspectos procede à construção de sua liberdade. Desta forma, a sua inteligência pode conduzi-lo não apenas no sentido restrito de uma liberação, e, assim, em lugar de esperar imaginária e fabulosamente que a liberdade possa ocorrer apenas como uma fatalidade de uma humanidade futura, partirá aqui e agora para a construção positiva da liberdade.