A Idalina

Quiximba era, à época, uma espécie de campo de concentração sem arame - mil mulheres, outras tantas crianças e cinquenta homens, quase todos velhos, tinham sido deslocados do Quanza Sul para aquele local remoto, a cerca de quinhentos quilómetros de distância, quebrando, assim, o apoio familiar aos homens na mata.

A nova sociedade organizou-se - para além de uma rudimentar agricultura de subsistência, os homens menos velhos trabalhavam como carregadores da tropa, e as mulheres lavavam a roupa dos militares. Esse era o único dinheiro que entrava na aldeia, para além de uns cobres pagos pelo comerciante pela farinha de pau que algumas mulheres conseguiam vender, ao preço de um escudo por quase um dia de trabalho a moer a farinha no pilão.

Havia um problema de concorrência - os militares eram pouco mais de uma centena, pelo que, das mil mulheres, apenas uma décima parte conseguia o privilégio de... ser lavadeira.

Isso criou regras internas na comunidade:

1 - Cada lavadeira só podia ter um patrão

2 - O exclusivo era total - lavadeira lavava a roupa e o quico do militar

Essa rotina foi passando, de companhia em companhia, pelo que, a fase de rendição das sucessivas unidades militares era tempo de intensas "negociações", com as mulheres mostrando-se à porta de armas, na esperança de serem eleitas pelos recém-chegados, orientados pelos veteranos de partida.

"Herdei" a lavadeira do alferes que substituí - A Idalina, uma mulher adulta que dizia ter 17 anos (e talvez tivesse, dado ter só uma filha, a simpática Fàtinha, exímia comedora de bolachas da tropa que durante um ano regularmente lhe forneci).

Tudo correu bem, até que me apercebi de que o facto do cliente não ir lavar o quico, se estava a tornar motivo de vergonha da Idalina, eventualmente alvo de chacota das vizinhas, que consideravam essa questão não como um abuso ou prepotência dos militares, mas como um serviço natural que prestigiava a profissional que o prestava.

Foi assim que aceitei o convite da Idalina para ir a casa dela jantar uma moamba.

Comprei um frango e o arroz, que ela levou, e à hora combinada lá apareci para jantar.

A casa era uma barraquita com cerca de 4 m2, de chão térreo. Encostada à parede uma cama de corpo e meio, e do outro lado uma pequena mesa com uma cadeira. Só um de nós se podia sentar à mesa - o convidado claro - mas a Idalina sentou-se na borda da cama, e, vantagem das casas pequenas, daí chegava à mesa, enquanto a Fatita ia comendo, ora em pé, ora junto à mãe, ora no meu joelho.

Acabado o repasto, sentei-me também na borda da cama, onde, "sob a arbitragem" dos olhos vivos da Fàtinha, conversámos um pouco.

A Idalina explicou-me que percebia que "eu tinha namorada no puto", e daí não querer lavar o quico com ela, agradeceu-me o carinho com que tratava a miúda, mas depois teve uma frase que me atrapalhou:

" - Alferes é muito corajoso em vir desarmado para a sanzala a esta hora".

Com toda a disciplina, e simpatia, com toda a ordem que sempre imperou, nós nunca nos podíamos esquecer de que a população, no seu todo, era família de guerrilheiros, e sabíamos que, apesar da distância, os contactos aconteciam e eram frequentes.

Seria aquela observação sinal de me estar preparada uma armadilha? Não me parecia, mas... o seguro morreu de velho, e lá a esclareci que não era bem assim - estava alí, à noite e sozinho, mas armado.

Meti a mão ao bolso e mostrei-lhe a pistola. O que eu fui fazer!

Com um grito, atirou-se pela janela para a rua, onde a gritaria continuou, ampliada pelas pessoas que iam saindo das casas próximas.

Saí também para a rua, onde o alvoroço na escuridão era total, e identifiquei o Marcolino, um soldado nativo do meu grupo, a quem expliquei rapidamente a situação, e pedi que me ajudasse a juntar os miltares presentes.

Não eram muitos, nem ficaram muito incomodados por interromper as lavagens, pois o regresso imediato ao quartel, naquelas circunstâncias, era um alívio para todos.

Correu tudo bem até ao fim, a Fatinha continuou a devorar bolachas, mas nunca mais fui convidado para jantar.

Narrativa de Avelino Lopes