O Problema da Verdade
Jacob Bazarian
Círculo do Livro
“Conheceis a verdade e a verdade vos tornará livres.” (São João, cap. 8, vers. 32)
"É muito difícil realizar um trabalho teórico contínuo durante o ano letivo normal" — confessa com razão o grande psicólogo humanista norte-americano Abraham Maslow, que escreveu sua excelente obra Introdução à psicologia do ser graças à ajuda de pessoas e entidades filantrópicas.
Isto é mais verdadeiro ainda em nosso país, onde é impossível o escritor, sobretudo o ensaísta, viver de sua profissão, já que os direitos autorais recebidos pela venda de seus livros não representam dez por cento do que ele poderia ganhar se fosse lecionar numa faculdade ou trabalhar numa empresa em vez de escrever.
Escrever ensaios em nossa terra é uma ocupação terrivelmente deficitária. E sem ajuda financeira é quase impossível. Esta é uma das principais razões por que em nosso país são raros os ensaístas profissionais.
O presente livro foi escrito graças à ajuda desinteressada de várias pessoas generosas ex-alunos, amigos e parentes, ajuda essa que possibilitou libertar-me de preocupações monetárias durante o tempo dedicado à elaboração do livro.
Sou eternamente grato a essas pessoas humanitárias, pertencentes, aliás, a diferentes opiniões religiosas, filosóficas e políticas.
É óbvio que elas não são responsáveis pelas ideias defendidas no livro, nem pelos eventuais erros e falhas do mesmo. Isso é de inteira responsabilidade do autor.
Mas, se este livro for útil a alguém, é necessário agradecer aos mecenas, que com seu gesto nobre e desinteressado tornaram possível a elaboração e publicação deste livro.
Este livro é dedicado
Aos meus amigos e ex-alunos de São Paulo:
Natália Murata, Joaquina Fernandes de Oliveira, Íris Fernandes Tito, José dos Santos Filho, Antônio de Pádua Guimarães, Dr. João Alves Veríssimo, Dr. Enno Gau, Dr. José Rocha, Dr. Sérgio Talarico, Dr. Antônio Pagliara, Dr. Salvador Pacífico, Dr. Enzo Battezini (falecido), Dr. Ítalo Nicodemo, Dr. Reynal d'Ávila, Dr. Fernando C. Morais, Dr. José Neves, Dr. Nichan Bertezlian, Dr. Giancarlo Nardi, Dr. Nestor Pacheco e Miria Coelho.
Aos meus amigos e ex-alunos do Paraná:
Dr. Paulo Vieira de Camargo (Maringá), Abrahão Barbosa Emílio (Ponta Grossa), Gil Simon Zanetti (Ponta Grossa) e Re- ginaldo José Ribas (Curitiba).
Aos meus amigos e parentes de São Paulo:
Comendador José Distchekenian, Comendador Karnig Bazarian, Paren Bazarian, Krikor Bazarian (falecido), Antranik Bazarian, Krikor Apovian, Iskuí Apovian, Manoug Kaloustian, Jorge Koumerian, Artur Minassian, Alberto Kurdoghlian, irmãos Danielian, Sarkis Parseghian, Rubens Apovian, irmãos Behisnelian, José Seraidarian, Sérgio Aristakessian, Avedis Momdjian, Dr. Jean Garo Kehyayan, Dr. Salomão Schattan, Fernando Mangarielo, Prof. Célio Benevides de Carvalho, Dr. Alcides Cintra Bueno Filho (falecido), Senador André Franco Montoro e Moysés Baumstein.
Aos meus amigos de Osasco:
Barkev Kamagian, Pedro Avedis Seferian, Garbis Seferian, Haroutiun Seferian, Nichan e Ohannes Nerguizian, Artur Ignadossian, Avedis Seferian, Zakarias Kartalian, Dr. Hirant Sanazar e Dr. Krikor Tarpinian.
Aos meus amigos de Itapetininga:
Dr. Augusto Flaviano Arruda Costa (presidente da Fundação Karning Bazarian), José Menk, Juliana Fabiano, Cav. Epaminondas Ambrósio, Dr. Otílio Lara Filho, Prof. Stephenson e Profa. Tereza Lisboa, Dr. José Lopes Cardoso, Dr. Jorge Haidar, Rita de Cássia Prado, Zilda Elena Leonel Ferreira, Iraci de Oliveira e Florivaldo da Silva Leite Fernandes.
Aos meus amigos de Brasília (DF):
Ministro Dario Castro Alves Moreira e escritora Dinah Silveira de Queiroz.
Aos meus amigos do exterior:
Antaram Aharonian, Montevidéu, Uruguai.
Dikran Miurekian, Buenos Aires, Argentina.
Se os poucos que sabem muito não ensinarem os muitos que sabem pouco, então todos poderemos ser vítimas da ignorância e da servidão.
"Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de maneiras diferentes, trata-se porém de transformá-lo" — escreveu um célebre filósofo alemão do século XIX. Nós concordamos com tal pensamento, mas queremos lembrar que antes de transformar algo é preciso conhecê-lo. Sem uma teoria científica do conhecimento da verdade não é possível interpretar corretamente o mundo, o homem e a sociedade e muito menos transformá-los.
Nenhuma ação transformadora poderá ser bem-sucedida se ignorarmos a natureza das coisas com que lidamos. Nós só poderemos tirar proveito de algo se conhecermos a verdade sobre o mesmo. Só poderemos imitar, produzir e mudar algo se soubermos como funciona, só poderemos transformar o mundo, a vida e a sociedade, se conhecermos a verdade, isto é, a essência das coisas e as leis pelas quais elas se regem.
Assim, uma teoria científica do conhecimento da verdade é uma disciplina absolutamente necessária a qualquer atividade prática ou teórica, a qualquer tarefa de compreensão e transformação do mundo, do homem e da sociedade.
O conhecimento da verdade é eminentemente útil para o sucesso pessoal e profissional tanto do inventor como do cientista, tanto do filósofo como do revolucionário, tanto do político como do industrial, tanto do patrão como do operário.
O estudo da teoria do conhecimento da verdade é importantíssimo também para as nações, sobretudo para os países em vias de desenvolvimento como o nosso. Um país é grande na medida em que seus cidadãos têm um alto nível científico, técnico e administrativo. Para incrementar a economia e a cultura de um país é absolutamente indispensável conhecer bem as coisas. O conhecimento científico e tecnológico é a arma mais poderosa e decisiva para o sucesso e o desenvolvimento polifacético e multilateral tanto na vida individual como no destino do país.
Conhecer a verdade significa mais pão, mais saúde, mais habitações, mais conforto, mais justiça e mais felicidade, e tudo mais. Conhecer a verdade é poder, é prever, é vencer, é ser livre, é ser independente, é ser desenvolvido.
Quanto mais verdades conhecermos, mais poderosos e livres seremos. "Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres", diz o Evangelho segundo São João.
Conhecer a verdade, saber distinguir a verdade do erro, do falso e da mentira, aprender a descobrir e até adivinhar a verdade não faz mal a ninguém. Só pode ser benéfico.
A ignorância de nossa juventude universitária a respeito dos problemas fundamentais do conhecimento, principalmente sobre o problema da verdade e de seu critério, é tão grande, que a impede de formar uma concepção científica do mundo, acumular conhecimentos positivos e tornar-se uma pessoa competente dentro de sua especialidade.
Aliás não é somente ao estudante universitário que falta uma concepção científica do mundo. Há muitas pessoas que são grandes autoridades num ramo do saber (cientistas, físicos, químicos, médicos, engenheiros, técnicos, industriais, militares, etc.), que na sua especialidade são rigorosos e só aceitam fatos comprovados, fundamentados, etc. Mas basta se aventurar em outros campos do saber para aceitar as coisas sem nenhum fundamento ou prova e, por isso mesmo, dizem os maiores disparates. Quantos geniais cientistas há por aí que acreditam em fantasmas e nos discos voadores guiados por seres de outros planetas. Pode ser que tais discos existam, mas, enquanto não for rigorosamente provada a sua existência, não se pode crer neles sem reserva.
O que falta a todas essas pessoas é um conhecimento elementar do que seja a verdade, e como distingui-la do erro e do falso.
A importância do estudo de uma teoria científica do conhecimento da verdade se torna mais premente ainda numa época como a nossa, em que uma onda de ceticismo, irracionalismo e misticismo assola certos países.
Por mais paradoxal que pareça, o ceticismo sistemático está intimamente ligado às diversas doutrinas irracionais e místicas. Todas elas negam à razão a possibilidade de conhecer a verdade e de compreender a realidade circundante. O ceticismo sistemático é tão mortal para o sucesso pessoal e o desenvolvimento de uma nação quanto as diversas manifestações do misticismo e irracionalismo.
É fora de dúvida que esta onda anticientífica é insuflada por ideólogos de nações poderosas, interessados em manter os povos dos países subdesenvolvidos na ignorância e no obscurantismo para melhor poder subjugá-los e explorá-los. Pois as pessoas e os povos que ignoram a verdade são mais facilmente dominados e subjugados.
Assim, a gnosiologia ou teoria do conhecimento da verdade também é uma arena de lutas ideológicas, que refletem os interesses econômicos de diferentes forças sócio- econômico-políticas.
Por isso, para o progresso e independência econômica de um país em desenvolvimento como o nosso, é de vital importância incentivar o estudo do conhecimento da verdade científica.
Se os poucos que sabem muito não ensinarem os muitos que sabem pouco, então todos poderemos ser vítimas da ignorância e da servidão.
Eis por que julgamos um grande dever cívico para o bem da nação e de seus concidadãos ministrar um curso de teoria do conhecimento em todos os cursos colegiais e universitários de qualquer especialidade.
Apesar da grande importância do estudo da teoria do conhecimento da verdade, infelizmente é paupérrima a literatura sobre o assunto em nossa língua.
Com a publicação desta introdução à teoria do conhecimento, o autor espera preencher essa grave lacuna, a fim de dar sua modesta contribuição para o êxito na vida particular e profissional de cada um e para a grandeza do nosso país.
1 — Sobre o conteúdo
Como dissemos, apesar da importância da teoria do conhecimento, infelizmente é paupérrima a literatura sobre o assunto em nossa língua.
Os poucos livros sobre a teoria do conhecimento existentes no mercado brasileiro sofrem de muitas falhas: ou são muito sucintos e não abordam certos aspectos importantes do tema, ou, ao contrário, são volumosas monografias escritas num estilo prolixo, confuso e abstrato, sobre um aspecto particular do problema do conhecimento.
O que é decepcionante na leitura desses livros é que o estudioso do assunto fica sem saber o principal: o que é afinal o conhecimento, o que é a verdade e qual o critério para distinguir o conhecimento verdadeiro do falso.
De todos os livros existentes no Brasil sobre o assunto, o melhor continua sendo o livro de Johannes Hessen, Teoria do conhecimento (publicado por sinal em Portugal), que já teve várias edições. Hessen aborda de um modo sistemático os problemas fundamentais do conhecimento, numa linguagem clara e concisa, sem prejuízo da profundidade. O autor provou de maneira brilhante que se pode escrever de um modo compreensível sobre problemas abstratos e difíceis.
Mas o livrinho de Hessen foi escrito meio século atrás e em muitos aspectos já está superado. A maior falha, porém, é a ignorância completa do critério científico da verdade — que aliás é o problema central da gnosiologia.
Da mesma falha sofrem os trabalhos tomistas sobre o assunto, que aliás são muito sucintos, ocupando em geral um pequeno capítulo num grande compêndio de filosofia.
É interessante observar que em muitos problemas, tais como a possibilidade do conhecimento, o conceito da verdade e outros, as posições tomistas coincidem com as posições marxistas.
Já os trabalhos marxistas sobre a teoria do conhecimento são melhores. O materialismo dialético foi a única filosofia que elaborou de modo sistemático e consequente uma teoria científica do conhecimento. E, o que é mais importante, solucionou de modo totalmente satisfatório o problema central da gnosiologia, que é o critério da verdade (a práxis).
A crítica que se pode fazer aos trabalhos marxistas sobre a teoria do conhecimento é que eles, embora científicos, são breves, elementares e muitas vezes até superficiais. Outra falha grave é o espírito dogmático e sectário que neles reina. Os autores repetem as mesmas ideias escritas, há dezenas de anos, pelos fundadores do marxismo-leninismo, sem trazer novas contribuições. Tal repetição torna sua leitura monótona, enfadonha e até embotante.
Quanto ao presente livro, em suas linhas gerais, ele foi inspirado, em sua estrutura, no livro de Hessen e, em seu método e em sua teoria, na gnosiologia do materialismo dialético, que é, atualmente, a mais científica e consequente teoria do conhecimento.
Assim, aproveitando o que há de positivo nos diferentes livros de gnosiologia, procuramos, ao mesmo tempo, sanar as falhas dos mesmos. E, em consequência, resultou um trabalho diferente e original. Em muitos aspectos do problema do conhecimento, a nossa abordagem e solução são diferentes. E há capítulos inteiramente novos e originais, como, por exemplo, o conhecimento intuitivo ou criativo, totalmente esquecido nos manuais de gnosiologia em geral, inclusive marxistas.
O capítulo sobre o conhecimento intuitivo ou criador é uma nova variante, consideravelmente revista e ampliada, do nosso opúsculo Intuição heurística. Essa parte foi incluída aqui por duas razões principais: 1.ª) por fazer parte integrante de uma teoria científica do conhecimento e 2.ª) pelo fato de o livro Intuição heurística ter sido recomendado em cursos universitários e em vários cursos especializados de parapsicologia, hipnose e controle mental. Como tal livro está esgotado, uma nova edição se fazia necessária para satisfazer aquelas demandas.
Isto porém não significa que o presente livro seja completo e isento de falhas. Nas condições atuais, isso não é possível por falta de muitos dados sobre a natureza do processo cognoscitivo. A teoria do conhecimento é uma ciência relativamente nova e em certos aspectos ainda está engatinhando. Mas isso não deve desanimar ninguém. Ao contrário, deve incentivar os especialistas para dar a sua contribuição ainda que modesta, abrindo caminho para que outros possam continuar a tarefa de elaborar uma teoria mais completa e científica do conhecimento.
A tarefa é tão importante que vale a pena dedicar-se a ela, pois, é necessário insistir, sem uma teoria científica do conhecimento não é possível compreender o mundo, o homem e a sociedade e muito menos transformá-los.
2 — Sobre o estilo
Na exposição dos problemas, o autor procurou o máximo de clareza, concisão e precisão, sem prejuízo da profundidade.
Existe opinião bastante difundida de que a filosofia, incluindo a gnosiologia, dificilmente se presta a uma exposição clara. E, em parte, isso é verdadeiro: a filosofia estuda as leis mais gerais sobre o mundo, o homem, a sociedade e o pensamento. E por isso ela tem um caráter bastante abstrato e complexo.
Mas isso não significa que é impossível expor claramente os problemas filosóficos. É necessário acabar com esse mito, atualmente em voga, de que o estilo obscuro é sempre profundo e o estilo claro é sempre superficial.
É estupidez, ignorância e esnobismo, pensar que não se pode escrever de modo claro, conciso e preciso sobre assuntos complexos e obscuros. A verdade é que tanto se pode escrever de modo obscuro sobre problemas simples e cotidianos, como se pode, muito bem, escrever de modo claro e compreensível sobre problemas abstratos, complexos e difíceis.
Na minha longa experiência de jornalista, professor e ensaísta, pude verificar, à saciedade, que é muito mais fácil escrever de modo obscuro do que de modo claro sobre um mesmo assunto. A primeira variante de um artigo, de um discurso ou de uma aula é ainda prolixa, obscura e cheia de imprecisões e contradições. Para torná-lo claro, conciso, sem prejuízo da profundidade, é necessário trabalhar arduamente durante muito tempo (aliás, assim o fazem todos os grandes escritores e ensaístas).
Outro exemplo, conhecido de qualquer professor de colégio ou universidade. No meu curso universitário obrigo os meus quatrocentos alunos anuais a escreverem quatro trabalhos por ano, de cinco a quinze páginas. Pois bem, a maioria absoluta (mais de noventa por cento) desses trabalhos está escrita numa linguagem confusa, obscura e quase hermética. E só com o tempo alguns vão adquirindo as qualidades do estilo científico-filosófico: clareza, concisão e precisão.
Como se pode diante desses fatos inegáveis dizer que o estilo obscuro é sinal de profundidade e genialidade e o estilo claro e simples é sinal de mediocridade? Na realidade, é o contrário.
O estilo obscuro testemunha o fato de que o autor não aprendeu a se expressar claramente: ou porque ainda não aprendeu a pensar claramente, ou, porque, consciente ou inconscientemente, não o quer.
A compreensibilidade do texto é uma questão de esforço e de honestidade intelectual. Permitam-me lembrar a opinião de algumas autoridades sobre o assunto:
"A clareza é a boa-fé do filósofo" — dizia Vauvenargues.
"O estilo é o próprio homem" — dizia Buffon.
“O que se concebe bem, enuncia-se claramente. E as palavras para exprimi-lo chegam facilmente" — dizia Boileau.
O próprio Hegel, o mais obscuro filósofo moderno, reconhecia a dificuldade de escrever de modo claro. Numa carta endereçada, em 2 de julho de 1807, a um alto funcionário bávaro, Niethammer, que lhe pedia escrever um compêndio de lógica para os alunos dos liceus, Hegel confessava: "É mais fácil ser ininteligível de uma maneira sublime do que ser inteligível de um modo simples". (Cf. Paul Foulquié, Le problème de la connaissance, Ed. de l'École, Paris, 1964, p. 140.)
"Geralmente as coisas essenciais são simples, enquanto os conceitos retorcidos e ambíguos, e as cascatas de palavras, podem servir para esconder o vazio ou evitar o confronto com a reta singeleza dos princípios que definem o necessário para viver com dignidade, como proclamou o Congresso, e como queremos todos nós, trinta anos depois, e sempre” — escreve Antônio Cândido. ("Os escritores e a literatura", in Opinião, Rio, 26 de julho de 1975, p. 24.)
"Os textos obscuros e impenetráveis não o são em virtude do assunto, ou por deficiência do leitor, mas por inépcia do próprio autor, incapaz de pensar e exprimir-se com clareza. Confundir obscuridade com profundidade é preconceito romântico que cabe à filosofia desfazer. Pois, como dizia Péguy, nada mais profundo e mais claro que um diálogo de Platão, e nada mais profundo e claro que um pensamento de Pascal" — escreve Roland Corbizier (em sua Enciclopédia fisiológica, Ed. Vozes, Rio, 1974, p. 8).
A gnosiologia, ou teoria do conhecimento, que estuda os problemas fundamentais do conhecimento, é uma das partes essenciais da filosofia. Para compreender a importância da gnosiologia e situá-la dentro da filosofia, é necessário dizer alguma coisa sobre a última.
1 — NOÇÕES DE FILOSOFIA
Muita gente tem uma ideia negativa, desfavorável e pejorativa da filosofia, como se ela fosse a coisa mais obscura, complexa, caótica e inútil.
Essa é a razão por que muitos definem quem se ocupa de filosofia do seguinte modo: "O filósofo é aquele que entra num quarto escuro para procurar um gato preto que não existe lá". Ou como dizem ainda ironicamente: "A filosofia é uma coisa tal, que, sem a qual, a vida continua tal e qual".
Apesar de humorísticas, essas "definições" exprimem com exatidão as lucubrações de muitos filósofos e de muitos volumosos tratados de filosofia que se publicaram desde o tempo de Platão até hoje.
Muitas correntes filosóficas e muitos filósofos, sobretudo os teólogos da Idade Média, tudo fizeram para justificar essa depreciação desonrosa da filosofia. É muito conhecida a frase "discussões bizantinas", ou "questões escolásticas", para definir certo tipo de filosofias ou de filósofos que discutem questões estéreis, tais como:
— Quantos anjos cabem na ponta de um alfinete?
— Qual o sexo dos anjos?
— Onde fica o purgatório?
E muitos outros problemas que são, na realidade, falsos problemas.
Mas não é só antigamente que se discutiam tais disparates. Ainda hoje vemos muitos autores célebres gastarem “tinta e latim" discutindo seriamente se os deuses eram astronautas, se os habitantes dos discos voadores adivinham o nosso pensamento, se as venusianas (habitantes do planeta Vênus) são muito sensuais, ou os marcianos (habitantes do planeta Marte) são muito belicosos, ou se os lunáticos (habitantes da Lua) são mesmo loucos, apesar de que não temos nenhuma prova científica da existência de tais seres e provavelmente não teremos, pois as recentes pesquisas astronáuticas mostraram que nesses planetas não há sinal de vida de seres superiores.
A maioria absoluta dos livros de filosofia, publicados atualmente em certos países culturalmente atrasados, pertencem a essa categoria de falsos problemas. Num estilo hermético, esotérico, obscuro, prolixo e confuso, e numa linguagem enigmática, rebuscada e sofisticada, os autores escrevem gigantescos calhamaços, tecendo longas discussões bizantinas e escolásticas sobre problemas que não existem, e se existem, poderiam ser ditos em algumas páginas num estilo ático, sóbrio, numa linguagem clara, concisa e precisa.
Se eles não o fazem, é porque não podem ou não querem exteriorizar seus pensamentos escusos, ou, então, querem esconder a sua ignorância e sua incapacidade. Como diz muito bem Michel Foucault: "O hermetismo é um abuso de poder de alguns intelectuais que se fecham num discurso quase inacessível, para ficarem imunes às críticas e polêmicas". (Michel Foucault, Pasquim, 6 de junho de 1973.)
Mas, assim como em todos os domínios do conhecimento existem o autêntico saber e o falso saber, assim também na filosofia é necessário distinguir aquilo que é verdadeiramente ciência filosófica daquilo que é falsa especulação filosófica. E esta última não deve comprometer a verdadeira filosofia — que existe, tem valor e é absolutamente necessária a qualquer ser humano, classe social ou país.
Na realidade, todos nós filosofamos sem saber. Desde o homem primitivo até o homem civilizado, todos nós aspiramos a saber, conhecer a essência das coisas, em uma palavra — a verdade. Já na antiga Grécia, essa aspiração ao saber foi chamada de filosofia.
Etimologicamente a palavra filosofia vem do grego (filia = amor; sofia = sabedoria) e significa "amor à sabedoria”, “amante do saber". A filosofia nasceu na antiga Grécia. Naquele tempo não havia ciências particulares e os pensadores da época chamavam-se sofos, isto é, sábios. Pitágoras, por modéstia, preferiu a palavra "filósofo", isto é, "amigo ou amante da sabedoria". A sabedoria, para os primeiros sábios gregos, compreendia não só o que hoje denominamos "ciência", isto é, a explicação das coisas pelas suas causas reais e naturais, como também sabedoria propriamente dita, isto é, "amor da verdade", "a prática da virtude e a prudência na conduta".
A filosofia tinha, então, por finalidade, conhecer os primeiros princípios da realidade, o substrato último das coisas, a origem, a essência, o valor e o sentido do universo e da vida, bem como a conduta virtuosa.
2 — A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
O conhecimento humano começou com a filosofia. Temos a tendência de separar a filosofia das outras ciências; entretanto, elas não estão isoladas, mas formam um todo. A realidade exterior não é formada de segmentos, setores, departamentos estanques, separados por uma espécie de muralha chinesa. A realidade é um todo inseparável. Na natureza e na sociedade tudo está ligado, tudo é interdependente. É por considerações práticas e didáticas que dividimos a realidade em diferentes aspectos. Como não podemos conhecê-la profundamente, de um só golpe, como um todo que é, então estudamos um mesmo fenômeno natural ou social sob aspectos diferentes. Esta é a razão por que nasceram e nascem ainda diferentes ciências.
Todos os conhecimentos do homem são interdependentes, formando, assim, simbolicamente, uma árvore — a árvore do conhecimento humano. O tronco dessa árvore é a filosofia; as ramificações — as diferentes ciências particulares.
Antigamente os conhecimentos acerca do cosmos, das coisas, dos homens e das sociedades, devido ao seu caráter especulativo, faziam parte da filosofia, em geral, e da filosofia da natureza, em particular.
Graças ao desenvolvimento da técnica e à aplicação dos métodos científicos no estudo de diferentes fenômenos, várias disciplinas, que antes faziam parte da filosofia, foram paulatinamente se destacando da mesma e tornando-se ciências autônomas sobre determinado aspecto da realidade. Abaixo damos, na ordem cronológica, o nascimento das ciências particulares e seus principais fundadores:
Matemática — século III a.C. — Euclides
Astronomia — século XVI — Copérnico
Física — século XVII — Galileu
Química — século XVIII — Lavoisier
Biologia — século XIX — C. Bernard e G. Mendel
Antropologia — século XIX — Lamarck, Darwin
Psicologia — século XIX — Wundt, Fetchner, Freud
Sociologia — século XIX — Comte, Durkheim, Marx, Engels
A essa lista é necessário acrescentar a formação de uma filosofia científica (em contraposição à filosofia especulativa e metafísica clássica). Entre seus fundadores modernos podemos mencionar o empirismo inglês do século XVII, o materialismo francês do século XVIII, a dialética de Hegel, o materialismo e ateísmo de Feuerbach, que tornaram possível a criação de uma filosofia científica que é o materialismo dialético e histórico elaborado por Marx e Engels, e seus epígonos Plekhanov, Lênin e muitos outros.
Assim, a filosofia é o alfa e o ômega do saber, a base e a pirâmide do conhecimento. É a rainha das ciências, que orienta as demais ciências, mas que, por sua vez, se alimenta delas. A filosofia sem as ciências particulares é vazia, mas as ciências sem uma filosofia científica são como os viandantes extraviados que erram pelo mundo, sem saber onde estão e o que fazer com os seus conhecimentos.
3 — FINALIDADE PRÁTICA DO CONHECIMENTO
Qual o motivo determinante dessa aspiração natural ao conhecimento? Aristóteles considerava que o desejo do saber, a curiosidade espontânea para o conhecimento, é inato do homem, isto é, inerente à natureza humana. Ele afirmava que "foi a admiração que moveu os primeiros pensadores às especulações filosóficas".
Essa opinião de Aristóteles vem sendo repetida há mais de dois mil e quinhentos anos como uma verdade absoluta. Assim, por exemplo, o filósofo contemporâneo Nicolau Hartmann acha que "o último sentido do conhecimento filosófico não é tanto resolver enigmas como descobrir maravilhas".
Mas a explicação do célebre filósofo grego e de seus adeptos é superficial, pois as causas últimas da gênese do pensamento filosófico não se encontram nesse sentimento de curiosidade e de admiração que procura conhecer o mundo e os homens pelo simples prazer de conhecer, saber com o exclusivo objetivo de saber. Essa curiosidade de saber é mais consequência do que a causa.
Na realidade, a filosofia, como qualquer outro tipo de saber, tem uma finalidade prática. A curiosidade de saber, o desejo de conhecer, é, em última análise, uma exigência da necessidade de sobrevivência, inerente a todo ser humano.
Segundo nossa teoria da natureza humana, teoria essa que defendemos no nosso próximo trabalho[1], a causa primeira e remota das diferentes atividades teóricas do homem é a necessidade de sobrevivência individual, a necessidade de preservação ou de conservação individual. Este é o substrato primeiro e último de suas atividades. Tudo o mais é uma consequência derivada dessa fonte primeira que nós chamamos de quintessência do ser. É para satisfazer esse impulso de preservação individual que o homem precisa conhecer, trabalhar e se multiplicar — pois de outro modo ele não poderá sobreviver.
Para garantir sua sobrevivência individual e da espécie, o homem precisa obter os meios de vida (comer, abrigar-se, etc.). Para isso o homem é obrigado a trabalhar juntamente com os seus parentes e semelhantes. No processo do trabalho, ele enfrenta uma infinidade de obstáculos existentes no mundo circundante, que são os fenômenos e as forças hostis da natureza e da sociedade. Para vencer essas forças hostis é absolutamente necessário conhecê-las corretamente. Conhecer corretamente as coisas significa conhecer a verdade ou a essência das coisas. Ora, a filosofia é justamente a disciplina que estuda a essência de todas as coisas: do cosmos, da vida, do homem e da sociedade.
Assim, o conhecimento surgiu da necessidade prática de sobreviver, principalmente no processo da produção material. O desenvolvimento posterior da produção material foi exigindo cada vez mais novos conhecimentos. Assim, nasceram as diferentes ciências e técnicas.
Por exemplo, da necessidade de medir a superfície das terras e o produto do trabalho do homem, nasceram as ciências matemáticas; da necessidade de construir casas, pontes, ferramentas, máquinas, etc., nasceram as ciências naturais e técnicas; da necessidade de garantir sua saúde e combater as doenças físicas e psíquicas nasceram as ciências biológicas, psicológicas e médicas; da necessidade de garantir sua vida social e torná-la mais suportável, à medida que ela ia se tornando mais complexa, nasceram as ciências sociais (ciências econômicas, jurídicas, políticas, sociais, etc.); da necessidade de compreender sua origem e seu destino nasceram as ciências antropológicas e filosóficas; e, finalmente, da necessidade de saber como se deve agir de modo mais adequado, nasceram as disciplinas axiológicas (morais, religiosas, etc.).
Portanto, é para utilizar os resultados do conhecimento em sua atividade prática e para satisfazer suas necessidades vitais (impulso de sobrevivência do indivíduo e da espécie) que o homem procura conhecer o mundo circundante e as leis que regem seu desenvolvimento, a fim de extrair disso um código de comportamento adequado e eficiente.
"Saber é poder" — dizia Bacon.
'Saber é prever" — dizia Comte.
"Saber é vencer e sobreviver" — podemos dizer hoje. Antigamente venciam os mais fortes fisicamente. Agora vencem os mais fortes intelectualmente, isto é, os que mais sabem, os que têm mais conhecimentos.
Assim, o conhecimento, por mais abstrato que seja, sempre tem uma finalidade prática. Eis por que a prática, a atividade material produtiva dos homens é, ao mesmo tempo, a fonte de nossos conhecimentos e o objetivo final dos nossos conhecimentos.
4 — CONCEITO ATUAL DE FILOSOFIA
Para compreender bem a essência da filosofia é necessário, antes de tudo, imbuir-se da ideia de que, como qualquer outra disciplina, a filosofia também é uma categoria histórica. Isto significa que ela não só tem uma história, como muda de problemática no decorrer dos tempos. Assim, no decorrer de sua história, mudou-se o conceito, o objeto e o objetivo da filosofia.
A filosofia atual não é mais aquela que pretendiam que fosse no tempo de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Hegel e outros, como um conjunto de conhecimentos abstratos e desinteressados sobre problemas metafísicos e transcendentais, divorciados da realidade e da vida social.
Atualmente, a filosofia é uma ciência que estuda as leis mais gerais do ser, do pensamento, do conhecimento e da ação. É uma concepção científica do mundo como um todo, da qual se pode deduzir certa forma de conduta. Fundamentalmente, a filosofia estuda a essência e valor de todas as coisas: do cosmos, da vida, do homem e da sociedade. É uma reflexão crítica sobre a origem, a essência e a razão do cosmos e do homem. Hoje, a filosofia é um instrumento de ação e transformação do mundo, com o objetivo de melhorar a existência humana, de tornar mais humana a vida social.
A filosofia só é válida se for uma filosofia de vida e para a vida. A filosofia divorciada da vida prática é estéril e inútil, assim como a vida é cega sem a filosofia. A filosofia é a luz que ilumina nossa vida, indicando a razão do universo, do homem e da sociedade. É por isso que desde tempos imemoriais os povos dizem que o saber é luz.
5 — OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA
A preocupação fundamental do homem em todos os tempos foi de caráter prático-ético, isto é, saber como agir, qual deve ser a sua conduta perante o mundo e perante os seus semelhantes, a fim de sobreviver e vencer na vida.
A prova disso que afirmamos está no fato inegável que as religiões, que são doutrinas essencialmente éticas, precederam, em todos os povos, as reflexões filosóficas sobre o cosmos. A prioridade do problema ético sobre o problema cosmológico e gnosiológico é evidenciada pelas investigações históricas sobre o caráter essencialmente religioso-ético do pensamento filosófico na antiga China, Índia, Egito e Mesopotâmia.
Na Grécia, o problema ético chega ao seu cume com Sócrates ao colocar seu lema predileto "conhece-te a ti mesmo” como preocupação fundamental das cogitações filosóficas. Sócrates exprimiu muito bem essa preocupação ética do homem ao dizer que o homem é aquela criatura que está constantemente à procura de si próprio, uma criatura que a cada momento deve examinar e investigar as condições de sua própria existência.
O pensamento filosófico nasceu no momento em que o homem teve noção clara de sua fraqueza como ser biológico e moralmente imperfeito, quando problematizou a si mesmo, como o mais agudo e dilacerante dos problemas.
A filosofia se impõe como tarefa a partir do momento em que o homem cotidiano cai em si mesmo e pergunta pelo sentido de sua própria existência ou, como dizia Epitecto, quando ele tem a consciência de sua própria fraqueza ou de sua impotência nas coisas necessárias. Ou, como diz E. Bréhier, a filosofia começou quando as afirmações da consciência espontânea sobre o homem e sobre o universo se tornaram problemáticas.
Assim, o objetivo último da filosofia é encontrar respostas a estas interrogações inquietantes do homem sobre si mesmo: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Qual é a nossa razão de ser sobre a terra? Será o homem realmente o senhor da sua vida ou é um simples joguete de forças cegas que agem no universo? Estaremos destinados a perecer completamente ou possuímos uma alma imortal? Qual o verdadeiro significado da nossa presença no mundo? Qual é o sentido último do universo e vida humana?
Para tirar, dessas diversas reflexões, lições práticas e regras de conduta, é, portanto, essencial ter resolvido o problema do porquê da vida. "A maior desgraça do homem não é a pobreza, nem a doença, nem a morte; é a infelicidade de ignorar para que nasce, sofre e morre” — diz E. Lamy.
É por não ter podido responder a estas questões que J.-P. Sartre julga a vida absurda. Com efeito, não se pode pôr coerência na nossa vida individual sem responder a essas perguntas. Como essas perguntas se aplicam ao conjunto da humanidade, muitos filósofos contemporâneos procuram "o sentido da história", isto é, o destino da humanidade.
Mais tarde os filósofos-moralistas compreenderam que para resolver corretamente o problema da conduta e do destino do homem era necessário conhecer mais profundamente o mundo, sua origem e sua finalidade.
Nasceram então as reflexões filosóficas de ordem ontológica (que alguns chamam de metafísica), isto é, sobre a relação entre o ser e o pensamento, que é o problema fundamental da filosofia. Foi no momento em que o homem formulou essa pergunta mais extensa e profunda sobre a questão do ser primordial de todas as coisas que a verdadeira filosofia nasceu.
Assim, foi na antiga Grécia do século VI a.C. (uns dois mil e quinhentos anos atrás) que, pela primeira vez na história da humanidade, se deram os primeiros passos na passagem do mito para o logos, isto é, da mentalidade mítica-teísta para o pensamento filosófico-científico. Esse pensamento filosófico-científico consiste em explicar os fenômenos por suas causas reais e naturais, através da razão e da reflexão científica.
Os primeiros filósofos gregos começaram a refletir sobre o problema fundamental da filosofia: qual é o princípio e a essência de todas as coisas? O que primordial: o ser ou o pensamento? Qual é a causa real e natural das coisas: do cosmos, da vida, do homem, da sociedade e do pensamento?
Os sábios ou filósofos de então fizeram as primeiras tentativas de explicação naturalista, determinista, ateísta, materialista e evolucionista da origem e evolução do mundo, da vida, do homem e da sociedade.
Esta passagem do problema prático (ético) para o problema teórico (ontológico) se reflete na definição que Aristóteles dá, então, da filosofia como "ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios".
Mas ao estudar as causas reais e naturais de todas as coisas, os filósofos compreenderam que, para resolver corretamente esse problema, era necessário elaborar uma teoria do conhecimento, a fim de estabelecer que valor têm os nossos conhecimentos sobre o mundo e o homem.
Assim, ao problema ético (teoria dos valores) segue-se o problema ontológico (teoria do ser), e a este o problema gnosiológico (teoria do conhecimento), que a partir de Kant (século XVIII) passou a constituir a base de toda a filosofia.
6 — DIVISÃO DA FILOSOFIA
Assim, na história da filosofia, encontramos sempre esses dois aspectos: teórico — o problema do ser e do conhecimento; e prático — o problema da ação. A filosofia teórica compreende a ontologia e a gnosiologia, que se limitam a estudar o objeto tal como ele é (juízos de realidade). A filosofia prática compreende a axiologia que indica como deve ser o ideal nos diferentes domínios da conduta humana (juízos de valor).
Como ciência que estuda as leis mais gerais do ser, do conhecimento e da ação, podemos distinguir na filosofia três partes fundamentais:
1) Ontologia ou teoria do ser: Estuda a origem, a essência e a causa primeira do cosmos, da vida e do pensamento; e a relação entre o ser e o pensamento.
Responde às perguntas: Qual é a realidade primordial: o ser ou o pensamento? Qual é a origem e a essência do cosmos e da vida humana? O que somos? De onde viemos?
Na filosofia clássica, esses problemas eram estudados pela metafísica geral.
2) Gnosiologia ou teoria do conhecimento: Estuda a origem, a essência e a validade do conhecimento.
Responde às perguntas: O que podemos conhecer? O que é o conhecimento? Existe a verdade? Como podemos conhecê-la? Qual é o critério da verdade? Qual é o valor dos nossos conhecimentos?
3) Axiologia ou teoria dos valores: Estuda a origem, a essência e a evolução dos valores existenciais e indica os princípios da ação.
Responde às perguntas: Qual é o valor das coisas? Como devemos agir? O que devemos fazer? Como devemos comportar-nos? O que podemos esperar? Para onde vamos? Qual é o sentido da vida? Qual é o destino da humanidade?
A axiologia compreende a filosofia do bem (ética), a filosofia do belo (estética), a filosofia do justo (direito, política), a filosofia do homem (antropologia filosófica), a filosofia do destino do homem e do universo (escatologia), a filosofia da fé (teologia), etc. Na filosofia clássica estes últimos problemas eram estudados pela metafísica especial.
As três partes da filosofia — ontologia, gnosiologia e axiologia — estão intimamente ligadas.
De um lado, a solução do problema do conhecimento depende da ontologia, isto é, da concepção que se tem do mundo e do homem.
Por outro lado, da solução do problema do conhecimento depende a possibilidade e o valor da ontologia: se a nossa razão é incapaz de conhecer a essência das coisas, qualquer ontologia torna-se impossível e nós não poderemos chegar a nenhuma certeza sobre a existência e a essência da matéria, do pensamento e de outros problemas ontológicos e metafísicos.
Em consequência, a axiologia ou teoria dos valores, que se baseia na ontologia, desmorona com a base que a sustenta.
Assim, a solução do problema do conhecimento é da mais alta importância para a formação de uma concepção do mundo e do homem.
Conclusão: Para resolver eficientemente os problemas ontológicos e axiológicos (existenciais ou metafísicos), cumpre antes de tudo estar armado com uma gnosiologia científica capaz de nos indicar o melhor meio para se obter um conhecimento verdadeiro das coisas, isto é, para formar uma concepção científica do cosmos, da vida, do homem, da sociedade e do pensamento.
Nesse sentido, a gnosiologia é o núcleo, a base de toda filosofia. É a ciência filosófica fundamental. Eis por que achamos que qualquer disciplina, seja filosófica ou não, deveria ser precedida do estudo dos problemas fundamentais do conhecimento.
7 — DIVISÃO DA GNOSIOLOGIA
A gnosiologia (do grego gnosis = conhecimento e logos = ciência) ou teoria do conhecimento é a ciência estuda os problemas fundamentais do conhecimento. A gnosiologia ou teoria do conhecimento pode ser dividida em três partes:
1) Gnosiologia propriamente dita: estuda a essência do conhecimento, a possibilidade de conhecer a realidade, as origens ou fontes do conhecimento, as formas ou espécies de que se reveste o conhecimento, bem como a validade do conhecimento em geral, isto é, o que é a verdade e qual o seu critério.
2) Epistemologia (do grego episteme = ciência): estuda a validade do conhecimento científico (das ciências particulares).
3) Metodologia — Estuda os meios ou métodos de investigação do pensamento correto e do pensamento verdadeiro. Divide-se em:
a) Lógica formal: estuda os princípios formais do pensamento. Estuda o pensamento correto, isto é, a coerência do pensamento consigo mesmo.
b) Lógica dialética: estuda as condições subjetivas-objetivas do conhecimento da realidade com o fim de alcançar a verdade objetiva. Estuda o pensamento verdadeiro, isto é, a correspondência entre o pensamento e o objeto (a realidade objetiva).
No presente livro estudaremos primordialmente a primeira parte, isto é, a gnosiologia propriamente dita. E só eventualmente tocaremos nas demais partes.
8 — CONCEITO DE CONHECIMENTO
Quando se fala em conhecimento, tem-se em vista o conhecimento da verdade, do pensamento verdadeiro, pois um conhecimento falso não é propriamente conhecimento, mas sim erro e ilusão. Mas como na realidade nem todos os nossos conhecimentos são verdadeiros, usamos esse termo em geral para o verdadeiro e o falso conhecimento.
Então, vejamos o que nós entendemos por conhecimento em geral, independente de ser verdadeiro ou falso. Todo conhecimento representa uma relação entre o sujeito Cognoscente (nossa mente, nossa consciência) e o objeto conhecido (os fatos, objetos e fenômenos da realidade exterior).
O conhecimento pode significar tanto o processo de conhecer, como o produto desse processo.
Como processo, podemos definir o conhecimento como sendo o reflexo e a reprodução do objeto na mente.
Como produto desse processo temos os conhecimentos sensíveis e racionais: os nossos conhecimentos de matemática, de física, biologia, psicologia, sociologia, filosofia, etc., que são estudados pelas respectivas disciplinas.
É evidente que no presente trabalho estudaremos o conhecimento como processo. Nos próximos capítulos abordaremos os seguintes problemas que constituem o objeto da gnosiologia propriamente dita:
1) Os graus do conhecimento
2) A essência do conhecimento
3) A possibilidade do conhecimento
4) As fontes do conhecimento
5) As espécies e formas do conhecimento
6) A verdade e seu critério
7) O conhecimento intuitivo ou criativo.
Como já dissemos, o conhecimento pode ser falso e verdadeiro, fictício e real, superficial e profundo, mais ou menos falso ou verdadeiro. Assim, entre o conhecimento falso e verdadeiro há toda uma gama, uma escala bem ampla.
De acordo com sua profundidade e sua aproximação da verdade, podemos distinguir, de um modo geral, três graus de conhecimento:
1) Vulgar
2) Científico
3) Filosófico.
1 — CONHECIMENTO VULGAR
É o conhecimento cotidiano, ametódico, isolado, casual, superficial, adquirido em nossa atividade diária. É o saber do homem comum que se limita às noções correntes e superficiais sobre as coisas e os fenômenos, sem se preocupar com as conexões causais que existem entre os fenômenos. É um conhecimento vago que só constata os fatos sem procurar explicá-los cientificamente pelas suas causas reais e naturais. De um modo geral, coincide com o conhecimento empírico-sensorial no sentido vulgar.
Por exemplo: muitas pessoas sabem, por experiência, que os corpos caem ou sobem quando abandonados no espaço; que as roupas molhadas secam mais depressa quando estendidas ao sol; que o leite ferve chegando a certo grau de temperatura, mas não sabem ou não procuram determinar exatamente suas causas reais.
A essa categoria de conhecimento pertencem muitos conhecimentos falsos, nossas superstições, crendices, preconceitos, as informações por "ouvir falar", etc.
Nem sempre porém é um conhecimento errado, pode ser até verdadeiro; porém, não temos a certeza de sua verdade.
Precisamos tomar cuidado com os conhecimentos vulgares e não fazê-los passar por verdadeiros até serem comprovados.
Numa sociedade de transição como a nossa, em que as coisas mudam tão depressa porque o progresso é rápido, para não ficarmos em desvantagem em relação aos outros, é necessário abandonar os conhecimentos vulgares e as ideias já caducas para adquirir o máximo possível de conhecimentos científicos, comprovados, verdadeiros.
Bacon dizia que “o homem mais perigoso é aquele que sabe pelo meio". De fato, o ignorante é humilde porque ele sabe que não sabe; o sábio é modesto porque ele tem consciência de que aquilo que ele sabe é apenas uma pequena parcela do que ele ainda não sabe. Agora, aquele que sabe pelo meio é pretensioso e pensa que sabe tudo. Devemos temer o homem que leu só um livro, pois ele vai julgar tudo por esse único livro o que é muita presunção.
2 — CONHECIMENTO CIENTÍFICO
Consiste no conhecimento causal e metódico dos fatos e dos fenômenos, colocando uns em relação com os outros, de modo que é possível descobrir-lhe a uniformidade e determinar as leis que o regem.
A palavra ciência vem do latim scientia e significa saber, conhecimento. "Saber uma coisa de modo absoluto é saber a causa que a produziu e que a causa não poderia ser outra" (Aristóteles). A ciência é o conhecimento pelas causas reais e naturais comprovadas. Ciência é um sistema de conhecimentos metódicos sobre a natureza, a sociedade e o pensamento, a verdade dos quais é verificada e precisada no decorrer da prática social. Seu objetivo consiste em estudar as causas reais dos fenômenos e descobrir as leis objetivas pelas quais eles se regem.
Só é científico o conhecimento que for provado, isto é, verificado e demonstrado.
3 — CONHECIMENTO FILOSÓFICO
A filosofia também é uma ciência que procura conhecer as causas reais dos fenômenos, não as causas próximas como nas ciências particulares, mas as causas profundas e remotas de todas as coisas. O conhecimento filosófico possui mais profundidade, universalidade e radicalidade do que o conhecimento científico. "A filosofia é a ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios" (Aristóteles).
A filosofia representa o complemento ou a integração das ciências particulares. Enquanto as ciências estudam as leis pelas quais se regem determinados fatos e fenômenos particulares, a filosofia unifica todo o conjunto das leis científicas em leis supremas. "A ciência é o saber parcialmente unificado; a filosofia é o conhecimento totalmente unificado" (Spencer).
Entre a ciência e a filosofia não existe diversidade de processo cognoscitivo, mas apenas diferenças de grau e de generalização. O conhecimento filosófico abrange e supera o conhecimento científico. É o conhecimento mais profundo e geral que existe.
Kant disse que as ciências estudam a realidade e a filosofia o faz também. Toda vez que uma ciência estuda determinado problema, a filosofia poderia considerar-se supérflua. Há, porém, um fato que a ciência não estuda, nem pode estudar, que é a própria ciência posta como objeto. Como disse Kant, "a filosofia apresenta-se, pois, como o exame crítico das condições de certeza das próprias ciências".
As ciências elaboram-se e desenvolvem-se a partir de certos pressupostos que os cientistas, enquanto tais, não procuram explicar. A mesma coisa se dá com o jurista. O juiz ou o advogado podem nos dizer se uma relação jurídica está ou não de acordo com a lei, isto é, sobre o que seja de direito (quid sit juris), mas não podem definir o que seja o direito (quid sit jus) e qual seja o critério universal mediante o qual se pode reconhecer em geral o justo e o injusto. (Cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, Ed. Saraiva, São Paulo, 1969, 5.a edição, p. 30.)
Como já dissemos, atualmente a filosofia é a ciência que estuda as leis mais gerais do ser (cosmos, vida, homem, sociedade), do pensamento, isto é, do conhecimento, e da ação. A filosofia é uma concepção geral do mundo como um todo, do qual se podem deduzir certas regras de conduta para vencermos na luta pela vida. Para atingir esse objetivo com eficiência e sucesso, é necessário que ela seja científica, isto é, que a filosofia esteja fundamentada em conhecimentos cientificamente comprovados.
A filosofia tem, portanto, dupla finalidade:
O problema teórico do conhecimento — juízos de realidade.
O problema prático da ação — juízos de valor.
A religião também é, como a filosofia, uma concepção geral do mundo, da qual se deduz uma certa forma de conduta. Só que a filosofia é uma concepção científica e a religião não o é. A religião existiu em todos os povos. Para as massas populares, a religião desempenha o papel de filosofia. Mas, enquanto a religião é baseada em dogmas, que são aceitos pela fé e que não podem ser provados e nem admitem crítica, a filosofia é baseada em princípios estabelecidos pelas ciências, isto é, comprovados, e é uma reflexão crítica por excelência. A filosofia científica a todo momento põe em dúvida a verdade dos princípios. Ela não só critica os princípios das ciências particulares, mas também os da própria filosofia.
Resumindo: O conhecimento vulgar não procura as causas reais dos fenômenos e, por ignorar estas, procura às vezes explicar os fenômenos por causas falsas ou fictícias que, por isso mesmo, não podem ser provadas.
O conhecimento científico procura as causas reais e naturais próximas, as leis que regem determinados fenômenos particulares, e demonstra a verdade dos mesmos por meio de diferentes tipos de provas.
Mas ele não comporta valores, enquanto que o conhecimento filosófico vai muito além dos fenômenos, procura conhecer as causas remotas e profundas, ou seja, as causas primeiras e últimas, a essência profunda das coisas, sua origem, sua finalidade, seu valor, etc. "Lá onde as outras ciências param, onde sem mais indagar aceitam os pressupostos, aí entra o filósofo e começa a investigar" (Bochenski).
Por outro lado, as ciências estudam aspectos particulares da realidade. Por exemplo: o homem pode ser estudado do ponto de vista da química (suas propriedades químicas), da biologia, da psicologia, da antropologia, etc. Já a filosofia estuda o homem como um todo e procura conhecer sua essência íntima, o que somos, de onde viemos e para onde vamos.
O verdadeiro filósofo deve conhecer as leis fundamentais de todas as ciências. O conhecimento filosófico é universal, radical e crítico por excelência. Cada um de nós pode e deve ter espírito científico-filosófico.
4 — A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO HUMANO
O conhecimento humano pode ser também estudado do ponto de vista de sua evolução. Uma das teorias mais interessantes a esse respeito é a "lei dos três estados", do filósofo francês Comte.
Augusto Comte (1798-1857), fundador da filosofia positivista e da sociologia como ciência, em sua Dinâmica social elaborou uma teoria sobre a evolução do pensamento do homem e da humanidade no decorrer da história. Esse movimento dinâmico ele o expressou na lei dos três estados.
Segundo essa lei, o pensamento humano, na sua evolução, passa pelos três estados ou estágios teóricos seguintes: teológico, metafísico e positivo. Os estados ou estágios se distinguem entre si pela maneira de conceber as causas dos fenômenos, sejam fenômenos naturais ou sociais.
Vamos resumir, com nossas palavras, como Comte concebia esses estados ou estágios, ilustrando com exemplos nossos.
1) Estado teológico ou fictício
É o estágio mais atrasado. O espírito humano, devido a sua ignorância, ainda não conhece as causas reais e naturais dos fenômenos e explica os fenômenos pela ação direta e contínua de forças fictícias e agentes sobrenaturais: mágicas, míticas, divinas (fetiches, duendes, espíritos, deuses, Deus, etc.), cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.
O estado ou estágio teológico compreende três fases:
1.º) Fetichismo: É a fase mais primitiva, que não difere do estado mental a que atingem os animais superiores. Consiste em atribuir aos corpos exteriores uma vida essencialmente análoga à nossa. Nessa fase os homens atribuem a causa dos fenômenos a forças mágicas imanentes que existiriam dentro dos objetos (coisas, animais ou pessoas). Certos povos adoravam o Sol, outros a vaca, outros os totens (totemismo) e outros objetos por acreditarem que os mesmos possuíam o poder de fazer o bem ou o mal, e, por isso mesmo, convinha ao homem estar em boas relações com os mesmos.
2.º) Politeísmo: Nessa fase a força mágica é retirada dos objetos materiais para ser misteriosamente transportada a diversos seres fictícios, habitualmente invisíveis, cuja intervenção ativa e contínua se torna daí por diante a origem direta de todos os fenômenos naturais e humanos. É quando os homens atribuem a causa de um grupo de fenômenos à vontade de um deus correspondente que dirigiria esse setor.
Eis alguns exemplos tirados da religião politeísta da antiga Grécia e Roma: Eros — deus do amor, Vênus — deusa da beleza, Diana — deusa da caça, Éolo — deus do vento, etc. Eles pensavam que o mar está bravo porque Netuno está zangado; a terra treme e solta fogo porque Vulcano está trabalhando; a colheita foi boa porque Ceres assim o quis, etc.
3.º) Monoteísmo: Quando os homens atribuem a causa de todos os fenômenos à vontade arbitrária de um só deus.
Por exemplo, na religião monoteísta judaica-cristã-maometana, Deus é o criador de tudo que existe e responsável por tudo que acontece no mundo: morre uma criança, há genocídio, alguém nasce aleijado, há um terremoto e morrem milhares de pessoas — tudo porque assim foi a vontade de Deus.
2) Estado metafísico ou abstrato
É o estágio transitório, que, na realidade, é uma simples modificação geral do estado anterior, quando os agentes sobrenaturais são substituídos por forças ou virtudes abstratas, verdadeiras entidades, abstrações personificadas, inerentes aos diversos seres do mundo e concebidas como capazes de engendrar por si mesmas todos os fenômenos.
Eis alguns exemplos de explicação metafísica ou abstrata: Por que os corpos caem? porque eles têm horror ao vácuo (Aristóteles). Por que chove? É porque a água quer voltar à sua origem. Por que o ópio faz dormir? É porque tem virtude dormitiva.
No século XVIII, o químico Stall, por ignorar a causa real da combustão dos corpos, imaginou um fluido que ele chamou de flogístico, que seria o responsável pela combustão. Por exemplo, o algodão pega fogo porque tem qualidade flogística.
3) Estado positivo ou científico
É o estágio mais evoluído, quando os homens explicam os fenômenos por suas causas naturais e reais. Nesse estado os homens abandonam a explicação teológica e metafísica da realidade e tentam descobrir as leis reais que regem os fenômenos, isto é, as relações constantes de sucessão e similitude, que existem entre os fenômenos, mediante a observação, a experimentação e comprovação na realidade.
Eis alguns exemplos de explicação científica: A criança nasce porque o óvulo feminino foi fertilizado pelo espermatozoide masculino. Existem guerras porque há choques de interesses econômicos. Chove, não porque assim quer o maná, ou Éolo, ou Deus, ou a água quer voltar a suas origens, mas porque nuvens carregadas de vapor de água com temperaturas e cargas elétricas diferentes se chocam entre si. O vapor de água se liquefaz e cai em forma de chuva. O trovão e o raio não são causados por nenhuma força mágica, sobrenatural ou abstrata, nem pela ira dos deuses, mas pelo choque de nuvens carregadas com cargas diferentes de eletricidade. Uma criança nasce cega ou aleijada não por feitiço ou por vontade divina, mas por causa natural e real, que é necessário descobrir (doenças venéreas dos pais, drogas nocivas ingeridas pela mãe durante a gravidez, etc.).
A "lei dos três estados" de Comte destinava-se a descrever a evolução intelectual da humanidade ou a marcha progressiva do pensamento da humanidade. Como escreve Comte, essa marcha é regida por uma lei fundamental, aplicável a todas as nossas concepções principais, a todos os ramos de nosso conhecimento e de nossa organização".
Assim, não só o conhecimento, mas, também, toda a história da sociedade humana passaria por três "estados" teóricos diferentes e sucessivos: o estado teológico ou fictício, que se identifica com a Antiguidade; o estado metafísico ou abstrato, que se identifica com a Idade Média; e o estado positivo ou científico, que começa na Idade Moderna.
Segundo Comte, não só a humanidade mas também o indivíduo, na sua evolução mental, passa pelos três estados: na infância é teológico, na adolescência é metafísico e na idade adulta é positivo (ou científico). "Ao contemplar sua própria história, não se lembrará cada um de nós de que, quanto às noções mais importantes, foi sucessivamente teólogo na infância, metafísico na juventude e positivo na virilidade?" (A. Comte.)
Cumpre anotar que, segundo Comte, nem todos os indivíduos adultos chegam ao estado positivo ou científico. Em muitos deles restam ainda, em menor ou maior grau, vestígios ou resquícios de estado teológico e metafísico, resquícios esses que são verdadeiros empecilhos para a formação de uma mentalidade ou de um espírito positivo, científico — necessário para a compreensão verdadeira da realidade.
Observações críticas: A lei dos três estados de Comte foi muito criticada e completamente esquecida pelos filósofos e sociólogos, mas nem sempre essa crítica é procedente e esse esquecimento justificável. Como diz Louis Weber, "ela ainda é a mais precisa e a mais compreensiva que se tenha enunciado".
É verdade que nem todos os indivíduos e nem todas as sociedades seguem essa evolução linear concebida por Comte. Mas uma coisa é certa: o homem comum, iletrado ou ignorante, quando não conhece a causa natural e real dos fenômenos, tem a tendência de atribuir a causa a forças mágicas, sobrenaturais ou abstratas.
Por exemplo, ainda hoje há pessoas que acreditam no poder mágico dos fetiches (amuletos, talismãs, figas, ferradura, pata de coelho, etc.), ou no poder sobrenatural dos diferentes santos ou deuses: São Cristóvão — protetor dos motoristas; Santo Antônio — protetor dos namorados; Santa Cecília — protetora das virgens; São Judas Tadeu — protetor das causas impossíveis, etc., etc. Outros procuram atribuir a causa de seus sucessos ou fracassos amorosos e financeiros à influência dos astros, dos signos zodiacais, etc., como fazem os adeptos da astrologia.
Todos esses casos são exemplos de resquícios ou vestígios do estado teológico (fetichismo e politeísmo) que sobrevivem até hoje na mente do homem comum, inculto e ignorante. Sobrevivem também na mente de muitos conhecidos pensadores quando eles tentam explicar certos fenômenos cujas causas reais ainda ignoram.
Já a pessoa culta, que alcançou o estágio positivo e adquiriu o espírito científico, quando não conhece a causa real e natural dos fenômenos, rejeita categoricamente qualquer explicação teológica ou metafísica. Se ele quer conhecer a causa de um fenômeno, ele tenta formular uma hipótese em bases naturais, e só aceita como verdadeira esta hipótese, depois que ela for confirmada pela experiência ou pela prática social.
Não obstante as falhas, a filosofia positivista de Comte desempenhou um importante papel progressista na luta contra as doutrinas teológicas e metafísicas dominantes no século XIX. Ela teve muita repercussão no mundo ocidental da época e influenciou muitos pensadores modernos.
No Brasil, a filosofia positivista encontrou fervorosos adeptos entre nossa elite cultural, sobretudo entre os nossos militares (que se caracterizam pela sua tradição pacífica, progressista e cultural coisa rara entre os militares de outros países). Essa influência foi tão grande que se materializou na nossa bandeira nacional. A divisa "Ordem e progresso" é de inspiração positivista. Isto significa, segundo a filosofia de Comte, que o progresso só é possível dentro da ordem.
Mas a maior contribuição do positivismo de Comte para o nosso país foi a difusão do espírito científico e da sociologia como ciência entre nossa intelectualidade e, consequentemente, nas nossas escolas secundárias e superiores. Essa é a razão por que o Brasil foi um dos primeiros países a criar cátedras de sociologia, graças ao que hoje temos grandes centros de pesquisas sociológicas e excelentes sociólogos formados no espírito positivo, científico.
Nós já falamos brevemente que o conhecimento representa uma relação entre um sujeito e um objeto e que, como processo, o conhecimento é o reflexo e a reprodução do objeto na nossa mente.
Vamos examinar com mais detalhes esse assunto, porque ele é o problema fundamental, tanto da gnosiologia como da filosofia, pois trata-se da essência das coisas e do conhecimento.
O ponto de partida de qualquer teoria do ser ou do conhecimento é a resposta que dá ao problema fundamental da filosofia.
1 — O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA
Este problema é um tanto abstrato e complexo, mas, dada a sua grande importância, é necessário falar dele com mais detalhe. Ao expor a problemática, procurarei ser bastante claro e compreensível, sem prejuízo da profundidade.
A questão fundamental da filosofia — que é objeto da ontologia — tem dois aspectos que denominaremos de ontológico e gnosiológico:
O aspecto ontológico é a relação entre o ser e o pensamento, a matéria e a consciência, no sentido de estabelecer o elemento primordial do mundo — assunto que examinaremos neste capítulo.
O aspecto gnosiológico da questão fundamental trata da cognoscibilidade do mundo exterior, isto é, se a nossa mente, o nosso pensamento, é capaz de conhecer e refletir de maneira adequada o mundo que nos cerca. Esse assunto será examinado no capítulo seguinte.
A RELAÇÃO ENTRE O SER E O PENSAMENTO
Observando atentamente o mundo que nos rodeia, podemos constatar que tudo que existe no mundo — objetos, fatos, fenômenos, etc. — pode ser englobado em duas categorias muito gerais e abstratas: o ser e o pensamento.
O ser é um conceito filosófico para denominar todas as coisas materiais: a matéria, a natureza, o mundo exterior, a realidade e todos os objetos, fatos e fenômenos materiais que existem fora de nosso pensamento.
O conceito de ser engloba tanto a existência como a essência; é a sua unidade.
Ao ser, de natureza material, se opõe o pensamento, de natureza imaterial, ideal, espiritual.
O pensamento é uma categoria filosófica para designar a consciência do sujeito, a mente, o espírito, a alma e todos os fenômenos ideais ou espirituais que existem dentro do nosso pensamento, de nossa consciência, dentro do sujeito, isto é, os conhecimentos sensíveis e racionais, tais como sensações, percepções, representações, sentimentos, emoções, ideias, conceitos, pensamentos, etc.
O problema fundamental da filosofia consiste em saber que relação há entre essas duas categorias filosóficas, entre o ser e o pensamento, entre o material e o ideal (ou espiritual), entre a matéria e a consciência, entre o objeto e o sujeito.
A relação entre a matéria e a consciência é a questão fundamental da filosofia pela simples razão de que é tão universal e avassaladora que abrange todos os problemas filosóficos, determinando não só a solução de questões específicas, como, também, a concepção do mundo como um todo. É impossível, portanto, criar um sistema filosófico e esboçar um quadro do mundo, sem antes resolver o problema fundamental da filosofia.
Por isso, nenhuma doutrina filosófica pode prescindir desse problema. Mais ainda, na história da cultura não houve e não há nenhuma disciplina que, de um ou de outro modo, consciente ou inconscientemente, não toque nesse problema e não pressuponha implicitamente uma solução do mesmo.
Uma solução científica da questão fundamental da filosofia é de grande importância não só para o desenvolvimento da filosofia, em geral, como de todas as ciências em particular, e, especialmente, de uma teoria científica do conhecimento.
Embora a gnosiologia seja uma parte relativamente autônoma da filosofia, qualquer teoria do conhecimento parte de determinada solução do problema fundamental da filosofia. Mesmo aquelas doutrinas gnosiológicas que negam a existência de qualquer ontologia e reduzem toda a filosofia à gnosiologia partem implicitamente de determinadas opiniões ontológicas sobre a essência do ser e do pensamento.
O problema fundamental da filosofia — estudado no plano ontológico como problema da relação entre o ser e o pensamento — é também estudado no plano gnosiológico, como o problema da relação entre o objeto e o sujeito do conhecimento.
No plano ontológico (que é o objeto da ontologia), estuda-se a essência das coisas e indaga-se o que é primário: ser ou o pensamento? A matéria ou a ideia? Isto é, é o pensamento que determina o ser, ou, ao contrário, é o ser que determina o pensamento?
No plano gnosiológico, estuda-se a essência do conhecimento e da relação cognoscitiva do sujeito com o objeto, e indaga-se qual o fator primário e determinante no conhecimento humano: o objeto ou o sujeito? A realidade ou a consciência? É a consciência um reflexo e reprodução do objeto, ou, ao contrário, o objeto é um reflexo e uma reprodução de nossa consciência? É a consciência determinada pelos objetos e suas propriedades, ou estas são produzidas pela nossa consciência?
Conforme a resposta que dão a essa pergunta, as doutrinas filosóficas dividem-se em dois grandes campos: idealismo e materialismo.
Se a resposta for que o pensamento, a ideia, a consciência, o sujeito é primário e determina o ser, a matéria, a realidade, temos o idealismo filosófico com suas inúmeras variantes. Se, ao contrário, a resposta for que o ser, a matéria, a realidade, o objeto, é primário e determina o pensamento, a ideia, a consciência, o sujeito, temos o materialismo filosófico com suas diferentes variantes.
Como se vê, conforme a resposta que se dê ao problema fundamental da filosofia, temos apenas duas soluções diametralmente opostas, tanto no plano ontológico como no plano gnosiológico: idealismo ou materialismo.
Vejamos, brevemente, cada uma dessas soluções.
Antes, porém, de abordar as diferentes doutrinas, queremos fazer uma advertência importante para não confundir o sentido filosófico dos termos idealismo e materialismo com o seu sentido moral e popular, totalmente diferente e até oposto.
O idealismo filosófico é uma doutrina que afirma que a ideia ou a consciência é anterior à matéria e que esta é uma criação ou produto da ideia.
O idealismo no sentido moral e popular significa a pessoa que tem um ideal nobre na vida, ao qual se dedica de corpo e alma, desprezando os bens materiais.
O materialismo filosófico é a doutrina que afirma que a matéria, o mundo material, é anterior à consciência, à ideia, e que esta é um reflexo ou produto da matéria.
O materialismo no sentido moral e popular significa a pessoa que só se interessa pelos bens materiais, os prazeres sensuais, a ânsia do dinheiro, desprezando os bens ideais e espirituais.
Como se vê, o sentido moral e popular nada tem a ver com o sentido filosófico. É evidente que neste livro estes termos são usados somente no sentido etimológico e filosófico.
2 — IDEALISMO FILOSÓFICO
Existem inúmeras variantes de idealismo filosófico. Vamos agrupá-las em duas grandes correntes: 1) idealismo objetivo e 2) idealismo subjetivo.
1) Idealismo objetivo
É a doutrina que afirma que o primordial é a ideia absoluta, o espírito universal, a vontade universal, que existiria objetiva e eternamente, antes e independente da natureza e dos homens, e que teria criado o mundo, o homem e todas as coisas materiais ou que estas seriam apenas cópias, reflexos ou produtos daquela.
O primeiro grande representante dessa corrente foi Platão.
Platão dividia o mundo em dois: o mundo das "ideias" ou "substâncias" Ou “essências eternas” e o mundo das “coisas materiais mutáveis".
As "ideias eternas” seriam "o ser verdadeiro", “o ser real", algo primário. E as coisas materiais mutáveis que nos rodeiam não seriam nada mais que "sombras das ideias eternas", dos "protótipos ideais” ou dos "arquétipos ideais", que existiriam real e objetivamente antes das coisas, num "mundo de ideias" que não se sabe onde fica.
Platão expressou sua doutrina recorrendo ao mito da caverna com a seguinte comparação: o cativo que passa toda a sua vida acorrentado na caverna, de costas para a saída de onde entra a luz, não tem a possibilidade de ver o que se passa lá fora, onde brilha o sol e se movem as coisas "verdadeiras" e "reais". Ele só vê suas sombras projetadas na parede da caverna.
O mesmo ocorre aos homens que vivem no mundo. Igual ao cativo, só conhecem as sombras das coisas "verdadeiras", que estão no "mundo das ideias".
Assim, para Platão, as coisas materiais não eram mais que a sombra, a cópia, o reflexo, de um mundo ideal, o mundo das ideias, em que reinava o pensamento puro, que não tinha necessidade do mundo material para existir.
Com sua teoria, Platão assentou as bases de todas as doutrinas idealistas, tanto objetiva como subjetiva, bem como do ceticismo e agnosticismo, que apareceriam mais tarde na história da filosofia.
A doutrina platônica chegou à sua forma mais abstrata e inverossímil no idealismo absoluto de Hegel. Segundo esse filósofo alemão do século XIX, primeiro e antes de tudo existia a ideia absoluta, a razão universal, a verdade abstrata, existente algures, desde a eternidade, que negando-se a si mesma torna-se natureza, matéria, existência exterior, e, finalmente, voltando-se a si mesma, torna-se espírito absoluto, isto é, pensamento, consciência, que a si própria se reconhece (autoconhecimento).
Para Hegel, a ideia absoluta é o demiurgo (criador) do mundo real, e este último nada mais é que manifestação externa da ideia.
Assim, todos os fatos e fenômenos da natureza e da sociedade seriam formas de existência, o invólucro exterior, o aspecto visível, a encarnação da ideia absoluta e universal, existente por si mesma, antes da existência do mundo.
2) Idealismo subjetivo
Enquanto o idealismo objetivo parte da pressuposição da existência de uma ideia absoluta, de um pensamento ou consciência objetiva, o idealismo subjetivo parte do eu (ego) absoluto, da consciência do sujeito individual, afirmando que primordial é a consciência subjetiva do indivíduo isolado.
No fundo, não há uma diferença essencial entre as duas formas de idealismo, porque para os representantes tanto de uma como de outra forma de idealismo, o fundamento, a base primordial de tudo que existe é o pensamento ou a consciência absoluta ou individual, que cria ou produz as coisas materiais.
Fichte, por exemplo, sustentava que o mundo material externo é criado pelo sujeito absoluto, o eu, que possui capacidade criadora, ativa. A única realidade é o eu, que, pelo choque com as coisas, cria o não-eu, isto é, os objetos materiais.
Segundo a doutrina do idealismo subjetivo toda a realidade está encerrada na consciência do sujeito. Os objetos, as coisas não são nada mais do que conteúdos da consciência. Todo o seu ser consiste em serem apercebidos por nós, em serem conteúdos de nossa consciência. A nossa consciência, com os seus vários conteúdos, é a única coisa real.
Esta forma de idealismo também é denominada consciencialismo, pois todo objeto material, toda realidade exterior, não é senão uma criação ou produto de nossa consciência.
O representante clássico do idealismo subjetivo foi o bispo inglês Berkeley, do século XVIII (1684-1753), cujo ponto de partida afirmava: "Esse est percipi": = "Ser é ser percebido", isto é, o ser ou a existência das coisas consiste em serem apercebidas. A existência absoluta das coisas sem a consciência não tem sentido. Não conhecemos as coisas, mas as imagens das coisas. Tomemos, dizia ele, por exemplo a maçã. O que nós podemos dizer dela?
Suponhamos uma maçã com as seguintes qualidades: é cor-de-rosa, tem um sabor agridoce, tem um cheiro agradável, é lisa e fria, tem forma redonda, etc. Ora, dizia ele, todas essas qualidades enumeradas da maçã nada mais são que um complexo de minhas sensações visuais, táteis, gustativas, olfativas, etc., fornecidas pelos meus sentidos de visão, tato, temperatura, paladar, olfato, etc.
De qualquer modo que a consideremos, nós encontramos nela somente nossas próprias sensações. E o que se refere à maçã, igualmente se refere a todos os objetos e corpos materiais.
Berkeley escreveu que a matéria não é aquilo que nós acreditamos, ao pensar que ela existe fora de nosso espírito. Pensamos que as coisas existem, porque as vemos, porque as tocamos; nós acreditamos na sua existência, porque elas nos dão sensações. Mas as sensações não passam de ideias que temos em nosso espírito. Ora, as ideias não podem existir fora do nosso espírito.
Conclusão: a matéria é a ideia que dela fazemos; a matéria é uma ideia.
A doutrina de Berkeley pode ser chamada também imaterialismo, pois para ele a matéria não existe, ela é uma ilusão; existem somente ideias de um mundo material, colocadas por Deus em nosso espírito.
Com sua doutrina Berkeley esperava destruir o materialismo e o ateísmo para justificar a teologia. Ele escreveu que a matéria, uma vez banida da natureza, carregará consigo todas as construções céticas e ímpias.
Se seus princípios forem aceitos e considerados verdadeiros, ter-se-á, como consequência, que o ateísmo e o ceticismo serão de um só golpe completamente abatidos... escreveu Berkeley no prefácio de seu livro Três diálogos entre Hilas e Filonous.
Eis onde está a "chave" para a compreensão da doutrina do venerável bispo inglês: Berkeley só aplicava o seu princípio às coisas materiais, mas reconhecia a existência (independente de nossa consciência) da alma e de Deus, a quem considerava a causa do aparecimento das percepções sensíveis em nós. Assim o idealismo de Berkeley tinha uma finalidade e justificação teológica.
Depois de Berkeley, o idealismo subjetivo tentou "aperfeiçoar-se" em muitos detalhes, tentou encontrar um vocabulário novo, cada vez mais obscuro, a fim de se rejuvenescer e fundamentar as suas premissas. Entretanto, as mais modernas variantes de idealismo subjetivo não produziram, contra os materialistas, nenhum — mas, literalmente nenhum — argumento que não possa ser encontrado na doutrina do bispo-filósofo.
Entre as novas correntes do idealismo subjetivo está o empirio-criticismo de Mach e Avenarius, cuja tese diz que não há nada senão complexo de sensações, e a filosofia da imanência de Schuppe e de Schubert-Soldern, segundo a qual todo ser é imanente à nossa consciência. Schuppe diz que "um ser dotado da propriedade de não ser (ou de ainda não ser) conteúdo da consciência é uma ideia inconcebível".
Trata-se, como se vê, de "demonstrar" que não existe nada fora de nossa consciência, de nossas representações, de nossas ideias. Não há realidade "exterior"; tudo se reduz, em última análise, às nossas próprias representações mentais. E, se suprimirmos a consciência, ou, como se diz, o "eu", toda a realidade desaparecerá. Desta maneira, nem o ser, nem a natureza, nem a matéria, nem as outras pessoas ou consciências podem existir fora e independentemente da minha consciência. Essa proposição inicial de Berkeley e dos machistas (a filosofia de Mach e seus adeptos) leva inevitavelmente à negação de tudo que existe, à negação da existência de outras pessoas, além da pessoa que sente.
Assim, o idealismo subjetivo leva inevitavelmente à negação absurda de tudo que existe fora das sensações humanas. Tal visão do mundo chama-se solipsismo, segundo o qual só existe a consciência do sujeito individual.
Criticando o solipsismo de Berkeley, Diderot escreveu: "Houve um momento de delírio em que o clavicórdio sensível pensou ser ele o único clavicórdio existente no mundo e que toda a harmonia do universo estava nele".
Embora nas palavras os idealistas subjetivos tenham abjurado frequentemente o solipsismo, na realidade eles não podem se livrar dele, mesmo com a ajuda dos mais absurdos argumentos lógicos.
De fato, se ao conteúdo de nossas sensações não corresponde nenhuma realidade objetiva, existente fora e independente de nossas sensações subjetivas, isto significa que nada existe além de nossas sensações, além da consciência do sujeito cognoscente.
3) Crítica do idealismo filosófico
Uma pessoa que não está familiarizada com os problemas filosóficos pode se perguntar: será possível que na história da filosofia houve pessoas que afirmaram seriamente que o pensamento, a ideia, a consciência existiu antes da natureza, ou que todas as coisas e fenômenos existem somente nas nossas sensações, representações e ideias? Ou que as propriedades desses objetos são criações ou produtos de nosso entendimento? Sim, houve! E não só houve no passado, mas atualmente há muitos que pensam assim.
Pergunta-se, como podem pessoas adultas em sã consciência chegar a concepção filosófica tão absurda como sejam as afirmações dos idealistas de todos os matizes? Como conseguiu florescer o idealismo filosófico?
O idealismo filosófico evidentemente não é uma visão objetiva, científica do mundo, mas não se deve encará-lo como um simples disparate. Tal atitude seria ingênua e superficial.
Sendo uma concepção anticientífica e deformada da realidade, o idealismo filosófico tem, no entanto, raízes profundas, tanto na história do conhecimento humano, como na história da sociedade classista (dividida em classes sociais), e desempenha um determinado papel ideológico.
As primeiras constituem as raízes gnosiológicas e as últimas são as raízes ideológicas, sociais ou políticas.
Vejamos, primeiro, em que consistem essas raízes gnosiológicas, teórico-cognoscitivas do idealismo, para depois examinarmos suas raízes sociais, seus objetivos ideológicos.
a) As raízes gnosiológicas do idealismo
Foi Lênin quem melhor desvendou as raízes gnosiológicas e sociais do idealismo. Dada a importância do assunto, vamos examinar mais detalhadamente as ideias de Lênin a respeito.
Lênin sublinhou que o idealismo filosófico não é sem fundamento, sem base, não é infundado, que ele tem raízes gnosiológicas que se encontravam em algumas particularidades do conhecimento humano: "O desdobramento (bifurcação, duplicação) do conhecimento do homem e a possibilidade do idealismo (= religião) já são dados na primeira elementar abstração 'casa' em geral e casas singulares". (Lênin, Cadernos filosóficos, Moscou, 1949, p. 308.)
O homem não pode deixar de operar com conceitos gerais tais como, por exemplo, "casa", "planta", "animal", etc. Seu pensamento tem a capacidade de generalizar, criar conceitos gerais ou abstrações, que refletem os objetos, os fenômenos naturais e suas relações, entre si. Baseando-se neles, a ciência descobre as leis do desenvolvimento do mundo exterior. Mas esses conceitos não são elaborados de uma vez, e sim paulatinamente, no processo da prática milenar da humanidade.
E eis que a origem empírica dos conceitos esquecida e alguns pensadores idealistas começam a absolutizar os conceitos abstratos e a considerá-los como produtos do pensamento racional ou divino. Por exemplo, falando das maçãs, peras, laranjas, bananas, que existem realmente, e sua noção geral, "a fruta", o idealismo objetivo coloca esse conceito, que nada mais é que uma abstração da realidade, na própria base da existência dessas maçãs, peras, laranjas e bananas.
É o que em filosofia se chama reificação ou coisificação dos conceitos, isto é, considerar os conceitos gerais como existentes na realidade, quando na verdade eles só existem na consciência ou no pensamento, como resultado da abstração e generalização de coisas concretas, particulares. Da mesma forma, o idealismo subjetivo, sob o pretexto de que é impossível conhecer os objetos sem as sensações, faz desta última a única realidade e nega a existência do mundo exterior.
Na sociedade dividida em classes, esse esquecimento foi favorecido pela separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, o isolamento, o afastamento, a ruptura dos ideólogos do processo imediato da produção material; em uma palavra, a perda de contato com a realidade, o divórcio entre a teoria e a prática.
O conhecimento humano é um processo especial de reflexo do mundo exterior. Mas, como diz Lênin, não é um reflexo simples, morto, passivo, como no espelho, e sim um processo muito complexo, em forma de ziguezague, que contém em si a possibilidade de voo da fantasia a partir da realidade imediata. Mais ainda, o homem pode, sem o sentir, transformar os conceitos abstratos em fantasia.
Como mostra Lênin, numa simples proposição como "João é homem", já se encontra o singular (João) ligado ao geral (homem), pois o geral existe somente no singular. O singular e o geral existem numa unidade dialética inseparável. A separação do geral do singular leva ao voo do pensamento a partir da vida real, à suposição de que além de João, José, Pedro e outros homens singulares, realmente existentes, existe ainda o "homem" abstrato em geral. Se se toma a abstração o "homem" em geral como uma realidade objetiva, existente independente dos homens singulares que realmente existem, isso já é idealismo, pois se toma como realidade objetiva o pensamento, o conceito "homem" em geral. (V. o trabalho de Lênin, "A propósito da dialética", in Cadernos filosóficos, edição russa, Moscou, 1947, p. 329.)
O idealismo filosófico é disparate só do ponto de vista de um materialismo grosseiro, simplista e metafísico. Ao contrário, do ponto de vista do materialismo dialético, o idealismo filosófico é um desenvolvimento unilateral, exagerado — ampliação, inchação — de um dos pequenos traços, lados, facetas do conhecimento, num absoluto diviniza- do, desligado da matéria, da natureza.
O idealismo é misticismo clerical. Isso é verdade, mas o idealismo filosófico é (antes e sobretudo) um caminho que conduz ao misticismo clerical através de uma das nuanças do infinitamente complexo conhecimento (dialético) do homem.
O conhecimento do homem não é (não segue) uma linha reta, mas uma linha curva, que se aproxima indefinidamente de uma série de círculos, de uma espiral. Um fragmento, um pedaço, um segmento desta curva pode ser transformado (unilateralmente transformado) em linha reta, independente, integral, que (se as árvores impedem de ver a floresta) leva então ao pântano, ao misticismo clerical (onde a fixa o interesse de classe das classes dominantes). O caráter retilíneo e unilateral, a petrificação e ossificação, o subjetivismo e a cegueira subjetiva eis as raízes gnosiológicas do idealismo. Ora, o misticismo clerical (= idealismo filosófico) tem, como se vê, raízes gnosiológicas; ele não é infundado, ele é uma flor estéril, sem dúvida, mas que cresce sobre a árvore viva do verdadeiro conhecimento humano, vivaz, fecundo, vigoroso, todo-poderoso, objetivo e absoluto. (Lênin, "A propósito da dialética", in Cadernos filosóficos, edição russa, Moscou, 1947, p. 330.)
Estas são as raízes gnosiológicas do idealismo filosófico em geral. Mas cada variedade do idealismo, além das acima mostradas raízes comuns a todas as variedades do idealismo, tem suas raízes gnosiológicas peculiares. Assim, por exemplo, o idealismo objetivo de Platão vê as coisas materiais como sombras, cópias, reflexos das "ideias eternas". Hegel, com o seu idealismo absoluto, exagera o papel das ideias abstratas universais, a tal grau que a ideia se transforma no demiurgo (criador) da realidade material, como fundamento de tudo que existe.
Já o idealismo subjetivo exagera excessivamente o papel do momento sensível do conhecimento humano. Ele transforma a consciência no criador do mundo das coisas materiais, vendo as coisas como complexo de sensações. Por isso ele considera a sensação como a única realidade.
O idealismo matemático se manifesta quando certos matemáticos absolutizam o número e as fórmulas matemáticas e esquecem que elas expressam determinados processos e regularidades reais do mundo material.
Já o idealismo físico se manifesta quando certos físicos acham que "a matéria desapareceu", porque certas propriedades da matéria, que antes nos pareciam absolutas, imutáveis, primordiais (tais como a impenetrabilidade, a inércia, a massa, etc.), tornaram-se relativas e inerentes a certos estados da matéria.
Vejamos um exemplo concreto, corriqueiro, para ilustrar o erro dos idealistas: o indivíduo ignorante e analfabeto pensa que a Terra é plana, reta, porque o espaço em que ele vive assim lhe parece. Ele apenas absolutizou um segmento do círculo, tomando a parte pelo todo. De fato, um pequeno segmento da Terra parece plano, reto, mas a ciência nos demonstra que a Terra é redonda e, matematicamente falando, mesmo o pequeno segmento é levemente curvo e não reto, como parece à primeira vista.
Outro exemplo: antes de construir uma casa, o construtor tem na consciência a ideia de como deve ser, mais ou menos, a mesma. Dessa premissa, o idealista chega à conclusão errônea de que a ideia é anterior ao objeto, de que o objeto é criação do sujeito. Isso é puro idealismo filosófico. É que esse indivíduo se esquece de que a ideia da casa que o construtor tem na cabeça é o resultado do reflexo de muitas casas reais, objetivas, antes vistas por ele. As características das casas vistas, combinando entre si na consciência do construtor, podem fazer surgir uma casa diferente das outras. E a própria imaginação, a fantasia e a intuição do homem podem criar novas coisas com novas características. Mas em todos esses casos, para existir, essas coisas devem se basear em possibilidades reais, pois nem tudo que a fantasia do homem possa imaginar é exequível e poderá existir (por exemplo, o saci-pererê).
O pensamento, a consciência do sujeito, cria apenas a ideia ou imagem da coisa, mas não a própria coisa material. E o fato da ideia da casa ser anterior à própria casa não significa que a casa foi criada e produzida materialmente pela ideia, pelo pensamento do sujeito.
"Sem dúvida que podemos dizer, em certo sentido, que fazemos do objeto em que pensamos um conteúdo da consciência. Mas isto não significa que o objeto seja idêntico ao conteúdo da consciência, mas apenas que o conteúdo da consciência, quer seja uma representação ou um conceito, me faz presente o objeto, ainda que este continue sendo independente da consciência.
"Quando afirmamos, pois, que há objetos independentes da consciência, esta independência relativa à consciência é considerada como uma nota do objeto, ao passo que a imanência à consciência refere-se ao conteúdo do pensamento, que é, com efeito, um elemento de nossa consciência. O pensamento, o ser pensado, refere-se ao conteúdo, ao passo que a independência relativa ao pensamento, o ser não pensado, ao objeto." (J. Hessen, Teoria do conhecimento, Coimbra, 1968, pp. 107-108.)
b) Idealismo e religião
O idealismo filosófico está intimamente ligado com a teologia. De um ou de outro modo, ele sempre sai em defesa da religião. Por isso Lênin sublinhou frequentemente que o idealismo filosófico é obscurantismo e misticismo clerical ou caminho para o mesmo, que ele leva, através de uma das nuanças do conhecimento humano, complexo e infinito, ao fideísmo.
O parentesco do idealismo com a religião consiste antes de tudo na comunidade de suas fontes. Nos tempos imemoriais, quando o homem ainda não tinha nenhuma noção sobre a estrutura do seu corpo e as leis da natureza, ele chegou à falsa conclusão de que suas percepções e representações sensíveis são condicionadas por uma força especial chamada espírito ou alma. Assim nasceu uma visão fantástica sobre a alma, com a ajuda da qual o homem primitivo tentou explicar os sonhos, o desmaio, e outros fenômenos da vida. Ele julgava que a alma encontra-se no corpo do homem enquanto ele vive e deixa o corpo após a morte. Então, a alma se desliga do corpo, mas ela não morre e sim continua viva. Assim se formou a opinião sobre a imortalidade da alma.
Engels mostra que de modo semelhante, graças à antropomorfização e espiritualização dos objetos e fenômenos da natureza, nasceu a representação (ou ideia) dos deuses ou de Deus, aos quais paulatinamente começaram a conferir uma origem e essência extraterrena e sobrenatural.
O idealismo filosófico nada mais é que uma forma refinada, sofisticada do pensamento teológico (na acepção comtiana) reinante nos primeiros albores da humanidade, quando os primeiros homens pensantes, por ignorarem ainda as causas reais e materiais dos fenômenos, procuravam explicá- los pela intervenção de forças imateriais, míticas, mágicas, sobrenaturais, ou divinas, tais como fetiches, duendes, espíritos ou deuses.
Em segundo lugar, o parentesco entre o idealismo e a religião consiste no fato de que ambos admitem, em última instância, de uma ou de outra forma, a criação, a construção ou produção do objeto pelo sujeito ou pensamento.
A solução dada ao problema fundamental da filosofia pelas doutrinas idealistas, sobretudo o idealismo objetivo, está calcada diretamente na doutrina da religião cristã. No fundo, o idealismo é uma variante filosófica da concepção teológica judaico-cristã de que o mundo teria sido criado por um ser superior, absoluto e onipotente, chamado Deus. O mundo, afirma a religião cristã, não existia até que foi criado por Deus.
O mundo, afirmam os idealistas, não existia até que foi criado pela ideia absoluta, pelo pensamento, pela consciência do sujeito universal ou individual, existente antes e independente do mundo material.
Como se vê, no fundo, vem a dar no mesmo. A única coisa que o idealismo faz é substituir a palavra "Deus" pela palavra "ideia", "espírito", "pensamento", "consciência", etc. Mas não é difícil ver que atrás desses conceitos abstratos e universais existe implícita a ideia de demiurgo, de criador, de deus.
Só que as doutrinas idealistas contemporâneas são muito mais sofisticadas e difíceis de compreender do que o seu protótipo religioso, como por exemplo no idealismo absoluto de Hegel, onde a criação do mundo a partir da ideia tomou uma forma absurda e inverossímil.
É claro que não se pode identificar completamente a religião com o idealismo. Entre eles existe certa diferença, mas eles têm em comum o fato de que tanto o idealismo como a religião, no fundamento e começo de tudo que existe, colocam um princípio ideal, espiritual. Por isso, a religião e o idealismo estão estreitamente vinculados.
É por isso que o idealismo, qualquer que seja sua forma, leva ao misticismo e fideísmo. Surge e existe para, de uma forma indireta, fundamentar e defender a religião, a concepção criacionista do mundo.
Como dizia Lênin, "o idealismo não é mais do que uma forma sutil e requintada do fideísmo... O papel objetivo, o papel de classe do empírio-criticismo, limita-se a servir inteiramente os fideístas na sua luta contra o materialismo em geral e contra o materialismo histórico em particular". (Lênin, Materialismo e empirio-criticismo, Ed. Estampa, Lisboa, 1971, p. 344.)
c) As raízes ideológicas do idealismo
Se o idealismo tivesse somente raízes gnosiológicas, então ele não seria tão difundido. Se na sociedade atual não houvesse classes sociais e grupos políticos, interessados na difusão de ideias reacionárias, então o idealismo não seria tão vivaz, duradouro como ele é.
Isto significa que além das raízes gnosiológicas, o idealismo tem ainda raízes ideológicas ou sociais (políticas, de classe), que desempenham um papel decisivo na vivacidade e sobrevivência do idealismo.
Lênin mostra como os representantes da burguesia culta tentam, com meios refinados e sofisticados, reservar um "lugarzinho" para o fideísmo, que nasce nas camadas inferiores das massas populares devido à ignorância, ao embrutecimento e à estúpida selvageria das contradições capitalistas.
"É impossível deixar de ver, por trás da escolástica gnosiológica do empírio-criticismo, a luta dos partidos em filosofia, luta que traduz, em última análise, as tendências e a ideologia das classes inimigas da sociedade contemporânea. A filosofia moderna está tão impregnada do espírito de partido como a de há dois mil anos atrás." (Lênin, Materialismo empirio-criticismo, Ed. Estampa, Lisboa, 1971, p. 344.)
A luta do idealismo contra o materialismo na filosofia e, em particular, na gnosiologia reflete os interesses ecônomico-políticos das classes dirigentes, interessadas em manter as grandes massas na ignorância, no misticismo e fideísmo, para mais facilmente dominá-las e explorá-las.
A interpretação idealista dos fenômenos da natureza e da sociedade sempre constituiu a tarefa principal dos ideólogos das classes antidemocráticas. Assim, via de regra, o idealismo filosófico desempenhou na história da sociedade um papel reacionário, ao combater as forças do progresso, da democracia e da ciência.
3 MATERIALISMO FILOSÓFICO
É a doutrina que resolve cientificamente o problema fundamental da filosofia, o da relação entre o ser e o pensa- mento, entre o objeto e o sujeito.
O materialismo filosófico sempre foi a concepção do mundo das classes sociais avançadas, adeptas da democracia, e interessadas no progresso da ciência e da sociedade.
Ao contrário do idealismo, o materialismo mostra que o mundo, por natureza, é material, considera o ser, a matéria, como o dado primário, e o pensamento, a consciência, como o dado secundário, derivado do primário.
Em oposição ao idealismo, o materialismo mostra que os objetos materiais existem fora e independentemente de nossa consciência, que nossas sensações e ideias são imagens do mundo exterior.
Segundo a excelente definição de Comte, o materialismo é a doutrina que explica o superior pelo inferior, em outros termos, o vital e espiritual pelo material.
1) Evolução da concepção materialista
Na história da filosofia podemos traçar várias etapas no desenvolvimento da concepção materialista do mundo, desde suas formas mais simples, ingênuas e espontâneas, até a mais alta forma baseada nos dados das ciências naturais contemporâneas.
A concepção materialista do mundo nasceu nos países do Oriente antigo: China, Índia, Egito, Babilônia. Nos fins do século VII e começos do século VI antes de nossa era, desenvolveu-se nas colônias jônicas da Grécia, passando depois para Atenas e Roma.
Depois de ter sido sufocada durante mais de mil anos de Idade Média, em que a filosofia se transformou em serva da teologia, a filosofia materialista dos antigos filósofos gregos e romanos reapareceu com novo vigor com a Renascença e os grandes descobrimentos geográficos e científicos do século XVI.
Durante os últimos quatro séculos, apareceram várias escolas filosóficas que desenvolveram a filosofia materialista, desenvolvimento esse que culminou com a criação do materialismo dialético e histórico elaborado no século XIX por Marx e Engels, cuja obra foi enriquecida pelos seus epígonos Plekhanov, Lênin e muitos outros marxistas soviéticos e contemporâneos.
Abaixo damos apenas algumas escolas materialistas, resumindo o que escrevem a respeito Rosental e Iudin em seu Pequeno dicionário filosófico.
a) Materialismo ingênuo
É a concepção materialista do homem comum, é a certeza intuitiva de que o mundo é material por natureza e existe fora da consciência humana.
O materialismo ingênuo identifica o ser com o pensamento, o objeto com o sujeito, isto é, ainda não distingue o objeto apercebido de sua percepção, que é o conteúdo da consciência, e pensa que os objetos são exatamente como os percebemos.
Como ainda não tem nenhuma fundamentação teórica e atitude crítica, o materialismo ingênuo não é uma concepção científica e pode facilmente desviar-se para o idealismo e dogmatismo.
b) Materialismo espontâneo
É a concepção materialista espontânea, implícita, não-reconhecida, difusa, filosoficamente não-consciente, própria da maioria dos cientistas e naturalistas, a respeito da existência real do mundo exterior refletido por nossa consciência. Já distingue o objeto do sujeito cognoscente.
A convicção, mais ou menos fundamentada teoricamente, de que o mundo é material e de que ele existe independentemente de nossa consciência é concepção empírica de todo homem de senso equilibrado, mas pode conduzir, também, ao empirismo vulgar e ao positivismo. Os idealistas tiram proveito das debilidades do materialismo espontâneo, para desviá-lo às posições do idealismo filosófico e ceticismo sistemático.
c) Materialismo mecanicista
Uma das etapas e formas da filosofia materialista. O materialismo mecanicista trata de explicar todos os fenômenos da natureza por meio das leis da mecânica e de reduzir todos os processos naturais qualitativamente diferentes (químicos, biológicos, psíquicos e outros) a processos mecânicos. Esta doutrina considera o movimento como uma simples translação de corpos no espaço devida à ação exterior, ao choque dos corpos entre si. O materialismo mecanicista nega as fontes interiores do movimento das coisas, sua mudança qualitativa, os saltos no desenvolvimento, o desenvolvimento do inferior ao superior, do simples ao complexo. Esta escola materialista se difundiu particularmente nos séculos XVII e XVIII, em consequência do alto nível alcançado pela mecânica e matemática.
d) Materialismo vulgar
Corrente filosófica surgida nos meados do século XIX, na Alemanha. Embora reconhecendo que a matéria é a realidade única e defendendo o ateísmo, os materialistas vulgares acreditavam que o cérebro produz o pensamento como o fígado segrega a bílis, explicando assim o pensamento de forma grosseiramente simplista. Segundo eles, o clima, a alimentação, etc., determinam diretamente a maneira de pensar dos homens. Assim, eles negavam o papel ativo das ideias, do pensamento. No fundo eram mecanicistas e meta- físicos (isto é, adialéticos, não-dialéticos).
Observação: Quando os filósofos idealistas criticam a filosofia materialista, eles têm em vista, em geral, estas escolas de materialismo ingênuo, espontâneo, mecanicista, vulgar e metafísico — que, de fato, são doutrinas não suficientemente científicas e, por isso mesmo, apresentam muitas falhas. Os filósofos idealistas combatem essas falhas não para corrigi-las e substituí-las por teses mais científicas, mas para combater a concepção materialista em geral, com a finalidade de impor sua filosofia totalmente anticientífica e fideísta.
Infelizmente, os filósofos e os compêndios de filosofia em geral ignoram a existência de uma nova etapa no desenvolvimento do pensamento materialista, mais científico e satisfatório, que é o materialismo dialético. O materialismo dialético também critica as falhas dessas escolas materialistas, mas com a finalidade de corrigi-las e substituí-las por teses mais científicas.
2) Materialismo dialético
É a forma superior, científica da concepção materialista do mundo, elaborada por Marx e Engels e desenvolvida ulteriormente por Plekhanov, Lênin e outros marxistas russos e não-russos.
Fundindo os elementos positivos contidos na concepção materialista de Feuerbach e na concepção dialética de Hegel e baseando-se nas novas conquistas das ciências, Marx e Engels refundiram, com espírito crítico, o que havia de mais precioso no pensamento filosófico-científico da época e elaboraram a forma superior do materialismo que é o materialismo dialético.
O materialismo dialético (ou "diamate", como se diz abreviadamente) superou a estreiteza, a inconsequência e as falhas do materialismo metafísico e da dialética idealista, conservando, ao mesmo tempo, o lado positivo das mesmas. Assim a nova doutrina dialetizou o materialismo metafísico e materializou o idealismo dialético.
Chama-se materialismo dialético porque, para estudar a natureza, a sociedade humana e o pensamento, emprega o método dialético, antimetafísico, e porque sua teoria filosófica é um materialismo rigorosamente científico. O método dialético e o materialismo filosófico interpenetram-se reciprocamente, acham-se indissoluvelmente ligados e constituem uma concepção filosófica, única e coerente.
O método dialético materialista ensina que, para estudar acertadamente os processos da natureza e da sociedade, é preciso considerá-los em sua conexão, em seu condicionamento recíproco, em seu movimento e em sua transformação; é preciso compreender o desenvolvimento não como um simples crescimento quantitativo, mas como um processo em que as mudanças quantitativas se transformam necessariamente, em certa etapa, em modificações qualitativas radicais; é preciso partir do fato de que o conteúdo interno do desenvolvimento e da transição da qualidade antiga à qualidade nova é a luta dos contrários, a luta entre o novo e o velho.
Por exemplo, o materialismo metafísico e vulgar só admitia mudanças quantitativas da matéria, de modo que ele reduzia o pensamento a fatos de ordem material. Já o método dialético materialista, introduzindo os processos dialéticos na matéria, admite, no fim das mudanças quantitativas, mudanças qualitativas (ou essenciais), e daí a existência de um psiquismo (consciência, pensamento, espírito, etc.) que é sem dúvida um produto da matéria, mas realmente distinto dos fenômenos de ordem material.
Quanto à teoria materialista dialética, ela baseia-se nos seguintes princípios fundamentais:
1) o mundo é, em sua essência, material e se desenvolve segundo as leis do movimento da matéria que passa de uma forma para a outra.
2) a matéria é anterior à consciência, e esta nada mais é que o produto da matéria altamente organizada.
3) o mundo material e suas leis são cognoscíveis e nossas sensações, representações e conceitos são reflexos das coisas que existem independentemente da nossa consciência.
O materialismo dialético afirma que o mundo é material por natureza e prova que todos os objetos e fenômenos, desde as ínfimas partículas dos átomos até os gigantescos planetas, desde as bactérias até os animais superiores e o homem, são diferentes formas da matéria em movimento em suas diversas etapas de desenvolvimento.
Contrariamente ao idealismo objetivo, que considera o mundo como uma sombra da "ideia eterna", uma encarnação da "ideia absoluta" ou uma criação do espírito absoluto (Deus), o materialismo dialético sustenta que a matéria é eterna, sempre existiu, e jamais foi criada do nada por alguém; o mundo é causa de si próprio (causa sui) e se desenvolve segundo as leis dialéticas e objetivas do movimento da matéria e não tem necessidade de nenhum "primeiro impulso ou "primeiro motor".
Em oposição ao idealismo subjetivo, o qual afirma que os objetos materiais são produtos do pensamento, da consciência individual ou universal, e que as coisas nada mais são que complexos de sensações, o materialismo dialético parte do princípio de que a consciência é o dado secundário, derivado, pois é reflexo da matéria; que o pensamento é pro- duto da matéria chegada, em seu desenvolvimento, a um elevado grau de perfeição, que a consciência é uma propriedade de um corpo material extraordinariamente complexo: o cérebro humano.
Aplicando o materialismo dialético ao estudo dos fenômenos sociais, Marx e Engels fundaram o materialismo histórico, uma das maiores conquistas das ciências sociais. O princípio fundamental do materialismo histórico (ou concepção materialista da história ou, ainda, sociologia materialista) afirma que as condições da vida material da sociedade são o dado primário e que as ideias, a consciência social, são o dado secundário, derivado. Ou, como escreve Marx em linguagem filosófica: "Não é a consciência que determina a existência social; é a existência social que determina a consciência social".
O materialismo dialético e histórico é por excelência uma filosofia da práxis, da ação transformadora da natureza, do homem e da sociedade. Caracterizando a essência da nova filosofia, Marx escreveu: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de diversas maneiras; trata-se, porém, de transformá-lo".
3) O materialismo dialético é ciência e não ideologia
Finalizando, queremos fazer aqui uma advertência muito importante:
Para os ideólogos marxistas, o materialismo dialético é ao mesmo tempo:
1) a filosofia ou a concepção do mundo do partido comunista e do proletariado, das massas operárias;
2) a parte integrante da teoria do socialismo científico proletário e um guia à ação revolucionária, uma arma ideológica eficaz para a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade comunista.
Em uma palavra, é uma filosofia própria e exclusiva do proletariado e do comunismo.
Essas teses porém não são de todo verdadeiras.
Em primeiro lugar, o materialismo dialético é uma concepção filosófica do mundo, mas ele não é um sistema filosófico fechado, acabado, e sim uma doutrina viva, aberta, que se apoia nos dados positivos das ciências particulares e que se enriquece sem cessar com as novas aquisições, descobertas e contribuições.
O materialismo dialético de hoje é muito diferente daquele que foi elaborado há mais de um século por Marx e Engels, pois, como já disseram seus próprios fundadores, o materialismo se enriquece e toma novas feições com cada descoberta científica. Se não fizer isso se converte em dogma.
Assim, o materialismo dialético de hoje é obra coletiva de muitos cientistas e filósofos marxistas e não-marxistas.
Em consequência disso, ele pode fornecer a todos os homens, de qualquer classe ou especialidade, um método e uma teoria científica que lhes permita conhecer as leis mais gerais da natureza, do homem, da sociedade e do pensamento, conhecimento esse indispensável para transformar as coisas. Inspirando-se numa filosofia científica, qualquer pessoa pode alcançar imensos êxitos em todos os domínios de sua atividade teórica e prática.
Justamente por ser uma visão científica do mundo, o materialismo dialético não pode ser exclusivo da classe proletária, mas pertence a toda a humanidade progressista.
Por isso, não tem sentido falar que o materialismo dialético é uma filosofia proletária, do mesmo modo que não tem sentido falar de uma biologia proletária ou de uma biologia burguesa. Toda disciplina, na medida que é, rigorosamente falando, uma ciência, está acima dos partidos. Só a ideologia, que não é científica, é que pode ter caráter de classe, ser proletária ou burguesa, ser progressista ou reacionária.
Em segundo lugar, a filosofia do materialismo dialético não está de maneira alguma exclusiva e organicamente ligada ao socialismo e ao comunismo — como pretendem os marxistas. Do mesmo modo que a biologia científica não está exclusivamente ligada ao comunismo, mas pode ser útil tanto para a construção do capitalismo como para a construção do comunismo, o materialismo dialético pode ser também útil para todos, burgueses e proletários, para a construção do regime social que quiserem.
O que é certo, e fartamente comprovado pela história, é que as classes progressistas, interessadas no desenvolvimento das ciências e da sociedade, professam, em geral, uma concepção científica, vale dizer materialista e ateísta, do mundo, enquanto que as classes reacionárias, não interessadas nesse desenvolvimento, adotam, em geral, uma concepção anticientífica, vale dizer idealista e fideísta, do mundo.
O materialismo dialético é uma filosofia científica e como qualquer ciência nos dá uma visão científica de seu objeto e, nessa medida, é um guia para compreender o mundo e um instrumento eficaz para transformar esse mundo.
A adoção de uma filosofia científica é a condição sine qua non para o desenvolvimento econômico e social de qualquer país, sobretudo dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como o nosso, onde há uma burguesia progressista, interessada na independência econômica e política do país.
Conclusão: O materialismo dialético é uma filosofia científica, e como tal ela não pode ser exclusiva da classe proletária, ela pertence a toda a humanidade progressista, como qualquer outra ciência: a astronomia, a física, a química, a biologia, a psicologia e a sociologia, etc.
O que se pode dizer sem erro é que o materialismo dialético é a concepção filosófica das classes progressistas. E como há países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, em que a própria burguesia é progressista, pois está interessada em obter a independência econômica e política do seu país, essa burguesia pode muito bem adotar o materialismo dialético como arma ideológica eficaz para a consecução de seus fins.
Corolário: É possível ser materialista dialético e não ser comunista, como se pode ser comunista e não ser materialista dialético.
Aliás, a história da filosofia está cheia de filósofos idealistas e fideístas que pregaram o comunismo (Platão, Thomas Morus, Campanela, etc.) e de muitos materialistas que foram ideólogos da burguesia na época de ascensão do capitalismo (Bacon, Hobbes, Holbach, Diderot, Feuerbach, Haeckel e outros).
O segundo aspecto do problema fundamental da filosofia — o aspecto gnosiológico — é o da possibilidade do conhecimento. Este problema consiste no seguinte: existe no vir a ser perpétuo das coisas, na mudança permanente e na diversidade infinita das coisas, algo de estável que o nosso pensamento possa captar? Ou estamos condenados de modo inapelável a errar num mundo de aparências e ilusões?
Em outras palavras: O que podemos conhecer? A nossa mente, a nossa consciência, é capaz de conhecer e refletir de maneira adequada o mundo que nos rodeia? É possível ao sujeito captar o objeto, conhecer a verdade, a essência íntima das coisas, o númeno, a "coisa em si"? É a razão humana capaz de penetrar nos mistérios da natureza e trazer à luz as leis do seu desenvolvimento?
Sobre a cognoscibilidade do mundo na história da filosofia existem duas posições antagônicas: os que a negam e os que a afirmam. Entre as soluções negativas estão as doutrinas céticas e agnósticas com suas inúmeras variantes; e entre as soluções positivas estão as doutrinas dogmáticas e materialistas.
Os adeptos do idealismo filosófico, sobretudo do idealismo subjetivo, duvidam em geral da possibilidade de conhecer a essência das coisas. Já alguns adeptos do idealismo objetivo, como o tomismo (filosofia oficial da religião cristã) e o idealismo absoluto de Hegel, creem na cognoscibilidade do mundo.
Os adeptos do materialismo filosófico acreditam, em princípio, na possibilidade do conhecimento, mas há certos filósofos materialistas que são inconsequentes e que professam diferentes formas de agnosticismo.
A — SOLUÇÕES NEGATIVAS
Entre as doutrinas que negam a possibilidade de conhecer a verdade, isto é, a essência das coisas, podemos enumerar o ceticismo absoluto e o ceticismo moderado com suas inúmeras modalidades.
1 — CETICISMO ABSOLUTO
É a doutrina que nega peremptoriamente a possibilidade de conhecer a verdade. Afirma que o homem não pode, em nenhum domínio, chegar à certeza.
O mais velho representante dessa doutrina foi o sofista, da antiga Grécia, Górgias, que sustentava as três teses seguintes: 1) o ser não existe; 2) se ele existisse não poderíamos conhecê-lo; 3) ainda que pudéssemos conhecê-lo não poderíamos comunicá-lo aos outros.
Outro filósofo grego da época, Pirro (ou Pirron), afirmava que é impossível conhecer qualquer coisa de verdadeiro. Dado que os nossos juízos sobre a realidade são contraditórios e não existem conhecimentos e juízos verdadeiros, é melhor suspender o juízo (essa suspensão de juízo ele chamava de "epoché").
O ceticismo absoluto nega a possibilidade de o sujeito poder apreender o objeto; desconhece o objeto e concentra toda a sua atenção no sujeito, nos fatores subjetivos do conhecimento humano.
Crítica: É óbvio que essa doutrina é insustentável e anula a si própria. Afirma que o conhecimento é impossível, mas com isso exprime um conhecimento. Assim, o ceticismo cai numa contradição consigo mesmo. (Ver, adiante, a crítica geral ao ceticismo sistemático.)
2 — CETICISMO RELATIVO
Além dessa forma absoluta, radical e geral de ceticismo, que praticamente foi superado porque leva ao absurdo e à negação de si próprio, apareceram na história da filosofia, sobretudo nos quatro últimos séculos, várias modalidades ceticismo relativo, moderado e especial, tais como o agnosticismo, o positivismo, o fenomenalismo, o relativismo, o subjetivismo, o probabilismo, o convencionalismo, o pragmatismo ou utilitarismo, etc.
Enquanto o ceticismo absoluto nega radicalmente a possibilidade do conhecimento em geral, o ceticismo relativo nega parcialmente a possibilidade de conhecer a verdade em determinado domínio, ou põe limites ao conhecimento.
Antes de expor o assunto, cumpre observar que nos ensinamentos dos pensadores sofistas (pré-socráticos) e céticos (pós-socráticos) já encontramos os germes do ceticismo relativo, com todas as suas diferentes nuanças que apareceram dois mil anos depois, e que enumeramos acima.
Um dos mais conhecidos desses sofistas foi, sem dúvida, Protágoras de Abdera (que viveu no século V a.C.). Partindo dos ensinamentos de Heráclito de que tudo flui e tudo muda, e das variações da sensação conforme as disposições subjetivas do nosso espírito, Protágoras inferiu disso a relatividade e subjetividade dos nossos conhecimentos. Sua doutrina ele enunciou com a célebre fórmula: "O homem é a medida de todas as coisas". Com isso ele queria dizer que a forma de conhecimento das coisas depende do homem e varia de um homem para outro. Empirismo, agnosticismo, relativismo e subjetivismo, são as notas características de sua doutrina de ceticismo relativo.
Aplicando sua fórmula ao conhecimento dos deuses, ele dizia: "Quanto aos deuses, não posso saber se existem ou não existem, ou como é a figura deles, pois muita coisa impede de sabê-lo, sobretudo a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana".
Os ensinamentos dos sofistas e dos céticos moderados, embora fossem errôneos, desempenharam um papel positivo na luta contra as excessivas pretensões dos realistas ingênuos e dos dogmáticos, que acreditavam piamente que podemos conhecer, de modo direto e imediato, a verdade, a essência das coisas, e que os conhecimentos assim adquiridos tinham valor de verdade absoluta, eterna e imutável.
1) Agnosticismo de Kant
A mais difundida das modalidades do ceticismo relativo foi o agnosticismo. Derivado do grego a = não e gnosis conhecimento, a palavra agnosticismo significa: não-conhecível, inconhecível, incognoscível.
É a doutrina que nega a possibilidade de conhecer a essência das coisas, considera impossível a metafísica e afirma que o homem só pode conhecer o fenômeno, a aparência das coisas.
O agnosticismo moderno foi teoricamente elaborado por Kant no século XVIII, floresceu no século XIX com Comte, Spencer e outros, e encontrou adeptos entre certos materialistas espontâneos (naturalistas), neopositivistas, pragmatistas e outras formas moderadas de ceticismo do século XX. Assim, o agnosticismo tem adeptos tanto entre os idealistas, como em certos materialistas espontâneos (cientistas naturalistas).
O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), fundador do agnosticismo moderno, é praticamente o pai da gnosiologia como ciência. Foi com ele e a partir dele que a teoria do conhecimento tomou grande impulso a ponto de tornar-se o centro e a base de toda a filosofia.
Kant foi sem dúvida um dos maiores filósofos de todos os tempos. Infelizmente, sua filosofia, como um todo, não é consequente e coerente. O traço fundamental de sua filosofia é a conciliação entre materialismo e idealismo, entre ceticismo e dogmatismo. Não vamos aqui analisar todo o seu sistema filosófico, chamado criticismo, apriorismo ou idealismo transcendental, mas somente a sua doutrina a respeito do conhecimento humano que chamamos de agnosticismo.
Que podemos saber? Que devemos fazer? Que podemos esperar? — eis as três questões fundamentais às quais Kant pretende dar uma solução definitiva. Das três, a mais importante é a primeira, por depender dela a solução das outras duas.
Enquanto o dogmatismo admite sem discussão a possibilidade de atingir a verdade metafísica e científica, e o ceticismo absoluto nega peremptoriamente a possibilidade de alcançar a verdade, a crítica kantiana versará sobre "o poder da razão em geral, considerada em relação a todos os conhecimentos a que se pode elevar, independentemente de qual- quer experiência
Vejamos com mais detalhe os princípios da gnosiologia kantiana, que tão enorme influência teve na filosofia contemporânea.
A doutrina gnosiológica de Kant é um tanto complexa e de difícil compreensão, sobretudo por causa da nova terminologia criada por ele. Procuraremos expô-la com a maior clareza possível, sem prejuízo de sua profundidade.
a) As teses fundamentais da gnosiologia kantiana
Partindo da incognoscibilidade da essência das coisas, Kant constrói sua gnosiologia no espírito do idealismo subjetivo.
Kant começa distinguindo o númeno do fenômeno. O númeno é a "coisa em si", a essência das coisas (materiais ou espirituais) que existem fora e independentemente da nossa consciência. Nós não podemos conhecer o númeno. Ele é incognoscível. Só podemos conhecer o fenômeno, que é a "coisa para nós", a manifestação exterior da coisa em si tal como se apresenta nossa consciência.
As "coisas em si" agem sobre os nossos órgãos sensoriais e como resultado surgem as sensações. Mas estas (sensações) recebidas pelos sentidos carecem de toda ordem e regra e representam um verdadeiro caos de impressões.
A tarefa do nosso pensamento consistirá em dar forma a esse material, em pôr ordem nesse caos de sensações, colocando-as no tempo e no espaço e relacionando entre si os conteúdos das sensações. É graças a essas formas que conseguimos formar um quadro coerente que satisfaça nossa necessidade de lógica.
A matéria do conhecimento vem do objeto e é dada pela experiência. A forma do conhecimento procede do sujeito e é anterior a qualquer experiência.
Identificar essas formas subjetivas e mostrar como graças a elas se torna possível o conhecimento — é o propósito do apriorismo ou criticismo kantiano.
As formas da consciência são subjetivas e a priori, isto é, não existem na realidade objetiva, existem somente no nosso espírito, antes e independentemente de qualquer experiência.
Existem duas formas principais: as da sensibilidade e as do entendimento.
As formas da sensibilidade são o espaço e o tempo, que ordenam as sensações caóticas numa justaposição no espaço e numa sucessão no tempo, de um modo espontâneo, involuntário e inconsciente. Desse modo surge o conhecimento sensível do mundo exterior e do mundo interior.
Porém este é apenas o primeiro ato do conhecimento. O processo cognoscitivo continua com as formas do entendimento.
As formas do entendimento, chamadas de conceitos puros ou categorias, ordenam e sistematizam logicamente as nossas percepções (ou conhecimentos sensíveis) em conceitos. Nasce assim o conhecimento intelectual, conceitual, abstrato.
A sensibilidade é fonte do conhecimento do singular, o entendimento, do geral.
O princípio do apriorismo kantiano afirma: "É por meio da sensibilidade que os objetos nos são dados; sozinha, ela nos fornece as intuições empíricas; mas é o entendimento que pensa os objetos, e é dele que nascem os conceitos".
"Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos será dado; e sem o entendimento, nenhum objeto será pensado."
“Os pensamentos sem conteúdos são vazios; as intuições sem os conceitos são cegas", isto é, as formas sem os conteúdos são vazias, os conteúdos sem as formas são cegos.
"É necessário, portanto, tornar sensíveis seus conceitos (isto é, juntar-lhes o objeto da intuição) e tornar inteligíveis suas intuições (isto é, submetê-las aos conceitos)."
Kant criou seu próprio sistema de categorias lógicas ou conceitos mais gerais do pensamento. O número dessas categorias é exatamente doze, divididas em quatro grupos, de acordo com as ligações naturais de 1) quantidade, 2) qualidade, 3) relação e 4) modalidade entre o sujeito e o predicado. As doze categorias são: 1) unidade, pluralidade e totalidade; 2) realidade, negação e limitação; 3) substância, causa e reciprocidade; 4) possibilidade, existência e necessidade.
Por exemplo, o conceito de causalidade enlaça dois conteúdos de percepção considerando um como causa e o outro como efeito.
Segundo Kant, as propriedades qualitativas das coisas (cor, odor, sabor, etc.) e as propriedades quantitativas (forma, extensão, movimento, etc.), bem como as formas da sensibilidade (espaço e tempo) e as formas do entendimento (as doze categorias) não derivam da experiência e não refletem as propriedades objetivas das coisas, mas são elementos a priori, subjetivos, imanentes ao nosso espírito e impostos pelo sujeito ao objeto do conhecimento.
Assim, nós não conhecemos as coisas tais como elas são em si, mas somente revestidas dos elementos subjetivos nos quais as enquadramos. É como se víssemos as coisas através dos óculos coloridos das formas a priori de nossa consciência.
É desse modo que a consciência do sujeito cognoscente cria, constrói e produz o mundo dos seus objetos.
Para Kant, o conhecimento não é a conformidade da imagem ou ideia com a coisa, nem o reflexo do objeto na consciência do sujeito cognoscente, mas uma criação ou construção do objeto pelo sujeito.
Segundo Kant, as ciências são possíveis não como conhecimento da realidade ou do mundo extramental, senão como construções subjetivas do espírito, que impõe suas leis aos objetos. As leis da ciência são, portanto, produto do espírito humano. Muito longe de refletirem as relações reais do mundo material, elas refletem as exigências do espírito humano. E por isso são relativas ao homem.
Assim se estabelece a relatividade dos nossos conhecimentos, pois o conhecimento, a ciência, variaria se o espírito variasse.
Estabelece-se ao mesmo tempo a subjetividade dos nossos conhecimentos, pois as leis, longe de representarem verdades objetivas, representam apenas verdades subjetivas do nosso pensamento.
O mundo fenomênico em que vivemos é obra do pensamento humano. Kant compara a revolução realizada por ele em filosofia à realizada por Copérnico em astronomia. Ao invés de fazer o espírito gravitar em torno das coisas, ele fez as coisas girarem em torno do espírito.
Conclusão: O mundo fenomênico que conhecemos é um mundo formado pela nossa consciência. Nunca podemos conhecer como o mundo está constituído em si, pois logo que tratamos de conhecer as coisas, introduzimo-las, por assim dizer, nas formas a priori da consciência. Desta maneira não temos perante nós a coisa em si, o númeno, mas a coisa como se nos apresenta, ou seja, o fenômeno.
Como se vê, a gnosiologia kantiana tem por fundamento o idealismo subjetivo.
b) As teses do dogmatismo moral kantiano
Segundo Kant, além da sensibilidade e do entendimento, há uma terceira faculdade cognoscitiva do homem, superior às outras, que é a razão pura. Esta procura elevar-se ao absoluto e solucionar problemas metafísicos e transcendentais, tais como a ideia cosmológica sobre a finitude ou infinitude do mundo, a ideia psicológica sobre a imortalidade da alma e a ideia teológica sobre a existência de Deus.
Mas, a razão desejosa de conhecer o mundo, ao tentar solucionar esses problemas ou ideias, cai inevitavelmente em contradição consigo mesma, contradição que é incapaz de superar. Todas as tentativas da razão para sair dos limites da experiência subjetiva levam-na inevitavelmente a contradições dialéticas insolúveis que são as antinomias.
A antinomia (do grego: contradição entre as leis) é a contradição entre duas proposições que se reconhecem igualmente verdadeiras e que se excluem mutuamente. As antinomias são aquelas contradições em que os contrários podem ser demonstrados ou rejeitados com o mesmo rigor lógico.
Por exemplo, segundo Kant, a ideia cosmológica compreende quatro antinomias:
1.ª) O mundo é finito (limitado) no tempo e no espaço. O mundo é infinito (ilimitado) no tempo e no espaço.
2.ª) Tudo é simples e indivisível. Não há nada simples, tudo é complexo e divisível.
3.ª) Existe liberdade no mundo. Não há liberdade no mundo, tudo é necessário.
4.ª) Existe uma causa primeira no mundo. Não há causa primeira.
Ao tentar responder a essas questões, a razão se mete no atoleiro das antinomias, em que tanto a tese como a antítese são refutáveis e irrefutáveis. Com o mesmo rigor lógico, pode-se demonstrar a finitude ou infinitude do mundo, assim como a divisibilidade e indivisibilidade da substância. Por outro lado, não se pode rejeitar, mas tampouco provar, a possibilidade e a impossibilidade da liberdade, da mesma maneira que não se pode demonstrar a existência ou a inexistência de um ser absolutamente necessário.
O mesmo se dá com os "paralogismos" da teologia "racional", que tenta provar pela razão pura que a alma é uma substância espiritual e imortal, que a vontade é livre e superior à lei de causa e efeito, e que existe um "ser necessário" Deus, criador e legislador, como pressuposto de toda a realidade.
Essas ideias teológicas são totalmente inacessíveis à experiência, isto é, incognoscíveis, e, como tais, Kant as inclui entre as "coisas em si", entre os númenos.
Ora, a metafísica dogmática e teológica pretende conhecer os númenos, as essências, as "coisas em si". É uma ilusão, uma tarefa fadada ao fracasso. Não havendo relação direta da razão com tais objetos suprassensíveis estas ideias são destituídas de todo fundamento real.
Assim, a metafísica como ciência racional é impossível, pois ultrapassa os domínios do sensível e não é suscetível de nenhuma verificação experimental. Os dogmas da religião cristã não podem ser demonstrados pela razão pura.
Demonstrada a impossibilidade de uma metafísica científica, Kant procura criar uma metafísica da fé. Do criticismo da razão pura, passa Kant ao dogmatismo moral da razão prática.
Se Deus, a imortalidade e a liberdade são eliminados do mundo empírico dos fenômenos, por serem incognoscíveis, não há nenhuma razão, segundo Kant, para rejeitar a possibilidade de que existam no mundo ideal dos númenos, como objetos de fé, por necessidades de ordem moral e prática.
A aceitação de tais dogmas religiosos não é uma questão de certeza científica, mas uma questão de certeza de fé, de crença. São postulados da razão prática ou da consciência moral que nós aceitamos como se fossem verdadeiros, porque sem eles a religião é impossível.
Sua "crítica da razão prática" é dedicada a fundamentar a conciliação da ciência com a religião, da razão com a fé.
Assim, Kant chegou a limitar a ciência em benefício da fé e da religião, chegando mesmo a reconhecer isso ao declarar: "Tive, portanto, de suprimir o saber, para obter lugar para a fé". (V. prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, in Os Pensadores, XXV, ed. Abril Cultural, São Paulo, 1974, p. 17.)
Tais são as respostas às duas outras questões fundamentais de sua filosofia: Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar?
Resumo: A gnosiologia de Kant pode ser reduzida às seguintes proposições básicas:
1.ª) A "coisa em si", o númeno, é incognoscível (agnosticismo)
2.ª) O nosso conhecimento permanece limitado ao mundo fenomênico (fenomenalismo).
3.ª) O mundo fenomênico surge da nossa consciência, que ordena e elabora o material sensível com a ajuda das formas a priori da sensibilidade e do entendimento (apriorismo).
4.ª) O conhecimento é uma criação (ou construção ou produção) da consciência do sujeito cognoscente (subjetivismo e idealismo subjetivo).
5.ª) Como produto do espírito humano, o conhecimento varia conforme o espírito. Ele é relativo ao homem (relativismo).
6.ª) Como a razão humana não pode conhecer e demonstrar a existência de Deus, da imortalidade da alma e do livre-arbítrio, porque tais ideias são transcendentais e incognoscíveis, não há razão nenhuma para rejeitar a possibilidade de que existam no mundo ideal dos númenos, como objetos de fé, por necessidades de ordem moral e prática (dogmatismo moral e fideísmo).
Agnosticismo, fenomenalismo, apriorismo, subjetivismo, relativismo e fideísmo — eis os traços característicos fundamentais da gnosiologia kantiana, construída no espírito do idealismo subjetivo.
A filosofia de Kant chama-se também criticismo por se apresentar como uma crítica do valor dos nossos conheci- mentos, e como idealismo transcendental por considerar como transcendentais (isto é, anteriores e além de nossa experiência e razão), tanto as formas a priori da consciência como as "coisas em si" e as ideias metafísicas.
Como se vê, a filosofia de Kant é contraditória porque quis conciliar coisas incompatíveis: o materialismo com o idealismo, o dogmatismo com o ceticismo, a filosofia com a teologia, a ciência com a religião, a razão com a fé, para reabilitar Deus e a religião.
Assim, Kant ofereceu à filosofia idealista contemporânea fundamentos teóricos sobre o agnosticismo e o fideísmo, que os filósofos retrógrados de todos os matizes ainda utilizam para lutar contra a concepção científica do mundo.
2) Novas modalidades do ceticismo relativo
Com Kant, o agnosticismo — essa forma mitigada de ceticismo sistemático — recebeu um grande impulso, difundiu-se largamente nos séculos XIX e XX e praticamente penetrou em todas as doutrinas filosóficas contemporâneas, idealistas e mesmo materialistas, originando novas modalidades de ceticismo relativo, tais como: positivismo, fenomenalismo, relativismo, subjetivismo, probabilismo, convenciona- lismo, ficcionalismo, utilitarismo, etc.
O traço comum a todas essas novas modalidades de ceticismo relativo consiste em negar a possibilidade de conhecer a verdade objetiva, a essência das coisas, ou, em termos kantianos, a "coisa em si", o númeno, sobretudo a substância primordial absoluta, seja ele de que natureza for: material (matéria) ou ideal (ideia) ou espiritual (Deus).
Na filosofia pós-kantiana, poucas doutrinas filosóficas salvaram-se desse contágio. Entre elas, o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo teológico do neotomismo e o materialismo dialético de Marx e Engels.
Vejamos brevemente algumas dessas novas modalidades de agnosticismo ou ceticismo relativo:
Positivismo — Doutrina fundada pelo filósofo francês A. Comte (1798-1857) e que recebeu ampla difusão entre filósofos e cientistas contemporâneos.
O ponto de partida do positivismo é o seguinte: como é impossível um conhecimento científico da essência das coisas, do númeno, da "coisa em si", e dos problemas metafísico-transcendentais, a ciência deve limitar-se ao positivamente dado, isto é, ao estudo dos fenômenos imediatos da experiência e ao descobrimento das relações invariáveis de semelhanças e de sucessão que os ligam, sem indagar o "porquê" dessas relações. A ciência positiva deve desistir de buscar as causas primeiras e as causas finais e limitar-se à descrição dos fenômenos.
O positivismo, como o agnosticismo, é uma espécie de fenomenalismo.
Fenomenalismo (do grego phaenomenon = fenômeno, manifestação, aparição, aquilo que aparece) — Teoria segundo a qual não podemos conhecer a essência das "coisas em si" (númenos), mas somente como elas se manifestam exteriormente, como elas se nos apresentam (fenômenos), isto é, podemos conhecer como as coisas são, mas não o que são, na realidade.
O fenomenalismo não nega a existência das "coisas em si" fora e independente do sujeito cognoscente e até a admite expressamente.
Uma variante do fenomenalismo é o fenomenismo — teoria que considera que só existem realmente os fenômenos, isto é, as representações que nós fazemos das coisas, e rejeita a existência real dos númenos ou das "coisas em si", as quais considera como apenas uma palavra oca, sem sentido.
Relativismo — Teoria segundo a qual não há verdade absoluta, universalmente válida. Toda verdade é relativa e tem apenas uma validade limitada.
Subjetivismo — Teoria segundo a qual não há verdade objetiva, universalmente válida. Toda verdade é subjetiva, isto é, válida apenas para o sujeito que conhece e julga. O que é verdadeiro para uns pode ser falso para outros.
Essa teoria, e a do relativismo, contradizem-se a si mesmas quando pretendem de fato uma validade universal e objetiva para a sua tese: "toda verdade é relativa e subjetiva".
Probabilismo — Teoria segundo a qual nosso pensamento não pode ter acesso à verdade propriamente dita, mas somente a proposições apresentando um grau mais ou menos elevado de probabilidade ou de credibilidade.
Como é impossível um conhecimento rigoroso da verdade, nunca poderemos dizer, pois, que esta ou aquela proposição seja verdadeira. A única coisa que podemos afirmar é que ela tem maior ou menor probabilidade de ser verdadeira. Não existe portanto certeza rigorosa, mas apenas probabilidades.
Convencionalismo — Teoria de Henri Poincaré, segundo a qual os princípios científicos, pelo menos os de geometria e de mecânica, têm caráter puramente convencional.
O convencionalismo substitui a noção de verdade pela da comodidade. É erro, por exemplo, perguntar se a geometria euclidiana é mais verdadeira que outra; ela é apenas mais cômoda.
Para Henri Poincaré, a ciência é apenas uma "linguagem" convencional, uma maneira de formular o que percebemos dos fenômenos, mas, de nenhum modo, uma explicação decisiva do real. Poincaré põe em dúvida mesmo a grande descoberta da translação da Terra em torno do Sol; não quer ver o sistema de Copérnico senão como uma "linguagem". Segundo ele a afirmação "a Terra gira" não tem sentido, pois que nenhuma experiência a verificará; simplesmente é mais cômodo supor que a Terra gira.
Teoria dos hieróglifos — Teoria segundo a qual as representações do homem são apenas signos convencionais ou hieróglifos, sem semelhança com as coisas reais. Os adeptos desta teoria afirmam que nossos órgãos dos sentidos não nos dão um conhecimento verídico do mundo, que nossa consciência não reflete o mundo objetivo.
Nominalismo simbólico — Exagerando o caráter convencional dos princípios da ciência, alguns cientistas chegaram a considerá-los como puramente simbólicos e artificiais, sem corresponder a qualquer realidade.
Para Duhem, por exemplo, "uma teoria física não é uma explicação", mas apenas uma representação dos fatos por meio de proposições matemáticas, deduzidas de princípios "que não pretendem enunciar relações verdadeiras entre propriedades reais dos corpos", e por isso "podem formular-se arbitrariamente".
Le Roy, ainda mais radical, não só considera os princípios matemáticos arbitrários e análogos às regras de qualquer jogo, como julga que "o sábio fez a ordem e o determinismo que julga encontrar nas coisas".
As teorias científicas são receitas, um jogo formal de palavras, que dão resultado. "Os nossos cálculos não são verdadeiros, no sentido exato do termo: são apenas eficazes."
Ficcionalismo ("a filosofia do como se' de Hans Vaihinger) — Teoria segundo a qual o nosso intelecto trabalha de preferência com pressupostos falsos, com ficções, desde que eles se mostrem úteis e vitais. A "verdade" é, pois, o “erro mais adequado".
A ficção, como se sabe, é uma representação mental à qual nada corresponde na realidade.
Pragmatismo ou utilitarismo — Doutrina segundo a qual tudo que é útil e eficaz é verdadeiro. Em vez de investigar se uma doutrina, teoria ou proposição é verdadeira ou falsa, o pragmatismo se interessa apenas pelos resultados práticos que ela possa dar.
Partindo do pressuposto agnóstico que é impossível conhecer a essência das coisas e ignorando o conceito da verdade como concordância entre o ser e o pensamento, sugere um novo conceito de verdade. Segundo ele, verdadeiro significa aquilo que é útil e vantajoso para a vida e a sobrevivência do indivíduo, ou de um grupo ou uma classe social.
Essa concepção pragmatista da verdade, fundada pelos filósofos americanos C. Pierce e W. James, tornou-se a filosofia oficial do businessman americano. Teve também muitos fervorosos adeptos na Inglaterra, França, Alemanha e outros países.
Assim, por exemplo, Nietzsche escreve que "A verdade não é um valor teórico, mas apenas uma expressão para designar a utilidade, para designar aquela função do juízo que conserva a vida e serve à vontade de poder".
3 — CRÍTICA DO CETICISMO SISTEMÁTICO
Parece incrível que filósofos de tão grande envergadura e fama tenham sustentado teorias tão frágeis e incoerentes.
Acontece que para compreender isso é preciso levar em consideração certos fatores históricos restritivos, entre os quais salientamos:
1) o atraso relativo do espírito científico e dos instrumentos de pesquisa científica não permitiam um conhecimento científico mais profundo das coisas.
2) o interesse consciente ou inconsciente dos ideólogos em difundir tais ideias errôneas por razões de ordem social e política.
Assim, o ceticismo absoluto e suas modalidades relativas têm raízes gnosiológicas e raízes ideológicas ou sócio- políticas.
Vejamos as raízes gnosiológicas, para depois vermos as raízes ideológicas ou sócio-políticas.
1) As raízes gnosiológicas do ceticismo
A crítica dos céticos contra os dogmáticos tem fundamento. De fato, os nossos conhecimentos não têm valor absoluto de verdades eternas e imutáveis. Nossos conhecimentos são relativos por várias razões:
1) Os nossos conhecimentos sobre certos fatos e fenômenos da natureza, sobretudo do homem e da sociedade, são precários e muitas vezes errôneos. Por exemplo, nossa atual ignorância a respeito da causa ou das causas do câncer. Na antiga Grécia e mesmo no tempo de Kant, a nossa ignorância era muito maior a respeito de todas as coisas.
2) Nossos conhecimentos científicos são, em geral, verdades incompletas e válidos apenas dentro de certos limites. Por exemplo, nossos conhecimentos a respeito da estrutura interna da matéria ou do pensamento.
3) Certos objetos da realidade mudam de essência por determinação de certas causas materiais e com isso tornam caducos os nossos conhecimentos a respeito dos mesmos. Por exemplo: a psicologia da mulher que trabalha fora do lar e é economicamente independente é muito diferente, em sua essência, da mulher do tipo clássico economicamente dependente dos pais ou do marido.
a) O ceticismo sistemático e a dúvida metódica
Assim, uma certa dose de ceticismo e de dúvida é sempre salutar para o avanço dos conhecimentos. Mas não devemos confundir o ceticismo sistemático com o ceticismo metódico ou a dúvida metódica de Descartes e dos cientistas em geral, que consiste em começar a pôr em dúvida tudo que se apresenta à consciência como certo e verdadeiro, para eliminar deste modo todo o falso, até chegar a um conhecimento seguro.
Enquanto o ceticismo sistemático e radical é negativo e improdutivo, pois desiste de toda a possibilidade de conhecer as coisas, a dúvida metódica ou o espírito crítico só aceita algo como verdadeiro depois de ser provado — o que é uma das exigências fundamentais do espírito científico.
O ceticismo só na aparência parece com a dúvida metódica e o espírito crítico. Mas entre eles há uma diferença fundamental. Enquanto os partidários da dúvida metódica acreditam que a razão pode em princípio conhecer tudo e guardam um salutar espírito crítico até conseguir provas suficientes, os céticos sistemáticos partem do pressuposto de que, em princípio, a razão humana é impotente para conhecer os enigmas do universo.
Mas os céticos de toda laia não têm razão em negar a possibilidade de chegar à certeza, de conhecer a verdade objetiva.
Nossos conhecimentos científicos, embora relativos e mutáveis, refletem mais ou menos fielmente parte da realidade e têm partículas de verdade absoluta. Por exemplo: a tese de que a Terra é redonda e gira em torno de si e do Sol. E assim todos os princípios, leis e teorias científicas comprovados pela prática.
Os céticos mais moderados, como os agnósticos, acreditam na possibilidade de conhecer em geral os objetos e fenômenos circundantes, que existem fora de nossa consciência, mas põem limites a esses conhecimentos e consideram que o objeto do conhecimento é uma criação do sujeito. É o caso do apriorismo kantiano, segundo o qual o conhecimento é possível graças ao fato de vestirmos os objetos do conhecimento com formas de nossa sensibilidade e as categorias de nosso entendimento, formas estas que não existiriam nos objetos, mas apenas no sujeito.
O ponto de partida de Kant — a existência dessas formas (que ele chama de juízos sintéticos a priori) — é um falso pressuposto. Tais formas ou juízos não existem. Negada a existência dos juízos sintéticos a priori, rui por terra todo o sistema de Kant.
É óbvio que as formas e os conceitos apriorísticos de Kant lembram as "ideias inatas" de Descartes (que, segundo ele, teriam sido colocadas em nós por Deus) ou as "verdades eternas" de Leibniz ou ainda as "ideias eternas" de Platão, que existiriam algures, antes e independentemente da experiência humana.
Como observou muito bem Locke, se houvesse no homem ideias inatas, essas ideias gerais seriam conhecidas antes das coisas particulares dadas na experiência; ora, na realidade, o conhecimento do particular precede o conhecimento do geral.
Se houvesse ideias inatas, manifestar-se-iam, sobretudo, nos seres mais próximos da natureza, crianças, iletrados, selvagens; ora, esses seres ignoram tais ideias. Só o homem adulto e culto conhece os conceitos gerais.
b) Como surgem os conceitos
O conceito é uma representação mental abstrata e geral, é uma forma superior de conhecimento que permite expressar os caracteres gerais e essenciais das coisas e dos fenômenos da realidade objetiva. O conceito não existe dentro do nosso espírito como elemento a priori, inato, anterior à experiência, nem fora de nós, como uma coisa ou entidade real. É o erro dos que reificam ou coisificam os conceitos abstratos.
Na realidade objetiva não existem os conceitos de causalidade, quantidade, etc., como tal. Ninguém pode ver, tocar, cheirar o conceito quantidade, qualidade, etc., como tal, como uma coisa real. O conceito só existe no nosso espírito, como reflexo de fatos e fenômenos que existem fora de nós.
Por exemplo, o conceito de mortalidade como tal não existe antes e fora de nós. O que existe são seres particulares vivos, que nascem e morrem. Depois de observar muitas vezes, pela experiência individual e da humanidade, no decorrer dos séculos, o homem chegou à conclusão que todos os seres vivos morrem, isto é, são mortais. Portanto, o conceito de mortalidade é apenas uma representação mental, geral e abstrata para expressar esse fato real, particular e concreto.
Tanto os conceitos como as leis científicas só existem no espírito do sujeito cognoscente, mas seu conteúdo é objetivo, isto é, eles refletem os fenômenos objetivos.
Os conceitos gerais são extraídos dos objetos e fenômenos da realidade objetiva, pelos processos mentais de análise, síntese, abstração e generalização de uma grande massa de fatos singulares: faz-se abstração dos elementos fortuitos, das propriedades não-essenciais, para formar conceitos que refletem as relações e os caracteres essenciais, fundamentais, de um grupo de fatos e fenômenos da realidade objetiva.
Pelo fato de serem extraídas da realidade objetiva, todas as noções científicas são representações mentais dessa realidade.
Portanto, é totalmente falsa a afirmação de Kant e de seus epígonos que os conceitos e as categorias são a priori, anteriores e independentes da experiência e impostos pelo espírito aos objetos do conhecimento.
c) Não existem "coisas em si" incognoscíveis
Também é errônea a afirmação dos agnósticos a respeito da impossibilidade de conhecer os problemas ontológicos chamados metafísicos, que eles consideram como transcendentais, além deste mundo sensível, tais como a infinitude do universo, a existência de Deus, a imortalidade da alma, o livre-arbítrio, etc.
Alguns desses problemas "transcendentais", tais como a existência de um Deus criador e legislador, e a existência de uma alma espiritual livre e independente já foram solucionados negativamente pela filosofia científica. Outros, tais como a finitude ou infinitude do universo no tempo e no espaço, ainda não o foram, mas o serão algum dia, talvez num futuro não muito longínquo. Aliás este é o único problema realmente "metafísico" e "transcendental", por ser difícil de demonstrá-lo cientificamente; porém, já existem várias tentativas de demonstrar teoricamente que o universo é infinito no espaço e no tempo.
Kant abre um abismo artificial entre o númeno e o fenômeno. A "coisa em si" incognoscível de Kant é uma abstração morta, vazia de sentido. No final das contas a "coisa em si" transforma-se num símbolo estéril, num puro nada, numa coisa impensável.
A própria vida, a cada momento, refuta o ceticismo sistemático, tanto o ceticismo absoluto como o ceticismo relativo e suas inúmeras modalidades, demonstrando que o homem é capaz de conhecer a verdade objetiva, a essência das coisas, válida universalmente.
O desenvolvimento impetuoso da ciência e da técnica demonstram que não existem "coisas em si" incognoscíveis, que há somente uma diferença entre o que já é conhecido ("coisa para nós"), e o que ainda não é conhecido ("coisa em si"), mas que o será graças à ciência e à prática. Uma vez conhecida, a "coisa em si" se converte em "coisa para nós".
Se as pessoas conseguem reproduzir artificialmente as coisas é porque conseguiram conhecer a essência das mesmas. Por exemplo, a borracha natural era uma "coisa em si" até o dia em que a química conheceu sua essência e começou a produzir, por meio de síntese química, a borracha sintética, transformando assim a "coisa em si" em uma "coisa para nós". Outro exemplo, a energia atômica era uma "coisa em si" até há pouco tempo, mas a ciência contemporânea descobriu sua essência e aprendeu a produzi-la. Por conseguinte, a energia atômica também se converteu em uma coisa para nós".
A quantidade de coisas conhecidas aumenta cada vez mais, num ritmo acelerado, à medida que se desenvolvem os conhecimentos científicos e técnicos do homem. Não é isto uma demonstração irrefutável da validade objetiva e universal dos nossos conhecimentos? Não é isto uma prova convincente de que a razão humana tem a possibilidade de conhecer o númeno, a coisa em si", a essência das coisas?
A atividade prática e teórica do homem refuta o agnosticismo e todas as modalidades de ceticismo. Quer se trate da natureza ou da sociedade, o conhecimento científico se estende e se aprofunda sem cessar. Não há limites absolutos ao conhecimento humano. Não há na natureza coisas incognoscíveis. Há somente uma diferença entre o já conhecido e o que ainda não o é, mas o será graças à atividade prática e científica do homem.
2) As raízes ideológicas do ceticismo
Por mais incrível e paradoxal que pareça, o ceticismo sistemático leva ao seu contrário, àquilo que pretende combater — o dogmatismo moral e religioso.
O objetivo social e político secreto, consciente ou subconsciente, do ceticismo sistemático, em qualquer de suas variedades e nuanças, é o mesmo do idealismo filosófico, sobre o qual já falamos: decretar a impotência da razão humana para conhecer os segredos do universo e, desse modo, justificar ou abrir caminho para o irracionalismo, o misticismo ou o fideísmo, em uma palavra, para a concepção religiosa do mundo.
Já que a razão é limitada para conhecer a essência das coisas e as ideias transcendentais e teológicas (Deus, imortalidade, liberdade, etc.), então o agnosticismo apela para o dogmatismo moral da razão prática ou deixa o caminho aberto para conhecê-las por meios irracionais (fé, intuição metafísica ou mística, etc.), como nas diferentes doutrinas do dogmatismo irracional.
Toda a filosofia de Kant é um esforço teórico para fundamentar a ciência sem cair no materialismo e no ateísmo e, ao mesmo tempo, justificar os dogmas da religião, baseada na fé e na necessidade moral.
Para fugir ao materialismo e ao ateísmo, Kant sentia a necessidade de provar a subjetividade do espaço; receava o argumento de que, se considerasse o espaço como objetivo e material, Deus deveria existir no espaço, e ser, por conseguinte, espacial e material.
Receoso de que a crença em Deus desaparecesse com o progresso da ciência, por não ser possível vê-lo através do telescópio ou outros meios ou instrumentos científicos de observação, Kant e outros ideólogos da burguesia entenderam que a fé em Deus se robusteceria se mostrassem que suas ideias centrais e básicas são a priori e inatas em todas as almas normais.
É por isso que para Kant o conhecimento só é possível através das formas puras "transcendentais", condições a priori do conhecimento. As leis científicas seriam leis do nosso espírito e não leis das coisas.
Schopenhauer observou muito bem que Kant era verdadeiramente um cético e que, havendo deixado de crer, hesitava em destruir a fé popular, receoso das consequências na moral pública. "Kant patenteia a falta de alicerces da teologia especulativa e deixa intacta a teologia popular, chegando mesmo a estabelecê-la em mais nobre forma, como o é uma fé baseada no sentimento moral." Segundo Schopenhauer, o desejo de Kant era, "por meio da teologia moral, fornecer alguns frágeis e temporários suportes à fé, para que seus escombros não caíssem sobre ele, tendo, assim, tempo de fugir-lhes" (citado por W. Durant, História da filosofia, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1966, p. 276. Ver também pp. 249, 273 e 275).
Como toda a sua filosofia, a teoria do conhecimento de Kant foi uma reação ao materialismo e ateísmo francês; com ela, Kant propunha-se restaurar o idealismo, reabilitar Deus e a religião, bastante alquebrados sob os golpes dos pensadores materialistas. Kant queria conciliar a ciência com a religião. Sua teoria do conhecimento propunha-se a limitar os direitos da razão e deixar um lugar para Deus, como ele mesmo reconheceu.
Assim o agnosticismo — essa modalidade de ceticismo sistemático e relativo — leva ao irracionalismo e fideísmo. É necessário contudo distinguir duas variantes de agnosticismo:
1) O agnosticismo idealista e fideista, que nega radicalmente à razão a capacidade de conhecer a essência das coisas e prega a necessidade de recorrer a meios irracionais, como a fé, para fundamentar a existência das ideias transcendentais; e
2) O agnosticismo materialista e ateu, que acredita na capacidade da razão de conhecer o mundo, em geral, mas nega a possibilidade de conhecer as ideias metafísicas e transcendentais.
O agnosticismo materialista é o espírito positivo em matéria de ciência e cético em matéria metafísica e religiosa.
Esse tipo de agnosticismo recebeu muita difusão entre os cientistas dos séculos XIX e XX, que na sua especialidade eram materialistas e acreditavam na possibilidade de conhecer as leis da natureza e da sociedade, mas na questão dos problemas metafísicos declaravam-se agnósticos, isto é, achavam impossível dar-lhes uma solução positiva ou negativa.
No fundo desse agnosticismo dos cientistas esconde-se um materialismo e ateísmo mal disfarçados, uma forma vergonhosa de aceitar o materialismo e o ateísmo às escondidas e de renegá-los em público.
É uma atitude e posição oportunista, típica do intelectual de classe média da sociedade capitalista.
Sabe-se muito bem que nas sociedades capitalistas só são considerados e amparados os ideólogos que, direta ou indiretamente, defendem as ideias que refletem os interesses das classes dominantes e da religião oficial. Qualquer filósofo ou cientista que defenda ideias contrárias à religião oficial e aos interesses da classe dominante é por todos os meios perseguido e sabotado. Ou não são aceitos em cargos oficiais ou são dispensados dos mesmos se já estão lá.
Num ambiente desse é perfeitamente compreensível, embora não justificável, a atitude oportunista do agnóstico materialista e ateu. É uma questão de sobrevivência. Só alguns filósofos e cientistas destemidos têm a coragem de defender suas ideias progressistas até o último suspiro.
Mas esse tipo de agnosticismo materialista também desemboca no fideísmo, pois se não afirma a existência das ideias transcendentais (Deus, etc.) também não a nega.
O ceticismo sistemático e relativo, em qualquer de suas modalidades, é uma posição sui generis que corresponde exatamente às necessidades da burguesia imperialista, que não pode dispensar o desenvolvimento das ciências a serviço da produção, mas que, ao mesmo tempo, estabelece um limite ao conhecimento científico para deixar um lugar para a fé e a religião.
Manter na ignorância e no obscurantismo clerical o povo em geral e sobretudo os povos de nações subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento é o melhor meio de continuar a subjugá-los e explorá-los, e, desse modo, impedi-los de progredir e obter sua independência econômica e política.
Assim, igual ao idealismo filosófico, o ceticismo sistemático em qualquer de suas variedades desempenha um papel reacionário ao combater as forças do progresso e democracia.
Para um país em desenvolvimento como o nosso, que luta pela sua independência econômica e política, é de vital importância rejeitar qualquer modalidade do idealismo e do ceticismo gnosiológico e armar seus quadros intelectuais com uma teoria científica do conhecimento, a fim de alcançar o mesmo desenvolvimento econômico e social das grandes nações.
O conhecimento científico e tecnológico é a arma mais poderosa e decisiva para o êxito do desenvolvimento multilateral tanto na vida individual como no destino de um país.
3) A função positiva e negativa da religião
A religião tem uma função positiva muito prática e útil: colocar um freio moral às aspirações das massas populares, que não tendo ainda o discernimento suficiente para distinguir, por si mesmas, o bem do mal, são obrigadas a praticar o bem e evitar o mal por força de sanção religiosa. Em vez de obrigá-las pela força física, se as obriga pela força espiritual a manter-se na submissão e moralidade.
Por outro lado, a religião serve de consolo para as camadas pobres da população, que, não podendo realizar suas necessidades e seus desejos neste mundo terreno, embalam-se com os sonhos de realizá-los no mundo celestial do além.
Além do mais, através das preces, que se baseiam nas leis naturais da sugestão e autossugestão, a religião dá aos crentes um poderoso meio de obter o que se aspira; quando a técnica das preces é aplicada com verdadeira fé e fervor, pode operar milagres.
Por estas e outras razões, a educação moral e religiosa do povo é absolutamente necessária para garantir a ordem social, até o dia em que todos se tornarem seres humanos suficientemente responsáveis e autoconscientes de seus direitos e deveres para com a sociedade em que vivem.
Nas sociedades ateias como a URSS e a China, onde foi banida a religião como cosmovisão, e com isso desapareceu a sanção religiosa, utilizam-se outros tipos de sanções: satírica, moral, crítica, política, jurídica e policial. E quando esses meios legais mostram-se ineficientes, recorrem a meios mais drásticos e desumanos, tais como as prisões, internamento nos campos de concentração e nos hospitais psiquiátricos, etc.
Mas, ao lado deste aspecto, positivo, a religião tem um aspecto muito negativo: consagrando a incapacidade da razão de conhecer o mundo, tratando de convencer de que tudo acontece pela vontade de um Deus onipotente e providencial, a religião condena o homem à passividade, leva ao fatalismo, à renúncia ao conhecimento do mundo e de suas leis e, consequentemente, à renúncia à luta pela transformação desse mundo.
A religião adormece o indivíduo e ele começa a esperar de um Deus legislador o estabelecimento de uma sociedade mais justa e humana, em que ele possa viver mais humanamente. É nesse sentido que Marx disse que a religião é o ópio do povo. Em outros termos, a religião desempenha um papel conservador e reacionário.
Ora, se até certo ponto é compreensível o uso da religião como ópio para adormecer as grandes massas populares inconscientes e irresponsáveis, não se pode compreender que esse mesmo ópio adormeça também os quadros intelectuais, que serão os futuros dirigentes do país, e dos quais depende o desenvolvimento econômico e cultural da nação, desenvolvimento esse que permitirá a emancipação econômica e política do país e sua entrada no rol das grandes nações soberanas.
Portanto, os dirigentes das nações interessados no seu desenvolvimento e na sua independência econômica e política, se querem ser bem sucedidos, terão que adotar uma ideologia progressista, incentivando por todos os meios uma concepção científica do mundo e, antes de tudo, uma teoria científica do conhecimento. Pois, como já mostramos, conhecer a verdade traz poder, liberdade e independência.
B — SOLUÇÕES POSITIVAS
Entre as doutrinas que acreditam na possibilidade de conhecer a verdade, isto é, a essência das coisas, podemos distinguir: o dogmatismo e o materialismo dialético.
1 — DOGMATISMO GNOSIOLÓGICO
O dogmatismo gnosiológico é a doutrina que crê na possibilidade de conhecer a verdade absoluta de modo direto e imediato, por meios empíricos, racionais ou suprarracionais.
Podemos distinguir duas modalidades de dogmatismo: o dogmatismo ingênuo e o dogmatismo absoluto ou sistemático.
1) Dogmatismo ingênuo
Historicamente é a mais antiga (por exemplo, no homem primitivo) e psicologicamente a primeira (por exemplo, na criança) concepção do homem comum e inculto, segundo a qual as coisas, com todas as suas propriedades, são tais como as vemos e sentimos.
Para o dogmático ingênuo ainda não existe o problema do conhecimento. Considera como óbvia a possibilidade de um contato direto entre o sujeito e o objeto. Ele ignora que o conhecimento é essencialmente uma relação entre o objeto e um sujeito. Ele desconhece de certo modo o sujeito.
Como o dogmatismo ingênuo ainda é uma atitude pré-científica e pré-crítica, pode descambar facilmente para o misticismo e irracionalismo.
No dogmatismo absoluto ou sistemático, podemos distinguir o dogmatismo racional e o dogmatismo irracional.
2) Dogmatismo racional
Doutrina segundo a qual podemos conhecer a verdade absoluta diretamente por meios racionais, mas considera a razão como faculdade suprassensível, independente de toda a experiência, inexplicável portanto pela experiência. Essa concepção do dogmatismo racional é encontrada nas formas platônica, aristotélica, escolástica ou cartesiana: reminiscência das ideias eternas, como em Platão; encarnação do inteligível puro, como em Aristóteles; a fé, razão derivada da inteligência incriada, como em São Tomás; "luz natural" posta em nós pelo Criador e que parece "a marca do obreiro na obra", como em Descartes; "visão direta em Deus", como em Malebranche, e outras doutrinas em que a razão aparece sempre como verdadeira participação no absoluto.
3) Dogmatismo irracional
Além do dogmatismo racional existem outras variedades do dogmatismo absoluto que pregam a possibilidade de alcançar a verdade absoluta de modo direto por meios irracionais ou suprarracionais, através da intuição (intuicionistas), como, por exemplo, em Bergson, ou através da fé (fideístas), como, por exemplo, nas doutrinas religiosas.
Entre estas é interessante citar o gnosticismo, doutrina de diversas seitas religiosas e místicas dos séculos II e III d.C., cujos iniciados pretendiam ter do ser supremo e de todas as coisas um conhecimento absoluto e total, bem superior ao ensinado pela Igreja. Uniam a teologia cristã ao neoplatonismo e ao pitagorismo.
De acordo com os gnósticos, todos os seres espirituais nascem como emanações de Deus. Os gnósticos prepararam o terreno para os escolásticos da Idade Média.
Crítica. Como se vê, os dogmáticos creem piamente que a verdade absoluta pode ser conhecida de modo direto, quer pelos sentidos (os empíricos), quer pela razão (os racionalistas), quer pela intuição (os intuicionistas) ou pela fé (fideístas) ou outros meios suprarracionais (irracionalistas).
Os dogmáticos têm razão em defender a possibilidade de conhecer a verdade, a essência das coisas. Entretanto, a verdade objetiva e absoluta não pode ser conhecida de um modo direto e imediato. O conhecimento da verdade é um processo longo, complexo e indireto, entre o objeto e o sujeito cognoscente.
Se fosse possível conhecer a verdade, a essência das coisas, a verdade absoluta, de um modo direto e imediato, não haveria nenhuma necessidade das ciências. Estas nasceram e continuam se desenvolvendo justamente para fornecer ao homem um conhecimento mais completo e profundo das coisas.
O dogmatismo gnosiológico, qualquer que seja a variante, leva inevitavelmente ao irracionalismo, misticismo e fideísmo.
2 — MATERIALISMO DIALÉTICO
No fim do capítulo anterior dissemos que um dos princípios fundamentais do materialismo dialético afirma que o mundo material e suas leis são perfeitamente cognoscíveis, e as nossas sensações, representações e conceitos são reflexos das coisas que existem fora de nossa consciência e, consequentemente, as verdades científicas têm caráter objetivo.
A posição do materialismo dialético (ou diamate) é intermediária entre o dogmatismo e o ceticismo relativo. Os adeptos do materialismo dialético afirmam, juntamente com os relativistas, que os nossos conhecimentos são relativos, na etapa atual, mas creem na possibilidade de conhecer a verdade absoluta, não de modo imediato como afirmam os dogmáticos, mas sim, paulatinamente.
Há um movimento permanente, progressivo de aproximação do nosso pensamento ao objeto, do conhecimento incompleto ao conhecimento mais completo, do fenômeno ao númeno, da verdade relativa à verdade absoluta.
Ao contrário do agnosticismo, o diamate nega que haja "coisas em si" incognoscíveis, e afirma que há unicamente coisas ainda não conhecidas. Graças ao desenvolvimento das ciências e da técnica, o númeno, a essência das coisas, a "coisa em si", vai se tornando em "coisa para nós". Os conhecimentos que o homem possui sobre o mundo são fidedignos, sua razão é capaz de penetrar na natureza interna das coisas e conhecer sua essência.
Em oposição ao idealismo, ao apriorismo e ao criticismo, o materialismo dialético rejeita o divórcio entre a matéria e a forma do conhecimento, e afirma que todas as propriedades e as formas sensíveis e conceptuais (que Kant chama de formas a priori da sensibilidade e do entendimento) pertencem aos objetos.
Assim, tanto as propriedades sensíveis quantitativas, chamadas primárias (como a forma, o volume, o movimento, etc.), como as propriedades qualitativas, chamadas secundárias (como a cor, o som, o calor, o odor, o sabor, a dureza, etc.), pertencem ao objeto e não ao sujeito. A nossa consciência nada mais faz que reproduzi-las mais ou menos fiel e completamente.
Essas propriedades sensíveis não são na realidade exatamente como as percebemos (como pensam os dogmáticos e os materialistas ingênuos), mas são movimentos corpusculares da matéria (o som, o calor) ou irradiação de energia de diferentes frequências (a luz, as cores) ou outras radiações eletromagnéticas emanadas pelos objetos materiais que produzem em nossa consciência imagens correspondentes. Essas propriedades representam reações de nossa consciência a determinados estímulos e ações externas, provindas das coisas, que incidem nos órgãos dos sentidos, produzindo em todas as pessoas normais as mesmas sensações, percepções e imagens.
Quanto ao espaço e ao tempo, o diamate os considera como formas de existência da matéria, formas essas que têm caráter objetivo, existem fora de nossa consciência e são a posteriori, isto é, existem depois da experiência.
Quanto aos conceitos gerais e às categorias como a quantidade, qualidade, causalidade, etc., eles só existem na nossa consciência, mas como reflexos das propriedades e relações que existem nos objetos. São, portanto, a posteriori, isto é, aparecem depois da experiência.
Assim, não é a dialética das ideias que produz a dialética das coisas (como pensam os kantianos), mas, ao contrário, é a dialética das coisas que produz a dialética das ideias. "O movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transportado e transposto no cérebro do homem" (Marx, em posfácio à segunda edição alemã de O capital).
Em outros termos, os conhecimentos que se encontram na consciência do sujeito em forma de sensações, percepções, representações, noções, conceitos, categorias e leis científicas, refletem os objetos, os fatos, os fenômenos, suas propriedades, bem como as relações existentes entre eles.
O materialismo dialético foi a primeira doutrina filosófica na história do pensamento humano a elaborar uma teoria científica do conhecimento, a dar uma explicação científica da natureza do conhecimento e do processo cognoscitivo. A gnosiologia diamática toma por base a realidade objetiva do mundo exterior que existe independentemente da consciência dos homens, e considera o conhecimento como o reflexo ativo desse mundo objetivo na consciência do sujeito cognoscente.
Não vamos aqui nos deter mais demoradamente no exame da gnosiologia diamática, porque os próximos capítulos serão consagrados à exposição mais detalhada dos princípios fundamentais do conhecimento à luz do materialismo dialético criativo. Dizemos "criativo" porque, tanto pela temática como pela interpretação, nossa abordagem difere bastante daquilo que existe nos autores marxistas ortodoxos (soviéticos ou não), como aliás aconteceu até aqui.
Já vimos que do ponto de vista da gnosiologia científica o conhecimento é o reflexo e a reprodução do objeto na mente.
No processo do conhecimento participam os sentidos, a razão, e a intuição. Pergunta-se: qual deles é a origem, a fonte e a base principal do conhecimento humano? Na questão de saber o lugar e a importância deles no conhecimento da verdade há divergências de opiniões. Na história da filosofia apareceram diferentes doutrinas a respeito:
EMPIRISMO (do grego empeiria = experiência)
Doutrina que afirma que a única fonte de nossos conhecimentos é a experiência, recebida pelos nossos sentidos. Seu axioma fundamental é: "Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu". Isto é, "nada existe no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos".
Os empiristas consideram que o conhecimento empírico, sensível, obtido através dos órgãos dos nossos sentidos, é suficiente para conhecer a verdade. Ao nascer, a mente humana está completamente vazia, assemelhando-se a uma tábua rasa, uma folha em branco, na qual a experiência escreve. Todos os nossos conhecimentos, incluindo os mais gerais e abstratos, o sujeito cognoscente tira da experiência. A razão não agrega nada de novo, pois limita-se simplesmente a unir e ordenar os diferentes dados da experiência. É suficiente a razão se afastar dos dados da experiência para cair no erro, desligar-se da realidade.
Os representantes principais do empirismo foram Locke, Hume, Condillac, Stuart Mill, e outros. O
Crítica: O mérito dos empiristas foi assinalar com energia a importância da experiência na origem dos nossos conhecimentos. Eles têm razão ao afirmar que não existem ideias inatas, que antes da experiência não há, e nem pode haver conhecimento sobre o mundo exterior. O ponto fraco dos empiristas é subestimar o papel da razão, do pensamento abstrato, e a sua diferença qualitativa em relação ao conhecimento empírico.
Os nossos sentidos nos dão somente o conhecimento dos fenômenos. A essência das coisas, o númeno, só pode ser alcançada pela razão, pelo pensamento abstrato.
2 — RACIONALISMO (derivado do latim ratio = razão)
Doutrina que afirma que a razão humana, o pensamento abstrato, é a única fonte do conhecimento da verdade.
Ao contrário dos empiristas, afirmam que os nossos sentidos nos enganam e nunca podem conduzir a um conhecimento verdadeiro, pois que o mundo da experiência se encontra em contínua mudança e alteração.
Segundo o racionalismo, um conhecimento é verdadeiro somente quando é logicamente necessário e universalmente válido. Esse conhecimento só pode ser alcançado pela razão.
Adeptos do racionalismo: Platão, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant e outros.
Segundo a teoria das ideias inatas de Descartes, ou das formas a priori de Kant, os conceitos fundamentais do conhecimento são-nos inatos, isto é, nascem conosco, e, portanto, não procedem da experiência, são a priori, isto é, anteriores à experiência.
Crítica: O mérito do racionalismo consiste no fato de sublinhar o importante papel ativo e criador da razão, do pensamento abstrato, no conhecimento da verdade, da essência das coisas. Mas erra ao divorciar a razão da experiência, ao desprezar o papel dos sentidos, considerando que a razão, independente da experiência, pode conhecer a verdade.
Raízes gnosiológicas do racionalismo: Os racionalistas partem da consciência do homem adulto e culto, que adquiriu muitas ideias, axiomas e princípios da razão. Mas eles se esquecem que essas ideias, princípios e axiomas tiveram uma origem empírica. Depois de serem repetidas milhares de vezes pelo pensamento, essas verdades objetivas se tornaram evidentes e axiomáticas e criam a impressão de serem a priori, inatas, congênitas e inerentes à razão humana.
3 — INTUICIONISMO
Pecam no mesmo erro os intuicionistas, como Bergson e outros, quando afirmam que é possível conhecer diretamente a verdade, o absoluto, sem o auxílio dos sentidos e da razão, através de uma faculdade irracional ou sobrenatural chamada intuição, com a qual estariam dotadas, segundo eles, apenas algumas elites privilegiadas, eleitas por uma força sobrenatural (Deus, etc.).
A intuição desempenha um papel muito importante no conhecimento da verdade, mas ela não funciona sem os dados empíricos e racionais.
Estudaremos esse ponto mais detalhadamente no capítulo sobre o conhecimento intuitivo.
4 — MATERIALISMO DIALÉTICO
Como vimos, tanto o empirismo como o racionalismo e o intuicionismo são doutrinas unilaterais. Enquanto o primeiro considera os nossos sentidos (a experiência) como a base e a fonte do conhecimento, o segundo considera a razão e o terceiro, a intuição.
A verdade no caso está na síntese dialética das três teorias extremas o materialismo dialético. Segundo essa doutrina, os três fatores, os sentidos, a razão e a intuição, tomam parte na elaboração do conhecimento.
Na nossa atividade prática, obtemos, por meio de nossos órgãos dos sentidos, imagens sensíveis dos objetos concretos. Nesses mesmos objetos encontram-se implícitas (ocultas, em potência) suas qualidades não-sensíveis, a sua essência. Só é preciso extraí-la. Isso tem lugar por obra da nossa razão e da intuição, pelo entendimento ativo ou pelo intelecto. Como indica a palavra (intelligere, de intus legere = ler no interior), a inteligência cognoscente lê na experiência, tira da experiência os seus conceitos. Dos conceitos assim extraídos, obtêm-se, por meio de operações da razão, os conceitos mais abstratos e mais gerais, como os que estão contidos nas categorias e nos princípios da razão.
O materialismo dialético estabeleceu que o conhecimento não é um reflexo simples, passivo, inerte, "fotográfico", da realidade, mas um processo dialético complexo.
Esse processo se desenvolve por etapas ligadas entre si e que se sucedem uma à outra. Lênin expressou admiravelmente a essência desse processo e mostrou como a realidade se reflete em cada grau do conhecimento da verdade objetiva: "Da contemplação viva ao pensamento abstrato, e deste à prática — tal é o processo dialético do conhecimento da verdade, do conhecimento da realidade objetiva" (Cadernos filosóficos, edição russa, Moscou, 1947, pp. 146-147).
A razão está intimamente ligada aos nossos sentidos. Os dados do sentido são a base, o fundamento dos nossos conhecimentos, mas não todo o seu fundamento. A razão, o pensamento, na base desses conhecimentos, vai além, em busca da essência das coisas que não estão ao alcance dos sentidos.
A razão sem os dados empíricos é vazia.
A experiência sem a razão é cega.
Não há ideias inatas, nem a priori, anteriores à experiência. Do ponto de vista biológico, as ideias não se herdam. Herda-se apenas o mecanismo da atividade nervosa que serve de base fisiológica para o conhecimento. Os conhecimentos práticos e teóricos acumulados pelas gerações precedentes são herdados, socialmente, através da instrução, da educação ou adquiridos pela própria experiência individual no processo da atividade prática e teórica.
5 — AS ESPÉCIES E FORMAS DO CONHECIMENTO
Assim, existem três espécies de conhecimento:
1) O conhecimento sensível ou empírico — fornecido pelos nossos órgãos sensoriais (visão, audição, tato, olfato, paladar).
2) O conhecimento racional ou abstrato — obtido pela razão ou intelecto.
3) O conhecimento intuitivo ou criativo — obtido pela intuição.
Cada espécie de conhecimento se manifesta em formas peculiares de conhecimento, segundo o quadro abaixo:
Espécies de conhecimento
Formas de conhecimento
1) Sensível ou empírico
a) sensação
b) percepção
c) representação
2) Racional ou abstrato
a) conceitos
b) juízos
c) raciocínio
3) Intuitivo ou criativo
a) intuição sensível
b) intuição racional
c) intuição heurística
Examinemos, brevemente, cada espécie de conhecimento com as respectivas formas em que elas se revestem.
O conhecimento sensível ou empírico é o conhecimento da realidade através dos nossos sentidos (vista, ouvido, tato, olfato, paladar). Todo objeto material, fora de nós, tem propriedades sensíveis que podem ser conhecidas pelos nossos sentidos, tais como cor, som, temperatura, dureza, vibração, cheiro, gosto, extensão, volume, forma, quantidade, movimento, etc.
Formas em que aparece o conhecimento sensível:
1 — Sensação
2 — Percepção
3 — Representação
1 — SENSAÇÃO
É uma imagem subjetiva, do mundo objetivo. Os objetos exteriores, atuando nos órgãos dos sentidos, produzem imagens no nosso cérebro. A sensação é o reflexo em nosso cérebro de uma ou mais qualidades sensíveis isoladas dos objetos exteriores, por exemplo: a sensação da forma da laranja, de seu peso, de sua cor, de seu cheiro, de seu gosto ou de seu tato.
2 — PERCEPÇÃO
É o reflexo do conjunto das qualidades sensíveis dos objetos exteriores. Reflete o objeto como um todo em sua forma sensível. Exemplo: a percepção de todas as qualidades sensíveis da laranja.
3 — REPRESENTAÇÃO
É a reprodução na mente das qualidades sensíveis do objeto. Na representação a presença do objeto não é obrigatória.
Graças à memória, pensamos no objeto e o representamos na mente com todas as suas qualidades. Por exemplo: a imagem de uma laranja ou de um antigo colega de escola que não víamos há muito tempo.
A representação, que também chamada, às vezes, de imaginação reprodutora, por alguns autores, é a forma de conhecimento que serve de ponte entre o conhecimento empírico e o abstrato, o elo intermediário entre a percepção sensível e o conceito abstrato.
4 — IMAGINAÇÃO CRIADORA
É a faculdade de construir na mente um objeto com qualidades que existem na natureza, mas que necessariamente não pertencem ao objeto na conexão dada. Por exemplo: imaginar uma laranja maior e mais doce, ou uma nova fruta com qualidades peculiares a duas frutas e espécies diferentes: a lima, que tem qualidades do limão e da laranja, uma casa diferente das outras, etc.
5 — FANTASIA
É a faculdade de construir imagens dos objetos com qualidades que talvez nem existam na natureza na conexão dada. Por exemplo: o centauro (monstro fabuloso com cabeça de homem e corpo de cavalo), a sereia, o saci-pererê, etc.
Alguns autores de obras de ficção científica ou de realismo mágico afirmam que "tudo que a fantasia do homem possa imaginar já existiu, existe ou existirá no futuro". Essa afirmação, por mais fascinante que seja, não é verdadeira. Nossa fantasia pode imaginar coisas que nunca existiram e nunca poderão existir. Por exemplo: podemos imaginar uma escultura de pedra, com forma e qualidades humanas, que sente, pensa, fala e age. No entanto isso é uma possibilidade irreal, inexequível, pois a pedra é um ser bruto, inanimado, completamente destituído de vida sensorial, de razão e de intuição.
Por mais interessante e fascinante que sejam as criações da fantasia, é necessário ter um espírito suficientemente lúcido e crítico para não confundi-las com a realidade. Por exemplo, ninguém acredita na existência do saci-pererê, embora ele seja personagem de muitas fábulas brasileiras.
Para que o objeto de nossa imaginação e fantasia possa existir é necessário que ele seja baseado em possibilidades reais.
A imaginação e a fantasia, quando fecundas e realistas, desempenham importante papel nas artes e na ciência, criando novas obras de arte ou inventando novos objetos e descobrindo novas coisas.
Um exemplo disso temos nas obras de Júlio Verne, que previu e descreveu várias descobertas científicas, muito antes de existirem na realidade. Isso foi possível porque Júlio Verne tinha uma imaginação e fantasia fecundas e realistas, baseadas no espírito científico e filosófico mais avançado de sua época.
O conhecimento empírico é o fundamento do conhecimento, mas não todo o fundamento. O conhecimento sensível, ainda que nos forneça uma imagem verdadeira da realidade objetiva, não está em condições de penetrar na essência das coisas. Por exemplo: contemplamos uma lâmpada elétrica, mas não é possível representar que a corrente elétrica seja um fluxo de elétrons que se movem com uma velocidade fantástica. Para isso é necessário recorrer ao auxílio do conhecimento abstrato, que, baseando-se nos dados fornecidos pelo conhecimento empírico, vai mais além, até penetrar no íntimo das coisas e desvendar as leis que as regem.
O conhecimento racional, também chamado abstrato ou lógico, nos dá o conhecimento das qualidades não-sensíveis, essenciais, gerais dos objetos. O homem, ser racional, tem a razão que lhe permite penetrar no "fundo" das coisas.
Formas do conhecimento racional:
1 — Conceito
2 — Juízo
3 — Raciocínio
1 — CONCEITO (NOÇÃO OU IDEIA)
É uma imagem subjetiva do mundo objetivo, mas uma imagem mental e não-sensível como na percepção. Enquanto a imagem sensível é concreta e particular, o conceito é abstrato e geral. O conceito reflete os aspectos essenciais, universais do objeto, abstraindo-se os aspectos secundários. Exemplos de alguns conceitos, noções ou ideias: flora, fauna, ser humano, mortalidade, gravidade, etc.
Por exemplo: o conceito ou a ideia do ser humano não abrange dados concretos e particulares de idade, sexo, nacionalidade, raça, lugar e tempo. Fixa só aquilo que é essencial, geral, comum a todos os homens: animal social e racional, apto para pensar e trabalhar.
O conceito forma-se comparando todos os homens, abstraindo todos os caracteres particulares e secundários, e generalizando o que há de comum e essencial a todos os homens.
Os processos para a formação de conceitos: Assim, para formar o conceito de algo, usamos vários processos mentais: análise, síntese, abstração, generalização, etc.
1) Análise
Operação mental que consiste em decompor um todo (objeto ou fenômeno) em seus elementos constituintes, a fim de compreender o lugar que eles ocupam e o papel que desempenham no todo.
2) Síntese
Operação mental que, ao inverso da análise, consiste em recompor um todo (objeto ou fenômeno) a partir de seus elementos constituintes, a fim de compreendê-lo em sua totalidade, em seu conjunto.
3) Abstração (vem do latim ab trahere = tirar de)
Operação mental que consiste em isolar ou separar, para considerá-lo à parte, um elemento de um todo que não é separável na realidade, a fim de distinguir o acidental (particular) do essencial (geral) — aquilo que é sempre o mesmo em objetos diversos, independentemente de suas particularidades individuais.
4) Generalização
Operação mental que consiste em estender a toda uma classe de objetos ou fenômenos os elementos essenciais, gerais, universais, constatados num certo número de objetos ou fenômenos da mesma classe. É assim que se formam os conceitos. Quanto mais um conceito é abstrato mais geral ele é. Assim o conceito do ser é o mais geral e abstrato dos conceitos, pois ele abrange todos os seres existentes.
Tanto a análise e a síntese, como a abstração e a generalização são processos mentais inseparáveis uns dos outros, isto é, não existem separadamente.
Assim como com as sensações formam-se percepções e representações, com os conceitos formam-se juízos e raciocínios.
2 — Juízo
É uma relação entre dois ou mais conceitos. O juízo é uma proposição ou asserção, isto é, uma afirmação ou negação entre dois ou mais conceitos. Por exemplo: O homem é um ser social e racional.
Homem — conceito — sujeito
É — cópula — verbo que une, afirmando ou negando
Ser social e racional — conceito — predicado
3 — RACIOCÍNIO
É uma relação ou combinação de juízos, da qual se tira outro juízo chamado conclusão.
As formas de raciocínio lógico: O raciocínio lógico tem duas formas fundamentais: dedução e indução.
1) Dedução
É o raciocínio que vai do geral para o particular, isto é, desce dos princípios gerais para os fatos particulares.
O ponto de partida da dedução é sempre um princípio tido como verdadeiro a priori. O ponto de chegada é a tese ou conclusão, que aquilo que se quer provar.
Distinguem-se duas formas de dedução:
a) Dedução analítica, formal ou silogística
Utilizada na lógica formal. É um raciocínio puramente formal, onde a conclusão não dá um conhecimento novo, pois ela está implícita nos princípios. Sua forma mais importante é o silogismo, raciocínio composto de três juízos ou proposições: duas premissas (maior e menor) e uma conclusão. Exemplo de silogismo ou dedução formal:
Todos os homens são mortais (premissa maior).
Ora, Sócrates é homem (premissa menor).
Logo, Sócrates é mortal (conclusão).
Na premissa maior já está implícita a conclusão ("Sócrates é mortal").
b) Dedução sintética, construtiva ou demonstrativa
Empregada nas ciências matemáticas. A conclusão é uma proposição nova que se constrói com a ajuda dos princípios. Exemplo: num teorema de geometria a conclusão não está contida nos princípios (na hipótese), mas a demonstração consiste em construí-la com a hipótese. Por exemplo, constrói-se a soma dos ângulos de um polígono com as dos triângulos, nos quais pode-se decompor o polígono e cujo número é o de seus lados, menos dois; na álgebra constrói-se a nova forma de expressão algébrica, partindo da primeira, etc.
2) Indução
É o raciocínio que vai do particular para o geral, isto é, que sobe da observação dos fenômenos às leis que os regem, que são relações constantes e necessárias que há entre eles. O ponto de partida da indução não são os princípios (como na dedução) mas a observação dos fatos e dos fenômenos da realidade objetiva. Seu ponto de chegada é o estabelecimento de leis ou regularidades que regem ditos fatos ou fenômenos. A indução é o método científico por excelência e, por isso mesmo, é o método fundamental das ciências naturais e sociais.
Na realidade, a indução não é um raciocínio único: ela compreende um conjunto de procedimentos, uns empíricos, outros lógicos e outros intuitivos, que estudaremos mais adiante.
Distinguem-se duas formas de indução:
a) Indução formal
A lei que consiste no ponto de chegada exprime realmente a totalidade dos fenômenos observados. Exemplo:
A Terra, Marte, Vênus, etc. são desprovidos de luz própria.
Ora, a Terra, Marte, Vênus, etc. são todos planetas.
Logo, todos os planetas são desprovidos de luz própria.
Essa lei se refere a todos os sete planetas do nosso sistema solar.
A indução formal não aumenta o conhecimento, mas apenas substitui por um termo geral uma série de termos singulares.
b) Indução amplificadora ou científica
A lei não exprime a totalidade, mas, sim, uma parte dos fenômenos. Conclui de um ou mais fatos particulares para todos os fatos semelhantes, presentes e futuros. Exemplo:
Este ímã atrai o ferro, aquele ímã atrai o ferro...
Logo, em toda parte e sempre, o ímã atrairá o ferro.
Outro exemplo:
Sócrates morreu, Platão morreu, Aristóteles morreu, etc.
Ora, Sócrates, Platão, Aristóteles e os demais eram homens.
Logo, todos os homens são mortais.
Neste raciocínio fica claro que não foram observados todos os casos ou fatos, mas um certo número deles, considerados suficientes para estabelecer a relação constante e necessária representada pela lei.
Embora a indução amplificadora seja imperfeita e passível de erro, é o raciocínio mais utilizado nas ciências, pois na prática nem sempre é possível observar todos os fatos ou fenômenos. Aliás, na maioria dos casos, isso nem é necessário para se chegar a uma lei geral.
c) Analogia
É uma forma particular de indução. O raciocínio por analogia consiste na passagem de uma semelhança constatada a outra semelhança não constatada. Exemplo: constata-se que o planeta Marte possui uma atmosfera semelhante à da Terra e disso se conclui que pode ter seres vivos. Embora o raciocínio por analogia seja muito frequente e, às vezes, traga resultados positivos, na realidade é um raciocínio incompleto, arriscado e de valor discutível.
Conclusão: Indução e dedução, tal como análise e síntese, abstração e generalização, não são modos isolados de raciocínio e de pesquisa como pensam muitos autores; eles se entrosam e na realidade são inseparáveis uns dos outros.
Por exemplo: a conclusão estabelecida pela indução pode servir de princípio (premissa maior) para a dedução; mas a conclusão da dedução pode também servir de princípio da indução seguinte, e assim por diante. Exemplos:
O ferro conduz eletricidade, o cobre também, o zinco também, etc.
Ora, o ferro, o cobre, o zinco, etc. são metais.
Logo, todos os metais conduzem eletricidade.
A conclusão deste raciocínio indutivo serve de premissa maior para o raciocínio dedutivo:
Todos os metais conduzem eletricidade.
Ora, o ouro é metal.
Logo, o ouro conduz eletricidade.
NB: Quando uma das premissas não é verdadeira, a conclusão também não é verdadeira. Por exemplo:
Todos os homens são honestos.
Ora, os assaltantes são homens.
Logo, os assaltantes são honestos.
No exemplo acima a premissa maior é falsa, pois nem todos os homens são honestos.
d) As quatro fases da indução científica
O estudo pela indução científica ou amplificadora pode ser desdobrado em quatro fases:
1.ª) Imaginar uma hipótese de trabalho que será o fio condutor da investigação ou pesquisa.
2.ª) Observar, colher e coordenar os fatos, objetivamente, sem ideias preconcebidas, isto é, deixando de lado todas as crenças, preconceitos e superstições.
3.ª) Descobrir, nos fenômenos estudados, relações de causa e efeito, estabelecendo explicações gerais, hipóteses, fórmulas, regularidades, princípios gerais que exprimem essas relações.
4.ª) Confirmar, por meio de várias modalidades de provas diretas e indiretas (verificação, demonstração, etc.), se as explicações gerais formuladas são verdadeiras, isto é, se refletem corretamente as relações objetivas.
Se, com esses processos de verificação e de demonstração, a verdade das regularidades descobertas é confirmada, então formulam-se as mesmas em caráter mais ou menos permanente em formas superiores do conhecimento racional, tais como: hipóteses, teses, teorias, leis e princípios, que posteriormente podem ser englobados num sistema ou numa doutrina.
e) As formas superiores do conhecimento racional
Vejamos alguns desses degraus superiores do conhecimento racional:
Hipótese: É uma suposição ou proposição, tese ou teoria provável, cuja verdade ainda não foi demonstrada. Na hipótese nem todos os dados foram comprovados. Por exemplo: as suposições acerca da existência de vida em Marte e em outros planetas do sistema solar. Depois de mais ou menos provada, a hipótese toma forma de tese ou teoria.
Tese: É proposição de uma teoria tida como verdadeira e que se apresenta para ser provada.
Teoria: É um conjunto de teses e princípios fundamentais sistematicamente organizados sobre determinados assuntos. Por exemplo: a teoria da relatividade, a teoria atômica, a teoria da origem da vida, a teoria da evolução, a teoria da hereditariedade, etc.
Depois de suficientemente verificadas pela experiência e demonstradas pela lógica, as hipóteses, teses e teorias se transformam em leis e princípios científicos.
Lei (natural, científica): Em gnosiologia é o enunciado de uma relação necessária e constante entre fatos e fenômenos, relação essa decorrente da natureza interna das coisas, isto é, de sua essência. Por exemplo: lei da gravitação universal, lei da conservação da matéria e da energia, etc.
Não confundir a lei natural e científica com a lei normativa. A primeira tem caráter objetivo, independente da consciência e da vontade dos homens, enquanto que a segunda é criada e ditada pelos homens, tais como as leis jurídicas, as normas morais, as regras de trânsito, etc.
Princípio: Em gnosiologia, é uma proposição (tese ou teoria) muito geral, fundamental, suficientemente demonstrada e por isso mesmo considerada como verdadeira, da qual as leis já descobertas podem ser consideradas como consequências. Por exemplo: o princípio da conservação da energia.
Não confundir princípio com axioma, postulado e dogma.
O axioma tem várias acepções. No sentido restrito de princípio lógico e racional, o axioma é uma proposição evidente por si mesma e que se aceita como verdadeira e sem demonstração. Por exemplo: "O todo é maior que qualquer de suas partes"; "Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si".
No sentido geral, mais usado nos nossos dias, o axioma é uma proposição, evidente ou não, que não se deduz de outra, é indemonstrável, mas que é aceita sem demonstração como necessária para servir de base ou ponto de partida para a construção de um sistema hipotético-dedutivo. Nesse sentido, o axioma inclui o postulado e tem caráter convencional. Por exemplo, "os axiomas geométricos não são nem juízos sintéticos a priori, nem fatos experimentais; são convenções" — como diz Henri Poincaré.
O postulado é uma proposição não evidente nem demonstrável, mas admitida, por convenção, como princípio indispensável de um sistema dedutivo. Por exemplo, o postulado de Euclides: "por um ponto fora de uma reta, não se pode traçar senão uma paralela a essa reta".
O dogma é uma proposição indemonstrável e indiscutível, aceito na base somente da crença e da fé, sem a participação crítica da razão ou da prova científica. Por exemplo, o dogma da criação do homem e do mundo por um ser superior, os dogmas da existência de Deus, da imortalidade, do livre-arbítrio, etc.
Como se vê, o axioma, o postulado e o dogma são proposições aceitas na base da convenção ou da fé. Já o princípio científico, para ser aceito, precisa ser suficientemente demonstrado.
Doutrina: Em gnosiologia, é um conjunto de teorias e de princípios que servem de base a um sistema científico ou filosófico. Por exemplo, a doutrina evolucionista.
Sistema: Em gnosiologia, é um conjunto de teorias e princípios científicos ou filosóficos que constituem um todo orgânico. Por exemplo: sistema heliocêntrico de Copérnico.
Na linguagem corrente é frequente usar como sinônimos ou ideias afins os conceitos de teoria, princípio, doutrina e sistema.
Em nosso raciocínio, partimos de certos princípios fundamentais da razão que "são tão necessários quanto os músculos e os tendões para andar, ainda que não atentemos nisso" (Leibniz). Esses princípios constituem a armadura de todo pensamento lógico e racional e orientam a atividade do pensamento correto e verdadeiro. Eles não figuram explicitamente em nossos raciocínios, mas sustentam todos os seus andamentos. Eis por que alguns autores os chamam de primeiros princípios ou princípios diretores do conhecimento.
A observação desses princípios do raciocínio é condição necessária para que o nosso pensamento seja claro, preciso, correto, consequente e verdadeiro. Sem eles o pensamento perde sua precisão, estabilidade e se torna confuso, incoerente, contraditório, errôneo ou falso.
Entre esses princípios queremos ressaltar dois deles: o lógico e o racional, com seus respectivos derivados.
1 — O PRINCÍPIO LÓGICO E SEUS DERIVADOS PODEM SER ASSIM FORMULADOS
1) Princípio da identidade
Tudo é idêntico a si mesmo. O que é, é. Expressa-se pela fórmula: A é A. Exemplo: a mesa é mesa.
Esse princípio fundamental é tão elementar e evidente que sua formulação é difícil e sempre desconcerta um pouco.
O princípio da identidade (que poderia também ser chamado de princípio da identificação) trata da identidade abstrata, ele é tautológico e nada de novo nos ensina. Na prática ele quase não é utilizado por ser evidente demais. Mas ele implica dois princípios derivados que são sempre utilizados em nossos raciocínios:
2) Princípio da não-contradição (ou da contradição)
Uma coisa não pode ser e não ser ela mesma, ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista. Expressa-se pela fórmula: A não é não-A. Exemplo: a mesa não é não-mesa.
Não deve haver contradição no nosso raciocínio. Não se pode dizer que A é não-A, que mesa é não-mesa ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista.
Este princípio nada mais é que a forma negativa do princípio da identidade.
3) Princípio do terceiro excluído
Uma coisa é ou não é. Entre duas possibilidades contraditórias não há lugar para uma terceira possibilidade. Entre ser e não ser uma determinada coisa, não há meio-termo.
Expressa-se pela fórmula: Ou A é B ou A não é B. Ou isto é mesa, ou não é mesa. Ou este país é Brasil ou não é.
Este princípio é a forma disjuntiva do princípio da identidade.
Esses princípios da lógica formal foram estabelecidos, há dois mil e quinhentos anos atrás, por Aristóteles e quase não mudaram no decorrer dos tempos.
Exemplificando numa frase as três leis do princípio da identidade poderíamos dizer: "Este país é Brasil. O Brasil não é Argentina. Ou o Brasil é um país sul-americano ou não é".
É de capital importância distinguir a noção de "contraditório" e "contrário" ou "oposto", que são frequentemente confundidos na linguagem corrente. Duas proposições contraditórias têm os mesmos termos: somente um é afirmativo, o outro é negativo.
Regra das proposições contraditórias: Duas proposições contraditórias não podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. Uma é necessariamente verdadeira, a outra necessariamente falsa. Por exemplo: "Esta proposição é verdadeira" e "Esta proposição não é verdadeira". "A água está fria" e A água não está fria".
As proposições contraditórias são incompatíveis porque uma é a negação total da outra. Não há meio-termo entre elas.
Já nas proposições contrárias ou opostas há meio-termo.
Regra das proposições contrárias: Duas proposições contrárias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas elas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: "Esta proposição é verdadeira" e "Esta proposição é falsa". "A água não está fria" e "A água não está quente".
Há meio-termo entre essas proposições porque "verdadeiro" e "falso", "quente" e "frio" não são contraditórios (incompatíveis), mas opostos ou contrários. Como uma proposição que não é verdadeira não é necessariamente falsa, entre os contrários "verdadeiro" e "falso", "frio" e "quente" há vários graus entre um ou outro oposto, tais como provável, duvidoso, morno, etc. Por exemplo: "Esta proposição não é nem verdadeira nem falsa, mas provável"; "A água não está nem fria nem quente, mas morna".
"É de proposições contrárias (opostas) e não de proposições contraditórias que a dialética faz a síntese. Duas verdades contraditórias são radicalmente exclusivas uma da outra." (V. Paul Foulquié, La connaissance, Paris, Éditions de l'École, 1966, p. 187.)
Por exemplo, um círculo quadrado é uma contradição lógica, uma impossibilidade lógica, pois reúne dois elementos contraditórios que jamais podem se conciliar numa síntese. Enquanto que se pode dizer "A água não está nem fria e nem quente" quando sua temperatura estiver morna.
É importante salientar que essas leis ou princípios lógicos tratam de coisas consideradas ao mesmo tempo, num mesmo sentido, e sob o mesmo ponto de vista ou sob a mesma relação.
Os princípios (ou leis) da lógica formal, como todas as regras lógicas, têm força em relação a coisas prontas, formadas. Eles só podem ser utilizados, onde podemos abstrair-nos da mudança e do desenvolvimento dos objetos estudados.
Os juízos são de fato idênticos a si mesmos se as coisas que eles refletem não mudam naquele momento em que nós operamos esses juízos ou quando nós podemos abstrair-nos de sua mudança.
As mudanças ou o desenvolvimento das coisas, fenômenos e processos, podem fazer que o "frio" não seja mais "frio' e que se colocando em um outro ponto de vista julgue-se como "correto" o que se julgava "incorreto".
É necessário levar em consideração que não somente o conteúdo mas também a forma é um reflexo da realidade material circundante. Assim, as leis ou princípios da lógica formal também são reflexos na nossa mente de determinadas relações entre as coisas.
Quando não se respeitam as leis ou princípios lógicos, o pensamento perde sua precisão, sua coerência e consequência, e torna-se incoerente e contraditório. Respeitá-los é a condição indispensável para que o raciocínio seja correto e coerente, independente de seu conteúdo concreto.
2 — O PRINCÍPIO RACIONAL E SEUS DERIVADOS PODEM SER ENUNCIADOS ASSIM
1) Princípio da razão suficiente
Tudo que existe e acontece tem sua razão de ser, tem sua explicação.
Por "razão", em geral, se entende a causa, o motivo, a base, o fundamento, a condição de um fato, e, em sentido restrito, o motivo de uma ação. E por "razão de ser" entende-se as causas ou as condições que explicam um acontecimento, que o tornam inteligível e compreensível.
O princípio da razão suficiente implica dois outros princípios racionais, todos eles intimamente ligados:
2) Princípio da causalidade
Nada acontece sem causa. "Nihil fit sine causa." Todo fenômeno e tudo que acontece tem uma origem, uma razão de ser, uma causa ou causas que o antecedem e o produzem.
3) Princípio do determinismo
Os fenômenos não se produzem arbitrariamente, mas são determinados por suas condições de existência. Nas mesmas condições, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos (princípio das leis). É possível prever os fenômenos se se conhecem as condições ou os fatores que os determinam.
Já vimos que compreender e conhecer as causas dos fenômenos e os motivos das ações é uma necessidade imperiosa do ser humano para poder satisfazer suas necessidades naturais, indispensáveis para a sua sobrevivência.
As ideias básicas do princípio da razão suficiente e de seus derivados foram expressas há mais de dois mil e quinhentos anos atrás pelos primeiros filósofos materialistas gregos.
No único fragmento de Leucipo que chegou até nós diz-se: "Nada nasce sem causa, mas tudo surge por alguma razão e em virtude de uma necessidade".
Seu famoso discípulo Demócrito, pai da teoria atômica, dizia: "Nada nasce do nada e nada volta ao nada". "Tudo acontece pelo destino, de tal forma que este destino traz consigo a força da necessidade."
Na época moderna, foi Leibniz que formulou de modo claro e evidente os dois princípios fundamentais (lógico e racional), como leis do conhecimento:
"Os nossos raciocínios fundam-se sobre dois grandes princípios: o da contradição, pelo qual consideramos falso o que ele implica, e verdadeiro o que é oposto ao falso ou lhe é contraditório. E o da razão suficiente, pelo qual entendemos não poder algum fato ser tomado como verdadeiro ou existente, nem algum enunciado ser considerado verídico, sem que haja uma razão suficiente para ser assim e não de outro modo, embora frequentemente tais razões não possam ser conhecidas por nós.
"Também há duas espécies de verdades: as de razão e as de fato. As verdades de razão são necessárias, e o seu oposto, impossível; as de fato, contingentes, e o seu oposto, possível." (Leibniz, Monadologia, parágrafos 31, 32, 33, in "Os Pensadores", ed. Abril Cultural, São Paulo, 1974, t. 29, p. 66.)
Como se vê, Leibniz não separava os dois princípios, o lógico e o racional, que para ele serviam como critério das verdades de razão (isto é, as verdades lógicas, onde não deve haver contradição) e das verdades de fato (isto é, as verdades materiais, que devem ser fundamentadas).
O princípio da razão suficiente expressa a necessidade de fundamentar os juízos que entram no conjunto do conhecimento humano e reza: todo juízo, para que se considere verdadeiro e incontestável, deve ser fundamentado (demonstrado) no sentido de que devem ser trazidas razões suficientes da verdade desse juízo.
Sob a expressão razão suficiente da verdade de um juízo (ou de uma proposição ou tese), compreende-se o conjunto de juízos verdadeiros (que se chamam fundamentos ou argumentos) — tais que o novo juízo fundamentado segue deles pelas leis e regras da lógica.
Na composição da razão suficiente podem estar os axiomas, as definições, os juízos testemunhados pela percepção imediata e juízos conclusivos já fundamentados com a ajuda da demonstração.
Conclusão: Assim, qualquer juízo, tese ou proposição utilizado no raciocínio deve respeitar não somente os princípios lógicos (da identidade, não-contradição e do terceiro excluído) como também os princípios racionais da razão suficiente, da causalidade e do determinismo.
O respeito dessas leis e princípios é a condição indispensável para a precisão, clareza, coerência e demonstrabilidade da proposição.
As ciências são conjuntos sistemáticos de teses ou proposições verdadeiras e hipóteses prováveis, ligadas entre si por relações de forma e de conteúdo.
Duas condições fundamentais são indispensáveis para que uma tese (um juízo ou uma proposição) seja considerada verdadeira:
1.ª) Que essa tese ou conclusão reflita e reproduza (reconstrua) na mente, de modo fiel, as regularidades existentes nos objetos e fenômenos reais, isto é, que a tese seja verdadeira em relação à realidade que reflete.
2.ª) Que partindo de premissas verdadeiras, o raciocínio seja correto e consequente consigo mesmo (isto é, que não haja contradição no raciocínio).
"Se nossas premissas são verdadeiras e se nós aplicamos a elas de modo correto as leis do raciocínio, então o resultado deve corresponder à realidade." (Engels, Anti-Dübring, edição russa, Moscou, 1950, p. 317.)
Essas duas condições essenciais da verdade são formuladas pelos dois princípios fundamentais intimamente ligados entre si. Um se refere à forma do raciocínio e tem caráter formal — o princípio da identidade e seus derivados. Outro se refere ao conteúdo e tem caráter material ou substancial — o princípio da razão suficiente e seus derivados.
Enquanto a tarefa principal do primeiro é evitar a contradição e garantir a coerência do pensamento consigo mesmo, abstraindo-se do conteúdo, a tarefa principal do segundo é provar a verdade pelas suas causas reais e materiais.
O pensamento humano procede também por intuições adivinhadoras ou criadoras, processos complexos e sujeitos a erros, mas que, guiados e controlados pelos dois princípios fundamentais acima expostos, chegam a conhecimentos verdadeiros que não podem ser alcançados somente pelo pensamento lógico discursivo. Na parte final deste livro exporemos detalhadamente o conhecimento intuitivo ou criador.
3 — OBSERVAÇÕES CRÍTICAS
1) Os princípios lógicos ou racionais são considerados pela maioria dos filósofos como verdades inatas a priori, evidentes, necessárias e universais.
Inatas ou a priori, isto é, existentes no nosso espírito antes e independentemente da experiência.
Evidentes, isto é, não necessitam de demonstração, pois sua verdade é captada intuitivamente, de modo imediato.
Necessárias, isto é, indispensáveis para toda a atividade racional, pois são a condição necessária de todo pensamento correto e verdadeiro. É impossível raciocinar e agir sem utilizá-las.
Universais, isto é, válidas para todas as pessoas, para todas as coisas e circunstâncias. Elas constituem as leis de todos os espíritos.
Todavia, esses princípios só são reconhecidos como tais por uma minoria de pessoas, pois a maioria ignora e por isso mesmo não respeita esses princípios.
Aqui se torna necessário fazer algumas observações críticas.
Vejamos primeiro o pretenso caráter inato e apriorístico.
Na realidade os princípios lógicos e racionais não são inatos nem a priori, mas adquiridos e a posteriori, isto é, eles surgem depois da experiência e educação social das pessoas. Eles se tornam a priori somente no espírito das pessoas adultas e cultas.
Os estudos de antropólogos e sociólogos mostraram que os povos iletrados, ditos selvagens e primitivos, ignoram os princípios lógicos. Assim, por exemplo, os índios bororos do Brasil afirmam: "Os bororos são araras" (papagaios). Os bororos consideram as araras o totem da tribo, não se distinguem dele e se consideram eles mesmos araras. Para o homem civilizado "A é A" e "A não é não-A". Para os bororos pode-se ser, ao mesmo tempo, homem e papagaio. Desse modo, a mentalidade primitiva não respeita o princípio da identidade e da não-contradição. Essa mentalidade pré-lógica chama-se mentalidade participal.
Aliás, as crianças numa determinada fase inicial também têm uma mentalidade participal e não respeitam os princípios lógicos.
O mesmo acontece com os princípios racionais. A maioria dos povos iletrados, todas as crianças e as pessoas incultas do mundo inteiro desconhecem os princípios racionais. É verdade que essas pessoas têm uma ideia intuitiva do princípio da razão suficiente, mas essa ideia é totalmente deformada.
Enquanto o indivíduo adulto e culto procura as causas reais e naturais das coisas, como exige o espírito científico, as crianças e os povos primitivos e iletrados ainda hoje explicam as coisas através de causas fictícias, tais como fetiches, duendes, espíritos, deuses e outras forças ocultas e irracionais.
As crianças de hoje, como os povos primitivos de ontem, vivem mergulhadas num mundo fantástico, onde tudo é possível, inclusive criar tudo a partir do nada.
A cosmovisão dessas criaturas está envolta no irracionalismo, misticismo e fideísmo — em uma palavra, elas ainda estão no estado pré-lógico, pré-racional, pré-científico (ou pré-positivo, como diria Comte, na sua lei dos três estados, da qual já falamos).
Ninguém nasce com os princípios pré-formados. É graças à experiência, ao contato com a realidade, à atividade produtiva e sobretudo à instrução e educação que as pessoas elaboram e conhecem os princípios, que são percebidos como leis objetivas do ser, da realidade. E só se tornam leis do pensamento porque são leis da realidade objetiva, pois, como já dissemos, o conhecimento é o reflexo e a reconstrução em nossa mente da realidade objetiva e de suas leis.
Estão enganados aqueles filósofos que pensam que o homem nasce racional. Na verdade, a criança nasce irracional. Ela se torna racional graças à vida social e à educação. É a sociedade que forma nossa natureza humana, nossa mente, nossa razão, nossa personalidade, educando e transmitindo a cultura acumulada pelas gerações anteriores.
O ser humano é mais um produto da vida social do que da herança biológica. O ser humano tem base social, ou dito em termos filosóficos: O ser humano tem uma essência social. Aliás, não só o ser humano como o próprio conhecimento humano tem uma essência social. Se uma criança vive fora da sociedade humana, numa ilha isolada, ela pode viver como ela quiser, mas não se torna um ser social, humano e racional (é o caso do Homo ferus, das crianças selvagens). Portanto, o homem é social não porque ele é racional e humano, mas, ao contrário, ele é racional e humano porque é social. Fora da sociedade ele é um animal irracional, pois no indivíduo isolado as emoções e as paixões zoológicas é que predominam.
Assim, os princípios da razão, longe de serem quadros fixos, inatos ou a priori, representam o produto de certo estado de evolução do pensamento cognitivo do homem adulto e civilizado.
Pelas mesmas razões acima enumeradas, os princípios lógicos e racionais não podem ser considerados como verdades evidentes, necessárias e universais por todas as pessoas. Esses princípios são reconhecidos como tais só depois de muita experiência individual e educação social e científica.
2) Os princípios lógicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído não são absolutamente universais, isto é, válidos para todas as coisas e circunstâncias. Eles são válidos dentro de certo limite. Os princípios lógicos asseguram apenas a correção do pensamento formal, isto é, do pensamento que faz abstração do devir real. É o caso da lógica formal e das matemáticas, cujos objetos não dependem do fator tempo.
Já mostramos que os princípios lógicos só se aplicam a objetos considerados ao mesmo tempo e na mesma relação. Eles são eficientes somente para as coisas estáticas, acabadas, mas são insuficientes lá onde há permanente mudança e desenvolvimento. As mudanças das coisas podem fazer com que aquilo que era verdadeiro ontem não o seja mais hoje. Ou, colocando-se de outro ponto de vista, julga-se falso aquilo que se julgava verdadeiro.
As coisas que mudam e se desenvolvem, como por exemplo: o que era quente se torna frio, o verdadeiro se torna falso, o pobre se torna rico, exigem uma outra lógica que possa refletir essa mudança. Esta é a função da lógica dialética, que se esforça por adaptar o pensamento à realidade mutante ou, melhor, procura refletir no pensamento a realidade mutante.
O mundo é infinitamente rico e mutável e o pensamento humano não pode abarcá-lo de uma vez em sua totalidade e mudança. Por isso divide-o em momentos isolados e estáticos, expressando-os em conceitos, juízos e raciocínios.
O conceito abstrato parece mais pobre que as percepções sensíveis. Na realidade, qualquer conceito reflete a realidade de maneira mais profunda, completa, verdadeira, porque capta as relações internas dos objetos, inacessíveis ao conhecimento sensível, e porque expressa não um ou vários objetos singulares, mas toda a infinidade de objetos pertencentes ao gênero e à espécie.
A passagem do conhecimento sensível ao conhecimento abstrato é um salto qualitativo: é a passagem do conhecimento exterior e superficial (fenômeno) das coisas ao conhecimento de sua essência, de sua natureza íntima (númeno).
Assim, os conceitos refletem a natureza interna, a essência dos objetos ou dos fenômenos. Mas como o mundo e as coisas estão em constante mudança e desenvolvimento, os conceitos, se querem ser válidos, devem ser flexíveis e móveis, isto é, dinâmicos ou dialéticos. Para obter conceitos flexíveis, dinâmicos e dialéticos, é necessário precisar e aprofundar os conceitos já existentes, assim como criar novos conceitos que reflitam corretamente as condições objetivas mutantes. A dialética do pensamento deve refletir o mais fiel e completamente possível a dialética das coisas, da realidade mutante.
3) É necessário não confundir causalidade com casualidade. O princípio de causalidade ensina que nada acontece sem causa. Pode parecer que esse princípio nega a casualidade, isto é, o que acontece por acaso. Na realidade uma não nega a outra. A casualidade ou acaso também existe. É o encontro de acontecimentos que pertencem a séries causais independentes umas das outras (A. Cournot), é "a interferência mútua de linhas causais independentes" (Maritain). Por exemplo: uma semente dá nascimento necessariamente a uma planta se encontrar condições favoráveis. Mas vem a geada e a planta é aniquilada. Com relação ao crescimento da planta, a geada é um fato acidental, casual. Embora a geada tenha suas causas, ela podia não vir quando a semente foi lançada. Foi por acaso (para a planta) que a geada veio. Assim, a existência da casualidade não nega o princípio da causalidade, pois a casualidade também tem suas causas reais.
Na terminologia filosófica, a casualidade é chamada também de contingência, isto é, aquilo que pode acontecer ou não, aquilo que não é nem necessário nem impossível.
Na linguagem popular, a casualidade ou contingência é conhecida como sorte e azar. Sorte quando o acaso é favorável e azar quando é desfavorável aos interesses da pessoa ou da coisa em vista.
É evidente que o conceito de sorte e azar é muito relativo, pois o que é sorte para uma pessoa pode ser azar para outra, e vice-versa. Isso se vê muito bem em qualquer tipo de jogo de sorte ou de azar, tais como os jogos de dados, de baralho ou de loteria esportiva ou federal, ou ainda na roleta (desde que não haja trapaça). Por exemplo, na roleta há cinquenta por cento de probabilidade de acertar no "preto" ou no "vermelho", mas pode acontecer que (ainda segundo as leis da probabilidade) dê "vermelho" dez vezes seguidas, para a sorte de uns ou azar de outros apostadores.
O que nos interessa em todos esses casos que a casualidade embora não possa ser adivinhada com absoluta certeza, porque o evento é contingente, mesmo assim ele obedece ao princípio da razão suficiente, isto é, às leis da causalidade e do determinismo.
Em outros termos, o acaso, a sorte e o azar, também tem uma causa pela qual ele acontece assim e não de outro modo, só que é muito difícil ou quase impossível prever por que assim acontece. Mesmo admitindo que haja pessoas dotadas dos assim chamados "poderes parapsicológicos" (telepatia, precognição, clarividência, etc.) elas não podem prever tais fatos e acontecimentos casuais, embora a opinião vulgar ache que pode. Se isso fosse verdade as pessoas chamadas sensíveis ou hipersensíveis, isto é, as que têm poderes parapsicológicos, preveriam ou adivinhariam com antecedência os resultados dos jogos chamados de azar e ficariam milionárias — o que não acontece na realidade. Só esse fato já mostra que ninguém pode prever ou adivinhar os fatos ou aconteci- mentos casuais, contingentes ou fortuitos.
4) Muitos autores reconhecem a existência de um terceiro princípio chamado princípio da finalidade, que afirma: As diferentes partes ou elementos de um todo são como meios ordenados em vista de um fim. Ou de outro modo: Todo ser tende para um fim. Tudo acontece com e para uma determinada finalidade. Todo o ser age tendo em vista um objetivo.
Mas esse princípio da finalidade não é universal, ele não funciona na natureza bruta; ele só funciona no mundo humano, onde há seres pensantes que agem tendo em vista um fim, um objetivo, uma meta, um ideal.
Na natureza bruta nada acontece com determinada finalidade. A natureza não é nem moral, nem finalista. Ela é o que é. Na natureza tudo é resultado da necessidade e da casualidade. Só os seres humanos perseguem um objetivo e dão valor a suas atividades.
Por isso no estudo dos fatos e fenômenos naturais é preciso evitar tanto o finalismo como o antropomorfismo, que consistem em atribuir aos fenômenos naturais finalidades, objetivos, sentimentos e valores que são inerentes somente a seres humanos.
É errado querer igualar o fenômeno natural ao fenômeno social. Um fenômeno natural, o eclipse, por exemplo, obedece a um determinismo inexorável e ninguém pode evitá-lo. Já os fenômenos sociais, os valores e instituições sociais, por exemplo, não têm a mesma inexorabilidade dos fenômenos naturais. Nisto reside a grande diferença entre o determinismo absoluto dos fenômenos naturais e o determinismo relativo dos fenômenos sociais.
É preciso, por outro lado, não confundir determinismo social com fatalismo. O fatalismo (fatum destino) crê que os acontecimentos estão determinados de antemão por uma força desconhecida e que o homem é um joguete cego das leis implacáveis da história. O fatalista diz: "Mektup", isto é, "Está escrito", "Tinha que acontecer". É uma posição muito cômoda e passiva. Não reconhece o papel ativo do homem que pode intervir nos acontecimentos naturais e sociais.
Não devemos exagerar o caráter determinista dos fenômenos sociais. O determinismo social não é absoluto nem fatal. O homem não é mero joguete das leis sociais. O ser humano se distingue dos seres inanimados e dos animais irracionais pela possibilidade que tem de dirigir, de orientar o curso dos acontecimentos e até mesmo de criar uma nova sociedade, com novos valores e novas instituições.
Os fenômenos sociais obedecem, sem dúvida, ao princípio da razão suficiente e seus derivados, os princípios da casualidade e do determinismo, mas os valores e as instituições sociais foram criados pelos próprios homens das gerações anteriores. Por isso os homens podem modificar, dentro de um certo limite, os valores e as instituições sociais dominantes. Nisto é que se manifesta a vontade do homem e sua capacidade de transformar o mundo.
É necessário por outro lado também evitar o voluntarismo, que pensa mudar tudo de acordo com a sua vontade arbitrária. É verdade que "os homens fazem sua própria história", como observa Marx, mas "não nas condições criadas por eles e sim nas condições dadas".
Aliás, a vontade humana pode modificar dentro de certos limites não só os fenômenos sociais como também os fenômenos naturais, desde que conheça as leis pelas quais eles se regem e aja de acordo com essas leis.
Assim, por exemplo, só conhecendo e respeitando as leis da natureza é que podemos criar novas espécies vegetais e animais, explorar a energia atômica e voar até a Lua.
Aliás, de nada valeria conhecer os fenômenos naturais ou sociais se o homem não pudesse aproveitá-los ou modificá-los em seu benefício. É por isso que nasceram as diferentes ciências — para servir o homem.
Conclusão: No estudo e interpretação dos fenômenos naturais é necessário evitar tanto o finalismo como o antropomorfismo, que são projeções de fins e paixões do mundo humano ao mundo bruto. Por outro lado, no estudo dos fatos e fenômenos sociais e históricos é preciso evitar tanto o fatalismo, que nega completamente a liberdade de ação humana, como o voluntarismo, que pensa modificar tudo de acordo com seu livre-arbítrio.
O ser humano não é nem absolutamente escravo, nem absolutamente livre da natureza e da sociedade. "A necessidade só é cega na medida em que não é compreendida" já dizia Hegel.
"A liberdade nada mais é que a consciência da necessidade" — disse muito bem o genial filósofo Spinoza.
Já vimos que a teoria do conhecimento ou gnosiologia, que estuda o problema do conhecimento, é a parte mais importante da filosofia. Já examinamos vários aspectos do conhecimento: a essência, a possibilidade, as fontes, as espécies e as formas do conhecimento.
Agora vamos ver o que é a verdade e qual o seu critério, que é o problema central da gnosiologia, e um dos problemas mais importantes da filosofia.
Neste capítulo abordaremos os seguintes temas:
1 — O que é a verdade
2 — O caráter objetivo do conteúdo da verdade
3 — O critério da verdade
4 — O papel da prática no conhecimento
5 — A unidade da teoria e da prática
6 — O caráter concreto da verdade
7 — A verdade relativa e a verdade absoluta.
1 — CONCEITO DA VERDADE
O que é a verdade? Eis a pergunta que todo mundo faz, desde a infância até a idade adulta, independente do sexo, raça, cultura e civilização. A ela dedicam sua vida os sábios, os heróis e os santos. Ela é a deusa idolatrada também por todos os homens simples do mundo inteiro.
O que é ela e em que consiste a sua força de atração? Como já vimos, só o conhecimento verdadeiro pode servir às necessidades práticas e existenciais dos seres humanos. Quanto mais verdades sabemos, mais livres somos. "Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres", diz-se no Evangelho de São João (cap. 8, vers. 32). Podemos dizer que quanto mais verdades sabemos mais aptos estamos para vencer na luta pela sobrevivência.
Mas há também os indiferentes e os céticos que, como Pilatos, perguntam "o que é a verdade?", e lavam as mãos, porque não sabem e não querem saber onde está a verdade, o certo.
Mas então o que vem a ser a verdade, o conhecimento verdadeiro?
Já vimos que o conhecimento é o reflexo e a reprodução do objeto em nossa mente; pois bem, o conhecimento verdadeiro é aquele que reflete corretamente a realidade na mente; a verdade é a correspondência, a concordância, a conformidade, a adequação, do pensamento com o ser, do sujeito com o objeto, do juízo com o objeto real, da ideia com a coisa ou em termos escolásticos: Adaequatio intellectus cum re.
Assim, a verdade é o reflexo fiel do objeto na mente, adequação do pensamento com a coisa. É verdadeiro todo juízo que reflete corretamente a realidade.
O contrário da verdade é o erro, o contrário do juízo verdadeiro é o juízo errado, falso. O erro é o conhecimento que não reflete fielmente a realidade e por isso mesmo não corresponde à realidade. O erro consiste no desacordo, na não-conformidade, na inadequação do pensamento com a coisa, do juízo com a realidade.
Por coisa subentendemos qualquer ser, objeto, fato ou fenômeno real, concreto ou abstrato, externo ou interno.
Por pensamento subentendemos o espírito, a inteligência, a mente, a consciência, o sujeito cognoscente, o juízo, as ideias, os conhecimentos, etc.
Exemplo de juízo verdadeiro: A Terra é redonda e gira em torno de si e do Sol". "O homem surgiu a partir da evolução de animais inferiores."
Exemplo de juízo errado ou falso: "A Terra é plana e imóvel". "O homem foi criado por um ser sobrenatural."
Para que um juízo seja verdadeiro, não é necessário que a conformidade ou adequação entre o juízo e a coisa seja total ou perfeita e represente tudo o que o objeto é, pois os nossos conhecimentos podem ser verdadeiros sem ser completos, perfeitos ou exaustivos. É a diferença entre a verdade relativa e a verdade absoluta (que veremos adiante).
2 — O ASPECTO OBJETIVO E SUBJETIVO DA VERDADE
Sabemos que fora de nós existem objetos com diferentes propriedades que não dependem do sujeito cognoscente, nem de nossa vontade, nem de nossa consciência.
Já vimos que o conhecimento é uma relação entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido. Sabemos também que o conhecimento é o reflexo subjetivo (na consciência do sujeito cognoscente) dessas propriedades objetivas (do objeto exterior à nossa consciência). Desse modo, o conteúdo do conhecimento, aquilo que é refletido na consciência, tem caráter objetivo, isto é, existe fora e independente de nós.
Como um conhecimento, para ser verdadeiro, tem que corresponder ao objeto existente na realidade exterior, então o conteúdo do conhecimento verdadeiro (o objeto e suas propriedades) não depende de nossa consciência, de nossa vontade ou preferência.
O que existe na realidade não pode ser verdadeiro ou errado. Simplesmente existe. Verdadeiros ou errados só podem ser nossos conhecimentos, nossas percepções, nossas opiniões, nossos conceitos ou juízos a respeito do objeto. Em outras palavras, verdadeiro ou errado pode ser apenas o reflexo subjetivo da realidade objetiva.
Muitos filósofos céticos e idealistas-subjetivistas afirmam que a verdade não tem caráter objetivo, que a verdade é relativa, múltipla e, portanto, subjetiva, isto é, cada sujeito tem sua verdade.
Assim, portanto, para o existencialismo de J.-P. Sartre a palavra "verdade" perdeu todo o seu sentido. Cada um coloca arbitrariamente as normas do verdadeiro e do falso, como do bem e do mal; ademais, ele permanece sempre livre, por uma decisão não menos arbitrária de escolher normas totalmente diferentes. Nessa hipótese, não existem verdades senão subjetivas e convencionais.
Acontece que o raciocínio desses filósofos é errôneo (feito de boa ou má fé — não importa). Eles confundem os sentidos diferentes dos conceitos de "objetivo" e "subjetivo".
Com efeito, essas duas categorias têm sentidos bem diferentes. Etimológica e fundamentalmente, o termo objetivo significa que o objeto conhecido está fora do sujeito cognoscente e é independente dele. Mas, em sentido figurado, para alguns filósofos pode significar o objeto do conhecimento, isto é, que o objeto está na mente do sujeito e pertence ao domínio do pensamento. Nesse último sentido, a palavra "objetivo" tem significação de subjetivo (dentro do sujeito).
Do mesmo modo, o conceito de subjetivo, etimológica e fundamentalmente, significa o reflexo do objeto exterior no sujeito cognoscente. Mas pode, em sentido figurado, significar, também, opinião ou impressão pessoal, parcial, preconcebida, arbitrária, que é própria de um ou mais sujeitos (pessoas) e não é válida para todos, isto é, não tem caráter objetivo e universal. Por exemplo, os gostos são subjetivos e o provérbio diz: "Gosto não se discute". Nesse sentido, subjetivo é frequentemente sinônimo de relativo, convencional, aparente, ilusório.
Os idealistas-subjetivistas tomam ambos esses conceitos não no sentido etimológico, mas no sentido figurado. Assim, para eles, os objetos e suas propriedades só existem dentro do sujeito cognoscente, isto é, têm caráter subjetivo. E, por outro lado e por isso mesmo, consideram a verdade como subjetiva, isto é, uma opinião toda pessoal que não tem correspondência adequada no mundo objetivo, exterior. Em outras palavras, eles acham que a verdade é uma construção subjetiva que depende da nossa consciência, de nossa vontade, desejo e gosto.
No livro do escritor francês Saint-Exupéry O pequeno príncipe — a personagem principal é um subjetivista típico. Tudo que ele quer ou sonha pensa que é real. A realidade e a fantasia estão confundidas, não há mais distinção entre o real e o irreal, entre o verdadeiro e o falso. Quando o pequeno príncipe pediu ao rei que "ordenasse ao Sol que se ponha", o rei muito sensatamente replicou: "É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares ao teu povo que ele se lance ao mar, farão todos a revolução".
O erro dos idealistas-subjetivistas consiste em não levar em consideração que o conhecimento é o reflexo subjetivo das qualidades objetivas que existem na realidade exterior e que, portanto, o conteúdo de nossos conhecimentos tem um caráter objetivo, isto é, real, exterior à nossa consciência. Em outras palavras, o conteúdo da verdade não depende nem da nossa mente nem da nossa vontade. Sendo um reflexo fiel da realidade, a verdade só pode ser uma, e uma só. Estão, portanto, redondamente enganados aqueles que afirmam que cada um tem a sua verdade, que existem tantas verdades quantos sujeitos e que não existem verdades objetivas, válidas para todos.
O fato de o daltônico sentir erradamente como "verde" o "vermelho", não significa que seja assim na realidade; significa apenas que os sentidos dessa pessoa não refletem corretamente as ondas luminosas. O fato de termos a impressão de que a Terra é plana e imóvel e o Sol gira em torno dela não significa que assim seja na realidade. Aliás, durante muito tempo a humanidade toda pensava assim. A afirmação, estabelecida pela ciência, de que a Terra é redonda e que ela gira em torno do seu próprio eixo e em torno do Sol é uma verdade objetiva, que não depende de nossa opinião ou vontade subjetivas. E, entretanto, quanta gente foi queimada na fogueira pela Inquisição por causa dessa afirmação verdadeira.
Vejamos outros exemplos: a constatação de que o fogo queima a mão, de que certas substâncias são venenosas não são invenções do homem. É preciso ser muito infantil para não acreditar na objetividade dessas verdades estabelecidas pela mente humana no decorrer de sua longa experiência. Aliás, é o que fazem as crianças: enquanto não põem a mão no fogo não se convencem disso.
A força de gravidade, segundo a qual todo corpo mais pesado que o ar e que se encontra no campo de atração da Terra tende a cair no centro desta, não é invenção humana; é uma verdade objetiva que devemos reconhecer e respeitar. As pessoas podem comprová-la atirando-se de uma ponte ou de um prédio alto. Se chegarem vivas até lá embaixo, poderão se convencer de que é uma verdade objetiva e não subjetiva.
A lei da atração universal ou da gravitação universal descoberta por Newton é verdadeira não porque ele a criou ou quis que assim fosse, mas porque assim o é na realidade. A lei da gravitação universal existe objetivamente e não subjetivamente na cabeça de Newton, só porque ele a descobriu. Aliás, ele a descobriu porque ela existe objetivamente, independente do sujeito cognoscente. E justamente porque ela existia antes de Newton é que foi possível descobri-la, refletindo corretamente em sua mente, em forma de lei, a lei objetiva que existia fora dela.
Está claro que sem o sujeito cognoscente não há verdades. Mas isso não significa que a verdade seja subjetiva, pois o conteúdo dessa verdade não depende de nós, de nossa vontade. Nós não podemos criar, inventar verdades e leis naturais. O que nós podemos é estudar os objetos e fenômenos e descobrir as verdades e as leis naturais pelas quais eles se regem, refletindo corretamente na nossa mente aquilo que existe na realidade objetiva.
3 — ESPÉCIES DE VERDADES
A dificuldade em compreender e solucionar o problema da verdade vem do fato de que o conceito de verdade tem várias acepções que é necessário distinguir para evitar confusão. Abaixo damos algumas espécies de verdades:
1) A verdade material, objetiva ou real, como nas ciências naturais, que consiste na conformidade do conteúdo do conhecimento com seu objeto real, quando uma proposição é verdadeira se for demonstrada ou verificada pela experiência sua correspondência com os fatos reais. Alguns chamam este tipo de verdade de fato ou fatual. Exemplos: "O fogo queima a mão". "A Terra é redonda." "A água é uma substância composta de dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio, cuja fórmula química é H2O."
2) A verdade formal ou lógica, como na lógica formal, quando um raciocínio é verdadeiro se há coerência do pensamento consigo mesmo e ausência de contradição. Alguns chamam este tipo de verdade de razão. Exemplos: "Ou o Brasil é um país sul-americano ou não é". "Todos os homens são mortais. Ora, Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal."
3) A verdade axiomática ou convencional, como nas matemáticas, onde certos axiomas e postulados, que não são evidentes, nem generalizações experimentais e nem hipóteses aceitas em vista de fazer sua verificação ulterior, são considerados convenções no sentido de que dependem da determinação dos cientistas entre si.
Mas esses axiomas ou postulados convencionais não são totalmente arbitrários, pois, entre as muitas convenções possíveis, a escolha é guiada pelos fatos experimentais e tem, por isso, certo fundamento objetivo na natureza das coisas. Por exemplo, a geometria euclidiana não é mais verdadeira que outra, porém é mais cômoda. Outros exemplos: os diferentes sistemas de peso e medição, as diferentes escalas de temperatura, de teor alcoólico, etc.
Semelhantes às convenções científicas temos as convenções sociais, regras ou normas sociais, estabelecidas pelos homens para a convivência humana, que são mais arbitrárias do que as convenções científicas, embora também correspondam a determinadas necessidades objetivas da sociedade em questão. Essas verdades convencionais têm caráter subjetivo e relativo no sentido de que variam conforme o tempo e o local, conforme a pessoa, o grupo social e a sociedade em questão. Essas verdades podemos englobá-las sob a denominação de verdades axiológicas.
Aliás, o parentesco entre estas duas espécies de verdades convencionais pode ser detectado pela origem comum às palavras "axioma e "axiologia". Ambas derivam da raiz grega axios, que significa o que tem valor, preço, estima, dignidade.
Eis algumas dessas verdades axiológicas que têm caráter convencional, relativo e subjetivo:
4) A verdade axiológica propriamente dita, que são valores éticos, jurídicos, estéticos, religiosos, etc., estabelecidos pelos homens como tais, dentro de determinado contexto social. Exemplos: "É vergonhoso e pecaminoso andar completamente nu em público" (isso não é verdade para os índios e os nudistas). A proibição do divórcio, da prática oficial do aborto, da eutanásia e outras instituições sociais proibidas por determinada sociedade, mas permitidas por outras. O conceito do que é pornográfico e do que não é varia no tempo e no espaço, isto é, de sociedade para sociedade e numa mesma sociedade. Aquilo que ontem era proibido pode se tornar legal hoje ou amanhã e vice-versa.
5) A verdade moral é a conformidade das palavras com aquilo que a pessoa pensa e julga, quando as pessoas manifestam o que realmente pensam. Nesse sentido, em vez da palavra "verdade" utiliza-se a palavra "veracidade", cujo contrário é falsidade ou mentira. Exemplo: a veracidade ou falsidade de um testemunho.
Não confundir veracidade com verdade. O termo "veracidade" tem uma significação subjetiva, refere-se à sinceridade e boa-fé da pessoa que fala, mas não implica nenhuma garantia de verdade objetiva.
Uma pessoa pode ser veraz, mas isso não implica nenhuma garantia da verdade do que ela diz, no sentido de corresponder à verdade objetiva. Por exemplo, uma pessoa afirma com sincera e honesta convicção: "Eu creio que a Terra é plana e imóvel". Essa pessoa está falando a verdade no sentido de que está sendo sincera e honesta, mas isso não significa que sua opinião seja verdadeira.
6) A verdade pragmática, aquilo que é útil, vantajoso, aquilo que serve para os interesses particulares e para o sucesso de uma pessoa ou de um grupo social. Exemplo: a pessoa que acredita na reencarnação dos espíritos porque isso a reconforta e lhe faz bem. Ou como diz Saint-Exupéry: A verdade para o homem é o que faz dele um homem".
7) A verdade político-estatal, que é estabelecida como tal por um grupo político ou pelos governantes de um país, por corresponder aos interesses econômicos, políticos e sociais desse grupo social, da sociedade ou do Estado em questão. Exemplo: a falsa teoria do "espaço vital" ou da superioridade da raça ariano-germânica — defendida pelos ideólogos do nazismo. Ou esta outra "verdade" totalitária: "Não é o Estado que deve servir o homem, é o homem que deve servir o Estado". O conjunto dessas verdades políticas forma o que se chama de ideologia.
8) A verdade dogmática ou religiosa, que é estabelecida como tal pelos criadores e elaboradores de determinada religião. Aqui não há nenhuma necessidade de coerência consigo mesmo, nem de correspondência com a realidade. Basta o enunciado da autoridade religiosa ou das Escrituras Sagradas. Exemplo: o dogma da criação do mundo a partir do nada.
9) Existem ainda outros tipos de "verdades", tais como verdades fictícias, verdades irreais, verdades-ilusões, verdades-justificações, etc., etc., que não são verdades propriamente falando.
É da confusão de uma espécie de verdade com outra, sobretudo da confusão entre verdade científica e verdade axiológica e convencional, que vem toda a dificuldade para compreender e solucionar o problema da verdade.
É evidente que tanto a gnosiologia como as ciências naturais só lidam com os dois tipos fundamentais de verdade: a verdade material e a verdade formal, isto é, a correspondência com a realidade objetiva e a coerência consigo mesma — dois aspectos principais da verdade que, aliás, constituem uma unidade dialética.
Rigorosamente falando, só essas duas espécies de verdades têm direito a ser chamadas de verdades propriamente ditas, por ter caráter objetivo, necessário e universal. As chamadas verdades axiomáticas e axiológicas e suas variedades não podem ser chamadas de verdades, por ter caráter convencional, contingente, relativo e subjetivo. Essas verdades é melhor chamá-las de convenções, normas, regras, valores ou dogmas, conforme o caso.
Assim ao estudar os diferentes fatos e fenômenos naturais e humanos é muito importante distinguir entre si duas categorias diferentes de fatos: os fatos e fenômenos científicos, dos fatos e fenômenos humanos; a verdade fatual e científica, da verdade axiológica e convencional; as leis científicas das leis normativas; a prova científica, da prova axiológica; os juízos de realidade, dos juízos de valor; a ciência da crença, etc., etc.
Para ilustrar o que estamos falando, vamos mostrar abaixo, num quadro comparativo, as duas maneiras diferentes de abordagem, conforme a natureza dos fatos e fenômenos estudados e as espécies de verdades que se quer estabelecer e provar.
4 — DUAS CATEGORIAS DIFERENTES DE FATOS E VERDADES
Ciências causais
Disciplinas axiológicas
As ciências naturais e sociais, como astronomia, física, química, biologia, antropologia, psicologia, sociologia, etc.:
Disciplinas axiológicas As disciplinas axiológicas ou normativas (impropriamente chamadas de ciências), como direito, política, ética, religião, regras de trânsito, etc.:
1) Estudam as causas reais e naturais dos fatos e fenômenos naturais e sociais, que não dependem da vontade humana.
1) Estudam a ordenação e sistematização dos fatos normativos que dependem só da vontade humana.
2) Emitem juízos de realidade: dizem o que é a coisa (o que foi e o que será), isto é, juízos que correspondem à realidade, cuja existência independe do homem.
2) Emitem juízos de valor: dizem como deve ser a coisa, isto é, juízos que correspondem a valores determinados pela vontade humana.
3) Enunciam uma necessidade natural e objetiva, independente da vontade humana.
3) Enunciam uma necessidade moral e jurídica, um dever, que depende da vontade dos homens.
4) Estabelecem verdades e leis naturais, objetivas, independentes da vontade humana, tais como: princípios, leis, teorias, hipóteses e opiniões científicas.
Ex: lei da gravitação universal, lei da conservação da matéria, teoria da evolução das espécies, etc.
4) Estabelecem verdades e leis axiológicas, convencionais e normativas sobre o comportamento social, dependentes da vontade humana, tais como: princípios, normas, deveres, regras, obrigações, preferências e opiniões pessoais.
Ex: leis jurídicas, normas morais, mandamentos religiosos, regras de trânsito, etc.
5) O critério da verdade científica é a prova científica fundamentada pelos métodos de verificação experimental e demonstração, pelos métodos estatístico, probabilístico, histórico, comparativo e outros. Em uma palavra: a prova pela prática direta e indireta. A teoria sozinha é incapaz de nos dar a certeza. É só na prática que se pode provar a verdade de uma ideia nova. Exemplo: só experimentando é que se pode saber se o fogo queima ou não determinado objeto novo.
5) O critério da verdade axiológica é a enunciação ou a apresentação de fatos. Por exemplo, na disciplina do direito o critério da verdade jurídica é a prova jurídica estabelecida pelo com- plexo de motivos produtores de convicção (conjunto probatório), é a apresentação de documentos públicos e particulares, confissões, testemunhos, asserções, indícios, evidências, presunções, exames periciais e vistorias, arbitramentos, provas circunstanciais, normas estabelecidas pelos códigos, regras de trânsito, dogmas estabelecidos pelas religiões, etc.
6) A conclusão da prova científica tem base sólida e, quando não é suficientemente verdadeira, tem grande probabilidade de o ser.
Ex: lei da gravitação, teoria da evolução, leis da genética.
6) A conclusão da prova jurídica é duvidosa e pode até ser falsa.
Ex: documentos falsificados (passaportes, certidões, diplomas), falsos testemunhos, falsas evidências e presunções, etc.
7) A autoridade máxima da verdade científica é a prova direta ou indireta fundamentada na prática individual e social independente da opinião subjetiva das pessoas.
7) A autoridade máxima da verdade axiológica e normativa pode ser a prova jurídica, a lei normativa dos códigos, a opinião pessoal dos magistrados, a palavra do papa ou das Escrituras Sagradas.
8) A verdade científica tem caráter objetivo, isto é, não depende da consciência e da vontade dos homens.
As paixões e interesses pessoais dos homens não desempenham (pelo menos, não devem desempenhar) nenhum papel na constatação dos fatos científicos.
8) A verdade axiológica, normativa, tem caráter subjetivo, isto é, depende da consciência e da vontade dos homens.
As paixões e interesses pessoais desempenham papel importantíssimo na avaliação, justificação e distorção dos fatos normativos.
9) Reino da causalidade e do determinismo, da necessidade objetiva, independe da vontade humana.
9) Reino da contingência social, dos valores e das ideologias, estabelecidos pela vontade humana.
10) Aqui a liberdade é a consciência, o conhecimento da necessidade natural.
O homem pode agir livremente só na medida em que respeita as leis naturais. Ex: A cidade pode ser abastecida com água somente se for respeitada e aplicada a lei da gravidade universal.
10) Aqui a liberdade é o livre-arbítrio, a vontade dos homens.
O homem é livre de respeitar ou não as leis normativas.
Ex.: o homem pode transgredir as leis jurídicas, morais e religiosas (roubar, matar, violar, mentir, pecar, transgredir as regras de trânsito, etc.), embora corra o risco de sofrer sanções e coações por essas transgressões.
11) As leis científicas não podem ser revogadas pelos homens, pois não foram feitas por eles.
11) As leis normativas podem ser revogadas pelos homens, pois foram feitas por eles.
Conclusão: Não confundir duas categorias diferentes de fatos e de verdades: as verdades e leis naturais descobertas pelos homens (e que não dependem deles), com as verdades axiológicas e as leis jurídicas, éticas e religiosas, criadas pelos homens para regular a convivência humana na sociedade. Estas últimas, sim, são verdades convencionais, relativas e subjetivas no sentido figurado da palavra, embora sejam também ditadas por determinadas condições objetivas da existência social.
Exemplo típico dessa confusão é o caso daquele bem-intencionado, mas voluntarista prefeito de Palmeira dos Índios, que queria revogar a lei da gravidade por uma decisão unânime da Câmara Municipal, confundindo-a com uma lei jurídica: "Informado pelo engenheiro da municipalidade que a lei da gravidade impedia a construção de uma caixa- d'água na praça central de Palmeira dos Índios, devido a um forte declive, o prefeito da cidade não se conformou. Retornando ao gabinete, chamou seu líder na Câmara, recomendando-lhe que conseguisse maioria 'para derrubar a lei da gravidade, pois era preciso construir uma caixa-d'água na praça'.
"Ao que retrucou o líder: 'Senhor prefeito, não se sabe se esta lei é municipal ou estadual. E, depois, pode ser federal. É melhor não mexer no assunto, para não criar problemas. O negócio é não desobedecer ao engenheiro, que é autoridade no assunto'." (O Estado de S. Paulo, 9-6-1971.) "Sem comentários" como se costuma dizer nesses casos.
5 — O CRITÉRIO DA VERDADE
Agora temos que resolver a questão mais importante da teoria do conhecimento: o critério da verdade científica.
Se a verdade é o reflexo e a reconstrução fiel e correta do objeto na mente, em forma de sensações, representações, conceitos, teses ou teorias, então pergunta-se: como saber se determinada imagem ou ideia que temos na mente é o reflexo fiel e correto das qualidades do objeto real? Como saber se um juízo, uma ideia ou uma hipótese, é verdadeiro ou errado? Como saber onde e com quem está a verdade?
Não basta que um conhecimento seja verdadeiro. Há necessidade imperiosa de poder alcançar a certeza de que é verdadeiro.
Esta questão importantíssima chama-se critério da verdade. A palavra critério (do grego kriterion = juízo; krinein = julgar) é o juiz, a norma, o princípio que permite distinguir o verdadeiro do falso, a verdade do erro, julgar se uma asserção é verdadeira ou não. Popularmente, podemos chamá-lo de pedra de toque, que é a pedra com a qual é verificada a autenticidade e o quilate do ouro.
Na história da filosofia, nestes dois mil e quinhentos anos, houve várias tentativas para solucionar a questão. Infelizmente, a maioria absoluta dos filósofos não pôde ou não quis encontrar um critério válido universalmente. Somente há um século mais ou menos é que foi elaborado de modo rigoroso esse critério pelos fundadores do materialismo dialético, mas muitos filósofos contemporâneos continuam a ignorá-lo de boa ou má fé, não importa.
Mas, antes, vejamos algumas soluções propostas nestes dois mil e quinhentos anos.
1) O critério da autoridade
Esse critério consiste em resolver qualquer questão em discussão apelando à autoridade do mestre, de personalidades ilustres, fundadores de doutrinas filosóficas e religiosas. Historicamente é o mais antigo e psicologicamente é o primeiro critério da verdade. Na Antiguidade e nas sociedades primitivas, onde a cultura era incipiente, a opinião da autoridade era decisiva, como em nossos dias a opinião dos adultos (pais, mestres) é o critério máximo da verdade para as crianças.
Na Idade Média, quando a ideologia dominante era a religião, o critério da verdade estava na Bíblia, na autoridade divina revelada, nas Escrituras Sagradas, na palavra de São Tomás de Aquino, o fundador do tomismo (a filosofia oficial da religião cristã) ou na autoridade de Aristóteles, cuja filosofia serviu de fundamento para o tomismo. "Sou homem de um só livro" — dizia com orgulho São Tomás de Aquino, aludindo à Bíblia.
Embora o princípio da autoridade esteja hoje abalado, ele continua funcionando bem na religião, porque a religião é baseada em dogmas enunciados pelas autoridades religiosas e que devem ser aceitos pela fé, sem discussão.
É por isso que, até hoje, os adeptos de qualquer religião ou doutrina filosófica dogmatizada consideram a opinião dos fundadores e dos mestres como critério supremo da verdade.
Crítica: O critério da autoridade, além de ser insuficiente, pode ser muito perigoso. Sabe-se que o célebre pensador e cônego italiano Giordano Bruno foi queimado na fogueira e seu patrício Galileu Galilei foi condenado pela Inquisição, como heréticos, por contrariarem as verdades "eternas" das Escrituras Sagradas, ao afirmarem que nossa Terra não era o centro do cosmos e que ela se movia por si mesma.
Ainda hoje, milhões de católicos honestos, que defendem o direito ao divórcio e ao aborto, são perseguidos e ex-comungados, como heréticos e pecadores, pelo papa, por divergirem dos dogmas "divinos", "revelados", "sagrados", "eternos", da religião cristã.
Nas décadas dos anos 30 e 40 do nosso século, na URSS e na Alemanha nazista foram sacrificados como "traidores" milhões de seres humanos, simplesmente por não concordarem com as "verdades" dogmatizadas dos fundadores da doutrina dominante.
Mas nas ciências e na filosofia científica o princípio da autoridade não funciona, não serve como critério da verdade. A opinião do mestre ou de qualquer outra autoridade, seja cientista ou filósofo, no máximo, só tem valor de testemunho que se pode apenas levar em consideração.
A ciência está em permanente desenvolvimento e a filosofia científica é crítica por excelência. Aquilo que foi verdadeiro ontem pode não o ser mais hoje. Aquilo que é certo para um país, pode não o ser para outro país que se acha em diferente fase de desenvolvimento econômico, social e cultural. Eis a razão por que a verdade dogmatizada só pode prejudicar o desenvolvimento da pesquisa científica e filosófica. Esta é a razão por que a ciência e a filosofia científica rejeitam categoricamente a opinião da autoridade como critério último da verdade.
A ciência e a filosofia científica não reconhecem outra autoridade senão a linguagem dos fatos, a palavra da realidade, a voz da razão, e acima de tudo a prova científica.
2) O critério da evidência
O mais conhecido, divulgado e aceito critério, desde Aristóteles até nossos dias, afirma que o único e último critério da verdade é a evidência. A palavra "evidência" deriva de "ver" — ato de visão direta e imediata, obtida pela intuição de evidência.
Por exemplo, as proposições: "O todo é maior que sua parte"; "Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si"; "Algo não pode ser uma coisa e seu contrário, ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista" — são verdades evidentes que nós captamos direta e imediatamente pela intuição de evidência.
A evidência é a plena clareza da verdade. A certeza é o estado subjetivo que acompanha a evidência.
Resumindo esse ponto de vista, R. Jolivet escreve:
Tudo que é evidente verdadeiro.
Tudo que é verdadeiro é evidente.
A evidência seria universal, isto é, válida para todos os espíritos, suficiente a si mesma, não pode e nem precisa ser provada. (Cf. R. Jolivet, Curso de filosofia, Editora Agir, Rio de Janeiro, 9.a edição, 1968, pp. 69-70.)
Mais de noventa por cento dos filósofos modernos aceitam esse ponto de vista.
Crítica: A evidência como critério da verdade, embora seja bastante eficiente, não é, entretanto, suficiente, pois a evidência pode ser verdadeira e falsa, real e aparente, ainda que haja no sujeito o sentimento subjetivo de certeza. Basta lembrar as ilusões dos sentidos que nos dão uma percepção ou noção falsa e errônea das coisas reais.
Por exemplo: durante milênios pensou-se que a Terra fosse plana e imóvel e que o Sol girasse em torno dela. Aliás, as crianças de todos os tempos e os índios ou povos primitivos bem como milhões de ignorantes de hoje também pensam assim, pois isso parece mais evidente do que dizer que a Terra é redonda e que ela gira em torno do seu eixo e em torno do Sol.
A evidência, como critério único e último da verdade, não serve, pois a própria evidência necessita de outro critério para determinar quando e onde se trata de evidência verdadeira e evidência falsa.
A evidência como critério da verdade, na filosofia moderna, foi estabelecida por Descartes e seguida por Spinoza. Este dizia que "as ideias que são claras e distintas jamais poderão ser falsas".
Leibniz, criticando essa opinião, dizia que Descartes "alojou a verdade na hospedaria da evidência, mas esqueceu-se de dar o seu endereço".
Esse critério da verdade também pode ser perigoso. Às vezes, a ignorância, a tradição, as paixões e os preconceitos nos fornecem evidências falsas. Em nome de verdades "evidentes", os pensadores oficiais sempre criticaram os grandes descobridores de novas verdades, pois as verdades mais fecundas, longe de se imporem antes de tudo como evidentes, se consideram com espanto e escândalo, como contrárias à evidência tradicional.
3) O critério da ausência de contradição (ou da não-contradição)
Para o positivismo lógico ou o idealismo lógico, corrente filosófica muito difundida nos países anglo-saxões, a verdade significa a concordância ou coerência do pensamento consigo mesmo. Essa concordância pode ser conhecida na ausência da contradição entre os juízos ou enunciados. É também conhecida como critério da não-contradição. Exemplo:
Todos os homens são mortais (premissa maior).
Ora, Sócrates é homem (premissa menor).
Logo, Sócrates é mortal (conclusão).
Neste raciocínio não há contradição entre os juízos, o pensamento é coerente consigo mesmo, logo é verdadeiro.
Crítica: Esse critério é válido apenas para a lógica formal, que lida apenas com a verdade formal, onde um enunciado é verdadeiro não porque concorda com a realidade objetiva, mas porque é coerente, dentro de um sistema, com outros enunciados. É válido também nas matemáticas.
Aqui o pensamento não lida com objetos reais, mas sim com objetos ideais. Se nós nos limitarmos a esse critério, poderemos fazer passar por verdadeiros muitos sofismas, e paralogismos, raciocínios errados e absurdos. Vejamos, por exemplo, o silogismo seguinte:
Todos os homens são honestos (premissa maior).
Ora, os ladrões são homens (premissa menor).
Logo, os ladrões são honestos (conclusão).
Neste silogismo também não há contradição entre os juízos enunciados. A conclusão ("Os ladrões são honestos") é lógica, correta e formalmente verdadeira. O raciocínio é perfeito, de acordo com a lógica formal. Mas é errado de acordo com a lógica material, porque é errado o enuncia- do da premissa maior ("Todos os homens são honestos"). Por isso é errada também a conclusão ("Os ladrões são honestos").
É importante não confundir a verdade formal com a verdade material.
A verdade formal é apenas o acordo do pensamento consigo mesmo. É o raciocínio lógico, consequente e coerente consigo mesmo, e não necessariamente o acordo do pensamento com a realidade. Há erro formal quando há contradição apenas no raciocínio.
O mesmo acontece nas matemáticas. Tomemos o seguinte postulado: "Por um ponto situado fora de uma reta dada não se pode traçar senão uma só paralela a essa reta". Essa asserção será verdadeira (não-contraditória) se admitirmos o postulado de Euclides, mas será errada (contraditória) se decidirmos adotar uma geometria não-euclidiana, por exemplo, a geometria hiperbólica do matemático russo Lobatchévski (1793-1856), que postula: "Por um ponto situado fora de uma reta dada é possível traçar duas paralelas a essa reta". E o mais interessante é que, embora uma geometria negue a outra, ambas são coerentes dentro de sua axiomática e ambas têm aplicações científicas, só que em domínios diferentes.
A verdade real ou material é o acordo do juízo ou pensamento com a realidade objetiva, com as coisas. Ex.: a asserção "Todos os homens são mortais" só poderá ser considerada verdadeira se efetivamente todos os homens são mortais.
Para que um pensamento seja verdadeiro não basta que ele seja coerente consigo mesmo, é necessário ainda, e sobretudo, que corresponda à realidade objetiva, isto é, que tenha conteúdo verdadeiro, que reflita corretamente a verdade objetiva. Que seja uma verdade material e objetiva.
A correção formal, isto é, a não-contradição, a consequência e demonstração formal de nosso pensamento é muito importante. Mas, tomada isoladamente, sem ligação com a vida e a realidade, não nos garante a verdade objetiva e por isso não pode ser considerada como critério de verdade. Ela simplesmente elimina a contradição nas nossas ideias, mas não permite ainda conhecer a verdade objetiva.
4) O critério da utilidade
Quem sistematizou e propagou mais este critério foi o pragmatismo — doutrina filosófica dominante nos Estados Unidos da América e difundida também na Inglaterra e outros países. Segundo essa doutrina, o único critério da verdade de um juízo é sua utilidade prática, o sucesso, o êxito, a vantagem, o lucro.
A palavra "pragmatismo" deriva do verbo grego "pragma", que significa "ação", "o que se refere à ação", "o que se faz", "a coisa da qual se ocupa".
Nesse sentido etimológico, o pragmatismo significa a concepção segundo a qual o critério da verdade está na ação e não na especulação. A verdade se conquista e se assimila pela ação e não pela contemplação.
Segundo o pragmatismo americano, a inteligência não alcança sua finalidade senão quando ela conduz a uma ação eficaz; a ideia verdadeira é aquela que tem bom êxito, que é bem sucedida.
Sob uma forma menos paradoxal, a ideia verdadeira é aquela que sai vitoriosa das provas de verificação, mais brevemente, é verdadeiro aquilo que foi verificado.
Segundo o instrumentalismo, forma do pragmatismo de J. Dewey e da Escola de Chicago, o pensamento em geral e as teorias em particular não são mais que um instrumento para a ação, inclusive a ação intelectual ou científica, e é seu rendimento na ação que faz seu valor de verdade. Afirma o caráter instrumental da verdade, isto é, a verdade é simples instrumento para a ação e para o enriquecimento da experiência ulterior.
Assim William James e John Dewey ensinam a identificação da verdade com a verificação. É verdadeiro, dizem eles, o que é verificado; é válida a hipótese que sai vitoriosa das provas estabelecidas para seu controle e que, nesse sentido, constitui um êxito, um sucesso.
Nessa formulação, a posição do pragmatismo até que é aceitável com algumas reservas. Infelizmente, as palavras como "ação", "experiência", "verificação", "eficaz", "sucesso", "útil", "vantajoso", usadas pelos pragmatistas como critério da verdade são interpretadas em sentido muito diferente, amplo, vago e subjetivo. O próprio William James nada fez para dissipar o equívoco. Pelo contrário, contribuiu pessoalmente para deteriorar seu significado. De tal modo que o pragmatismo decaiu num utilitarismo e praticismo vulgar e subjetivista.
Com efeito, diz W. James, existem vários planos de experiência: na experiência física, o verdadeiro é o que permite prever e agir, o que tem eficácia, o que é vantajoso, o que oferece um certo rendimento. Na experiência psicológica ou intelectual, o verdadeiro é o que é vantajoso para o pensamento, que nos dá um estado de tranquilidade, de paz e de repouso. Assim também será verdadeira uma concepção política se justifica nossos interesses ou uma crença religiosa se nos consola e traz paz espiritual. Por exemplo, a ideia de Deus, como todas as outras ideias, só é verdadeira se rende algo, como William James declara sem rodeios: "Deus é uma coisa da qual nos servimos". "O verdadeiro é o que é vantajoso, não importando de que maneira", conclui W. James.
Assim, sob sua forma mais grosseira, a verdade é identificada com o êxito, com o útil, o vantajoso, o lucro, etc. As coisas não são verdadeiras em si, mas chegam a ser verdadeiras de acordo com sua utilidade. A ideia verdadeira é aquela que é mais eficaz, que rende mais, que paga mais.
Nessa perspectiva, o critério racional científico da verdade é substituído pelo critério ético-utilitário, o juízo de realidade pelo juízo de valor (opinião e interesse pessoal), a teoria do conhecimento pela teoria dos valores.
O escritor francês Saint-Exupéry, autor de O pequeno príncipe, escreve no seu livro Terra dos homens: "A verdade para o homem é o que faz dele um homem". A verdade não é o que se demonstra. A verdade é o que nos desenvolve, o que nos liberta e nos realiza. Se uma determinada religião, cultura ou escala de valores propicia ao homem a plenitude é porque elas são a verdade do homem.
Eis uma visão tipicamente pragmatista, utilitarista e subjetivista do critério da verdade.
Crítica: É muito atrativo o critério da verdade pregado pelo pragmatismo, pois se é verdadeiro tudo que é bom para nós, tudo que dá resultado, sucesso, vantagem, lucro etc., fica moralmente justificado qualquer meio para alcançar nosso objetivo individual, mesmo tais meios como a mentira, o roubo, o homicídio.
Aqui desaparece qualquer limite entre a verdade e o erro, a veracidade e a mentira, entre a conduta socialmente aprovada e a conduta considerada criminosa.
Não resta dúvida de que essa concepção do critério da verdade além de errada é superficial (aliás é errada porque é superficial). Os norte-americanos, homens práticos por excelência, são avessos à teoria e às especulações filosóficas, que nos dão um conhecimento mais profundo da realidade, justamente porque seus ideólogos são céticos e agnósticos e negam a possibilidade de conhecer a essência das coisas, isto é, a verdade objetiva.
O pragmatismo foi muito difundido e deturpado nos EUA justamente por corresponder ao espírito prático e oportunista do norte-americano. "Realista, ele era oportunista. Ele não tinha o culto dos princípios; estes não lhe pareciam apreciáveis senão pelos resultados que eles poderiam ter. Nosso tempo diria que, por isso, ele era pragmatista." (L. Madelin, in Foulquié e Saint-Jean, Dictionnaire de la langue philosophique, PUF, Paris, 1962, p. 560.)
O raciocínio do norte-americano é muito simples e superficial: já que é difícil e trabalhoso conhecer o que é a verdade em si, então é "verdadeiro" tudo que funciona bem, que traz vantagem pessoal.
O pragmatismo é a filosofia do individualista burguês, voluntarista e anárquico, a quem não interessa a verdade em si, objetiva, independente de sua vontade. Ele está convicto que pode vender qualquer coisa a quem quer que seja, desde que aplique sua técnica voluntarista.
Mas atrás dessa eficiência americana esconde-se, latente, o seu futuro fracasso como homem moral e pensante. O critério pragmatista da verdade é uma arma de dois gumes; é o feitiço que vira contra o feiticeiro.
Vejam, por exemplo, a apologia velada feita pelo cinema americano dos gângsteres, dos mafiosos e dos traficantes de entorpecentes, apresentados ao público com toda a simpatia, como verdadeiros heróis. Resultado: em troca de um punhado de dólares, os próprios propagandistas da criminalidade correm o perigo de serem vítimas de seus anti-heróis. E o são muitas vezes. Haja visto a frequência e facilidade com que se matam dirigentes e até presidentes da nação. Não é por acaso que a sociedade americana é a que tem, proporcionalmente aos seus habitantes, o maior número de criminosos de toda a laia.
Não é possível ignorar a diferença fundamental entre a verdade e o erro, o verdadeiro e o errado, entre a veracidade e a falsidade, o bem e o mal, sem pagar um preço muito alto por tal incapacidade.
O pragmatismo despoja da verdade todo o seu significado. O fato de um juízo ser útil, vantajoso, consolador, reconfortante, não o transforma em verdade. Ele pode ser errado e falso.
Por exemplo: o racismo, o antissemitismo, o antifeminismo, o antidivorcismo, o antiabortismo e outras ideias são apregoadas como verdades por certos ideólogos, porque trazem proveito e lucro para certos grupos sociais, mas nem por isso se tornam verdades objetivas, científicas.
O critério pragmatista da verdade é uma concepção subjetivista, oportunista, egoística, mercantilista e maquiavélica da verdade, segundo a qual os fins justificam os meios. Ele pode ser mais perigoso ainda do que os critérios anteriores, pois pode justificar qualquer ideia monstruosa, desumana, desde que seja útil aos seus interesses. Foi o que fizeram os ideólogos do nazi-fascismo e o fazem hoje os ideólogos da classe dominante de muitos países para poder continuar dominando.
É óbvio que os conhecimentos verdadeiros podem ser e são úteis. Mas uma consequência do conhecimento verdadeiro jamais deve ser tomada pela verdade mesma. A utilidade e o proveito não podem servir de critério da verdade. As teorias científicas são verdadeiras não porque sejam úteis. Ao contrário: justamente porque são verdadeiras, isto é, refletem corretamente as relações objetivas, é que são úteis. Só os conhecimentos verdadeiros são capazes de trazer benefícios à humanidade, embora, temporariamente, possam prejudicar os interesses egoísticos de alguns homens, ou grupos sociais, ou classes dirigentes de uma nação.
5) O critério da prova
É incrível que no problema mais importante da teoria do conhecimento, que é o critério da verdade, nestes dois mil e quinhentos anos de pensamento filosófico, nenhum filósofo, seja da linha idealista seja da linha materialista, tenha encontrado um critério científico da verdade, válido universalmente.
Os filósofos, na melhor das hipóteses, viram o critério supremo da verdade na evidência. Mesmo um filósofo de alto gabarito como Spinoza afirma que "o único critério da verdade é a própria verdade". Mas nós já vimos que, embora mais ou menos válido, o critério da evidência é insuficiente e até perigoso.
O pragmatismo, prosseguindo o caminho aberto pelo empirismo de Bacon e outros, foi o que mais se aproximou do critério da verdade ao indicar a importância da ação, da prática e da verificação. Mas, como já vimos, o pragmatismo descambou para um utilitarismo e oportunismo grosseiro e subjetivista.
A única corrente filosófica que deu uma solução satisfatória e consequente ao problema em questão foi a filosofia marxista, ao mostrar o papel da prática no conhecimento. A seguir, analisaremos com mais detalhe essa valiosa contribuição.
Embora no uso cotidiano nos utilizemos, em maior ou menor grau, de todos os critérios da verdade até aqui apresentados, vimos que eles são insuficientes para nos dar a certeza de que uma proposição é verdadeira ou errada, rigorosamente falando.
Então, onde encontrar, afinal de contas, um critério eficiente da verdade? Um critério que não dependa nem da autoridade, nem da evidência, nem da utilidade e nem do interesse ou opinião das pessoas?
O critério supremo, real e objetivo, da verdade é a prova. De todos os critérios, o mais eficiente e cientificamente válido é o critério da prova.
Nós já vimos que, segundo o princípio da razão suficiente, qualquer situação (proposição, tese), para considerar-se verdadeira, deve ser provada, isto é, devem ser conhecidos os fundamentos suficientes por força dos quais ela se considera verdadeira.
Suponhamos que o estudante ouvindo o relato do professor encontre uma série de proposições desconhecidas para ele. Por exemplo: ele fica sabendo que o homem descende de animais inferiores, que certos ultrassons matam organismos vivos elementares, que a Terra é redonda e gira em torno de si e do Sol, etc., etc.
O estudante tem o direito de duvidar da verdade dessas proposições até o momento em que elas forem provadas, verificadas, demonstradas, explicadas, fundamentadas. Uma vez que elas forem provadas, uma vez que houver suficientes fundamentos comprovando a veracidade das mesmas, duvidar delas já não é possível. Toda tese cientificamente provada é sem dúvida verdadeira.
Na ciência e na atividade cotidiana, nada deve ser aceito na base da crença e da fé (como isso acontece por exemplo na religião), mas é necessário provar, demonstrar, fundamentar tudo que se diz.
6) MODALIDADES DE PROVAS
Agora vamos esclarecer o que entendemos por prova, e que modalidades de provas existem.
De uma maneira geral, a prova é aquilo que estabelece a verdade de uma asserção colocada em dúvida, é aquilo pelo qual adquirimos a certeza da verdade de algo, aquilo que leva nosso espírito a reconhecer a verdade de uma proposição ou a realidade de um fato, pelo raciocínio ou pelo testemunho (apresentação de fatos materiais).
Assim, a prova é um raciocínio ou apresentação de fatos pelo qual se constata ou se estabelece a verdade de uma proposição.
Há várias modalidades de provas, conforme a disciplina estudada e a natureza dos fatos a serem provados e a espécie de verdade que se tem em vista.
Há provas diretas e indiretas, há provas práticas e teóricas, há provas materiais e lógicas. De um modo geral, podemos englobá-las em duas modalidades de provas:
1.ª) Verificação por meio de provas diretas, práticas e materiais.
2.ª) Demonstração por meio de provas indiretas, teóricas e lógicas.
1.ª) A verificação é um processo que consiste em examinar, controlar, confirmar ou provar se uma asserção ou hipótese é verdadeira ou errada, confrontando-a com os fatos.
Para provar a verdade de uma asserção, a verificação utiliza-se das provas diretas, práticas e materiais, tais como experiências de laboratório, apresentação de fatos, testemunhas, documentos, objetos, fenômenos e acontecimentos individuais, obras de literatura e arte, etc. A verdade desses fatos se estabelece através do testemunho direto dos órgãos dos sentidos. Em uma palavra, pela experiência imediata.
Eis alguns exemplos: para se convencer da verdade da afirmação que "o fogo queima a mão", basta colocar a mão no fogo. Para saber se "o pudim está bom", basta experimentá-lo, isto é, comê-lo. Só comendo é que se pode saber se o pudim está bom ou não. Do mesmo modo pode-se provar o perigo do abismo, dos venenos, das doenças contagiosas, etc.
É verdade que, às vezes, nossas sensações não transmitem de modo totalmente exato as propriedades dos fatos e dos fenômenos da realidade objetiva. Por exemplo: uma vara introduzida até a metade na água parece-nos quebrada; ou o movimento da Terra em torno do seu eixo parece-nos como o movimento do Sol em torno da Terra. Mas nessa base seria errôneo concluir que nossas sensações não são capazes de nos dar um quadro verdadeiro do mundo. O pensamento humano, fundamentado nos conhecimentos práticos e teóricos acumulados pelas gerações anteriores, ajuda-nos a corrigir tais ilusões dos sentidos e, no final das contas, nossas sensações dão, em certa medida, representações corretas sobre a realidade circundante.
Como ressaltava Lênin, o homem nem poderia se adaptar biologicamente ao seu meio, se suas sensações não lhe dessem representações objetivamente corretas sobre ele. Sem os dados dos sentidos não é possível nenhum conhecimento. Por isso, os fatos isolados, os fenômenos individuais, as percepções imediatas, tomadas em seu conjunto e em suas relações, podem e servem como fonte de nosso conhecimento e como fundamento para a prova da verdade de nossos juízos.
À pergunta: "Quando os fatos têm uma força probatória incondicional?", Lênin responde que "os fatos, se tomados no seu todo, nas suas relações, não só são 'teimosos', mas coisa probatória", pois eles representam a expressão de determinadas leis objetivas.
As provas materiais, diretas e imediatas, não necessitam de demonstrações. Basta verificá-las pela experiência imediata. Agora, aquilo que não é compreensível pela verificação imediata necessita de demonstração.
2.ª) A demonstração utiliza de preferência as provas indiretas, teóricas e lógicas, que têm caráter mais científico.
A demonstração é usada comumente como sinônimo de prova. Mas há certo grau de generalidade entre os dois conceitos. Se todas as demonstrações podem ser chamadas de provas, nem todas as provas são demonstrações. Há provas que não necessitam de demonstrações, tais como as provas materiais da experiência imediata que vimos acima. Já a demonstração consiste em estabelecer de um modo evidente, rigoroso e convincente, a verdade de uma proposição por meios indiretos.
Embora no processo da demonstração de certas teses não apelemos para a sua verificação experimental direta, entrementes na demonstração precisamos basear-nos em tais verdades que ou foram verificadas na prática ou elas mesmas demonstram-se por meio de verdades que já foram verificadas diretamente pela prática. Isto significa que, na fundamentação da verdade de certas teses, nós, no final das contas, baseamo-nos na prática.
O princípio da razão suficiente já estudado diz que, na ciência, para a demonstração de novas teses visando a ampliação de nossos conhecimentos, é possível utilizar somente teses comprovadas, que possuem razão suficiente, em virtude da qual elas são consideradas verdadeiras. As hipóteses, as teses não-comprovadas (embora posteriormente elas possam ser provadas) não podem ser utilizadas como fundamentos de demonstração.
A demonstração tem dois aspectos: formal e material.
1) A demonstração formal, utilizada nas matemáticas e na lógica formal, é um raciocínio dedutivo destinado a estabelecer a verdade de sua conclusão, apoiando-se em proposições evidentes ou já demonstradas ou admitidas como verdadeiras.
2) A demonstração material é toda a operação mental que estabelece a verdade de uma proposição, quer dedutivamente, quer indutivamente, incluindo a prova ou demonstração indireta e por absurdo.
A prova ou demonstração indireta é um raciocínio que estabelece a verdade de uma proposição mostrando que, no caso considerado, todas as hipóteses possíveis são evidentemente erradas com exceção de uma só, aquela que se enuncia na proposição. Por exemplo: Este homem pode ter morrido de morte natural, por homicídio ou por suicídio. Como evidentemente não houve morte natural nem homicídio, logo houve suicídio.
A prova ou raciocínio por absurdo é um processo que consiste em estabelecer a verdade de uma proposição mostrando que sua contraditória leva a consequências errôneas ou incompatíveis com a hipótese.
Entre as provas indiretas, teóricas e lógicas, podemos incluir ainda vários métodos de verificação e demonstração utilizados pelas ciências naturais e sociais, tais como os métodos estatístico, probabilístico, histórico, comparativo, genético, etc.
Se quisermos resumir numa só palavra a essência de todas as modalidades de provas científicas — tanto as diretas como as indiretas — podemos dizer que a verdade de uma tese prova-se pela prática imediata e mediata, científica, histórica, individual e social, ou, em outras palavras, pela práxis individual e social.
Assim, a prova pela prática imediata e mediata é a pedra de toque, o critério supremo da verdade de qualquer fato ou teoria.
7 — O PAPEL DA PRÁTICA NO CONHECIMENTO
A grande contribuição da filosofia marxista na elaboração de uma teoria científica do conhecimento consiste justamente no fato de que ela, pela primeira vez na história da filosofia, revelou o decisivo papel da prática no processo do conhecimento. Ela mostrou que a atividade prática e antes de tudo a atividade produtiva dos homens é ao mesmo tempo:
1) o fundamento de todo o processo do conhecimento, isto é, a fonte, o ponto de partida de qualquer espécie de conhecimento;
2) o objetivo final do conhecimento;
3) o critério decisivo da verdade.
O papel e o valor da atividade prática no conhecimento foi estudado por Hegel, Feuerbach e outros filósofos, mas foram Marx e Engels que souberam colocá-lo corretamente e solucionar cientificamente o problema do critério da verdade.
Eis o célebre pensamento de Marx a esse respeito: "A questão de saber se o pensamento humano pode atingir a verdade objetiva não é uma questão teórica, mas uma questão prática. É na prática que o homem deve provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a terrenalidade de seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou irrealidade do pensamento, isolado da prática, é uma questão puramente escolástica" (K. Marx, II tese sobre Feuerbach).
Ao estabelecer o critério da prova pela prática, os fundadores da filosofia do materialismo dialético, Marx e Engels, não deixaram nenhum tratado sobre o assunto, de modo que o que eles escreveram sobre o assunto, embora fundamental, é pouco.
Considerável sobre o assunto foi a contribuição de Lênin, principalmente em suas obras Materialismo e empírio-criticismo e nos Cadernos filosóficos.
São abundantes na União Soviética trabalhos sobre o papel da prática. Mas, infelizmente, os filósofos soviéticos, muito presos às formulações dos clássicos do marxismo-leninismo, limitam-se, em geral, a repetir as mesmas palavras dos mestres, sem acrescentar algo e sem explorar mais profunda e detalhadamente o rico conteúdo do conceito de prática. De modo que o conceito de prática nos livros soviéticos sobre a teoria do conhecimento (em geral muito breves) fica envolto numa nebulosa e não se desvenda todo o seu amplo significado. É verdade que há exceções, como por exemplo o livro escrito por um coletivo de autores soviéticos, Prática critério da verdade na ciência (em russo), Moscou, 1960, em que se aplica o critério da prática nas diferentes ciências naturais e sociais.
Felizmente, vários filósofos marxistas não-soviéticos trouxeram valiosas contribuições nesse campo. (Ver, por exemplo, o opúsculo de Mao Tsé-tung, Acerca da prática, o livro de Antonio Gramsci Concepção dialética da história, Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1966; e sobretudo a excelente pesquisa de Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da práxis, Ed. Paz e Terra, Rio, 1968, e outros.)
Dada a suma importância do tema e a falta de clareza reinante a respeito, achamos que seria útil falar com mais detalhe sobre o assunto.
Ao expor abaixo o papel da prática no conhecimento, nós completamos os pensamentos dos fundadores da filosofia do materialismo dialético (Marx, Engels, Lênin) com as contribuições dos filósofos soviéticos e não-soviéticos, e damos também nossa modesta contribuição, tudo dentro do espírito da própria filosofia em questão. Assim se terá uma visão mais rica e completa de um assunto de decisiva importância na teoria do conhecimento.
8 — SIGNIFICADO DE PRÁTICA E PRÁXIS
O vocábulo "prática" vem do grego praktikos. Como adjetivo significa ativo, eficaz, que convém à ação. Como substantivo significa ação propriamente dita e se opõe à gnosis, que significa teoria, conhecimento, contemplação.
Na linguagem cotidiana, o termo "prática" é usado como atividade humana no sentido estritamente utilitário e pejorativo, como se pode sentir nas seguintes expressões: "homem prático", "resultados práticos", "profissão muito prática".
Para evitar tal confusão indesejável, alguns autores (como Vázquez, por exemplo) em vez do termo "prática" preferem usar, como sinônimo equivalente, a palavra "práxis", que também significa a própria ação e se opõe a gnosis, a teoria e a contemplação.
Aliás, por não saber ou por não querer fazer esta distinção entre a acepção filosófica e a acepção vulgar que os adeptos do pragmatismo decaíram no mais baixo utilitarismo.
Pois, tanto os vocábulos "prática" e "práxis", como os vocábulos "pragmatismo", "pragmatista" e "pragmático" derivam do verbo grego prassein ou prattein (agir, fazer), de onde, por sua vez, derivam os substantivos pragma (ação, afazeres, negócio) e práxis (ação) e os adjetivos pragmático e praktikos que se referem à ação (Cf. Foulquié e Saint- Jean, Dictionnaire de la langue philosophique, pp. 559-561).
Como já vimos, as palavras "pragmatismo", "pragmatista" e "pragmático" que originariamente significam ação, atividade prática, adquiriram o sentido pejorativo de utilitarista, que visa o lucro, a vantagem, o sucesso a qualquer preço.
Já no vocabulário marxista, a prática ou práxis designa o conjunto de atividades materiais e produtivas do homem visando a transformação do mundo material e social para fazer dele um mundo humano. É nesse sentido que Marx escreveu: "Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes modos; trata-se porém de transformá-lo" (Marx, XI tese sobre Feuerbach).
A categoria da práxis ou prática, como atividade transformadora, ocupa um lugar tão importante, fundamental e central na filosofia marxista que alguns autores preferem chamar o marxismo de "filosofia da práxis".
Já os filósofos soviéticos Elez e Davidova consideram a teoria da práxis revolucionária como "medula do marxismo" e caracterizam a práxis como "o processo vivo, infinito, de transformação e mudança" e veem na dialética a teoria da práxis em geral. "A dialética materialista é a ciência da transformação do mundo natural em mundo humano; é a teoria da transformação revolucionária do próprio homem." (I. Elez e G. Davidova, "A dialética materialista como teoria da práxis revolucionária", revista Problemas da Filosofia, Moscou, 1965, n.° 9, p. 5. Cit. por Vázquez, op. cit., pp. 44 e 181.)
9 — FORMAS DE PRÁTICA
O fundamento para a classificação das formas de prática pode ser diferente. Por exemplo, pode-se classificar a prática de acordo com as esferas de atividade vital do homem. Nesse caso temos:
1) A prática na esfera da vida econômica, antes de tudo a produção material.
2) A prática na esfera política, a forma superior da qual é a luta de classes, a revolução social.
Do ponto de vista da análise filosófica, como base para a classificação das formas de prática, pode-se tomar a relação da prática com a teoria. Desse ponto de vista, podemos distinguir três formas de prática:
1.ª) A atividade exterior do homem, coincidindo com o seu comportamento social, com a existência (sobrevivência) cotidiana, com a orientação nas normas sociais, morais, políticas, etc.
2.ª) A atividade material propriamente dita, baseada na experiência empírico-prática. Aqui a prática coincide com a experiência prática (p. ex., conhecimentos práticos). Tal conhecimento existe somente na forma de fim, objetivo, meta.
3.ª) A prática em unidade com o conhecimento científico. Ela se fundamenta na apreensão teórica do objeto, se manifesta como atividade total de operações adequadas à estrutura do objeto. Essa forma desenvolve-se juntamente com o aparecimento da produção de grandes máquinas. Essa atividade prática baseia-se na teoria científica. (Cf. A. Ogurtsov, verbete "Prática" in Enciclopédia filosófica (em russo), Moscou, 1967, t. 4, pp. 347-348).
Conclusão: Segundo o ponto de vista da filosofia marxista, a prática ou práxis é o conjunto da atividade produtiva, técnica e científica dos homens, orientada na transformação da natureza (toda a experiência do desenvolvimento da agricultura e da indústria), o conjunto da atividade revolucionária política e social, orientada na transformação da sociedade (luta de classes, revolução social, o movimento pela emancipação nacional e edificação de determinado regime econômico-social-político).
Assim, a concepção marxista da práxis compreende:
1) o trabalho, a produção agrícola, industrial, etc.;
2) o trabalho de pesquisa científica, a verificação experimental;
3) a produção ou criação de obras de arte;
4) a atividade política e social, etc.
[Cf. O. O. Yakhot, Palestras populares sobre o materialismo dialético (em russo), Moscou, 1962, p. 215; G. Politzer e outros, Princípios fundamentais de filosofia, Ed. Fulgor, Rio, 1967, p. 156; e Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da práxis, Ed. Paz e Terra, Rio, 1968, pp. 3-5 e 194-202.]
Resumindo: A prática ou práxis, na concepção marxista, é o conjunto da atividade produtiva e revolucionária dos homens, orientada na transformação do mundo material, espiritual e social, em benefício das necessidades humanas.
Como se vê, a palavra prática ou práxis é entendida na filosofia marxista no sentido mais lato possível, como atividade em geral, como vida, realidade, experiência pessoal e científica, sobretudo como atividade produtiva e revolucionária.
Esse é o conceito de prática ou de práxis, que na filosofia marxista é o fundamento e o objeto final do conhecimento, sobretudo o critério supremo da verdade de qualquer percepção, ideia, juízo, teoria ou ação revolucionária.
10 — O CRITÉRIO DA PRÁTICA
Assim, a prova pela prática, pela vida e pela realidade é o único critério válido, é a pedra de toque, a água-régia, o juiz supremo da verdade de qualquer teoria ou ação.
Desse critério dimanam importantes conclusões, imprescindíveis na vida pessoal e profissional, na nossa atividade individual e social. Ao apreciar nossa atividade produtiva, econômica, política e científica devemos sempre nos guiar pelo critério da prática.
Se a realidade contradiz nossos cálculos, suposições ou hipóteses, devemos ter a coragem de renunciar a eles, aprofundando nossos conhecimentos, pondo-os em consonância com a experiência, com a prática. Quando nos obstinamos e não queremos levar em conta os fatos da vida, caímos sempre em logro e fracasso.
Muitas vezes é difícil, se não impossível, no plano teórico, saber se algo é verdadeiro ou falso. Em ciência, como já vimos, não funciona o critério da autoridade, e os demais critérios estudados não são suficientes para julgar a verdade das afirmações.
Teoricamente, uma hipótese científica, por mais lógica que pareça, enquanto não for confirmada e provada pela prática, não pode ser ainda considerada verdadeira. No melhor dos casos, continua sendo uma hipótese com menor ou maior possibilidade de ser verdadeira. Por exemplo, a possibilidade de haver ou não vida no planeta Marte só pode se tornar verdadeira no dia em que for confirmada e prova- da pela prática técnica e científica.
O mesmo acontece na vida social e política. Por exemplo, só podemos saber se um regime político que se apregoa como ideal é ou não é bom depois de vê-lo funcionar na prática. Na teoria pode ser muito belo e bom, mas na prática ser o contrário. "A teoria na prática é outra" — como diz certo humorista.
É pela prática também que verificamos a sinceridade ou a falsidade das promessas de autoridades políticas e de nossos amigos. "É nas horas difíceis que se conhecem os verdadeiros amigos" — reza a sabedoria popular.
Nada há de estranho e surpreendente no fato de que a prática humana seja o critério supremo da verdade de nossos conhecimentos. Se a prática, a vida, a realidade, em uma palavra, se a práxis, como conjunto da atividade material dos homens orientada na transformação do mundo material e social, é a fonte e o objetivo, a causa primeira e causa final, de nossos conhecimentos, nada mais lógico e natural que o critério da verdade desses conhecimentos seja sua própria fonte e seu próprio objetivo, isto é, a prática. A prática entra em cada fase, em cada degrau do processo do conhecimento, desde o começo até o fim, e determina tanto a forma como o conteúdo de nossos conhecimentos.
Se nossa mente, nossa consciência, nosso espírito, é um produto da evolução e experiência milenar da humanidade, um produto, em última instância, da natureza e da sociedade humana, e, em consequência disso, faz parte dela, nada mais natural e lógico que nossa consciência esteja em condições de refletir corretamente as leis da natureza e da sociedade. É a dialética das ideias, refletindo e reproduzindo a dialética das coisas, pois "é a dialética das coisas que produz a dialética das ideias" (Lênin).
"O conhecimento não pode ser biologicamente útil, útil ao homem na prática, na conservação da vida, na conservação da espécie, se não reflete a verdade objetiva independente do homem. Para o materialista, o 'êxito' da prática humana demonstra a concordância das nossas representações com a natureza objetiva das coisas percebidas." [V.I. Ulianov (Lênin), Materialismo e empirio-criticismo, Ed. Estampa, Lisboa, 1971, p. 130.]
Se a verdade é o conhecimento que reflete corretamente a realidade na nossa mente, se ela é a correspondência correta da ideia com a realidade, nada mais natural e lógico do que verificar a sua veracidade na própria fonte que é a realidade, a prática.
Se nossos conhecimentos, surgidos como resultado do estudo da realidade, são confirmados pela própria realidade, pela experiência, pela prática, significa que são verdadeiros, fidedignos, autênticos.
E, ao contrário: as ideias ou hipóteses ou teorias que não são confirmadas pela realidade, pela experiência, ou pela prática, são errôneas.
Segundo o materialismo dialético, o papel da prática na determinação da verdade é expressa nesta frase lapidar de Lênin: "Da observação viva ao pensamento abstrato, e deste à prática tal é a via dialética da verdade, do conhecimento da realidade objetiva" (Lênin, Cadernos filosóficos, Moscou, 1947, p. 146).
Em resumo, o conhecimento começa e termina com a prática. Pela prática se adquire um conhecimento teórico, que, depois, retorna à prática. Assim a prática é o fundamento do conhecimento em todos os seus degraus, do começo até o fim.
Eis como Mao Tsé-tung resume o movimento ascendente do conhecimento: "Descobrir as verdades pela prática, e confirmá-las e desenvolvê-las também pela prática. Passar ativamente do conhecimento sensível ao conhecimento racional e, em seguida, do conhecimento racional à direção ativa da prática revolucionária, à transformação do mundo subjetivo e objetivo" (Mao Tsé-tung, "Acerca de la práctica", in Cinco tesis filosóficas, Ed. La Rosa Blindada, B. Aires, p. 30).
Realçando a importância da prática no conhecimento, o filósofo marxista francês R. Garaudy escreve: "O conhecimento científico nasce e cresce na atividade produtiva e social do homem em perpétuo desenvolvimento histórico. A prática técnica e social é a condição da profundidade deste conhecimento: quanto maior é a atividade prática do homem, mais ele conhece profundamente o mundo e suas leis. Quanto mais ele conhece o mundo, mais ele o transforma, e em transformando o mundo e a sociedade, o homem se transforma a si mesmo" (Roger Garaudy, La théorie maté- rialiste de la connaissance, Presses Universitaires de France, Paris, 1953, pp. 292 e 294).
É por isso que podemos dizer que a prática é, ao mesmo tempo, a fonte, o objetivo e o critério de nossos conhecimentos. A prática é a força motriz, a razão primeira e última que origina a necessidade de nossos conhecimentos.
11 — O CRITÉRIO DA TEORIA
O critério da prática, embora seja eficiente, nem sempre é o único. Cada tese, que lemos ou defendemos, não vamos confrontá-la com a prática. Na realidade, isso nem sempre é possível e necessário. Seria absurdo querer testar na prática tudo que ouvimos e lemos. Desse modo o nosso progresso seria ínfimo.
Por isso o critério da prática precisa ser completado com o critério da teoria. Nesse sentido, podemos dizer que o critério máximo da verdade é a prova pela prática e pela teoria.
A esse respeito, o filósofo soviético Ivan Dmitrievitch Andreev emite argumento muito ponderado que passamos a resumir:
A tese marxista da teoria do conhecimento sobre a prática como o único critério objetivo da verdade não é possível interpretar de tal modo, que cada teoria científica deve ser imediatamente (ou diretamente) comprovada pela prática. Se fosse assim, nenhuma ciência seria possível, pois cada nova geração de pessoas seria obrigada a comprovar (verificar) na prática todas as teorias elaboradas pelas gerações anteriores, isto é, começar o conhecimento sempre do começo.
A teoria científica considera-se provada também no caso em que sua verdade é confirmada pela demonstração lógica, que representa a fundamentação da verdade de alguns juízos por meio de outros juízos, antes demonstrados e comprovados pela prática social.
O que é a demonstração lógica? Na demonstração lógica o papel principal é desempenhado também pelo critério da prática, mas aqui ela se apresenta não de modo imediato e sim de modo mediato.
No processo da demonstração de suas conclusões teóricas, a ciência não pode basear-se em fatos ou teses teóricas falsas, duvidosas ou não-comprovadas. Qualquer demonstração lógica pode se considerar válida somente se todos os argumentos utilizados no processo de demonstração são verdades indiscutíveis e não são tomados pela ciência na base da fé, dogmaticamente, sem demonstração. Todos os argumentos devem ser, de modo consequente, demonstrados e verificados pela experiência, pela vida, pela prática das pessoas.
A ciência parte frequentemente de bases primeiras, tais como axiomas, definições e, também, de teses, teorias e leis da natureza e da sociedade. Mas isso só é válido se a verdade tanto de uns como de outros já tiver sido previamente demonstrada e provada pela atividade prática dos homens, isto é, pela sua atividade social, histórica, política e produtiva.
Assim, todas as proposições ou teses, tomadas como fundamento na demonstração, não constituem verdades meta-empíricas, a priori, contemplativas, mas sim juízos de verdades materiais comprovadas pela prática, que correspondem à realidade objetiva.
Nenhum fundamento se toma na demonstração científica se sua verdade objetiva não foi demonstrada, provada e verificada pela prática humana.
Isto significa que na base de qualquer demonstração lógica ou teórica se encontra a prática social, e que também nesse caso, numa forma mediata, indireta, a prática aparece no final das contas, como o critério da verdade. (Cf. I. D. Andreev, Fundamentos da teoria do conhecimento, ed. russa, Moscou, 1959, pp. 317-322.)
Já o filósofo iugoslavo-soviético Iovo Elez escreve: "Do ponto de vista da lógica dialética materialista, é insuficiente somente a demonstração teórica, como é insuficiente somente a demonstração prática, tomada completamente independente da teoria. A demonstração da verdade se alcança somente na unidade da demonstração lógica e prática, no conjunto do processo da pesquisa científica e da análise concreta (indutiva e dedutiva) da realidade, pois a demonstração científica deve, sem falta, incluir os meios. . . de verificação de todos os fatos, acontecimentos, lições da história universal" (Lênin, Obras, t. 27, pp. 75-76).
Na demonstração devem participar a teoria e a prática, pois cada uma delas, na sua essência, contém o seu contrário: a prática se manifesta como a teoria objetivada e a teoria como prática "espiritualizada", já que em cada teoria científica acumulou-se a experiência prática das gerações anteriores de pessoas.
A demonstração da verdade da teoria tem dois aspectos importantes:
1) O primeiro aspecto consiste em que toda teoria nova em suas conclusões baseia-se em leis e princípios anteriormente estabelecidos, em teses científicas já demonstradas, pela prática.
Além disso, é necessário levar em consideração que os princípios lógicos utilizados na dedução das teses da nova teoria também estão ligados à prática.
2) Outro aspecto da demonstração consiste em que toda demonstração desta ou daquela teoria, mesmo tendo um caráter prático, não pode se realizar completamente isolada da teoria; toda demonstração prática (p. ex., experimental) baseia-se em algumas leis e princípios teóricos construídos anteriormente e aplicados praticamente, de modo que nem uma demonstração metódica começa no vazio, mas parte de alguma teoria mais ou menos verdadeira.
A prova ou demonstração científica pressupõe a unidade interior, do teórico e do prático. (Cf. I. Elez, verbete "Demonstração" in Enciclopédia filosófica, ed. russa, Moscou, t. 2, pp. 42-43.)
Conclusão: Resumindo tudo o que foi dito, podemos dizer que a prática é, em última instância, direta ou indiretamente, o critério supremo da verdade, tanto de um fato, como de uma proposição, tese ou teoria.
12 — A UNIDADE DA TEORIA E DA PRÁTICA d
Como já vimos, o termo "gnosis" significa teoria ou conhecimento e o termo "práxis" significa ação, atividade.
O conhecimento é a atividade teórica dos homens e a ação é a sua atividade prática.
A teoria e a prática, o conhecimento e a ação, são dois modos diferentes, mas complementares, de atividade humana.
A teoria por si só nos dá um conhecimento da realidade, mas não está em condições de transformar a realidade. Isso é função da prática, da práxis.
A teoria só reflete o mundo e generaliza a experiência humana de modo que na teoria acumula-se a experiência prática das gerações sucessivas da humanidade.
Mas ao generalizar a prática, a teoria exerce nela uma ação recíproca e contribui para o desenvolvimento e enriquecimento ulterior da prática.
Se a teoria é a generalização e a espiritualização da prática, a prática, por sua vez, é a objetivação e a materialização da teoria. Assim como a teoria é a prática concentrada, a prática é a teoria concentrada. Assim como a teoria sem a prática é estéril, a prática sem a teoria é cega.
Assim, a teoria é a luz que ilumina a prática, a vida, e mostra-lhe o caminho mais certo, ajuda-a a encontrar os meios mais eficazes para alcançar os fins práticos almejados.
Por exemplo: as ciências naturais, surgidas na base da prática, sendo resultado da generalização da experiência produtiva do homem, elas, ao mesmo tempo, prestam uma ajuda inestimável à produção: ajudam a elaborar novos métodos de produção, a criação de novas máquinas de maior rendimento, a produção de objetos artificiais (sintéticos), etc., tudo para satisfazer as necessidades cada vez mais crescentes do homem civilizado.
Embora sejam dois modos diferentes de atividade, a prática e a teoria formam uma unidade dialética indissolúvel, pois uma depende da outra. Se o homem não necessitasse de nada e não fizesse nada, não haveria necessidade de conhecimentos, e se não houvesse conhecimentos, o homem não poderia existir, viver e atuar com êxito.
Mas, nessa unidade dialética, a prática tem primazia sobre a teoria. Como atividade sensível-material, "a prática está acima do conhecimento teórico, porque possui não só a dignidade da universalidade, como também da realidade imediata" (Lênin, Cadernos filosóficos, Obras, Moscou, 1958, t. 38, p. 205).
"No começo era a ação", diz o Fausto de Goethe para sublinhar a importância da ação, da prática, da atividade material, do trabalho produtivo, no surgimento da linguagem, do pensamento, dos conhecimentos e da humanização do Homo naturalis.
Entretanto, se a prática está acima do conhecimento teórico, daí não se segue que se deva desdenhar a teoria.
A teoria dá ao homem a possibilidade de êxito, mas é pela prática e na prática que essa possibilidade de êxito se torna realidade.
É por isso que dissemos e repetimos que a prática é ao mesmo tempo a fonte, a finalidade e o critério de nossos conhecimentos. A práxis, a prática, é a força motriz, a razão primeira e suprema que origina a necessidade de nossos conhecimentos sobre o microcosmos e macrocosmos, com a finalidade de transformação revolucionária do mundo natural em mundo humano e com isso a transformação do próprio homem em benefício do próprio homem.
13 — O CARÁTER CONCRETO DA VERDADE
Não existem verdades abstratas; a verdade é sempre concreta. Tudo depende das circunstâncias, das condições de lugar e tempo. Por isso sempre é necessário uma análise concreta das condições. Como as coisas mudam, muda também a verdade a respeito delas. O que é verdadeiro sob certas condições pode deixar de sê-lo em outras condições. Vejamos alguns exemplos.
É o homem, por natureza, bom ou mau, veraz ou mentiroso? Não se pode dar uma resposta absoluta, válida para todos os homens e casos. Um homem bom pode, às vezes, praticar uma maldade, assim como um homem mau pode, às vezes, praticar uma bondade. Um homem conhecido como honesto e veraz pode, às vezes, mentir, assim como um homem conhecido como mentiroso, pode, às vezes, falar a verdade. Assim, não há bondade e maldade, bem e mal, genericamente falando. Não há bens e males abstratos. Há somente bens e males concretos, conforme o caso, o tempo e o local. Ademais, o que é bom para um pode ser mau para outro.
Qual é o melhor fertilizante para o solo? Não se pode dar uma resposta certa. É necessário, antes de tudo, fazer uma análise do solo, é necessário saber qual a plantação, em que lugar, sob que condições. Só depois disso é possível escolher o melhor fertilizante para esse determinado solo.
A mesma coisa acontece na medicina. Qual o melhor remédio para determinada doença? Não há um remédio que sirva para todos os casos da mesma doença. Os sintomas podem ser os mesmos, mas os doentes são diferentes. Por isso os bons médicos dizem que não há doenças, e sim doentes, que devem ser tratados individualmente. Os médicos atuais estabeleceram que setenta e cinco por cento das doenças são de origem psicogênica ou psicossomática, isto é, de origem psíquica, essencialmente individual. Logo, o tratamento também deve ser individual e concreto. Não existem panaceias, remédios para todos os males.
O caráter concreto da verdade é mais evidente ainda nas ciências sociais e humanas. Por exemplo: são certas e verdadeiras nossas ideias sobre a virgindade, o divórcio, o aborto, as pílulas anticoncepcionais, o homossexualismo, etc.? Tudo depende das condições concretas do país, da época, de sua evolução econômica e cultural, das tradições do povo, da classe social, da concepção filosófica ou crença religiosa à qual pertence a pessoa, etc.
Alguns exemplos: em alguns países superdesenvolvidos, como a França, EUA, Inglaterra, Suécia e nos países socialistas como a União Soviética, já está parcialmente superado o tabu da virgindade; são legais o uso de anticoncepcionais e a prática do aborto, do divórcio, etc.
Mas, em países em desenvolvimento, como o Brasil e os países latino-americanos, o tabu da virgindade não está ainda superado na fase atual de sua evolução; o divórcio já foi aprovado, mas a prática do aborto é considerada crime.
Na Itália, durante séculos, o divórcio foi proibido pela lei e considerado um ato imoral, contrário às normas da religião dominante, que considerava o matrimônio como santique Deus ficado e indissolúvel, segundo o dogma cristão "o uniu, o homem não pode separar". Depois de muita luta, em dezembro de 1969, o Parlamento italiano aprovou a lei permitindo o divórcio.
Seria errôneo tirar, do que foi dito acima, a conclusão de que a verdade não existe ou que ela tem caráter subjetivo, já que cada um tem a sua verdade. A verdade existe e é uma só para cada caso concreto. O que não existe é a verdade abstrata, válida para tudo e todos os casos.
Assim, na solução de qualquer problema, na aplicação das normas gerais, na explicação de fatos, sobretudo sociais, para não cair no erro, é necessário uma abordagem científica, concreta, flexível e criativa, levando em consideração as condições concretas que variam no tempo e no espaço.
14 — A VERDADE RELATIVA E A VERDADE ABSOLUTA
Um problema muito importante consiste em saber se as verdades que conhecemos têm valor absoluto ou relativo.
Verdade absoluta — é uma verdade completa, o reflexo absolutamente exato do objeto, é o conhecimento totalmente idêntico ao seu objeto. A verdade absoluta é válida para todos os homens e para todos os tempos, e por isso não pode ser refutada no desenvolvimento ulterior do conhecimento.
Verdade relativa — é uma verdade incompleta, o reflexo relativamente correto do objeto, passível de complementação ou retificação no futuro, inclusive de refutação. É válida dentro de certos limites.
A respeito desse problema existem três pontos de vista principais:
1) Absolutismo
Os seus adeptos afirmam que só há verdades absolutas. Verdades relativas não existem. As verdades que caducam ou necessitam de ser completadas não são verdades. As verdades "verdadeiras" não caducam. Elas são imutáveis, eternas, dadas de uma vez para sempre. Para os dogmáticos ou absolutistas, as verdades são como os dogmas: definitivos, imutáveis, eternos.
2) Relativismo
Seus adeptos, ao contrário dos absolutistas, afirmam que não há verdades absolutas, mas somente verdades relativas. Negam a possibilidade de conhecer a essência das coisas, o númeno e a verdade absoluta. Dizem que só podemos conhecer os fenômenos, a aparência das coisas.
Alguns relativistas vão mais longe e afirmam que todos os nossos conhecimentos são relativos, no sentido de subjetivos, parciais, aparentes, ilusórios.
Crítica: Nem os absolutistas, nem os relativistas conseguiram solucionar corretamente o problema. A verdade mais uma vez se encontra no meio das duas teorias — teoria essa que chamaremos de absolutismo relativista — que é a posição defendida pela filosofia diamática e que é aceita pelo autor.
3) Absolutismo relativista
Segundo essa teoria, as possibilidades cognoscitivas dos homens estão limitadas pelas condições históricas e pelo nível do desenvolvimento da ciência, da técnica e da produção. Por isso, os nossos conhecimentos são relativos em cada etapa e têm caráter de verdade relativa, mas objetiva e não subjetiva, como pensam os relativistas.
Se as verdades que conhecemos são relativas, será então possível conhecer a verdade absoluta, total, perfeita de tudo?
Podemos, sim, mas a verdade absoluta não pode ser conhecida de modo imediato, direto, de um só golpe e por completo. Ela só pode ser alcançada paulatinamente, no processo infinito do conhecimento. A humanidade se aproxima cada vez mais da verdade absoluta. Ao conhecer as verdades relativas, conhecemos também parte da verdade absoluta.
Por exemplo: a teoria atual do átomo. Embora ela corresponda à realidade, não é completa. Não podemos dizer que esgotamos o assunto. Há muito ainda por conhecer sobre a natureza e a quantidade das partículas elementares que formam o átomo, sobre as causas que originam sua mutabilidade, a "bola de fogo" de César Lates, etc. A atual teoria do átomo é uma verdade relativa, mas, ao mesmo tempo, ela contém graus de verdade absoluta.
Assim, a verdade relativa que conhecemos contém partículas da verdade absoluta, é um momento da verdade absoluta.
O pensamento humano é, por natureza, capaz de conhecer a verdade absoluta que resulta da soma global das verdades relativas. Cada fase do desenvolvimento da ciência adiciona novas partículas a essa soma global de verdades relativas.
A verdade absoluta está para a verdade relativa como o todo está para as partes. O todo não é uma soma aritmética de suas partes, mas algo mais, pois é uma nova qualidade. (Segundo a teoria gestáltica, o todo é algo diferente da soma mecânica das suas partes.)
Conclusão: A soma gestáltica, a síntese dialética das verdades relativas, forma a verdade absoluta. É possível conhecer a verdade absoluta de certos aspectos particulares da realidade, mas jamais alcançaremos a verdade global total, absoluta, de tudo que existe neste universo eternamente cambiante, mutante. O homem individual jamais alcançará um ponto em que possa dizer: "Agora conheço todas as leis e segredos do universo".
Por que o homem não pode esgotar realmente o conhecimento do universo até o fim? Porque o universo é infinito, ele ininterruptamente muda, se transforma, se renova. Quando conseguimos conhecer alguns aspectos do universo, este muda de aspecto e se transforma em outro.
Por outro lado, junto com o universo, também se desenvolvem a nossa capacidade cognitiva, os nossos órgãos sensoriais e as nossas faculdades intelectuais e nossa capacidade intuitiva. Ora, se a nossa capacidade cognitiva se desenvolve, se aperfeiçoa, significa que ela ainda não é perfeita. É por isso que não há fundamento em afirmar que nossos conhecimentos são definitivos e absolutos.
A contradição no processo do conhecimento consiste em que, por um lado, a razão é capaz, por sua natureza, de conhecer todo o universo, e, por outro, não pode esgotá-lo totalmente, porque o universo está em permanente transformação. Essa contradição pode ser resolvida somente na infinita série de gerações sucessivas da humanidade.
Assim, os conhecimentos humanos se alargam e se aprofundam paulatinamente, aproximando-se cada vez mais da verdade absoluta.
15 — VERDADES ABSOLUTAS
A humanidade já possui uma série de conhecimentos científicos sobre diversos aspectos da realidade que têm caráter de verdades universais e que podem ser consideradas verdades mais ou menos absolutas, isto é, irrefutáveis no futuro. Eis algumas delas:
— O princípio da razão suficiente, da causalidade e do determinismo: Tudo o que acontece tem sua razão de ser. Do nada não se pode fazer algo. Nada acontece sem causa, mas tudo nasce e muda, determinado pelas suas condições de existência.
— Os fenômenos têm sua explicação em causas reais e naturais.
— Uma proposição, tese, teoria, etc. só pode ser aceita como verdadeira se for cientificamente provada pela prática.
— A matéria e o movimento estão indissoluvelmente unidos. Não há matéria pura sem movimento, como não há movimento puro sem matéria.
— A matéria em movimento existe antes e independentemente da consciência e da vontade dos homens (ou de qualquer outra consciência ou vontade sobrenatural).
— As leis da conservação e transformação da energia.
— Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
— Toda forma de movimento é capaz de, em certas condições, se converter em qualquer outra forma de movimento.
— A matéria viva se originou da matéria inorgânica que, por sua vez, se originou da matéria ou energia cósmica.
— O homem é produto superior de longa evolução de seres vivos inferiores.
— A consciência é uma propriedade do cérebro. Por- tanto, não há consciência nem pensamento sem o cérebro.
Também podem ser consideradas verdades mais ou menos absolutas: os conhecimentos completos de determinados aspectos particulares dos objetos estudados (constatação dos fatos, que não é idêntica ao conhecimento absoluto de todo o conteúdo desses fatos); o conhecimento definitivo de determinados aspectos da realidade toda, ou o conteúdo da verdade relativa que se conserva no processo do conhecimento ulterior, etc.
"As chamadas verdades 'absolutas' ou 'eternas' são tais somente em limites relativos, tanto no sentido de sua aplicação em domínios limitados, limites que em alguns casos podem alargar-se ou estreitar-se posteriormente, como também em outros casos no sentido de sua precisão." (Cf. Enciclopédia filosófica, ed. russa, Moscou, 1962, t. 2, p. 347.)
É necessário muito cuidado em não tomar por absolutas, definitivas e eternas, as verdades que são relativas e, em maior ou menor grau, se aproximam das verdades absolutas.
16 — O DESENVOLVIMENTO DOS CONHECIMENTOS HUMANOS
O conhecimento humano não é estático, não fica parado. Ele está em constante desenvolvimento. O conhecimento é um processo infinito de aproximação do pensamento ao objeto, um movimento contínuo da ignorância ao saber; do conhecimento incompleto e imperfeito ao conhecimento mais completo e perfeito; do conhecimento dos fenômenos ao conhecimento dos númenos ou das essências; do conhecimento das essências de primeiro grau ao conhecimento das essências mais profundas; do conhecimento da verdade relativa ao conhecimento da verdade absoluta.
Ao corrigir as teorias caducas e substituí-las por novas, o conhecimento avança, descobrindo novos aspectos da realidade e do universo infinito e eterno.
Vejamos essa marcha dos conhecimentos humanos em dois casos: no exemplo das teorias sobre a luz, que foram aprofundando cada vez mais nossos conhecimentos sobre a essência da irradiação luminosa, e no exemplo do desenvolvimento social.
1) Teorias sobre a natureza da luz
a) Teoria corpuscular: Em 1670, o físico inglês Newton formulou a teoria corpuscular da luz, segundo a qual os corpos luminosos emitem pequenas partículas luminosas, corpúsculos separados uns dos outros (processo descontinuo).
b) Teoria ondulatória: Em 1690, o físico holandês Huyghens, contemporâneo de Newton, propôs a teoria ondulatória da luz, segundo a qual a luz se irradia em forma de ondas (processo contínuo).
c) Teoria eletromagnética: Faraday (em 1845), Maxwell (em 1870) e Hertz (em 1888) demonstraram que as ondas luminosas têm uma essência eletromagnética e não- mecânica (processo contínuo).
d) Teoria dos quanta: Em 1900, Planck emitiu a ideia de que a energia luminosa se irradia não como uma corrente contínua, mas sim em forma descontínua, discreta, por partículas de natureza eletromagnética, que chamou de "quantum" ou "quanta", isto é, quantidades elementares de energia (processo descontínuo).
Em 1905, Einstein chamou esses "quanta" de átomos de energia luminosa, isto é, "fótons".
A teoria corpuscular dos quanta explica facilmente todos os fenômenos vinculados com a emissão e absorção da energia luminosa. Mas não explica toda uma série de fenômenos físicos, tais como a refração, difração, dispersão, interferência e polarização da luz que são satisfatoriamente explicados pela teoria ondulatória da luz.
e) Teoria da mecânica ondulatória: Havia necessidade de fazer uma síntese dialética da teoria corpuscular (descontínua) com a teoria ondulatória (contínua). Isso foi feito pela mecânica ondulatória de Louis de Broglie, em 1923, associando a cada corpúsculo luminoso, a cada fóton, uma onda de probabilidade. Assim, a luz, simultaneamente descontínua e contínua, representa uma irradiação de partículas (quanta, fótons) em forma de ondas. É a unidade dialética dos contrários.
Está claro que a teoria atual da luz ainda não é a verdade última, completa, absoluta, sobre o assunto. É uma verdade relativa que contém partículas (graus) da verdade absoluta.
2) Teorias sobre a natureza do desenvolvimento social
Vejamos essa marcha dos conhecimentos humanos, desta vez sobre a natureza do desenvolvimento social.
Nós já vimos que no mundo nada é imóvel. Tudo flui, tudo muda, tudo evolui. O mesmo acontece com a vida social. A sociedade, os grupos e as instituições sociais estão em permanente processo de mudança.
Costuma-se distinguir dois tipos de mudança:
Involução: mudança regressiva (decadência).
Evolução: mudança progressiva (progresso ou desenvolvimento).
Vejamos brevemente algumas dessas teorias sobre a mudança social:
a) Teoria involucionista: Muitos filósofos e teólogos acham que a sociedade está involuindo. Involução é o contrário de evolução e significa que, em vez de progredir, a sociedade está regredindo, está em decadência. Segundo os adeptos desse ponto de vista, o homem primitivo era moral e espiritualmente superior ao homem civilizado. Em vez de progredir, a humanidade estaria, pois, decaindo cada vez mais, moral e espiritualmente.
A teoria da involução social, no fundo, é inspirada na concepção religiosa judaico-cristã da sociedade. Os adeptos dessa teoria saem do pressuposto da Bíblia de que a história da sociedade começou com a criação do primeiro casal (Adão e Eva), que vivia num paraíso terrestre, feliz, em paz, na maior ingenuidade e pureza. Como Deus os teria feito à sua imagem e semelhança, eles deveriam ser perfeitos, moral e espiritualmente.
Mas, como eles pecaram, comendo "o fruto da árvore da ciência do bem e do mal" e tornaram-se sábios como Deus, este os expulsou do paraíso. Desde então teria começado a degradação moral do homem. Para castigá-los, Deus condenou-os a obter o sustento com seu próprio trabalho. Desde então, o trabalho foi tido pelos cristãos como castigo e maldição, como ocupação suja, baixa, própria apenas de gente "inferior", pária, escravo, índio, negro, etc. Nasceu assim uma concepção muito errônea do trabalho como ocupação indigna.
Ora, hoje, a ciência antropológica tem dados e provas mais do que necessários, e suficientes, de que foi o trabalho que transformou o antropoide em homem, que humanizou o símio e é ainda o trabalho que, além de dar ao homem todos os bens necessários para a sua sobrevivência, continua aperfeiçoando o homem. Então, o trabalho, longe de ser uma maldição, é a salvação da humanidade.
Vejamos um exemplo típico, não raro, nas famílias abastadas: o marido trabalha e ganha muito bem, monta uma casa para a esposa, com empregadas que fazem comida, lavam a roupa, cuidam das crianças e fazem todos os demais serviços domésticos. Com tantas empregadas, a esposa fica sem fazer nada; também não lê, não estuda e não se ocupa de algo útil. Resultado: definha-se como ser humano, pois basta não trabalhar, e a pessoa deixa de ser humano, para se tornar um ser subumano; aí aparecem o tédio, a "fossa", a neurose e a psicose, a pessoa começa a ingerir todos os tipos de psicotrópicos, de drogas, entorpecentes. É a decadência moral e espiritual.
Assim, a decadência moral e espiritual vem mais em consequência de não fazer nada do que de trabalhar, porque, como já dissemos, o trabalho fez o homem e continua fazendo o homem e basta deixar de trabalhar para que ele deixe de ser humano, para se tornar subumano ou infra-bumano.
De modo que essa concepção da involução é uma concepção cientificamente errônea; não houve involução. Para começar, diremos que a vida da sociedade não começou com homens perfeitos, vivendo no paraíso terrestre, como se diz na Bíblia. Mas começou da animalidade. "A não ser que a ciência toda esteja em erro, não somos anjos decaídos, mas animais aperfeiçoados" — diz muito bem o antropólogo Ralph Linton (O homem, Ed. Martins, São Paulo, 1970, p. 23).
O homem de hoje é o resultado superior de uma longa evolução que começou de animais muito inferiores. Os nossos antepassados mais próximos foram seres rudimentares imperfeitos e irracionais, e desde então só houve evolução, progresso, isto é, marcha para a frente. Não queremos dizer que nós já sejamos totalmente racionais e perfeitos, mas estamos bem acima do símio, bem acima do selvagem, do bárbaro, embora na sociedade em que vivemos encontremos, às vezes, indivíduos irracionais, selvagens e bárbaros, porque eles têm resquícios do período de selvageria e de barbarismo em que viveram nossos antepassados durante tantos milênios.
b) Teoria evolucionista linear — horizontal ou vertical: É a concepção segundo a qual o homem e a sociedade evoluem em linha reta progressiva ilimitada, para a frente (horizontal) ou para cima (vertical). Qualquer mudança é um progresso. Só há progresso. Não há regresso, involução, decadência. O homem e a sociedade se tornam cada vez mais evoluídos moral e intelectualmente. Esta é a teoria defendida sobretudo pelos pensadores franceses: os materialistas franceses do século XVIII, A. Comte, Spencer, e outros.
c) Teoria cíclica ou circular: É a concepção defendida principalmente por Spengler. Segundo essa teoria, a mudança não é linear, mas circular ou cíclica. Depois da evolução, vem a involução, depois do progresso vem o regresso, a decadência. O ciclo se fecha e o espírito da nação se petrifica. Esse processo se repete com todas as culturas e lembra “o eterno retorno" de Nietzsche.
d) Teoria espiroidal ou helicoidal: É a teoria defendida pelos marxistas, por Bergson e outros pensadores contemporâneos. Segundo essa teoria, a mudança não é nem linear (isto é, uma linha reta progressiva ilimitada), nem circular (isto é, depois de um certo tempo volta ao ponto de partida, formando um ciclo fechado), mas espiroidal ou helicoidal.
Nós também somos adeptos dessa teoria do desenvolvi- mento, por considerá-la mais próxima da verdade objetiva.
Segundo nossa opinião, a teoria espiroidal representa a unidade dialética de ambas as teorias, na fusão da linha reta ascendente ilimitada com o círculo. Essa síntese pode ser representada pela figura geométrica da espiral, que é uma linha curva não-fechada que faz certo número de revoluções em torno do seu ponto de partida (centro, eixo ou polo), do qual se afasta, regularmente, cada vez mais. Popularmente, podemos facilmente representar a espiral na forma de caracol, parafuso, mola ou batedeira de bolo, ou ainda como quem dá grandes voltas ao subir um morro, por exemplo, de Santos para São Paulo. Assim a humanidade progride vagarosamente, dando voltas, como quem sobe um morro.
No processo do desenvolvimento do conhecimento, da cultura, da nação ou da sociedade, a primeira espira representa o início da evolução, do progresso. Note-se que a espiral não é um círculo fechado. Parece que a espira retorna ao ponto de partida, mas, na realidade, está pouco acima da espira anterior. E como as voltas da espiral são infinitas e sempre acima da espira anterior, a evolução ou o desenvolvimento da cultura, nação ou sociedade também se desenvolve em forma de espiral, isto é, em linha curva espiroidal ascendente e ilimitada, que inclui um regresso aparente e relativo.
Para compreender o desenvolvimento da sociedade é necessário raciocinar não em escala e em termos individuais, mas em escala e em termos históricos. Para o homem, cinquenta ou cem anos são toda uma existência. Para a história da humanidade isso não é nem uma milionésima fração de segundo, nem um pingo de água na imensidão do oceano. Por isso, é necessário se acostumar a encarar o desenvolvimento social em termos de escala histórica.
Na nossa opinião, o desenvolvimento social se faz sempre para a frente e num plano superior aos tempos anteriores, isto é, nós não só mudamos, como também mudamos sempre para maior aperfeiçoamento. Embora haja momentos de aparente e relativo regresso, de retorno, estagnação ou decadência, o resultado final é sempre um passo para a frente no caminho do aperfeiçoamento material, cultural e espiritual do homem e da criação de uma sociedade mais justa, mais livre e mais humana.
A melhor prova para se convencer da verdade dessa teoria é a prática social. Basta comparar o homem civilizado de hoje, não com o homem de cem, duzentos ou quinhentos anos atrás (pois num pequeno período histórico pode haver e há retrocessos em certos aspectos econômicos, políticos e sociais), mas com os nossos antepassados de um milhão de anos atrás, cem mil anos ou mesmo mil anos atrás, ou ainda os povos chamados primitivos da Austrália e da Amazônia de hoje, e ver-se-á como é palpável o desenvolvimento em todos os sentidos.
Extrapolando esse desenvolvimento, podemos afirmar que o homem do futuro, digamos daqui a mil anos ou talvez menos (hoje, por causa da rapidez do progresso técnico-científico, é difícil prever algo com tempo determinado), o homem do futuro, dizíamos, será tão superior a nós como nós o somos em comparação com os nossos antepassados hominídeos.
No futuro, chegará um momento em que o homem será tão desenvolvido moral e espiritualmente, que não haverá mais guerras e toda a espécie de crimes contra o homem, não haverá aquilo que chamamos de imoralidade, depravação, não haverá egoísmo no sentido estreito, que conhecemos. Chegará um dia em que os homens viverão tal qual como prega a religião cristã. "Amai-vos uns aos outros todo mundo como irmão, numa fraternidade total, todo mundo ligado pelo amor, substituindo o egoísmo estúpido e estreito de hoje pelo egoísmo inteligente e altruístico.
Por que hoje não é possível viver assim? Porque a maioria da humanidade ainda vive com resquícios da selvageria e barbárie em que viveram nossos antepassados. Nós fomos animais e, em todos nós, há muitos elementos animalescos e, em determinadas circunstâncias, reagimos zoologicamente, batendo, mordendo, matando, como faz o animal. De modo que ainda são poucas as pessoas aperfeiçoadas moral e espiritualmente; mas chegará um dia em que a maioria absoluta da sociedade será constituída de seres humanos superiores. Será o verdadeiro "paraíso terrestre", onde todo mundo viverá mais feliz, segundo o princípio humanista, numa sociedade verdadeiramente democrática, na qual o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento de todos e vice-versa. Será o grande salto do reino da necessidade para o reino da liberdade, em que, depois de ter dominado a natureza, a sociedade e o próprio homem, a humanidade tomará a rédea de seu próprio destino.
Depois que examinamos vários problemas relacionados com o conhecimento empírico e abstrato e depois que examinamos o que é a verdade e como distingui-la do erro, agora podemos examinar o conhecimento intuitivo ou criativo, que nos permite descobrir e adivinhar a verdade e achar a solução dos problemas pessoais e profissionais que nos preocupam.
1 — O CONHECIMENTO INTUITIVO
Além dos conhecimentos sensível e racional já estudados, há outra espécie de conhecimento chamado intuitivo, infelizmente bastante ignorado nos melhores livros de gnosiologia.
Devido à importância do tema e à falta quase absoluta de literatura sobre o assunto do ponto de vista gnosiológico, resolvemos dar uma explanação mais completa sobre o conhecimento intuitivo elaborada por nós[2].
No entanto, na história da filosofia, a intuição vem sendo estudada há muito tempo. A intuição e o conhecimento intuitivo tiveram muitos adeptos, desde Platão até os nossos dias. A maioria das escolas filosóficas do século XX é intuicionista no sentido de que considera a intuição como "órgão" ou "faculdade" superior de conhecimento, que nos dá direta e imediatamente a verdade absoluta. Entre essas correntes podemos incluir:
O neotomismo, doutrina filosófica oficial da Igreja Católica, o intuicionismo do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). A fenomenologia do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) e o existencialismo do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1977).
Somente poucas correntes filosóficas contemporâneas não são intuicionistas nesse sentido, como por exemplo: o marxismo, o pragmatismo e o neopositivismo, embora não neguem a intuição como espécie natural de conhecimento.
Apesar de haver vasta literatura filosófica a respeito da intuição, infelizmente não existe uma concepção uniforme sobre a mesma. A ideia ou noção da intuição é uma das mais confusas de todas as noções filosóficas. Só em Bergson (que dedicou toda sua vida ao estudo da intuição e escreveu vários trabalhos sobre o assunto) existem dezenas de noções diferentes e nenhuma delas suficientemente clara e evidente, apesar de que, segundo o próprio Bergson, a clareza e a evidência sejam as qualidades intrínsecas da própria intuição.
Outros, como Husserl e Heidegger, já pressupõem clara e evidente a noção de intuição e por isso nem sequer tentam defini-la (no fundo, isso revela a incapacidade dos mesmos de dar uma noção clara e precisa da intuição).
Uma das razões principais da confusão que existe a respeito da intuição é que cada filósofo a entende a seu modo. Às vezes, um mesmo filósofo, como Bergson, por exemplo, a entende de maneiras diferentes, o que aumenta ainda mais a confusão.
Nós vamos fazer, pela primeira vez na história da filosofia, uma tentativa de análise científica e gnosiológica do que seja a intuição; vamos tentar revelar sua essência, descobrir seu mecanismo interno e seus traços característicos, mostrar o papel que desempenha no processo do conhecimento da verdade, bem como determinar seu valor cognoscitivo, isto é, o seu valor do ponto de vista da verdade. Depois disso, daremos as condições favoráveis à sua manifestação, bem como as regras para desenvolver em nós a capa- cidade intuitiva.
1) O que a intuição não é
Antes de tudo vejamos, segundo o nosso ponto de vista, o que a intuição não é:
A intuição não é "órgão" sensorial (como visão, audição, olfato, etc.), como afirmam muitos filósofos.
A intuição não é afeto nem sentimento (como o amor, a simpatia, etc.), como podemos ver nesta definição de Bergson: "Chamamos de intuição a simpatia por meio da qual nos transportamos para o interior de um objeto a fim de coincidir com o que ele possui de único e, pois, de inexprimível".
A intuição não é tampouco um dom irracional, suprarracional, sobrenatural, que seria privilégio de alguns "eleitos" por um ser superior, tal como afirmam certas doutrinas espiritualistas, místicas, esotéricas, etc.
2) Agora, vejamos o que a intuição é.
Segundo nosso ponto de vista, a intuição é uma espécie, uma forma, um modo de conhecimento, que completa as demais espécies e modos de conhecimento (sensível e racional). A intuição é uma função especial de nossa mente. A capacidade intuitiva é um fenômeno psíquico natural que todos os homens têm, em maior ou menor grau, conforme certas condições.
3) Conceito etimológico
A palavra intuição vem do latim in tueri = ver em, contemplar; intuitus = visão, contemplação; intuitio = ato de ver, contemplar. Assim, etimologicamente falando, a intuição é um conhecimento direto, uma espécie de visão imediata dos objetos e de suas relações com outros objetos, sem uso de raciocínio discursivo.
É nesse sentido que se diz que a intuição é uma percepção, visão ou contemplação.
2 — AS FORMAS DE INTUIÇÃO
Na literatura filosófica contemporânea fala-se de diferentes tipos de intuição, de acordo com o objeto captado pela intuição, tais como: intuição empírica, sensível, psicológica, racional, intelectual, eidética, essencial, existencial, volitiva, emocional, suprarracional, sobrenatural, metafísica, mística, divina, etc., etc.
Para facilitar a compreensão do problema, agruparemos as mesmas em três formas fundamentais:
1) Intuição sensível ou empírica
2) Intuição metafísica ou mística
3) Intuição intelectual.
1) A intuição sensível ou empírica
É o conhecimento direto, a sensação, a percepção ou a visão do conjunto das propriedades sensíveis dos objetos que se faz por intermédio dos sentidos. Exemplo: a percepção que tenho da laranja, de sua cor, de sua forma, etc.
Visto que essa forma de intuição coincide em tudo com a noção de sensação e percepção sensível, não devemos jamais usar intuição nesse sentido. Nesse caso, devemos substituí-la pela palavra "percepção" (sensível) ou "visão" (sensível).
2) Intuição metafísica ou mística
Seria o conhecimento direto e infalível da verdade absoluta, sem o auxílio dos conhecimentos sensíveis e racionais, pelo qual o espírito atingiria os seres em si mesmos, a existência e a essência dos objetos da realidade exterior e interior (matéria, espírito), do absoluto ou dos seres transcendentais. Por exemplo: a intuição, visão, ou contemplação da alma, da santidade, de Deus, do Diabo, etc. Nesse caso de- vemos empregar as palavras "contemplação mística".
Porquanto a existência de tal faculdade sobrenatural é duvidosa e transcende os limites da filosofia científica, não nos ocuparemos dela.
3) Intuição intelectual
É o conhecimento direto, imediato, do conjunto das propriedades sensíveis e essenciais dos objetos e de suas relações com outros objetos ou fenômenos, sem uso do raciocínio discursivo. Exemplo: "O todo é maior que qualquer uma de suas partes".
Conclusão: Eliminando a intuição sensível porque ela não é outra coisa senão sinônimo de percepção, deixando de lado a intuição metafísica ou mística, porque sua existência não tem fundamento científico, nós pensamos que somente a intuição intelectual tem direito a esse nome.
A classificação acima foi feita de acordo com o objeto captado pela intuição, de acordo com o produto ou conteúdo do conhecimento intuitivo. Do nosso ponto de vista, é mais fecundo analisar a intuição como processo cognitivo. Assim distinguiremos duas formas fundamentais de intuição intelectual:
a) Intuição de evidência ou racional
b) Intuição heurística ou divinatória.
a) Intuição de evidência ou racional
É o conhecimento direto que nos faz captar, sem dúvida nenhuma, a clareza de uma ideia ou a verdade de um fato ou de uma relação entre os objetos do conhecimento. Por exemplo: "Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si". "O todo é maior que qualquer uma de suas partes”. "Uma coisa não pode ser e não ser ela mesma, ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista." Estas proposições são princípios evidentes, cuja verdade constatamos pela intuição de evidência.
A intuição de evidência é chamada, às vezes, conforme o autor, de intuição racional porque capta diretamente as relações de semelhança e de diferença, de coerência e de contradição, de coincidência e de sucessão, etc. É chamada também de intuição retrospectiva ou recapituladora, porque capta sinteticamente, de um só golpe, a ligação lógica das diferentes articulações de um raciocínio analítico. Nesse sentido, é uma espécie de raciocínio concentrado, resumido, sintético.
b) Intuição heurística ou divinatória
É o conhecimento direto que nos faz pressentir a verdade, adivinhar a solução de um problema ou descobrir algo novo. A intuição heurística pode ser também chamada de antecipadora, prospectiva, adivinhadora, inventiva, criativa, criadora, produtiva, etc.
Diferença entre intuição de evidência e intuição heurística
É muito importante não confundir as duas formas de intuição intelectual:
A intuição de evidência vem depois da apercepção das relações e apenas constata a verdade do fato, da ideia ou do juízo, mas não traz nenhum conhecimento novo. Apenas resume, numa forma sintética e concentrada, o já conhecido.
A intuição heurística vem antes e/ou depois da apercepção, mas sua característica principal é que antecipa o resultado, descobre o até então desconhecido, e dá novos conhecimentos sobre o objeto e suas relações.
Na nossa opinião, a intuição heurística é mais valiosa, devido a sua fecundidade no processo do conhecimento do desconhecido. Por isso, só estudaremos essa forma de intuição, batizada por nós de intuição heurística, para diferenciá-la das outras, e para salientar melhor sua função, pois heurística vem do grego heúreka, que significa "achei", "encontrei", "descobri".
Ao adotar essa denominação tivemos várias razões:
Primeiro, foi uma homenagem ao genial sábio grego Arquimedes, nascido em Siracusa, no século III a.C., que, ao descobrir um dos princípios fundamentais da hidrostática, exclamou: "Heúreka! Heúreka!", que significa "Achei!" Por ser muito interessante essa história (ou lenda, não importa) vamos recordá-la:
Conta-se que Hierão, rei de Siracusa, desconfiou que um ourives que lhe fabricara uma coroa de ouro lhe tivesse misturado qualquer porção de prata. Consultou Arquimedes sobre o modo de descobrir essa fraude, conservando a coroa intacta. O sábio refletiu longamente sem encontrar a solução. Um dia, ao entrar na banheira, notou, maravilhado, que houve um desnível da água após sua imersão e percebeu que seu corpo, mergulhado na água, perdia uma parte do peso. Descobriu assim a relação entre o peso e o volume do corpo flutuante e os da água deslocada. E teve um lampejo de intuição. Por analogia poderia comparar, pelo transbordamento da água, o peso da coroa com o peso que deveria ter, se feita de ouro puro.
Assim, foi descoberto o famoso princípio da hidrostática, chamado "princípio de Arquimedes". "Todo corpo mergulhado num fluido sofre uma impulsão vertical, de baixo para cima, igual ao peso do volume do fluido deslocado."
Conta a lenda que, no entusiasmo que lhe causou essa descoberta, Arquimedes saiu nu do banheiro e correu para a rua a gritar: "Heúreka! Heúreka!"
Esta exclamação é frequentemente citada, toda vez que alguém descobre ou adivinha, de um modo repentino, a solução de um problema que há muito o preocupava.
Em segundo lugar, em pedagogia, heurística é o método de ensino que leva o aluno a descobrir por si mesmo o que se pretende ensinar.
Aliás, esse era o método socrático de ensinar, chamado maiêutica, cujo processo fundamental consistia em fazer perguntas, até a pessoa atinar com a resposta certa. Sócrates se gabava de "partejar" os espíritos, isto é, levá-los a descobrir a verdade que trazem em si, a tomar consciência do que eles sabem implicitamente, a exprimi-lo e a julgá-lo.
Em terceiro lugar, porque heurística é, atualmente, o método ou a arte de descobrir ou adivinhar a verdade ou criar algo novo. Princípio heurístico é a hipótese ou suposição adotada, provisoriamente, pela sua fecundidade, ainda que se duvide de seu valor absoluto.
Como se vê, a palavra "heurística" (que alguns escrevem "eurística") tem vários sentidos, mas todos eles ressaltam aquilo que temos em mente: arte de adivinhar e descobrir a verdade ou inventar algo novo.
3 — INTUIÇÃO HEURÍSTICA[3]
1) Definição: A intuição heurística é uma forma de conhecimento direto, em que a solução de um problema teórico ou prático é encontrada de modo imediato, repentino, não-consciente e sem dados suficientes.
A intuição heurística é a capacidade de penetrar no âmago do ser, na essência das coisas e dos fenômenos, para captar sua quintessência e descobrir as leis e os princípios pelos quais eles se regem.
2) A intuição heurística é um excelente meio ou método para adivinhar ou descobrir a verdade e pressentir ou achar a solução de problemas pessoais e profissionais que nos preocupam. É por isso que ela pode, com razão, ser chamada de intuição antecipadora, adivinhadora, divinatória, descobridora, inventiva, criadora, criativa, produtiva, etc.
Nesse sentido, a intuição heurística é uma capacidade bastante desenvolvida nos gênios e inventores, embora todas as pessoas a tenham em maior ou menor grau.
A solução da intuição heurística pode aparecer em forma de suposição, pressentimento, antecipação, adivinhação, que podem levar a hipóteses científicas, a descobertas e previsões científicas, a invenções técnicas, à criação de novas obras ou personagens na arte e na literatura.
Na história da filosofia, da ciência e da técnica, muitas descobertas e invenções foram feitas graças à intuição heurística.
A célebre descoberta de Arquimedes da qual já falamos é um caso típico dessa "iluminação" súbita que dá imediatamente ao filósofo ou cientista a consciência de ter encontrado a solução do problema procurada há muito tempo.
3) Na vida prática, cotidiana, deparamos frequentemente com a manifestação da intuição heurística em vários tipos de intuição profissional: é a intuição médica — do médico experiente que faz diagnóstico, à primeira vista, adivinha rapidamente a doença, antes de ouvir o doente ou fazer análise. É a intuição militar do comandante das batalhas que adivinha as manobras do inimigo e concebe, imediatamente, um novo plano de defesa ou ataque. É a intuição agrícola do lavrador que prediz a qualidade da safra. É a intuição jurídica do juiz que sente a inocência ou culpabilidade do réu. É a intuição policial do detetive que descobre o autor do crime. É a intuição feminina da mulher que encontra a solução de muitos problemas caseiros e familiares.
4) Na linguagem popular, a intuição heurística ou divinatória é, muitas vezes, chamada de "olfato", "faro", palpite, sexto sentido, pressentimento, precognição, clarividência, visão interior, imaginação criadora, presença de espírito, "l'esprit de finesse" (como diz Pascal), etc. porque ela antecipa o resultado, pressente a verdade, descobre o que os outros não veem, e adivinha o que está oculto.
5) Antes de prosseguir, devemos fazer uma observação importante. A maioria absoluta dos filósofos intuicionistas acha que a intuição é a fonte de conhecimento legítimo e verdadeiro. Assim, por exemplo, E. Husserl, fundador da fenomenologia, escreve: "Toda intuição primordial é fonte legítima de conhecimento e tudo que se apresenta na intuição deve ser aceito tal como se oferece e nos limites em que se apresenta" (Cf. Roland Corbisier, Enciclopédia filosófica, Ed. Vozes, Rio, 1974, p. 1104).
Ao contrário da crença dominante de que o conhecimento intuitivo é sempre legítimo e verdadeiro, nós somos de opinião que a solução dada pela intuição heurística tem, em princípio, um valor hipotético, isto é, pode ser verdadeira, mais ou menos verdadeira, ou até errônea, apesar do sentimento subjetivo de certeza e clareza que a acompanha. Por isso, se, de um lado, não devemos desprezar, por outro lado, não devemos tampouco absolutizar o pressentimento intuitivo. Falaremos mais tarde com mais detalhes sobre esse ponto.
4 — TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DA INTUIÇÃO HEURÍSTICA
Eis, segundo nossa concepção da intuição heurística, seus quatro traços característicos:
1) Caráter imediato
A solução intuitiva aparece de modo direto, imediato, na consciência, isto é, sem elos intermediários do raciocínio.
Por exemplo: a simpatia e a antipatia. Ela é imediata; a gente sente, sem pensar, mesmo antes de conhecer bem, que aquela pessoa que está na nossa frente é-nos favorável ou hostil. Isto se torna possível porque a alma, o caráter, a personalidade da pessoa, o seu mundo interior se manifesta no seu aspecto exterior e que nós captamos de modo imediato: na sua maneira de se vestir, de andar, agir, falar, na sua fisionomia, sobretudo na expressão dos seus olhos.
2) Caráter repentino
Significa que a solução aparece na nossa consciência de repente, por uma espécie de "iluminação súbita", sem saber de onde veio. É o caso célebre do heúreka de Arquimedes, que já vimos.
Outro caso conhecido é o "estalo" do Padre Vieira. A respeito dele conta-se o seguinte: "Era o estudante grande devoto da Virgem; e um dia que, ajoelhado ante a sua imagem, e cheio do pesar e abatimento que lhe causava aquela natural incapacidade, a implorava em fervorosa oração para que o ajudasse a vencer semelhante obstáculo, de repente sentiu, como um estalo e dor aguda na cabeça, que lhe pareceu que ali acabaria a vida" (Padre João Francisco Lisboa, A vida do Padre Vieira, p. 5).
Todos nós conhecemos esses momentos de "heureca", de "estalo", de "iluminação súbita" que torna claro e compreensível o que nos parecia obscuro ou enigmático, quando estamos procurando algo ou querendo solucionar um problema, uma charada, um quebra-cabeça, etc.
Muitas pessoas, que não conhecem as causas reais e naturais desse fenômeno, procuram explicar essa iluminação súbita atribuindo-a a poderes paranormais, parapsicológicos, a forças ocultas ou sobrenaturais. Uns chamam isso de telepatia, clarividência, precognição. Outros, de "iluminação divina", "revelação divina", etc.
Como veremos, esses fenômenos podem ser explicados de modo natural pela intuição heurística. A intuição nada tem de místico e sobrenatural. É um fenômeno natural. A solução intuitiva é elaborada no subconsciente, cujo trabalho o consciente ignora.
3) Caráter não-consciente
Nós, em geral e normalmente, agimos e pensamos conscientemente, utilizando os dados ou informações armazenados na memória consciente. Mas, ao lado deste trabalho consciente, existe outro, o trabalho subconsciente (do qual não temos consciência) e que aproveita as informações acumuladas na memória subconsciente.
O caráter não-consciente da solução intuitiva deve ser compreendido de dois modos: a) não-consciência do trabalho de reflexão do subconsciente, e b) não-consciência dos dados (informações), na base dos quais foi elaborada a solução (conclusão) intuitiva.
Cuidado para não confundir intuição com o subconsciente. Este último é a região do nosso cérebro onde é elaborada a solução intuitiva, que, de modo imediato e repentino, irrompe no consciente.
a) Para explicar esse trabalho subconsciente, antes de tudo, vamos fazer um ligeiro estudo em profundidade do nosso cérebro, dividindo-o esquematicamente em região consciente e não-consciente. Imaginem o nosso cérebro, o nosso hemisfério cerebral dividido em três camadas.
A camada externa, de cima, nós chamaremos de consciente e a camada interna, que fica logo abaixo, chamaremos de subconsciente. A camada mais interna ainda, chamaremos de inconsciente.
Esta divisão do córtex cerebral em região consciente, subconsciente e inconsciente é convencional, para efeitos didáticos. Mas do ponto de vista fisiológico e psicológico não há dúvida nenhuma que existe certo grau de conscientibilidade no nosso córtex cerebral e que, como veremos adiante, pode ser medido pelo eletrencefalógrafo (instrumento que registra as oscilações elétricas dos neurônios do córtex cerebral).
Como se sabe, o cérebro é coberto por uma substância cinzenta que se chama córtex cerebral, formado por cerca de quinze bilhões de células nervosas chamadas neurônios.
Cada um desses quinze bilhões de neurônios fixa sensações do mundo interior e exterior, inclusive ideias, isto é, informações de toda espécie. Por aí podemos imaginar que quantidade fabulosa de conhecimentos ou informações tem o nosso cérebro. Aqui usamos o termo informação como sinônimo de conhecimento em geral.
Informação — é um termo usado na cibernética para denominar todo tipo de conhecimentos, sejam sensíveis ou abstratos, tais como: quantidade, forma, cor, som, ideia, juízo, etc.
No computador (máquina eletrônica de "pensar") a unidade mínima de informação chama-se bit, que é a quantidade obtida quando a resposta é simplesmente "sim" ou "não".
As mais complicadas espécies de informação podem ser, teoricamente, calculadas em número finito de bits. Por exemplo, um rosto ou um objeto qualquer pode ser feito em pontos brancos e pretos, como numa fotografia de jornal, cada ponto sendo um bit: "sim' para o ponto branco e "não" para o preto. Nossa visão consiste em bits. Cada célula da retina — respondendo "sim” para a luz e "não" para as trevas — é um bit. Nossos outros sentidos também podem ser analisados na mesma base.
"É fabulosa a capacidade mnemônica da mente humana, mesmo sem genialidade alguma. Pode ser que não nos consideremos capazes de lembrar-nos dos dados técnicos, por exemplo, porém, pensemos na quantidade de fisionomias que conhecemos, de quantos nomes nos recordamos, de quantas palavras podemos utilizar-nos e de quantas minúcias tomamos conhecimento. Calculou-se que, durante a vida inteira, um cérebro pode armazenar um quatrilhão de bits de informação." (Isaac Asimov, Nosso cérebro, Ed. Boa Leitura, São Paulo, s/d, p. 319. O grifo é nosso.)
b) Nós recebemos informações do mundo exterior, a cada momento, continuamente. Geralmente recebemos essas informações conscientemente; mas além disso recebemos também informações subconscientes, de "contrabando" em relação ao consciente. Entre elas estão as informações subliminares que ficam abaixo do limiar da consciência e que vão se depositar na memória subconsciente.
Exemplo: quando fixamos o nosso olhar num determinado ponto, nosso campo visual alcança também outros pontos; mas recebemos conscientemente só o ponto em que nos propusemos a fixar o olhar. Os demais pontos (informações) entram ou se refletem no subconsciente, sem o controle do consciente.
Outro exemplo: Romeu e Julieta estão conversando; um pouco a distância José e Maria estão também conversando. Julieta ouve conscientemente o que diz Romeu, mas ouve também a conversa de José e Maria. Como está concentrada no que fala Romeu, a conversa de José e Maria não se grava no seu consciente, mas vai se depositar na sua memória subconsciente.
c) O subconsciente tem muito mais informações que o consciente; por isso ele resolve problemas que o consciente não pode resolver. Depois de encontrar a solução, o subconsciente a envia para o consciente. Quando a solução irrompe subitamente no consciente, "não se sabe de onde", logo a pessoa pensa em telepatia, precognição, clarividência, "iluminação divina" e outros fenômenos místicos. Mas essa interpretação é errônea do ponto de vista científico.
Vejamos um exemplo: duas pessoas, João e Paulo, passam às oito horas da manhã em frente a um edifício público, no qual está hasteada uma bandeira a meio-pau, com fita de luto. João pergunta a Paulo qual será o motivo do luto. Paulo responde que é o fato de haver falecido o Presidente Kennedy, muito embora não tenha lido os jornais, nem ouvido comentários. Onde está a explicação?
Pode ter havido o seguinte: no dia anterior, jogando cartas com um amigo, Paulo pode ter ouvido pelo aparelho de rádio ou TV vizinho a notícia do falecimento de John Kennedy. Como estava muito concentrado no jogo, essa informação chegou até ele sem o controle do seu consciente. Daí Paulo afirmar que nem mesmo ele sabe dizer o porquê da sua afirmação. É que, embora a notícia tenha sido ouvida não conscientemente, ela foi gravada na sua memória sub- consciente.
d) Atenção para não confundir o pressentimento heurístico com o pressentimento vulgar, que temos frequentemente.
O pressentimento heurístico parte de bases empíricas e lógicas reais e científicas, e pressente o resto, encontrando a solução do problema que nos preocupa.
O pressentimento vulgar não parte de nenhuma base empírica ou lógica positiva. É fortuito, sem fundamento científico. É apenas uma manifestação do nosso desejo subjetivo de que assim seja, ou do nosso temor que algo aconteça. É simplesmente um palpite, uma suspeita, uma opinião sem fundamento.
Eis alguns exemplos de pressentimentos vulgares: temos "palpite" ou sonhamos que vai dar determinado "bicho" ou centena na loteria de hoje; gostaríamos de ver alguma pessoa querida ou receber carta dela e temos pressentimento que isso vai acontecer hoje, em tal lugar, a tal hora; estamos viajando num carro, cujo motorista não conhecemos bem, e temos pressentimento que algo perigoso vai acontecer durante a viagem.
Em todos esses casos e semelhantes, nossos pressentimentos podem acontecer ou não. Se em cem casos de pressentimentos vulgares, um só é confirmado, ficamos impressionadíssimos com isso, esquecendo-nos, entretanto, dos noventa e nove casos restantes em que não foram confirmados os nossos pressentimentos.
O pressentimento vulgar só pela forma de manifestação se parece com o pressentimento heurístico. Ambos são pré-sentimento, pré-visão, pré-percepção, isto é, suposição intuitiva sem dados suficientes. Às vezes, há um misto de ambos.
Mas, enquanto o pressentimento heurístico baseia-se em fundamentos reais e científicos, e por isso tem caráter causal, necessário, e, portanto, divinatório, o pressentimento vulgar e comum não se baseia em tais fundamentos e por isso tem caráter casual, contingente e, portanto, fortuito. A presença eventual da coincidência, da sorte ou do azar, no pressentimento vulgar é que faz confundi-lo com o pressentimento heurístico. A melhor prova de que o pressentimento vulgar é casual e depende do acaso (da sorte ou do azar) é que ninguém pode adivinhar com certeza os resultados dos jogos de azar, por exemplo, o número do primeiro prêmio da loteria. Se isso fosse possível, muita gente estaria milionária.
e) Também é errado atribuir aos sonhos um caráter místico e profético.
Vejamos brevemente o que é o sono e o sonho. O sono é a inibição da atividade dos neurônios da parte superior do córtex cerebral, correspondente à região do consciente. Enquanto estamos dormindo, esses neurônios estão descansando. Durante o sono, a sensibilidade e a atividade estão suspensas e o indivíduo perde a consciência do meio ambiente.
A atividade cerebral, como toda atividade celular, tanto do homem como de qualquer animal, é de natureza elétrica. Em vigília ou durante o sono, há uma alteração mais ou menos acentuada da atividade elétrica do cérebro: o potencial elétrico dos neurônios cerebrais flutua ritmicamente, em forma de "ondas", que podem ser registradas pelo método chamado eletrencefalografia (escrita elétrica do cérebro), descoberta pelo psiquiatra austríaco Hans Berger. O registro gráfico destes potenciais flutuantes é o eletrencefalograma, obtido por meio do aparelho chamado eletrencefalógrafo. Para designar o processo é usada a abreviação EEG.
Há também mudanças nas ondas cerebrais, características de vários estágios de adormecer ou despertar, incluindo possíveis mudanças quando a pessoa está dormindo. O ritmo ou a frequência cerebral pode ser medida pelo EEG em pulsações ou ciclos por segundo (CPS) de zero a sessenta. Determinaram-se quatro tipos fundamentais de ritmos (ou ondas, ou níveis) que se batizaram convencionalmente de ondas alfa, beta, delta e teta.
Ao ritmo mais pronunciado, Berger deu o nome de onda alfa. Nesta onda, o potencial varia em torno de vinte microvolts (um microvolt é a milionésima parte de um volt), numa pulsação de sete a catorze ciclos por segundo (CPS). A onda alfa é mais clara e pronunciada quando o paciente está descansando de olhos fechados. A onda alfa é mais forte na região occipital do crânio, isto é, na área em que está localizado o centro visual.
Além das ondas alfa, existem as ondas beta, representando uma pulsação mais rápida, de catorze a cinquenta ciclos por segundo (CPS). Depois aparecem as lentas e grandes ondas teta, de quatro a sete CPS, e as raras ondas delta, de zero a quatro CPS. (Cf. Isaac Asimov, O cérebro humano, Ed. Boa Leitura, São Paulo, s/d, pp. 178-180.)
Segundo certos autores, por exemplo, José Silva, do Instituto de Psicorientologia, a onda beta corresponde ao nível consciente exterior próprio da vigília; a onda alfa corresponde ao nível consciente interior, a onda teta aos níveis subconscientes controlados conscientemente, e a onda delta aos níveis inconscientes.
Assim, a passagem da vigília ao sono representa a substituição do ritmo ou nível beta e alfa por ritmos ou níveis mais lentos tipo teta e delta, que é de sono profundo (cf. material do curso de "Silva Mind Control do Brasil").
Mas, se durante o sono os neurônios do nível consciente descansam, o mesmo não se dá com os neurônios da região subconsciente que continuam trabalhando ininterruptamente (provavelmente os neurônios do subconsciente, como todas as coisas vivas, também devem descansar, mas nós não sabemos ainda como).
Justamente essa atividade dos neurônios do subconsciente é que produz os sonhos. Assim o sonho nada mais que o resultado, o produto da atividade dos neurônios do subconsciente enquanto dormimos. (Não confundir esse tipo de sonho com o devaneio, que é sonhar acordado.)
O conteúdo do sonho nada mais é que a realização de desejos e temores reprimidos, que se manifestam em forma de imagens, ideias ou ocorrências. É necessário porém distinguir o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. O primeiro é tal qual apareceu ao indivíduo e tal qual ele nos relata. O segundo constitui seu significado subjacente.
Os desejos e temores do indivíduo, quando não reprovados pela censura social e pelo superego (censura moral interna ao sujeito), se manifestam de forma direta e clara. Mas, quando eles não contam com a aprovação da censura social e individual, então eles se manifestam indiretamente, em formas fantásticas, confusas, incoerentes e deformadas.
Por exemplo, o desejo de comer um frango assado ou encontrar a solução de um problema que nos preocupa aparece diretamente, mas os desejos sexuais incestuosos, ou o desejo ou temor da morte de algum parente só aparecerão em formas bem disfarçadas e deformadas. Somente um psicanalista experiente e inteligente poderá interpretar corretamente a significação real do conteúdo latente desses sonhos.
Desde a mais remota antiguidade, os sonhos foram considerados como premonições, presságios ou mensagens secretas e divinas, que alguma força sobrenatural enviaria ao homem, prevenindo-o sobre determinadas ocorrências. Assim, nasceu a oniromancia, que é a interpretação dos sonhos feita pelos sacerdotes ou oniromantes. Ainda hoje, as crendices populares atribuem um papel premonitório aos sonhos e muita gente ainda consulta os charlatães de toda espécie.
Mas essa concepção mística dos sonhos não corresponde à realidade. É por ignorarem a verdadeira natureza do sonho e o verdadeiro mecanismo do trabalho subconsciente que as pessoas assim pensam.
O que na realidade acontece é o seguinte: quando estamos vitalmente preocupados com algum problema e temos necessidade premente e urgente em solucioná-lo, o consciente envia automaticamente ao subconsciente uma ordem para tentar encontrar o mais rápido possível a solução do problema que nos preocupa. E enquanto dormimos, o subconsciente pode achar a solução do problema que nos preocupa. Se o problema é de importância urgente para o indivíduo, a solução achada pelo subconsciente pode se manifestar durante o sono em forma de sonho; se o problema não tem tanta urgência para a pessoa, a solução pode se manifestar logo ao acordar da pessoa ou durante o dia seguinte ou os dias seguintes.
Isso se torna possível porque nosso subconsciente é mais rico em informações, pois nele entram muitas informações imperceptíveis e desconhecidas para o consciente ou já esquecidas por ele.
f) Outra fonte de informações não-conscientes é a nossa vivência passada. Por exemplo: a criança começa a tomar consciência do seu "eu" em geral depois dos três a cinco anos. Todas as informações que seu cérebro recebe do mundo exterior, desde o momento do nascimento até essa idade, ficam gravadas na memória do subconsciente, pois seus órgãos sensoriais registraram essas informações.
O grande fisiólogo Ivan Pávlov demonstrou que todas as irritações e todos os estímulos (sensações) anteriores deixam, nos neurônios, rastros que podem ser renovados.
Freud mostrou que o homem não esquece nada das informações recebidas consciente ou inconscientemente. Quando pensamos que esquecemos algo, na realidade esse algo passou para o subconsciente (ou inconsciente).
Um exemplo elementar: às vezes não lembramos o nome de um amigo, mas depois esse nome pode aflorar repentinamente no nosso consciente. O nome estava esquecido apenas no consciente, mas estava guardado no subconsciente.
É o que acontece também com as anedotas que ouvimos. Parece que as esquecemos. Mas basta que alguém nos conte uma anedota, já lembramos de outra parecida.
O mesmo acontece com a nossa vivência passada. Parece que esquecemos tudo ou quase tudo. Mas basta ver uma velha fotografia ou um amigo de infância, ou alguma pessoa que nos faça perguntas sobre o nosso passado, começamos a nos lembrar de muitos fatos, nomes e detalhes que pareciam estar esquecidos para sempre.
g) Aliás é nessa técnica de reminiscência que se baseia o tratamento psicanalítico: criar condições favoráveis para que o paciente recorde sua vida pregressa e procurar nela (em geral na infância) os traumas que teriam condicionado a neurose ou psicose atual do paciente.
A cura psicanalítica consiste em induzir o paciente a tomar consciência desses traumas que estão no seu subconsciente a fim de poder se libertar da neurose ou psicose. Muitos pacientes conseguem essa conscientização, mas como mostra a prática psicanalítica, poucos se libertam de suas neuroses e psicoses, porque o paciente não está no momento interessado em libertar-se de suas neuroses e psicoses, que no fundo nada mais são que fugas, derivações ou compensações para garantir sua sobrevivência, pelo menos física.
É nessa base também que a pessoa hipnotizada ou que sonha pode regressar à idade anterior e se lembrar de coisas aparentemente esquecidas.
Assim, o nosso subconsciente não esquece nada. Arquiva tudo. Eis a razão por que a memória subconsciente é um fabuloso repositório (arquivo) de informações. E por ter mais informações do que a memória consciente que o subconsciente pode resolver problemas que o consciente não consegue por falta de informações suficientes.
h) Quando nosso consciente não pode solucionar um problema por falta de dados suficientes, ele manda uma ordem ao subconsciente para resolvê-lo.
Cumprindo a ordem do consciente, o subconsciente mobiliza todas as informações de que dispõe em torno do problema para resolvê-lo. As informações associam-se, combinam-se, sintetizam-se e encontram a solução que é enviada automaticamente para o consciente.
O resultado desse trabalho subconsciente irrompe de repente na nossa consciência em forma de solução intuitiva. A intuição, assim compreendida, nada mais é que o resultado da combinação e da síntese das informações armazenadas no subconsciente.
Como não temos consciência desse trabalho de reflexão subconsciente, na nossa consciência irrompe, repentinamente, "não se sabe como", "nem quando formada", uma nova combinação de ideias, a solução procurada que não foi deduzida nem consciente, nem logicamente.
É a ignorância desse trabalho subconsciente que leva muita gente, às vezes séria, ao irracionalismo, ao misticismo e ao fideísmo, isto é, a atribuir a solução intuitiva a forças mágicas, a "espíritos protetores", a seres sobrenaturais ou a poderes paranormais da própria pessoa.
4) Sem dados suficientes
Este é o traço característico mais importante da intuição heurística. Segundo a nossa concepção, a solução intuitiva surge justamente quando não há dados (informações, conhecimentos) suficientes para fazer essa conclusão.
Se tivéssemos consciência desses dados, o próprio consciente poderia encontrar a solução com o auxílio dos conhecimentos sensíveis e racionais. Aliás, a todo momento resolvemos conscientemente muitos problemas. Para ser mais justo, a maioria dos nossos problemas são resolvidos conscientemente.
Assim, a intuição heurística entra em função somente quando nossos conhecimentos conscientes, sensíveis ou racionais, não conseguem resolver o problema por falta de dados.
Nesse sentido, a intuição heurística pode ser encarada como um método intuitivo de conhecimento que difere radicalmente do método empírico e do método racional (lógico) de solucionar problemas. Mas que, ao mesmo tempo, completa outras formas ou métodos de conhecimento.
Vamos ilustrar essa diferença com um caso policial típico:
O fato é: Maria foi assassinada por Pedro. A solução pode ser encontrada de três modos diferentes:
a) Solução empírica. Várias pessoas viram como Maria foi assassinada por Pedro. A solução é empiricamente evidente.
b) Solução racional ou lógica. Ninguém viu Maria ser assassinada por Pedro. Mas, levando em consideração que eles eram inimigos e Pedro já tinha publicamente ameaçado de matar Maria e que, no momento da morte desta, Pedro estava com ela, a polícia faz uma investigação e descobre um revólver pertencente a Pedro, no qual falta uma bala, justamente aquela que matou Maria. Não é necessário ser Sherlock Holmes para deduzir logicamente que Maria foi assassinada por Pedro.
c) Solução intuitiva. Ninguém viu Maria ser assassinada por Pedro. Não há nenhuma prova de delito e Pedro tem um álibi quase perfeito. Isto é, não há dados suficientes para julgar a culpabilidade de Pedro. No entanto, por sinais pouco perceptíveis, dificilmente captados e levados em consideração pelos sentidos e pela razão da maioria das pessoas, o detetive ou o advogado da vítima, se possuir a intuição detetivesca ou o talento investigador de um Sherlock Holmes, pode pressentir (no começo, de um modo vago e confuso e depois mais claramente) a culpabilidade de Pedro, apesar do álibi. Esse pressentimento intuitivo ainda não serve como prova de acusação. Mas ele serve ao detetive como guia para suas futuras investigações, que afinal poderão dar as provas necessárias.
d) Assim, quando os dados não são suficientes para encontrar a verdade por meios empíricos e racionais, entra em função nossa intuição.
A solução intuitiva não é uma simples consequência dos conhecimentos empíricos atuais, nem deduzida por via lógica dos conhecimentos racionais. É algo inteiramente novo, um "salto" através do "abismo" empírico e lógico. Mas sem esse "salto", não há descoberta do novo, nem desenvolvimento dos nossos conhecimentos.
Vejamos alguns exemplos de descobertas científicas feitas por meio da intuição heurística.
O astrônomo francês Le Verrier, estudando as perturbações no movimento do planeta Urano, pressentiu e previu, em 1846, a existência de um outro planeta até então desconhecido que foi, logo depois, descoberto por Galle e batizado com o nome de "Netuno".
O químico russo Dmitri Mendeleiev descobriu em sonho e depois formulou, em 1869, a lei periódica dos elementos químicos, baseando-se no fato de que as propriedades físicas e químicas dos elementos são funções de seus pesos atômicos. E que essas propriedades se repetem periodicamente quando dispostas em ordem crescente de seus pesos atômicos. Esta lei forneceu-lhe os dados suficientes para construir sua famosa tabela periódica dos elementos.
Graças a sua lei periódica, Mendeleiev previu a existência de muitos elementos até então totalmente desconhecidos. Em sua tabela, Mendeleiev deixou lugares vazios para os elementos que faltavam e indicou os dados referentes aos elementos desconhecidos. Muitos desses elementos vieram mais tarde a ser descobertos e identificados, como por exemplo: o escânio, o gálio, o germânio, etc.
No fim do século XIX e começo do século XX, vários físicos e químicos (Roentgen, Becquerel, o casal Curie, Rutherford, Soddy e outros) descobriram a radiatividade, fenômeno inteiramente novo que não poderia de modo algum ser deduzido dos nossos conhecimentos empíricos e racionais existentes até então.
A descoberta feita pelos físicos contemporâneos de partículas intra-atômicas (elétrons, prótons, nêutrons, etc.) veio negar completamente a antiga teoria atômica de Demócrito, que considerava o átomo como uma unidade material indivisível, teoria essa que dominou durante dois mil e quinhentos anos. Ora, a descoberta de um verdadeiro sistema planetário no microcosmos atômico é algo inteiramente novo.
Todas essas descobertas científicas representam uma negação ou um desvio da rotina, um salto através do abismo lógico, um conhecimento novo que não poderia ser deduzido dos conhecimentos existentes em nós. Isto é, não havia dados suficientes para deduzi-los empírica ou logicamente.
Assim, a intuição heurística rompe a rotina, completa o incompleto, alarga o horizonte dos nossos conhecimentos com novos conhecimentos sobre nós mesmos e o mundo exterior.
A intuição permite adivinhar as relações encobertas — diz Henri Poincaré.
A intuição permite adivinhar tudo aquilo que ainda não existe senão como tendência — afirma Le Roy.
A intuição é a suposição que completa os elos que faltam, os elos que ainda não foram encontrados na corrente dos fatos, permitindo aos cientistas criar hipóteses e teorias escreve — Máximo Górki.
Sem dúvida, é maravilhoso o poder da intuição, tão maravilhoso que é difícil acreditar que seja algo humano, natural, normal. No entanto, assim o é.
e) Queremos mais uma vez ressaltar que as soluções atribuídas a poderes parapsicológicos (paranormais, transnormais, parassensoriais, etc.), isto é, a certos fenômenos psíquicos que estão além do normal e que, por isso mesmo, não encontram explicação na filosofia, psicologia e fisiologia clássicas, tais como a telepatia, clarividência, precognição, podem muito bem ser normalmente explicadas pela atividade da intuição heurística, divinatória ou adivinhadora.
Nesse sentido, a capacidade intuitiva pode ser chamada de capacidade, habilidade, faculdade ou poder parapsicológico, e a intuição heurística chamada de telepatia, clarividência e precognição, pois a intuição heurística adivinha o pensamento dos outros (telepatia), descobre relações encobertas (clarividência) e pressente os acontecimentos ou resultados (precognição).
E toda pessoa que tem desenvolvida a capacidade intuitiva pode ser chamada de sensitiva, hipersensível, percipiente, paranormal, etc.
Mas, enquanto nós encaramos a capacidade intuitiva como uma habilidade normal que todos têm, em maior ou menor grau, e mostramos o seu mecanismo interno, certos adeptos da parapsicologia consideram os poderes paranormais como um dom extranormal, misterioso e até sobrenatural.
f) Até agora temos falado da ausência de dados suficientes na memória consciente, para a solução do problema, pressupondo a existência dos mesmos na memória subconsciente. Na maioria dos casos é assim.
Agora queremos ir mais adiante e afirmar algo mais importante (e talvez bastante discutível). Na nossa opinião, a intuição heurística pode encontrar a solução do problema até mesmo na ausência de dados suficientes na memória subconsciente. A descoberta de novos elementos químicos por Mendeleiev, a descoberta da radiatividade e a descoberta das partículas intra-atômicas, das quais já falamos, são os melhores exemplos disso.
É nisto que consiste a grande diferença e superioridade do cérebro humano em relação ao "cérebro" eletrônico dos computadores. Enquanto este só pode lidar com informações armazenadas, fornecidas pelo homem, e não pode solucionar problemas sem ter dados suficientes, o cérebro humano, graças à intuição, pode encontrar a solução sem dados suficientes, sem esperar até que sejam conhecidos todos os dados.
g) Como é possível isso? Na nossa opinião, isso é possível porque a nossa mente, o nosso espírito tem a capacidade de penetrar no íntimo dos objetos e fenômenos e captar diretamente sua harmonia, sua lógica interna, sua essência e as leis pelas quais se regem. É graças a essa capacidade que adquirimos novos conhecimentos e alargamos cada vez mais os limites desses a respeito do mundo e de nós mesmos. É a essa capacidade de nossa mente que chamamos de intuição.
O fundamento filosófico e material dessa capacidade intuitiva de penetrar no íntimo das coisas e captar sua essência reside no fato de que nós também somos feitos da mesma substância e dos mesmos elementos materiais que a natureza. Afinal de contas somos um produto da longa evolução da substância cósmica, eterna e infinita, embora sejamos um produto superior e totalmente diferente do pó cósmico. E, justamente, por não sermos estranhos à natureza é que a nossa mente (ou nosso pensamento ou espírito) pode refletir corretamente os objetos, os fenômenos e as leis pelas quais eles se regem. O pensamento e o ser (objeto) concordam plenamente, pois "a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas" (Spinoza).
Por isso podemos nos identificar e coincidir com ela. Assim como a mãe diz de seu filho: é "carne da minha carne" e "sangue do meu sangue", assim também a natureza pode dizer que o ser humano é "substância da minha substância", "energia da minha energia".
A consciência, a mente, o pensamento ou espírito humano nada mais é que o ponto culminante da lenta e multibilionária evolução da matéria em movimento, mais exatamente, um produto superior da matéria orgânica particular — o cérebro; o pensamento é um produto da atividade cerebral, mais particularmente, dos quinze bilhões de neurônios do nosso córtex cerebral.
Já o grande fisiólogo Ivan Pávlov havia demonstrado cientificamente que "a atividade psíquica é o resultado da atividade fisiológica de uma massa determinada de substância cerebral".
Embora seja um resultado da atividade fisiológica, a atividade psíquica não deve ser identificada ou reduzida aos processos puramente fisiológicos, por ser qualitativamente diferente deles.
Para esclarecer melhor o assunto faremos uma analogia um pouco imprópria: a luz emitida por uma lanterna é produto da atividade de suas pilhas elétricas; quando estas ficam descarregadas, não há mais emissão de luz. Ninguém, que tenha um pouco de cultura, irá identificar ou reduzir a luz às pilhas elétricas, embora haja uma relação entre elas. A mesma relação existe entre o pensamento e os neurônios cerebrais.
A prova decisiva da teoria materialista sobre o pensamento demonstra-se da maneira mais simples: basta que os neurônios do cérebro sejam destruídos, que desaparecerá qualquer sinal de atividade psíquica, mental ou pensante. E o que acontece com as pessoas que sofrem lesões fatais no cérebro: após alguns minutos perdem qualquer sinal de atividade psíquica. O mesmo resultado se obtém extirpando o córtex cerebral.
Sabe-se, pela prática da vida, que o homem pode viver sem comer de quarenta a oitenta dias; sem beber de cinco a dez dias; sem dormir de três a cinco dias; mas o máximo que pode aguentar sem respirar é de cinco a dez minutos. Depois disso ele morre.
O que acontece é o seguinte: deixando de respirar, o organismo não recebe oxigênio. Não recebendo oxigênio, as células morrem. E as células mais sensíveis à falta de oxigênio são justamente os quinze bilhões de neurônios do cérebro. Logo, quando a pessoa morre, os neurônios do cérebro são os primeiros a ser destruídos.
Mesmo no caso de um enfarte ou de uma síncope cardíaca, quando o coração para de funcionar, as células desse órgão ainda viverão por algum tempo. Mas os neurônios do córtex cerebral, não sendo mais alimentados pelo oxigênio levado pelo sangue, bombeado pelo coração, fenecem depois de alguns minutos.
É por essa razão que é muito difícil fazer transplante do cérebro. Enquanto após a morte clínica do indivíduo os demais órgãos (coração, fígado, rins, etc.) continuam ainda vivos por certo tempo, e por isso é possível transplantá-los para outras pessoas, o cérebro já está inutilizado nos primeiros dez minutos.
E com a morte dos neurônios do córtex cerebral advém a morte de toda atividade psíquica: a sensibilidade, a consciência, a mente, a inteligência, a razão, o pensamento, o espírito, a alma, etc.
A conclusão é óbvia: não existe e nem pode existir nenhuma consciência, nenhum pensamento, espírito ou alma independente da substância cerebral. Portanto, o espiritismo e outras doutrinas espiritualistas e místicas, que acreditam na sobrevivência ou reencarnação do espírito ou na imortalidade da alma após a morte física do indivíduo, não têm fundamento científico nenhum.
A atividade psíquica não é exclusiva do homem, mas existe também nos animais. Já que ela é o resultado da atividade fisiológica do cérebro, todo animal que tem substância cerebral tem, consequentemente, atividade psíquica, proporcional ao tamanho do cérebro e à quantidade de circunvoluções cerebrais. Portanto, animais, como o cão pastor e o chimpanzé, também possuem rudimentos de capacidade intuitiva.
h) Aqui cumpre fazer algumas observações. Embora a intuição dê a solução do problema sem dados suficientes, ela não pode dar a solução se a falta de informações for total ou demasiada. Nesse caso, o subconsciente pede informações complementares ao consciente. Depois de colher estas informações, o consciente as envia ao subconsciente. Se estas forem ainda insuficientes demais, o problema continua "aberto", sem solução, até que o subconsciente receba as informações fundamentais necessárias para a solução do problema.
E é por isso que, frequentemente, a solução do problema é encontrada muito tempo depois: às vezes leva um dia, um mês, um ano ou até vinte ou mais anos. É o caso de Newton, que levou muitos anos até descobrir as leis da gravitação universal.
Outro exemplo: Mendeleiev levou quinze anos até encontrar a solução verdadeira de sua tabela periódica dos elementos químicos. As soluções encontradas por ele anteriormente, também por intuição, e até em sonho, não foram satisfatórias.
Como vemos, a intuição faz várias tentativas até acertar plenamente no alvo, até encontrar a solução verdadeira.
Por isso estão completamente enganados aqueles pensadores místicos que afirmam que o nosso subconsciente ou inconsciente pode entrar em contato direto com o subconsciente de outras pessoas, ou com o inconsciente coletivo, para haurir todos os ricos e profundos conhecimentos ali acumulados.
Se isso fosse verdade, não haveria necessidade de estudar as ciências e qualquer pessoa analfabeta e ignorante poderia pôr-se em contato com o espírito (subconsciente ou inconsciente, individual ou coletivo), por exemplo, de um Einstein, para conhecer profundamente toda a teoria da relatividade (que muita gente culta não conhece porque não compreende).
Aqui cumpre repetir o que já dissemos. Na nossa opinião, estão enganados os filósofos que, como Bergson, Husserl e outros adeptos da intuição metafísica ou mística, afirmam que a intuição nos dá sempre e de um só golpe o conhecimento absoluto da verdade, isto é, o conhecimento da verdade absoluta, sem o auxílio dos conhecimentos empíricos e racionais.
Como já dissemos, segundo nosso ponto de vista, a solução ditada pela intuição heurística é, em princípio, hipotética, o que vale dizer que ela pode ser verdadeira, mais ou menos verdadeira ou errada.
A solução intuitiva pode ser errada porque os dados ou as premissas em que se baseia a intuição são eles mesmos errados. Isso significa, por outro lado, que a intuição funciona mesmo com premissas erradas.
Por isso, a verdade da suposição intuitiva não pode ser determinada pela intuição de evidência, mas somente pela prática e pela lógica, isto é, pela prática imediata e mediata.
Toda suposição intuitiva, para obter o valor de uma verdade objetiva, deve ser expressa em conceitos, verificada pela prática e demonstrada logicamente.
5 — INTUIÇÃO, SENTIDOS, RAZÃO E LÓGICA
1) Unidade dialética entre intuição, sentidos e razão
Desde os tempos de Platão até os nossos dias, costuma-se divorciar o conhecimento intuitivo do conhecimento sensível e racional, considerando a intuição como uma espécie de conhecimento independente e superior aos conhecimentos sensíveis e racionais.
Esta opinião é, até certo ponto, compreensível. De fato, à primeira vista, a intuição aparece como algo inexplicável, como uma espécie de sexto sentido, uma faculdade irracional, um poder hipersensível ou parapsicológico, uma força misteriosa, mística e até sobrenatural.
Mas essa opinião é errônea e superficial. Do nosso ponto de vista, é impossível tal divórcio e infundada tal oposição.
Na realidade, não existe conhecimento intuitivo independente das demais espécies de conhecimento. A intuição não funciona sem o auxílio dos sentidos e da razão, sem os conhecimentos sensíveis e racionais.
Assim como a razão é vazia sem os dados empíricos, e a experiência é cega sem a razão, a intuição é, ao mesmo tempo, vazia e cega sem os dados empíricos e racionais.
Embora dependa dos dados fornecidos pelos sentidos e pela razão, a intuição tem a sua especificidade, como também os sentidos e a razão têm a sua especificidade.
Por isso, mais correto é dizer (como já mostramos) que a intuição heurística é uma terceira espécie ou forma de conhecimento que completa as duas espécies já bastante conhecidas.
Cada uma dessas formas de conhecimento desempenha um papel diferente no processo do conhecimento. Cada uma delas capta algo que as outras não podem captar. Por exemplo, o conceito de mortalidade não pode ser conhecido pelos sentidos porque não tem forma, nem cheiro, nem cor. Ele só pode ser conhecido pela razão. Já a razão não pode sentir a cor e o cheiro agradável de uma flor. Isso é feito através dos sentidos.
Do mesmo modo, a intuição heurística tem o seu campo específico de conhecimento, do qual já falamos exaustivamente nas páginas precedentes. A intuição heurística capta aquele "algo mais" que nem os sentidos, nem a razão podem captar.
A diferença principal entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento sensível e racional é que, enquanto estes trabalham com dados conscientes e perceptíveis, aquele trabalha com dados subconscientes, subliminares, imperceptíveis ou quase imperceptíveis aos sentidos e à razão. O conhecimento intuitivo é diferente dos outros justamente porque a intuição trabalha com dados subconscientes, quase que totalmente ignorados pelos sentidos e pela razão.
E como toda sua atividade se passa na região subconsciente, a solução intuitiva aparece para os sentidos e para a razão como algo inteiramente novo, que não se sabe de onde veio, como algo "estranho", "misterioso", "irracional", místico", "sobrenatural".
Mas assim pensam somente aqueles que ignoram a verdadeira natureza da intuição, que, apesar de ser maravilhosa, é apenas uma forma de conhecimento tão natural e normal como o sensível e o racional.
Já mostramos que a maioria dos nossos conhecimentos e descobertas é feita pelos sentidos e pela razão, pelo pensamento discursivo. Mas como esses novos conhecimentos são adquiridos conscientemente, na base de dados conscientes, não ficamos nem impressionados, nem intrigados com isso.
Todas essas reflexões nos permitem concluir que o conhecimento intuitivo não é nem independente, nem superior aos conhecimentos sensíveis e racionais. Ele é apenas diferente e complementar. Sentidos, razão e intuição (heurística) ajudam-se reciprocamente, completam-se mutuamente e formam uma unidade dialética. Eles estão sempre presentes em qualquer ato cognitivo, desde o mais simples até o mais complexo, em qualquer pessoa, independente de sexo, idade e nível mental ou cultural.
Por exemplo, ao nos apresentarem uma pessoa, totalmente desconhecida para nós, e pela qual nos interessamos, entram em ação todas as nossas "faculdades" cognoscitivas: pelos sentidos procuramos conhecer suas qualidades sensíveis, como tamanho, sexo, cor, idade, etc.; pela razão procuramos conhecer suas ideias políticas, filosóficas, artísticas, religiosas, etc.; e pela intuição heurística procuramos descobrir ou adivinhar suas qualidades "ocultas", seu verdadeiro caráter, sua personalidade íntima, seus princípios morais, suas intenções secretas e outras coisas que a pessoa procura em geral esconder dos outros.
2) Unidade dialética entre intuição e lógica, entre método intuitivo e discursivo
Os filósofos intuicionistas costumam também contrapor a intuição à lógica, o método intuitivo e imediato ao método discursivo e mediato, como se fossem duas coisas antagônicas e contraditórias. E consideram o primeiro como independente e superior ao segundo.
Esta oposição é, até certo ponto, compreensível. Como já mostramos, a intuição aparece de repente e sem raciocínio discursivo. A solução intuitiva representa uma quebra da lógica, um "crime", um desrespeito contra a lógica existente, pois pela intuição pode-se chegar a determinada conclusão, que não seria possível pela lógica existente.
Esse é o motivo por que Bergson, Husserl, Heidegger e outros filósofos contemporâneos contrapõem a intuição à lógica, o método intuitivo ao método discursivo, considerando a intuição superior à lógica, como uma faculdade suprarracional e, alguns, até irracional ou sobrenatural.
Do nosso ponto de vista essa concepção é errônea.
O que acontece é o seguinte: os nossos conhecimentos não são absolutos, mas limitados, motivo pelo qual a lógica existente que conhecemos é também limitada, embora essa lógica também possa descobrir novos conhecimentos, como de fato descobre. Aliás, como já dissemos, e insistimos mais uma vez, a maioria das descobertas de novos conhecimentos se faz de modo consciente, racional e lógico, pelo método discursivo (indução e dedução).
A intuição se manifesta quando a lógica existente não está em condições de encontrar a solução. A intuição penetra no íntimo dos objetos e capta sua lógica interna, a lógica da realidade. O novo conhecimento, descoberto pela intuição, vem enriquecer os conhecimentos já existentes, vem alargar os horizontes, os limites da lógica existente.
O conhecimento intuitivo pode ser diferente e até contrário do existente em nossa mente. Se não somos muito dogmáticos, compreendemos logo o novo que nos traz a intuição e o aceitamos. Assim, a lógica existente vai paulatinamente sendo enriquecida pela lógica da realidade.
É nesse sentido, e só nesse, que a intuição é o contrário da lógica e superior a ela. Mas, no fundo, a intuição é tão lógica como a própria lógica existente, pois ambas são reflexos da realidade objetiva.
Pela intuição se encontra, se descobre, se inventa, se cria o novo, mas é pela lógica, pelo raciocínio e pela prática que se prova, se demonstra seu valor, seu caráter verdadeiro ou errado. Sem essa comprovação pela prática e pela lógica, a solução intuitiva permanece no ar, com caráter hipotético.
O papel da intuição é o de antecipar-se ao raciocínio, ao pensamento discursivo. Como regra, a intuição dá somente o germe da descoberta, depois trabalhado pelo pensamento discursivo (lógico).
Aliás, no processo do conhecimento, na solução de um problema qualquer de ordem teórica ou prática, intuição e lógica participam igualmente, se revezam, em todos os momentos, desde o começo até o fim.
Assim, intuição e lógica, método intuitivo e método discursivo, não devem ser contrapostos como antagônicos, nem considerados um superior ao outro. Intuição e lógica se completam.
Na verdade há uma unidade dialética entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento sensível e racional, entre o método intuitivo e o método discursivo.
Unidade simples — significa a união mecânica dos opostos: o preto ao lado do branco.
Unidade dialética — significa que os opostos se entrosam, se interpenetram e se transformam no seu contrário.
No caso em questão, o conhecimento intuitivo e imediato se torna conhecimento discursivo e mediato, e vice-versa; o conhecimento subconsciente se torna consciente, e vice-versa. O que estava no subconsciente, quando necessário, aflora no consciente, assim como o que estava no consciente, quando não é mais necessário, vai para o subconsciente.
Assim, as descobertas feitas pela intuição, depois de devidamente comprovadas pela prática e pela lógica, se tornam patrimônio do pensamento racional, lógico ou discursivo, e este, por sua vez, torna-se patrimônio do pensamento intuitivo e imediato. Por exemplo: os axiomas e os princípios lógicos e racionais, inicialmente discursivos, tornaram-se intuitivos, evidentes, para o homem adulto e culto, depois de repetidos milhares e milhares de vezes pelo pensamento humano.
6 — CONDIÇÕES FAVORÁVEIS PARA A MANIFESTAÇÃO DA INTUIÇÃO HEURÍSTICA
É preciso abandonar a concepção mística e elitista da intuição, que considera a intuição um dom divino, um privilégio somente de certas personalidades eleitas por um ser superior. Quem assim pensa ou é mal-intencionado ou ignorante, que não conhece como é elaborada a solução intuitiva.
Na nossa opinião, a intuição nada tem de divino, místico ou sobrenatural. A intuição é um fenômeno natural e todas as pessoas, sem exceção, têm capacidade intuitiva, só que uns mais, outros menos desenvolvida.
Entretanto, para sua manifestação é necessária uma série de condições, algumas das quais veremos abaixo. Antecipando, diremos que o conhecimento e a aplicação consciente dessas condições permitirão desenvolver a nossa capacidade intuitiva.
1) Problema não-resolvido
Isto é, ausência de explicação científica do problema, por falta de dados suficientes para resolvê-lo pelos meios sensíveis e racionais.
A intuição só entra em ação quando há um problema que não encontra solução satisfatória pelos conhecimentos empírico-lógicos.
2) Desejo imperioso de solucionar o problema, de conhecer a causa e o porquê das coisas, de conhecer ou descobrir a verdade
Essa condição é tão importante quanto a primeira.
Uma pergunta insistente é do que precisa o subconsciente para trabalhar, a fim de encontrar uma resposta que seja satisfatória. Basta perguntar e terá a resposta.
Essa lei psicológica, expressa por nós pela fórmula P=R (Pergunte e obterá a resposta), era bem conhecida desde a Antiguidade. Já na Bíblia encontramos as célebres frases: "Peça e receberá", "Procure e achará", "Bata e a porta se abrirá".
Aliás, essa lei psicológica sempre foi amplamente utilizada por todas as religiões, sobretudo pela religião cristã, em forma de preces, expediente recomendado a todos aqueles que querem alcançar uma graça. O melhor exemplo disso é a prece conhecida com o nome de "Novena ao Menino Jesus de Praga", que reproduzimos abaixo na íntegra. Chamamos a atenção do leitor para os trechos sublinhados por nós, sobretudo a expressão "mencione o pedido" — repetida três vezes.
"NOVENA AO MENINO JESUS DE PRAGA
Ó Jesus que dissestes: 'Peça e receberá, procure e achará, bata e a porta se abrirá', por intermédio de Maria, Vossa Sagrada Mãe, eu bato, procuro e vos rogo que minha prece seja atendida (mencione o pedido). Ó Jesus que dissestes: 'Tudo que pedires ao pai, em meu nome, Ele atenderá', por intermédio de Maria, Vossa Sagrada Mãe, eu, humildemente, rogo ao Vosso Pai, em Vosso nome, que minha oração seja ouvida (mencione o pedido).
Ó Jesus que dissestes: 'O céu e a terra passarão, mas minha palavra não passará', por intermédio de Maria, Vossa Sagrada Mãe, eu confio que minha oração seja ouvida (mencione o pedido).
Reze um padre-nosso, três ave-marias, uma salve- rainha. Em caso urgente, esta novena deve ser feita em nove horas."
Na moderna psicologia, essa lei que expomos foi chamada de "lei da finalidade subconsciente" pelo psicólogo Charles Baudoin, que, no seu livro Psicologia da sugestão e autossugestão, generalizou o método da cura pela sugestão praticada pelo seu mestre, o psicoterapeuta Émile Coué, cujo livro, O domínio de si mesmo pela autossugestão consciente, corre o mundo desde 1913.
Aliás, há centenas de livros escritos pelos norte-americanos, desde O poder da vontade e Querer é poder de Orison Sweet Marden, até A lei do triunfo de Napoléon Hill e centenas de outros mais recentes sobre Como vencer na vida, Como solucionar seus problemas e Como alcançar seu objetivo. Todos eles podem, em sua essência, ser resumidos na fórmula que propusemos acima: P=R pergunte e obterá a resposta o que mostra quão importante é o desejo imperioso de solucionar o problema.
De fato, se não existe uma forte motivação, um desejo imperioso de encontrar a solução do problema, a intuição não funciona. É o caso das pessoas apáticas, indiferentes, passivas.
A pergunta insistente vai do consciente para o subconsciente e daí vem a resposta ao consciente. Se o subconsciente tiver elementos fundamentais para a solução, ele dá a resposta na hora; em caso contrário, o subconsciente só dá a solução quando tiver esses elementos.[4]
3) Colocação correta e concreta do problema
É necessário colocar o problema para o subconsciente, de modo correto e concreto, a fim de não desorientá-lo. O nosso subconsciente é muito crente e servil (como o gênio da lâmpada de Aladim). Isto quer dizer que ele cumpre servilmente as ordens do consciente.
Mas se o problema for mal colocado, de modo errôneo e abstrato, o subconsciente não pode dar a solução procurada. Por exemplo: uma pessoa não tem êxito na conquista de outra pessoa. Em vez de perguntar quais as causas reais (de ordem econômica, social ou psicológica) do insucesso, ela pergunta qual será a incompatibilidade entre seus respectivos signos zodiacais, como se nisso consistisse a causa real do insucesso. Resultado: não obtém a solução do problema que a preocupa, pois os signos zodiacais nada têm a ver com a incompatibilidade de gênios, nem com o destino humano. A astrologia não passa de um mero passatempo, sem fundamento científico, e de meio fácil de enriquecimento para os forjadores de horóscopos e charlatães de toda laia.
As perguntas devem ser claras, concisas e precisas, isto é, isentas de ambiguidade, pois não pode haver resposta clara a uma pergunta obscura, do mesmo modo que não pode haver uma resposta científica a uma pergunta anticientífica.
Se o sujeito não sabe como colocar correta e concretamente o problema, então deve enviar um pedido preliminar ao subconsciente, perguntando como fazê-lo. A fórmula no caso é PP=R, isto é, Pergunte qual o problema e obterá a resposta. E depois de saber correta e concretamente qual é o problema, passar para a fórmula P=R.
Um outro expediente muito bom que ajuda a colocar correta e concretamente o problema que o preocupa é discuti-lo ou expô-lo aos outros.
A presença de um ouvinte obriga a gente a exteriorizar as ideias a respeito, a colocar de modo mais objetivo e claro o problema, para que o outro possa compreender em que consiste a coisa.
Isso nos leva a considerar certos aspectos que de outro modo poderiam passar despercebidos, fornece um poderoso mecanismo de realimentação que revela pontos obscuros e errôneos em nosso raciocínio.
O ouvinte sendo bom, culto e experiente, poder-nos-á dar várias "dicas" e até mesmo solucionar nosso problema. Mas, mesmo que ele seja passivo e não nos dê nenhuma "dica", só o fato de termos que expor objetiva e claramente o problema poderá nos levar a colocá-lo correta e concretamente e até mesmo encontrar a solução do problema que nos preocupa.
Tais fatos acontecem frequentemente com os professores e pesquisadores, que dão aulas ou proferem palestras com debates, ou diretores de empresas que discutem o problema com seus assessores e subalternos.
É como reza o provérbio popular: "Duas ou mais cabeças pensam melhor que uma só". Ou este outro: "É da discussão que nasce a verdade".
Um problema bem colocado já é meio caminho andado na sua solução. A colocação do problema é tão importante, que, mesmo na impossibilidade de colocá-lo correta e concretamente, é necessário fazê-lo como se pode. "É melhor ter uma hipótese, que pode, com o tempo, revelar-se errônea, do que nenhuma" — como dizia Mendeleiev. "Equacionar o problema já constitui metade da solução" — dizia Einstein.
4) Ricos conhecimentos práticos e teóricos
A suposição intuitiva pode ser mais ou menos frutífera, mais ou menos verdadeira, de acordo com a presença de uma reserva maior ou menor de conhecimentos práticos e teóricos no campo estudado.
Essa condição é evidente por si mesma, mas é necessário levar em consideração certos aspectos do problema.
A intuição aparece, igualmente, tanto em pessoas cultas como em ignorantes de ambos os sexos, tanto em jovens como em adultos.
Como a intuição aparece quando não temos uma explicação científica do problema, justamente por isso, encontramos uma atividade mais intensa da intuição nos adolescentes e nos indivíduos incultos, mas curiosos e desejosos de compreender as coisas. Eles procuram resolver todos os problemas com auxílio da intuição, com a qual tentam compensar a falta de conhecimentos científicos.
É por este motivo também que o homem primitivo usava mais a intuição do que a razão, pois sua razão estava pouco desenvolvida, como aliás acontece com os homens primitivos que ainda existem em várias partes do nosso planeta.
É conhecida a asserção de que a mulher é mais intuitiva do que o homem. E isso é verdade. A intuição se manifesta nas mulheres com mais intensidade do que nos homens, por dois motivos principais:
a) Por razões de ordem fisiológica e psicológica, a mulher, comparada ao homem, tem mais desenvolvida a sensibilidade e menos desenvolvida a razão. Ela mais sente do que pensa. Pela natureza e desenvolvimento do seu hemisfério cerebral, a mulher pertence mais ao tipo artístico, intuitivo, concreto e prático, do que ao tipo pensador, racional, abstrato e teórico — próprio de alguns homens, segundo a tipologia dos hemisférios cerebrais de Pávlov e Deglin. É por esse motivo que ela recorre mais à intuição — o que, por sua vez, desenvolve a sua capacidade intuitiva. A mulher é mais sutil, mais perspicaz, ela enxerga mais depressa do que o homem do tipo teórico-racional.
b) Na sociedade ocidental a mulher está relegada ao plano caseiro, tem pouca oportunidade de adquirir cultura, isto é, tem poucos conhecimentos teóricos e racionais e, por isso, recorre mais à intuição para solucionar os problemas que a preocupam, enquanto os conhecimentos teóricos e racionais do homem fazem com que ele recorra menos à intuição.
A capacidade intuitiva é independente do quociente de inteligência (QI) e do tipo de inteligência, isto é, da quantidade e qualidade de inteligência.
Porém, aqui cabe uma advertência muito importante: não confundir duas coisas bem diferentes: atividade intensiva da intuição e a probabilidade de acerto. Uma pessoa pode ter uma intensa atividade intuitiva (e, portanto, desenvolvida capacidade intuitiva) e, no entanto, seus pressentimentos intuitivos terem pouca probabilidade de acerto.
Os pressentimentos intuitivos têm diferentes graus de probabilidade, de acordo com os nossos conhecimentos práticos e teóricos. Quanto mais conhecimentos práticos e teóricos, tanto maior é a probabilidade de acertar. E, ao contrário: quanto menos conhecimentos práticos e teóricos, tanto menor é a probabilidade de acertar. É o que acontece com os homens primitivos, com as crianças e adolescentes, com as mulheres relegadas ao plano caseiro e, em geral, com as pessoas analfabetas e ignorantes.
Por outro lado, o homem culto, o sábio, o cientista e o artista (criador) também têm muito desenvolvida sua capacidade intuitiva, apesar de terem muitos conhecimentos práticos e teóricos. É que, quanto mais conhecimentos adquirimos, mais novos problemas não-resolvidos se descortinam diante de nosso espírito. E, como já sabemos, a primeira condição necessária para a manifestação da intuição é justamente a presença do problema não-resolvido, ou melhor, a ausência de explicação científica do problema. Mas os pressentimentos intuitivos dos homens cultos diferem radicalmente dos pressentimentos das pessoas pouco cultas pelo seu elevado grau de probabilidade de acerto, devido a sua rica bagagem cultural.
Não confundir o homem erudito com o culto.
O homem erudito é aquele que tem muitos conhecimentos, mas esses conhecimentos estão alienados da vida, não têm função prática, não estão relacionados com a vida. Por isso, seus conhecimentos são abstratos, estéreis e pouco úteis. Ele amontoa conhecimentos desconexos, baralha ideias heterogêneas e, por fim, confundindo erudição com cultura, acaba por convencer-se de que é profundo pensador porque leu muitos livros.
O homem culto é aquele que também tem muitos conhecimentos (talvez não tantos como os do erudito) mas seus conhecimentos são verdadeiros e sistematizados, eles estão ligados com a vida de hoje, com problemas existenciais do homem, são concretos, férteis, eficazes e úteis.
Um homem pode ser culto sem ser erudito, assim como pode ser erudito, sem ser culto. "A paciência da erudição nada tem que ver com a paciência científica", diz Bachelard. "A cultura é o que resta, quando nada fica", diz Cossio.
Non multa sed multum, diziam os latinos, para frisar que não se trata de saber muitas coisas, mas de saber coisas muito importantes.
"A cultura é um índice de qualidade e não de quantidade. É o que fica em nós, aparentemente esquecido pela memória, mas conservado pelo instinto e pela intuição.
"Pois o homem verdadeiramente culto não é o que armazena o saber, mas o que o transforma em criação original. Saber ler, saber ver, saber esquecer, são condições essenciais para saber criar. Eis o que nos ensina a sabedoria da cultura." (Tristão de Athayde, "A sabedoria da cultura", in jornal Leia Livros, de 15-9-1978.)
Por exemplo: o erudito pode ter lido muitas obras sobre teorias educacionais, desde Sócrates até os nossos dias. Mas se sua esposa lhe perguntar se deve ou não deixar a filha adolescente pernoitar na casa de seu namorado, o erudito não saberá encontrar uma solução rápida, concreta e satisfatória. Já o culto pode não conhecer tantas teorias educacionais, mas dará uma solução rápida, concreta e satisfatória. Isso porque seus conhecimentos teóricos estão ligados à prática, à vida de hoje.
Já vimos que na unidade entre a prática e a teoria, a prática tem primazia sobre a teoria. A prática, a práxis[5], a experiência da vida, os conhecimentos práticos, num deter- minado campo, valem mais do que os conhecimentos teóricos.
Isso porque a prática é ao mesmo tempo: a) a fonte de nossos conhecimentos; b) o objetivo de nossos conhecimentos; e c) o critério da verdade de nossos conhecimentos.
Se a teoria aparece como uma prática generalizada, espiritualizada, então a prática, por sua vez, aparece como teoria objetivada, materializada. Em resumo: a teoria é a prática concentrada, como a prática é a teoria concentrada.
Assim, como atividade sensível-material, o conhecimento prático é superior ao conhecimento teórico, pois ele tem não somente a dignidade do universal, como também da realidade imediata (Lênin).
Por isso não é de admirar que a intuição tenha maior probabilidade de ser verdadeira nas pessoas que têm rica experiência prática num domínio determinado, embora não tenham ricos conhecimentos teóricos do problema.
Estão errados, portanto, aqueles que pensam que a intuição é um dom divino, com o qual estão dotados somente os gênios e eleitos por um ser sobrenatural. Qualquer pessoa tem intuição mais ou menos verdadeira no campo de sua especialização. É a chamada intuição profissional, tais como: intuição médica, pedagógica, técnica, científica, artística, poética, política, detetivesca, comercial, pescadora, paqueradora, etc.
Vejamos o exemplo do agricultor prático e do agrônomo teórico: o agricultor tem intuição superior à do agrônomo recém-formado no campo de sua atividade. Isso acontece porque, como já foi dito, quem está mais próximo da prática tem intuição mais fecunda do que quem está longe dela. No entanto, quando o agrônomo juntar aos seus conhecimentos teóricos os conhecimentos práticos do agricultor, aí então ele se torna superior ao agricultor; isso porque o agrônomo tem a teoria e a prática, enquanto o agricultor só tem a prática. E vice-versa: se o agricultor prático adquirir a teoria, ele será superior ao agrônomo que só tem a teoria.
Isso significa: quando a pessoa une a prática com a teoria, a probabilidade de ter intuições verdadeiras é muito maior e ela se torna invencível na sua especialidade.
5) Concentração de todas as forças psíquicas, isto é, trabalho consciente, longo e intensivo
Para obter a solução intuitiva do problema que nos preocupa é absolutamente necessário que ela seja antecedida por um trabalho consciente, longo e intensivo: observação e estudo atento dos fatos, reflexão multilateral sobre o problema, etc., etc.
Numa palavra, é necessária a concentração de todas as forças psíquicas sobre a solução do problema. As soluções intuitivas nunca aparecem sem esse prévio esforço voluntário intensivo.
Depois de aparecer a solução intuitiva, de novo é necessário o trabalho consciente para verificar o seu caráter verdadeiro ou falso. Assim, o trabalho da intuição é precedido e seguido por um trabalho consciente, longo e intensivo.
Nada mais falso do que essas historietas vulgares em que as descobertas científicas e as criações artísticas são feitas sem ricos conhecimentos, sem prévio esforço, sem prévia reflexão e sem prévio trabalho, simplesmente por uma espécie de inspiração quase sobrenatural. "Eu preciso de noventa por cento de transpiração para ter dez por cento de inspiração", dizia o grande Thomas Edison, inventor do fonógrafo, da lâmpada elétrica e de muitas outras coisas.
A história das grandes descobertas e criações desmente essa concepção passiva do pensamento criativo. Todos os grandes pensadores, poetas, inventores e artistas foram trabalhadores ativos, persistentes e incansáveis.
O grande físico inglês Newton sublinhava que ele pôde descobrir sua famosa lei da gravitação universal graças somente a um "trabalho paciente e muitas reflexões". "Durante muito tempo eu pensava sobre isto", dizia Newton, e acrescentava: "Eu levava o objeto pesquisado constantemente na mente, virava-o de todos os lados, até que enfim foi possível encontrar a linha que me levou a uma noção clara".
Ou o exemplo de Mendeleiev, quinze anos trabalhando e refletindo até descobrir e elaborar sua célebre tabela periódica.
O grande poeta alemão Goethe escreveu o seguinte, a propósito de suas obras poéticas: "Pensei sobre elas durante um tempo terrivelmente longo, passaram-se muitos anos até que pudesse fazer algo que me satisfizesse".
Assim, as ideias geniais, as descobertas científicas, as invenções técnicas e as criações artísticas aparecem somente nas pessoas que pensam constantemente nelas e trabalham intensivamente, até encontrarem o que irresistivelmente desejaram. Se a gente acha, é porque longamente procurou. Lembrem-se das palavras da Bíblia: "Procure e achará". "Peça e ser-lhe-á dado." "Bata e a porta ser-lhe-á aberta."
6) Desconcentração psíquica ou passagem para outro tipo de atividade
Por mais importantes e necessários que sejam a concentração de todas as forças psíquicas, a reflexão e o trabalho longo e intensivo, a solução intuitiva aparece somente na ausência de tensão consciente, isto é, quando deixamos de pensar no problema, quando não estamos mais preocupados com ele (por mais paradoxal que isso possa parecer).
"Eu penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar e eis que a verdade me é revelada por intuição", costumava dizer Einstein.
A solução intuitiva jamais aparece num cérebro cansado e tenso. É porque, nesse caso, no consciente forma-se uma espécie de couraça intransponível, que não deixa aflorar no consciente a solução intuitiva que já está pronta no subconsciente. Quando desaparece essa tensão, essa couraça, então a "porta" de comunicação entre o consciente e o subconsciente se abre e a solução intuitiva aparece de modo espontâneo e repentino.
Daí a grande importância da desconcentração e do afrouxamento do trabalho consciente. A solução intuitiva surge, de preferência, nos momentos de relativa distensão ou afrouxamento da tensão psíquica consciente.
A base psicofisiológica da necessidade de distensão reside no seguinte: a concentração de todas as forças psíquicas necessárias para solucionar o problema gera uma tensão psíquica, que, por sua vez, gera uma tensão físico-muscular (base, aliás, de muitas doenças chamadas psicogênicas ou psicossomáticas, como, por exemplo, dores de coluna, úlcera gástrica, insônia, etc.).
Para conseguir a desconcentração ou distensão psíquica existem vários meios, entre os quais lembramos os seguintes:
a) através do lazer, isto é, descansar ou distrair a mente de modo ativo com uma ocupação suave, agradável e repousante;
b) através das várias técnicas de relaxe (relaxação, relaxamento), bem como de meios fisioterapêuticos (sauna, banho turco, massagem, etc.);
c) através de exercícios físicos aeróbios, etc.
Vejamos com mais detalhes alguns desses meios de distensão psíquica, que favorecem a manifestação da intuição heurística.
O segredo principal de todos esses meios consiste na passagem de um tipo de atividade para outro, sobretudo ao passar da atividade intelectual para a atividade física ou manual, como, por exemplo, durante o passeio a pé; na hora das refeições; durante a toalete no banheiro; na hora do descanso ativo (não-passivo) como na jardinagem; durante uma audição musical, durante um espetáculo no teatro ou no cinema; durante a leitura recreativa ou durante outros tipos de divertimento e de lazer. O isolamento, a solidão, mesmo na multidão, quando a pessoa está só consigo mesma, também ajuda muito a distensão psíquica e com ela a manifestação da intuição.
Os diversos tipos de esportes tais como: caçar, pescar ou jogar baralho, o golfe, ou assistir a um jogo de futebol, beisebol, voleibol, etc., também favorecem o relaxe da tensão mental. Por que a gente descansa ao assistir a um jogo de futebol? Os cientistas soviéticos mostraram que, durante a torcida, os movimentos dos jogadores, assim como os movimentos da bola, são reproduzidos no nosso cérebro e dão relaxe ao consciente.
Para obter a aptidão psíquica e a criatividade necessária, são também excelentes os exercícios aeróbios de aptidão física, recomendados pelo método Cooper, tais como: caminhar, correr, nadar, andar de bicicleta, pular e correr no mesmo lugar, etc.
A palavra "aeróbio" significa "que vive do ar", isto é, do oxigênio do ar, e, na terminologia esportiva, refere-se a atividades físicas que ativam bastante a respiração, levando o oxigênio às células, aos tecidos e aos órgãos.
Para obter desses exercícios físicos aeróbios o efeito de treinamento, isto é, efeito positivo, é necessário que eles sejam feitos com certo ritmo e duração, como mostram as tabelas elaboradas por Cooper.
O segredo da ação benéfica dos exercícios físicos aeróbios consiste no fato de que esses movimentos estimulam a atividade muscular, que, por sua vez, oxigena as células, inclusive os neurônios do cérebro, e estimulam a atividade psíquica, e, como consequência, trazem um relaxe psíquico. Em resumo: a atividade físico-muscular provoca a atividade das ideias e a fluidez da atividade mental.
"O correr parece acabar com o pensamento puramente lógico, tal como o faz a meditação. Inúmeras pessoas acham que encontram soluções bastante criativas para seus problemas enquanto correm", diz Bernard Gutin, que gosta de correr e é professor de fisiologia aplicada no Columbia Teachers College (Cf. "Vamos suar a camisa?" in Seleções do Reader's Digest, janeiro de 1978, p. 32).
A atividade física expulsa a inércia e a preguiça mental, tornando a mente fresca, ativa e alerta para o novo. "Devido a longas meditações, muitos monges budistas sofrem de preguiça mental", escreve Suzuki (Cf. D. T. Suzuki, Introdução ao zen-budismo, Ed. Zahar, Rio, 1971, p. 97).
"Os intelectuais do Ocidente são tolos 'viciados' em cadeiras... Em Pala, os professores e os funcionários do governo trabalham pelo menos duas horas por dia, cavando e cavoucando." (Aldous Huxley, A ilha, Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1965, p. 181.)
A esse propósito, é interessante o depoimento do grande cientista norte-americano William Lipscomb, da Universidade de Harvard, que ganhou o prêmio Nobel de química de 1976. Ele declarou para Andreas de Rhoda que as ideias novas podem vir de qualquer lado: de outros campos, de experiências passadas, do trabalho de outra pessoa e, surpreendentemente, de estudantes calouros. "Ensinar", diz ele, "é importante porque mantém arejada a minha pesquisa."
Muitas das ideias que impulsionaram a pesquisa dos compostos do boro e hidrogênio que lhe valeu o prêmio Nobel surgiram repentinamente, quando ele não estava trabalhando em nada.
"Com frequência, elas me acodem quando eu realmente não estou fazendo nada", disse ele quando entrevistado em seu gabinete de trabalho, no último andar do Laboratório Gibbs, em Cambridge, Massachusetts. "Às vezes, chegam associadas a mudanças na minha rotina diária, por exemplo, depois de eu ter dificilmente conseguido dormir, coisa que raramente me acontece, porque durmo muito bem.
"Estou inteiramente consciente, é claro que meu cérebro continua trabalhando inconscientemente no problema, quando eu o deixo de lado. Especialmente quando estou completamente absorvido fazendo outra coisa.
"Tudo o que você pode dar ao seu trabalho é interesse obsessivo pelo assunto, paciência e trabalho duro... Na alteração de trabalho intenso e intenso 'fazer nada', os intervalos de ociosidade que se mostraram mais férteis foram os de maior duração." (Cf. Andreas de Rhoda, "O processo da descoberta", Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo, 1978.)
Em outras palavras, nós temos que mudar de atividade, temos que nos desligar do problema que nos preocupa, para que a solução intuitiva do problema possa se manifestar. É necessário mudar de "canal", como se diria hoje.
Mas, aqui, cumpre fazer uma importante advertência:
Se essas atividades físicas forem intensivas ou exigirem muita tensão consciente, então a solução intuitiva do problema que nos preocupa não tem oportunidade de aparecer. Por exemplo: se andar ou correr demais e ficar fatigado, a mente também fica fatigada; se durante muitas horas jogar xadrez ou pôquer, ou assistir a um interessante e intensivo programa de televisão, que exigem muita concentração consciente, a pessoa passa de uma tensão consciente para outra e a intuição não tem vez de aparecer.
Afinal, cada pessoa deve encontrar, pela prática, o tipo e o quantum satis de atividade que lhe dá a necessária distensão psíquica. Todo o segredo está em distrair o espírito, desviando-o da ideia fixa, por meio de uma atividade suave, agradável e relaxante.
O melhor dos meios é, sem dúvida, passear a pé, sozinho, durante uns trinta minutos.
Muitos pensadores, cientistas, artistas, políticos, industriais, executivos e homens de profissões liberais, conhecem, por experiência, esse fenômeno e se utilizam conscientemente dele. Depois de um longo dia de árduo trabalho e reflexão consciente sobre um problema, passam com a consciência tranquila para outro tipo de atividade, ou vão passear, divertir-se ou dormir, após o quê acabam encontrando o que procuravam. Ou então trabalham em duas ocupações ou atividades diferentes, o que permite descansar de uma, quando se passa para outra.
Aliás, a interseção de duas ocupações ou atividades diferentes — uma teórica, outra prática — além de permitir o revezamento do trabalho pelo descanso, é muito fértil em criatividade. Por exemplo: o médico que faz pesquisas, o agrônomo que cultiva, o político que leciona, ou o professor que tem atividade política, etc., etc.
Aí é bem útil relembrar o provérbio russo: "A manhã é mais sábia do que a noite". Todos nós sabemos que pela manhã é mais fácil resolver as coisas; geralmente, é ao acordar que encontramos a solução de um problema que nos havia ocupado a mente o dia anterior. Por isso, depois de despertar, é conveniente ficar mais alguns minutos na cama à espera de alguma possível solução brilhante.
O sono permite o relaxamento do consciente, da estafa diária. Durante o sono, o consciente tem uma atividade diminuta, mas o subconsciente, como já sabemos, continua trabalhando.
Durante o dia, o consciente "manda" para o subconsciente dados para a elaboração da solução de um determinado problema. Às vezes o subconsciente dá a solução do problema durante a noite, em forma de sonho. Isso, porém, só acontece se o problema é muito importante e urgente; caso contrário, a solução aflora ao consciente ao acordar, ou durante o dia.
Conclusão: Devemos trabalhar e meditar muito, mas devemos também saber descansar. Trabalho, meditação e lazer —- eis o trinômio do sucesso. Se não conseguimos encontrar a solução do problema, não fiquemos desesperados. Passemos para outro tipo de atividade e a solução virá, justamente quando menos a estávamos esperando, quando nem estávamos mais pensando nela.
Para dar um exemplo elementar: às vezes não conseguimos nos lembrar do nome de uma pessoa, por mais esforço que façamos. Não fiquemos insistindo. É desnecessário e talvez até inútil. É melhor confiar a tarefa ao subconsciente dizendo "logo me lembrarei" e continuar a narração. Depois de um certo tempo (breve ou longo), o nome da pessoa surge, repentinamente, no nosso consciente, quando menos o esperamos, quando menos estávamos pensando nele. Todas as pessoas conhecem esse tipo de fenômeno. Se ainda alguém não o conhece, basta fazer experiência consigo mesmo.
Aqui vai outra advertência importante: essa suspensão do esforço consciente funciona somente se a pessoa estiver realmente motivada e tiver minuciosamente explorado todas as possibilidades para encontrar a solução do problema que a preocupa e cumprir todas as condições até aqui enumeradas. Mas se não fizer isso, essa interrupção do trabalho mental de nada lhe poderá adiantar. A descoberta e a criação não podem ser fruto da apatia, da preguiça mental e da vadiagem.
7) Mente flexível, espírito crítico e aberto para aceitar o novo
O maior inimigo da intuição é o dogmatismo e seus adeptos: o fanático, o sectário, o formalista, o escolástico, o talmudista, o burocrata, o rotineiro.
O que é dogmático? É uma pessoa que se apega ao dogma e considera-o verdade absoluta. Não admite crítica e opinião diferente. No fundo, o dogmático é uma pessoa honesta e bem-intencionada (mas dizem que o inferno está cheio de pessoas bem-intencionadas).
O dogmático é seco e estéril. É um verdadeiro cadáver ambulante. É necessário que a pessoa deixe de ser dogmática, pois o dogmatismo estrangula o pensamento criador, impede o afloramento da intuição por causa do seguinte fato: ele não admite outras verdades diferentes de seu dogma, e nós já vimos que a solução intuitiva é a quebra do dogma, da rotina.
O dogmatismo é fruto da falsa concepção estática da vida. Ora, na realidade, o mundo é dinâmico por excelência, as coisas não são eternas, elas mudam, estão em permanente mudança e desenvolvimento. Assim, não existem verdades eternas, imutáveis, absolutas, pelo menos nas ciências sociais e humanas.
Na sociedade, nada existe de eterno e imutável; logo, a essência dos valores e instituições sociais também não é eterna. O que é verdadeiro em determinada época, para uma determinada sociedade, pode deixar de ser verdadeiro em outros tempos, em outras circunstâncias. Nossos conhecimentos não são eternos, mas relativos.
Por exemplo: muitas verdades que se escreveram nos últimos três mil anos sobre a essência da mulher ocidental já não são mais válidas hoje para uma parte das mulheres que trabalham fora do lar, as chamadas mulheres emancipadas.
Antes a mulher era economicamente dependente dos pais ou do marido e, em consequência disso, era moral e juridicamente dependente dos mesmos. Era a serva, a criatura passiva, escrava dos quatro "C": casa, cama, cozinha e criança. Agora é cada vez maior o número de mulheres (solteiras ou casadas) que trabalham fora do lar e se tornam economicamente independentes dos pais ou dos maridos, em consequência do que se tornam independentes e emancipadas moral e juridicamente.
A mulher que trabalha e se torna emancipada é um ser igual ao homem, tem a mesma dignidade, os mesmos direitos porque tem os mesmos deveres. Portanto, o que foi dito antes a respeito da essência da mulher já não vale para a mulher moderna, economicamente independente, porque esta mudou de essência.
O mesmo se pode dizer de outros valores que mudaram com os tempos. Os conceitos tradicionais sobre a indissolubilidade do matrimônio, a proibição do divórcio, a proibição do aborto, o tabu da virgindade e da liberdade sexual pré-conjugal já não são mais considerados verdadeiros e sagrados nos países que sofrem os efeitos da explosão demográfica (superpopulação). Até a Igreja Católica — que durante séculos foi a mais dogmática nesses assuntos — hoje está reconsiderando e reformulando suas posições e concepções a respeito. Ela está tentando tornar-se mais flexível e dinâmica.
Se o dogmatismo mata a intuição criativa, a flexibilidade do pensamento, já o espírito crítico e a abordagem criativa, livre de dogmas e de preconceitos, favorecem a manifestação da intuição heurística, pois esta representa, na maioria das vezes, uma quebra da rotina e das noções tradicionais sobre o problema.
Tudo isto mostra o significado importante da união da teoria com a prática, a necessidade de uma abordagem concreta e viva das coisas, a necessidade de ter um espírito crítico, flexível, realístico e aberto para novas combinações de ideias.
Em uma palavra, é necessário aprender a ver as coisas tais quais elas são na realidade, livres de dogmas e preconceitos. E se a realidade contradiz a teoria, tanto pior para a teoria; então é necessário abandonar a teoria e encontrar outra que seja reflexo mais fiel da realidade.
É necessário convencer-se de uma vez por todas que a realidade é mudança permanente. Já dizia, há dois mil e quinhentos anos atrás, o filósofo grego Heráclito: "Tudo flui, tudo muda". De fato, Heráclito tinha razão. Neste mundo, nada é permanente a não ser a própria mudança.
7 — REGRAS PARA DESENVOLVER A CAPACIDADE INTUITIVA
Desde a Antiguidade até os nossos dias, os filósofos e cientistas procuraram encontrar um método "infalível" para ensinar a adivinhar a verdade. Infelizmente tal método infalível não existe, pelo menos não nos é conhecido. Entretanto, é possível desenvolver a capacidade intuitiva que permite achar a solução de problemas pessoais ou profissionais que nos preocupam, adivinhar ou descobrir a verdade, e criar ou inventar algo novo.
Como vimos, a intuição heurística é o conhecimento imediato e repentino, pelo qual se conhece, se descobre ou se adivinha o que é ou deve ser a solução de um problema que nos preocupa.
Atenção para não confundir esta forma de intuição, da qual vimos falando até agora, com outra forma de intuição, da qual falam em geral os demais autores e que nós denominamos de intuição de evidência.
A intuição de evidência é o conhecimento, a percepção clara e direta da verdade, sem auxílio do raciocínio. Como já dissemos, enquanto a intuição de evidência apenas constata a verdade dos objetos ou ideias (por exemplo, os axiomas e os princípios lógicos e racionais), e não traz nenhum conhecimento novo, a intuição heurística é a capacidade de descobrir novos conhecimentos.
Tudo que se falou até agora sobre a intuição refere-se à intuição heurística.
Pois bem, para desenvolver a capacidade intuitiva de solucionar os problemas que nos preocupam, com grande probabilidade de acerto, é necessário criar todas as condições favoráveis para a sua manifestação, condições essas já estudadas e que poderemos resumir assim:
1.ª) Ter um problema pessoal ou profissional para resolver.
2.ª) Desejar imperiosamente solucionar o problema.
3.ª) Colocar correta e concretamente o problema.
4.ª) Acumular ricos conhecimentos práticos e teóricos sobre o problema que nos preocupa.
5.ª) Concentrar todas as forças psíquicas, trabalhando e meditando longa e intensivamente na solução do problema.
6.ª) Desconcentrar a mente, passando para outro tipo de atividade.
7.") Ter mente flexível e aberta para o novo.
Em resumo: para merecer a visita da intuição a musa da adivinhação, da descoberta e da criação é preciso saber trabalhar, meditar e descansar.
Livros em russo, publicados na URSS
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Bassin, F. V. — O problema do inconsciente, Moscou, 1968.
De Broglie, Louis — Pelos caminhos da ciência, Moscou, 1962.
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Livros em outras línguas
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NB: No texto há citações de outras fontes que não constam da bibliografia acima.
Jacob Bazarian, de origem armênia, veio ao Brasil em 1928 com a idade de oito anos. Estudou na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, em 1945, licenciou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo. Trabalhou no jornal "Hoje" e foi redator-chefe do jornal "Ararat", publicado em São Paulo.
Em 1949, mudou-se para Paris, onde fez curso de extensão na faculdade de filosofia da Sorbonne (com Bachelard e Jean Wahl) e foi redator-chefe do jornal "Armênia", publicado em francês.
Em 1950, mudou-se para Erevan, capital da Armênia soviética, onde foi eleito deputado e fez curso de pós-graduação no Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da Armênia.
Em 1956, defendeu tese de candidato a doutor em ciências filosóficas, em Moscou, no Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS.
Durante os dez anos que trabalhou como pesquisador científico do referido instituto moscovita, publicou, em russo, vários trabalhos filosóficos e escreveu sobre a história do pensamento filosófico e sociológico brasileiro para as obras coletivas "História da filosofia" (em sete tomos) e "Enciclopédia filosófica" (em cinco tomos).
Em 1966, voltou ao Brasil, onde começou a trabalhar como jornalista e professor universitário. Foi diretor e redator-chefe da revista "Armênia" e, desde 1970, é professor titular de sociologia nas faculdades de direito, de administração e de comunicação de Itapetininga (São Paulo).
Jacob Bazarian é autor de centenas de artigos, de dezenas de trabalhos científicos publicados no estrangeiro e de vários livros publicados no Brasil, entre os quais: "Mito e realidade sobre a União Soviética", "Intuição heurística", "Curso de sociologia", "Considerações filosóficas sobre a sociedade" e "A origem e evolução das coisas".
O presente livro do ilustre filósofo e sociólogo é um estudo sério e profundo sobre um dos problemas mais importantes e fascinantes: o processo do conhecimento humano.
O autor mostra que sem uma teoria científica do conhecimento da verdade é impossível ter sucesso em qualquer tipo de atividade teórica ou prática, em qualquer tarefa de compreensão e transformação do mundo, do homem e da sociedade.
Apesar da complexidade do tema, o autor expõe os problemas fundamentais do conhecimento numa linguagem clara, concisa e precisa, sem prejuízo da profundidade — O que o torna acessível ao leigo.
O livro trata com grande maestria do problema central da gnosiologia, que é o problema da verdade e seu critério (a práxis), à luz do materialismo dialético criativo.
Outro grande mérito do livro consiste em que, pela primeira vez na história da filosofia, faz-se uma análise científica do papel da intuição no processo do conhecimento. O autor elaborou uma teoria original sobre o conhecimento intuitivo ou criativo, como método de adivinhar a verdade e encontrar a solução dos problemas pessoais e profissionais de qualquer espécie.
O autor salienta que o conhecimento da verdade científica é conditio sine qua non para o sucesso pessoal e profissional, é a arma mais poderosa e decisiva para o desenvolvimento polifacético tanto do indivíduo, como da sociedade em que vive. Um país é grande na medida em que seus concidadãos têm um alto nível científico, técnico e administrativo.
Conhecer a verdade significa mais pão, mais saúde, mais habitações, mais conforto e mais felicidade. Conhecer a verdade é ter poder para vencer, ser mais livre e desenvolvido.
"Conhecereis a verdade a verdade vos tornará livres" — diz o Evangelho segundo São João.
A oportunidade de tal assunto se torna mais evidente ainda em nossos dias, em que uma onda de ceticismo, misticismo e de irracionalismo invade cada vez mais o espírito das pessoas preocupadas pelos destinos do seu país e da humanidade.
Esta é a razão por que este livro é eminentemente útil aos estudantes de qualquer curso e aos professores, pensadores e artistas de qualquer especialidade. É útil também aos profissionais liberais, aos políticos, industriais, executivos, tecnocratas e quadros dirigentes da nação, interessados no êxito pessoal ou profissional.
[1] O trabalho que estamos escrevendo tem como título provisório O impulso de sobrevivência — a quintessência do ser.
[2] Esta parte é uma variante consideravelmente revista e ampliada do nosso opúsculo Intuição heurística, publicado pela Editora Alfa-Omega, segunda edição, 1973. Em sua essência, este trabalho é um resumo de duas monografias do autor: "A teoria do conhecimento do intuitivismo contemporâneo" e "O papel da intuição no processo do conhecimento" trabalhos esses escritos de 1961 a 1965, em Moscou, onde o autor trabalhava como pesquisador científico no Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS. Quando dispusermos de tempo, esperamos traduzi-las para publicá-las em português.
[3] Embora na literatura filosófica e científica se encontrem inúmeras referências isoladas a essa forma de intuição, infelizmente, não há uma análise gnosiológica profunda do problema, isto é, qual o mecanismo interno da intuição heurística e qual o valor do conhecimento que ela nos dá. O que se segue é uma contribuição nossa para melhor compreensão do problema. Como é a primeira tentativa de análise gnosiológica do problema da intuição, não está excluída a possibilidade de falhas e até de erros na interpretação de alguns aspectos do problema. Qualquer sugestão crítica a esse respeito será bem recebida pelo autor.
[4] Mais detalhes sobre a lei da finalidade subconsciente em "A arte de obter o que se deseja", cap. I, do livro de nossa autoria A arte de aprender e passar nos exames, Livraria Nobel, São Paulo, 1972
[5] O termo prático, práxis, não deve ser entendido no sentido pejorativo de útil, vantajoso, lucrativo, como acontece no pragmatismo, mas no sentido de práxis, prática social, atividade produtiva dos homens. Ver mais detalhes sobre o conceito de práxis no capítulo sobre o problema da verdade e seu critério.