TÓPICO AVANÇADO: INTERAÇÕES DA RADIAÇÃO COM A MATÉRIA

Até agora vimos como a radiação causa dano biológico e como a proteção radiológica pode nos proteger de uma exposição. Vimos também diversas aplicações da radiação, seja para indústria, saúde ou geração de energia. Aqui abordaremos um tópico um pouco mais avançado, que é mais direcionado para ensino superior: os mecanismos de interação da radiação com a matéria!

INTERAÇÕES DA RADIAÇÃO COM A MATÉRIA

A primeira coisa que precisamos ter em mente é: o que é interação? Definir.

Quando falamos de interação de radiação ionizante com a matéria é preciso ter em mente três coisas:

  • NATUREZA DA RADIAÇÃO: radiação ondulatória / corpuscular;

  • ENERGIA DA RADIAÇÃO: baixa / média ou alta energia;

  • TIPO DE MATÉRIA: chumbo, água, concreto, grafite, entre outros.

UMA "NOVA" CLASSIFICAÇÃO PARA A RADIAÇÃO

Todas as interações que vamos abordar aqui referem-se às radiações ionizantes para os tecidos biológicos (E > 12.4 eV). É conveniente, no entanto, classificá-las em dois subgrupos:

  • DIRETAMENTE IONIZANTES: são partículas carregadas, como elétrons, partículas α, prótons, íons e fragmentos de fissão. Por terem carga, elas interagem principalmente através do seu campo elétrico, transferindo energia para muitos átomos ao mesmo tempo (Tauhata, 2014);

  • INDIRETAMENTE IONIZANTES: são aquelas que não possuem carga, como fótons e nêutrons. Nesse caso a interação ocorre de forma individual com a matéria, onde ocorre transferência de energia para elétrons, por exemplo, que irão provocar ionizações no meio (Tauhata, 2014).

INTERAÇÃO DE RADIAÇÃO INDIRETAMENTE IONIZANTE: FÓTONS

Do ponto de vista físico, os fótons podem interagir com o átomo como um todo, com um elétron do átomo, com o núcleo do átomo ou, simplesmente não interagir (Tauhata, 2014). Cada uma dessa interações tem uma PROBABILIDADE de ocorrer que depende tanto da energia dos fótons quanto de características do meio. Mas calma! Não é porque usamos a palavra "probabilidade" que precisaremos decorar fórmulas ou fazer contas! Vamos te facilitar: não usaremos a palavra "probabilidade", mas um conceito similar, chamado de SEÇÃO DE CHOQUE:

SEÇÃO DE CHOQUE

Representada pela letra grega σ a seção de choque é um conceito usado em física nuclear e física de partículas para representar a probabilidade de uma reação ocorrer (Okuno & Yoshimura, 2010). A unidade mais usada para seção de choque é o BARN que equivale a uma área de 10-28 m2

A definição de seção de choque pode não ser muito clara, mas acredite, o nome é muito esclarecedor! "Seção" nos dá a ideia de uma área, "choque" nos remete a uma colisão. Nesse sentido, SEÇÃO DE CHOQUE é a área onde ocorre determinada interação. Quanto maior a seção de choque, maior a probabilidade de que a interação ocorra! Está ficando mais claro?

AGORA VAI FICAR!

Imagine que você está em uma competição de arco e flecha. A interação da radiação com a matéria é como acertar uma flecha em um alvo. Quanto maior a área do alvo, mais fácil fica de acertar certo?

É exatamente isso que acontece com a seção de choque! Quanto maior o seu valor, maior é a probabilidade da interação (isto é, maior a chance da flecha acertar o alvo).

A seção de choque, da mesma forma que a probabilidade de interação, também depende da ENERGIA DO FÓTON (hν) e do NÚMERO ATÔMICO (Z) isto é, o número de prótons do núcleo do átomo desse material. É importante avaliar ambos para prever a probabilidade de ocorrência de uma determinada interação! São 5 mecanismos principais de interação:

  • Espalhamento coerente

  • Efeito Fotoelétrico

  • Efeito Compton

  • Produção de pares

  • Fotodesintegração

ESPALHAMENTO COERENTE: é uma interação entre um fóton e o átomo como um todo. Nesse processo o átomo absorve o núcleo e o reemite em uma direção muito próxima da incidente. O fóton praticamente NÃO TRANSFERE ENERGIA, e o momento se conserva com um leve recuo do átomo. Um esquema é mostrado a seguir:

EFEITO FOTOELÉTRICO: Trata-se da interação de um fóton com o átomo. No processo o fóton é absorvido e o átomo emite um elétron (chamado de fotoelétron). Um esquema é mostrado a seguir:

Ao emitir o elétron, átomo deixa de ser neutro, tornando-se um íon excitado. Esse íon precisa emitir energia para se desexcitar e isso ocorre ou através da emissão de fótons de RAIOS X DE FLUORESCÊNCIA (característicos) ou através de ELÉTRONS AUGER. Podemos pensar no elétron Auger como um elétron de uma órbita mais externa que absorve um raio X de fluorescência e é emitido. Um esquema pode ser mostrado na figura seguinte:

AUMENTO DA DOSE DE RADIAÇÃO POR ELÉTRONS AUGER

Existem várias pesquisas sobre o uso de nanopartículas metálicas para AUMENTAR A DOSE EM RADIOTERAPIA. Nanopartículas de ouro (AuNp), por exemplo, possuem ALTA SEÇÃO DE CHOQUE para emissão de FOTOELÉTRONS e ELÉTRONS AUGER. Ao incorporar as AuNp em um tumor (com o uso de fármacos) e irradiar o paciente, além da dose do tratamento, há uma dose "extra" local devido aos elétrons ejetados da interação dos fótons com as nanopartículas.

Para mais detalhes e outras aplicações de nanotecnologia em Física Médica, recomendamos o VÍDEO da palestra do PROFESSOR ÉDER GUIDELLI, na IV Escola de Inverno de Física Aplicada à Medicina e Biologia da USP de Ribeirão Preto.

EFEITO COMPTON: Interação entre um fóton incidente (de energia hν) com um elétron em repouso. Nesse processo há transferência de parte da energia e do momento do fóton para o elétron, sendo ambos espalhados. O elétron sai com energia cinética K a um ângulo θ da direção de incidência e o fóton, com uma energia hν' a um ângulo φ conforme mostra a figura:

PRODUÇÃO DE PARES: Essa interação ocorre entre um fóton e o campo elétrico (coulombiano) do núcleo de um átomo. Nessa interação o fóton incidente é absorvido e sua energia é totalmente convertida em massa! Lembre-se: fótons não tem massa! As partículas emitidas são pares partícula-anti-partícula, geralmente um elétron e um pósitron, como mostrado abaixo:

É importante ressaltar que a produção de pares só vai ocorrer para energias maiores do que um certo valor. No caso da criação de pares elétron-pósitron, a energia tem que ser maior ou igual a 1,022 MeV. Isso porque a massa de repouso do elétron (e a do pósitron) é 0,511 MeV.

IMPORTANTE: Para a produção de pares ocorrer a energia do fóton deve ser igual ou superior a 1,022 MeV pois são necessários 0,511 MeV para a "converter" um fóton em um elétron e 0,511 MeV para "converter" um fóton em um pósitron. Se as energias forem superiores, o excesso de energia é convertido em energia cinética dos pares gerados.

FOTODESINTEGRAÇÃO: trata-se de um efeito "parecido" com o efeito fotoelétrico, porém, para fótons de altas energias (superiores às energias de ligação dos nucleons). Nessa interação o fóton não interage com o átomo, mas com o núcleo, sendo absorvido e liberando um nucleon, geralmente um nêutron (reação foto-nêutron), como mostrado na foto a seguir:

LEMBRE-SE: As probabilidades de interação dependem da energia da radiação e do número atômico do meio!

O gráfico mostra como variam as principais interações de fótons para as energias usadas na área da saúde. O efeito fotoelétrico predomina para fótons de baixas energias interagindo com qualquer material (qualquer valor de Z). A medida que a energia aumenta, a probabilidade de ocorrência do efeito fotoelétrico diminui mais rapidamente que a probabilidade de ocorrência do efeito Compton. A partir daí, o efeito Compton para a predominar. Ele ocorre para energias na faixa dos MeV independente do Z do material. Para fótons de energia acima de 1,022 MeV, a produção de pares começa a ocorrer e sua probabilidade aumenta com o aumento da energia.

INTERAÇÃO DE RADIAÇÃO INDIRETAMENTE IONIZANTE: NÊUTRONS

Embora também sejam radiações indiretamente ionizantes por não terem carga, os nêutrons tem massa! Isso diferencia muito suas interações das do fóton. Existem basicamente 4 tipos de interações de nêutrons: espalhamento (elástico e inelástico), captura e espalação.

A seguir, explicaremos um pouco mais cada um deles:


ESPALHAMENTO ELÁSTICO: é o processo mais importante no freamento de nêutrons! Trata-se de uma colisão elástica de um nêutron com um próton. Como a massa de ambos é muito próxima, na colisão o nêutron para e transmite toda sua energia para o próton. Um esquema dessa interação é mostrado a seguir:

ESPALHAMENTO INELÁSTICO: Nessa interação, um nêutron incidente colide com um núcleo, sendo absorvido e depois reemitido. No processo, o núcleo absorve energia e é deixado num estado excitado. A desexcitação acontece com emissão de um raio gama como mostrado no esquema a seguir:

ESPALAÇÃO: Essa interação ocorre para nêutrons de altas energias (da ordem de GeV) colidindo com núcleos pesados. No processo o núcleo absorve a alta energia incidente e se desintegra emitindo radiação na forma de raios gama de desexcitação nuclear e várias partículas, como nêutrons, prótons, partículas alfa e fragmentos de núcleos mais leves. Um esquema é mostrado a seguir:

NOTA: A espalação tem ganhado atenção de pesquisadores por ser capaz de transmutar resíduo nuclear para torná-lo menos radioativo. Se quiser conferir mais, explicamos isso na seção sobre lei de decaimento!

CAPTURA DE NÊUTRONS: É um tipo especial de espalhamento inelástico. Nesse processo o núcleo absorve o nêutron mas emite uma outra partícula (ou partículas) e um raio gama. De todas as interações de nêutrons, é a com maior relevância clínica porque é a base de um tratamento conhecido como BNCT (do inglês, Boron Neutron Capture Therapy)

BNCT: TERAPIA DE CAPTURA DE NÊUTRONS PELO BORO

A BNCT é uma espécie de RADIOTERAPIA BINÁRIA: em uma primeira etapa aplica-se um fármaco para direcionar a radiação em um alvo para, numa segunda etapa, irradiar o paciente.

O direcionamento da radiação é feito ao administrar nos pacientes átomos de B-10. Isso isótopo não radioativo do boro tem uma das maiores seções de choque de captura para nêutrons térmicos (cerca de 3838 barns). Ao irradiarmos os pacientes com nêutrons térmicos, os átomos de boro sofrem a seguinte reação:

Os produtos da reação dão uma partícula alfa de energia 1,47 𝑀𝑒𝑉, um íon de Li-7 de energia de 0,84 𝑀𝑒𝑉 e um fóton. Exceto o fóton, os demais produtos da reação depositam muita energia por unidade de caminho percorrido! Em função disso, o alcance combinado delas é da ordem do diâmetro de uma célula típica. Isso ajuda muito no tratamento, uma vez que a dose será depositada localmente, danificando apenas o tumor e poupando tecido saudável.

Embora a dose depositada pelos produtos da reação seja local, os nêutrons térmicos tem um porém: os espalhamentos elásticos com os prótons do nosso corpo. Em um espalhamento elástico, o nêutron térmico colide com um próton parado. O nêutron para e o próton recua na matéria, depositando dose adicional por ionizações no meio. A BNCT, porém, é uma terapia promissora mesmo que haja essa deposição adicional. Em geral, uma sessão de BNCT já basta para se observar efeitos terapêuticos e, por mais que alguns estudos mostrem que não há aumento significativo na sobrevida dos pacientes, a qualidade de vida deles é sempre melhorada (Smilgys, 2017).

INTERAÇÃO DE RADIAÇÃO DIRETAMENTE IONIZANTE

As partículas carregadas interagem com a matéria através do seu campo coulombiano. Em função disso, elas conseguem interagir, através de colisões, com mais de um átomo do meio ao mesmo tempo! Por conta disso, sua penetração na matéria, em comparação com partículas indiretamente ionizantes de mesma energia, é muito menor!

COLISÕES COM A NUVEM ELETRÔNICA

As colisões com a nuvem eletrônica (elétrons orbitais) são todas colisões INELÁSTICAS entre as partículas carregadas incidentes, podendo ocorrer tanto para partículas carregadas leves (PCL) quanto para partículas carregadas pesadas (PCP). São dois tipos de colisões:


COLISÃO SUAVE: trata-se de uma colisão inelástica entre uma partícula carregada (PC) incidente com um elétron mais externo. Nesse caso, a PC sofre uma pequena perda de energia resultando em excitações e raramente em ionizações. É a colisão mais frequente de partículas carregadas pesadas, como prótons, partículas alfa ou íons pesados.

RADIAÇÃO DE CHERENKOV: É uma emissão de luz com comprimento de onda predominantemente na faixa do azul. Essa radiação é emitida quando uma partícula (um elétron, por exemplo) atravessa um meio com uma velocidade maior do que a da luz naquele meio (Okuno & Yoshimura, 2010). Um exemplo de emissão de Cherenkov pode ser vista nas piscinas de reatores nucleares.

REATOR NUCLEAR

COLISÃO DURA: trata-se de uma colisão inelástica com o elétron mais interno. Por estar mais ligado, a PC sofre uma grande perda de energia por ionizações. Um esquema é mostrado a seguir:

COLISÕES COM O NÚCLEO

COLISÃO ELÁSTICA: PC sofre grande mudança na trajetória momento se conserva com recuo do núcleo.

COLISÃO INELÁSTICA: PC sofre grande (ou total) perda de energia! Essa energia é prioritariamente convertida em calor, sendo que apenas 2% ou 3% são convertidos em fótons de raios X de freamento (Bremsstrahlung). Um esquema da interação é mostrado a seguir:

IMPORTANTE: A seção de choque para colisão inelástica de elétrons é alta em materiais de alto Z, como metais. Por isso não blindamos elétrons com metal! Embora o metal absorva o elétron, ele pode emitir um fóton de raio X que tem percorre distâncias maiores.

REAÇÕES NUCLEARES: Essa reação não vai ocorrer para os tratamentos usando radiação. Trata-se de uma colisão de uma partícula carregada com alta energia (da ordem de GeV). Neste caso, a colisão pode afetar os nucleons individualmente e até mesmo o núcleo como um todo, liberando partículas subnucleares de alta energia (nêutrons ou prótons) e fótons de desexcitação nuclear (raios gama), como mostrado na figura a seguir:

COLISÃO MATÉRIA-ANTI-MATÉRIA

Esse nome assusta não é mesmo? Mas na verdade, esse mecanismo de interação é fundamental para a formação de imagens em PET (Tomografia por Emissão de Pósitrons).

Essa reação também é chamada de ANIQUILAÇÃO, nela, um pósitron (anti-matéria do elétron) colide com o elétron e se aniquila, emitindo dois fótons diametralmente opostos. essa reação entre pósitron em velocidade baixa com elétron praticamente em repouso. O par “desaparece” e no lugar, são emitidos dois fótons de energias. Se a energia cinética do pósitron for alta, ocorre a aniquilação em voo, emissão de fótons com mais energia.

UFA! TERMINAMOS!

Agora você já tem um conhecimento mais profundo sobre as radiações... parabéns! Na próxima seção vamos entrar na parte de física nuclear. Começaremos com uma breve história desse campo da física e mostraremos como a sociedade da época encarou essa "energia milagrosa".

Caso queira se aprofundar ainda mais nas interações de radiação, recomendamos essa vídeo-aula do PROFESSOR SÉRGIO ROBERTO DE PAULO. Nesse vídeo, em especial, ele mostra as várias interações das radiações (ionizantes e não ionizantes) com a matéria. Vale à pena conferir!

REFERÊNCIAS

OKUNO, Emico; YOSHIMURA, Elisabeth Mateus. Física das radiações. Oficina de Textos, 2016.

SMILGYS, Bárbara et al. Dosimetria "in vitro" em BNCT com o uso de filmes finos de boro e detectores PADC. 2017.

TAUHATA, Luiz et al. Radioproteção e dosimetria: fundamentos. 10. rev. Rio de Janeiro: IRD/CNEN, 2014.

YOSHIMURA, Elisabeth Mateus. Física das Radiações: interação da radiação com a matéria. Revista Brasileira de Física Médica, v. 3, n. 1, p. 57-67, 2009.