Pelo meio... às vezes

Não sei se foi sorte ou azar, mas passei vários meses em Luanda. Os invejosos dirão que foi sorte - enquanto a malta vegetava no mato, eu podia usufruir do conforto e das oportunidades de convívio na magnífica cidade. Os amigos reconhecerão que foi apenas uma razoável capacidade de reagir ao azar, procurando dele retirar as menores consequências possíveis - a verdade é que enquanto os outros vieram todos inteiros, eu fui escaqueirando e consertando ossos, com várias passagens pelo hospital.

Não me interessa perder muito tempo a tentar decidir qual das duas explicações é a melhor - a verdade é que sempre tive da vida um pensamento positivo, e penso que cada um deve, no respeito pelos valores sociais e éticos que considera importantes, situar-se o melhor que puder face às vicissitudes que a vida lhe impuser.

Não me esqueço das condições em que parti dois dedos da mão esquerda: avançávamos pelo leito de um regato, na direcção da central Mungage, no início de uma grande operação combinada com comandos e para-quedistas, quando me lembrei duma das questões que dividiam o nosso grupo - os angolanos, ao longo da progressão, tratavam de ir ficando para trás, deixando os lugares da frente, os mais perigosos, para os brancos, que se queixavam. Num troço mais a direito do regato, olhei para trás a controlar a situação, e... levantei voo. As botas escorregaram no fundo lamacento e caí apoiado na mão esquerda. Havia seixos no fundo do regato, e, enquanto a mão ia até ao fundo, dois dedos ficaram apoiados num seixo partindo-se. Mal me levantei percebemos logo a extensão e natureza do estrago, com os dois dedos virados para cima enquanto os outros apontavam para a frente. Imediatamente um dos soldados angolanos largou a arma e correu:

- Meu alferes, eu trato disso.

Agarrou-me a mão e apertou os dedos, que, antes que eu pudesse sequer gritar, voltaram mais ou menos à posição normal.

Não esqueço a lágrima ao canto do olho do enfermeiro Gomes quando me propunha que se chamasse um helicóptero, e eu lhe respondi, com uma artificial boa-disposição, que, numa mata tão densa, iríamos levar dias a cortar árvores antes que o heli me pudesse recolher. A solução foi voltar para trás, a pé, entregando a arma a alguém, e usando a mão inteira para me agarrar a árvores a arbustos no caminho de regresso, com a ajuda de muitos.

A operação continuou depois, com o furriel Abrantes no comando do grupo, mas viria a abortar quando do lado oposto, um acidente mais grave vitimou um tenente para-quedista - uma granada que levava à cintura prendeu num ramo que arrancou a cavilha de segurança, e o tenente foi cortado em dois. Acabado o efeito surpresa, a operação foi desmontada.

O médico do batalhão enviou-me para o hospital do Negage, para fazer RX, e recordo que a minha escolta foram três furrieis dos serviços - Quinteira, o furriel mecânico conduzia, acompanhado pelos dois Martins - o enfermeiro e o vagomestre.

Chegámos ao Negage pelo meio-dia e, sabendo da habitual demora dos hospitais, propuz que fôssemos antes comer ao "civil" (um dos prazeres quando saíamos do arame era ir comer a um restaurante civil, onde os pratos eram sempre "bife, churrasco ou bacalhau").

Aceitaram o convite, e o almoço foi animado, comigo a espantar as dores contando anedotas e brincando a propósito de tudo. Foi isso que explicou o salto do furriel enfermeiro quando, mais tarde, já no hospital, olhou para a radiografia e constatou:

- Mas isso está mesmo partido!

Claro que estava, e lá recebi guia de marcha para Luanda, onde, a alguns amigos que lá tinha, vim a juntar outros.

Não precisei de ser operado - a "operação" do André (?), em pleno mato, tinha reduzido a fractura, pelo que fiquei apenas a passear o gesso pela cidade.

Mas tudo se curou, voltei à unidade, e, no princípio de 1974, em Quiximba, parti o pulso. A versão oficial diz que, a descer dum Unimog, escorreguei e caí sobre o pulso, e, portanto, foi isso que aconteceu, mas a ideia que eu tenho é a de que, num jogo de futebol em Zau Évoa, caí para trás, e coloquei mal a mão no chão. Não interessa, o estrago foi, de facto um pulso partido.

Dessa vez já não houve escoltas e o trajecto para São Salvador do Zaire, para iniciar o expediente médico foi no MVL.

Fiquei uma noite em São Salvador e, na manhã seguinte, enquanto aguardava o avião para Luanda, não pude deixar de notar uma certa movimentação de galões vermelhos em meu redor. Acabei por perguntar a um capitão o que se passava, e, algo embaraçado, ele confessou-me que o brigadeiro, comandante de sector, estava preocupado com a ideia de eu aparecer em Luanda com o cabelo... à Zau Évoa, ou seja, de fazer inveja aos Beatles.

Evidentemente que serenei o brigadeiro, cortando o cabelo, e avancei para Luanda como um autêntico veterano das evacuações.

Cheguei a Luanda, e quando me preparava para sair do aeroporto, para ir ao hospital militar procurar um médico amigo que sabia lá estar, e a quem queria confiar o conserto do pulso, ouvi chamar.

Na pista vinha um soldado a correr, a perguntar-me o nome, informando que era o condutor da ambulância para me levar. Eu não tinha pedido nenhuma ambulância, nem me parecia necessário para um pulso partido, mas... sempre poupava um táxí, pelo que o segui.

A ambulância recusou-se a pegar. Lá fomos os dois abrir o capot e vasculhar, a ver se na nossa ignorância encontrávamos algo de anormal, mas não demos com nada.

O condutor ligou então para o hospital pedindo ajuda, e poucos minutos depois surgiu nova ambulância, que passou um cabo à avariada, e foi assim, que, com um pulso partido, eu dei entrada no hospital militar numa ambulância a reboque de outra ambulância.

Fui observado por um aspirante médico, que viu necessidade de operação, e passei ao meu amigo que a confirmou, mas resolveu arranjar-me tratamento VIP, pelo que me levou e apresentou ao comandante do hospital, um simpático médico que me confidenciou que o dr. Manuel Guerra (o tal meu amigo) era um dos melhores médicos de Angola, e estava a pensar atribuir-lhe uma medalha. Fiquei preocupado quando o Manuel me avisou que me iam consertar o pulso, mas nunca mais jogaria Andebol, mas confiei, sabendo que estava nas melhores mãos que havia.

Passei ao serviço de internamento, onde me informaram que não havia vaga na enfermaria do hospital, pelo que eu deveria encontrar alojamento lá fora e passar todos os dias a ver quando surgia a vaga.

Não era problema, alojamento tinha eu - um outro grande amigo, capitão dos Comandos, tinha alugado a meias um apartamento mesmo em frente do hospital, onde havia uma cama da tropa sempre à minha espera.

Na manhã seguinte continuava a não haver vagas, mas, à saída do hospital, veio a correr atrás de mim um capitão médico, agitando uma radiografia, e perguntando-me se era minha. Confirmei que, pelo estrago era, com certeza, e convidou-me a segui-lo.

Subimos ao bloco operatório, onde me mandou calçar umas pantufas e estender na maca, e poucos minutos depois, ainda cambaleante da anestesia geral, e operação, estava a ser posto na rua, para passar uma tarde com as dores mais violentas que alguma vez senti.

Sorte?

Bem, houve o tal outro lado, outras histórias que não cabem aqui, para não dar trunfos aos invejosos, mas uma não resisto a contar:

O meu amigo comando tinha carro, que não levava para o quartel, e que eu usava sempre que ncessário. O trânsito em Luanda era pouco mas caótico, ao ponto de se dizer que em Portugal se guiava pela direita, em Moçambique pela esquerda, e em Luanda pelo meio.

Uma noite, estava ele de oficial de dia aos comandos, no Grafanil, convidou-me a ir lá à noite, beber um copo e fazer um bocado de companhia. Eu conhecia mal a zona, e ele lá me explicou que era simples - chegava à rotunda do SPM (um grande prédio onde se instalavam oficiais com família) e apanhava a primeira estrada em alcatrão (a rotunda e parte dos arruamentos circundantes ainda eram de terra batida).

Assim fiz, mas assustei-me. Havia dezenas de pessoas na estrada, escuros na noite escura, e eu, sem saber donde vinha toda aquela gente, guiava devagarinho, evitando acidentes. Apercebi-me de que, por mim passavam, pela esquerda, carros a grande velocidade e não tardei a perceber o que se passava, e que a foto abaixo (de um tal HJCO) ajuda a explicar:

Preocupado em meter pela "primeira à direita" eu circulava em cima de uma estreita faixa de alcatrão, que era o passeio duma larga e moderna avenida.

E pronto! Se ouvirem dizer que em Luanda se circulava pelo meio e por cima dos passeios, façam o favor de fazer de conta que não sabem quem é o culpado.

Narrativa de Avelino Lopes