Bicharada

Uma das maiores dores de cabeça de toda a malta era a bicharada - não as feras, mas a bicharada miúda, extremamente incómoda e às vezes dolorosa.

O quissondo era famoso - uma formiga grande, tinha o péssimo gosto de subir pelas pernas dos incautos até chegar... lá, pois, e, apanhando-se no quentinho, ferrar com toda a sua muita força. Era ver a pressa com que a vítima deitava calças abaixo, para agarrar a formiga e puxar. Vinha a formiga, mas a cabeça ficava lá, presa onde não devia, exigindo mais umas habilidades para a remover sem muita dor.

O miruí era companhia habitual em Santa Isabel, mas não na zona de Quiximba. Tratava-se de um mosquito minúsculo, quase invisível, que tinha um "horário de trabalho" de pouco mais de meia-hora ao amanhecer e de novo ao entardecer. A sua picada era extremamente dolorosa, pelo que a solução era, à hora do miruí, fecharmo-nos em casa, e sair depois dele passar.

A mosca Tsé-Tsé era uma gozona. Um pouco maior que uma varejeira, chegava em silêncio e pousava com tal delicadeza que ninguém a sentia. Começava a picar e provocava uma dor crescente. Quanto a vítima a sacudia, levantava voo ruidosamente, em contraste profundo com o silêncio da chegada. Como recordação deixava um borbulhão do tamanho de uma moeda, pouco doloroso, e que desparecia ao fim de algumas horas. Felizmente, não estava infectada e não se verificou nenhum caso de doença do sono.

A matacanha... ai a matacanha! Ferrava nos pés, sem dor, e punha ovos debaixo da pele. Quando os ovos germinavam formava-se uma bolsa esbranquiçada, cheia de larvas, e instalava-se uma violenta comichão. A extracção da bolsa de larvas era uma operação de micro-cirurgia que todos sabiam fazer, alguns com mais jeito que outros. É que, se se conseguia cortar a pele sem danificar a bolsa e retirá-la inteira, o incómodo era mínimo; se se furava a bolsa ou se se fazia sangue, a coisa tornava-se um pouco dolorosa. Em todas as circunstâncias, o buraco deixado era cheio com sulfamidas e ficava-se pronto para outra. Eu usava a técnica de antes de dormir, deitar um pouco de sal em torno dos pés, e talvez por isso, apenas apanhei, ao todo, umas 3 ou quatro, mas houve alguém que, só duma vez, tirou... 28.

O meu maior flagelo era um estupor dum bicho que não sei o que era - nem mosca, nem abelha, algo entre uma coisa e outra, ferrava sempre entre os dedos das mãos. A dor não era muito intensa, mas toda a mão inchava até ao pulso, sendo difícil de usar durante um dia ou dois.

Mas o mais curioso passou-se em Santa Isabel.

Um dia, estávamos na messe, quando o Monteiro Fernandes se levantou de um salto e se despiu, ficando em tronco nu. Toda a gente riu, mas a verdade é que ele tinha no tronco alguma vermelhidão, que ninguém conseguia explicar. Inspeccionámos a roupa, e nada havia. A coisa complicou-se quando chegou a vez do Sousa Santos. Uma fogagem intensa, mais uma vez sem explicação.

A cena repetiu-se durante alguns dias, atingindo todos os oficiais menos eu, e deu para perceber que só acontecia quando vestiam camisola interior. Partimos à procura da explicação, e ela começou a surgir quando descobrimos que a minha lavadeira era a única que estendia a roupa num arame - as outras estendiam-na no chão. Fomos inspeccionar a roupa estendida e descobrimos uma lagartinha preta e peluda, com cerca de um centímetro, e que era a má da fita.

Atraída pelo branco da camisola interior, ao passear-se nela, impregnava-a com qualquer pelugem ou pó irritante, invisível mas agressivo.

Houve quem se risse das desventuras dos alferes, mas no ano seguinte, na zona do Tomboco, o feijão maluco (ou macaco, para alguns) foi óptimo, para todos perceberem o que eles sofreram até identificar a lagarta.

Narrativa de Avelino Lopes