Os artistas italianos em São Paulo nas primeiras décadas do século XX

"A cidade de São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral. Uma cidade reconstruída duas vezes sobre si mesma no último século. Uma cidade capaz de gerar um parque como o Anhangabaú, um dos mais belos centros de cidade das Américas, para destruí-lo em poucas décadas, e sem necessidade, apenas por imediatismo e imprevidência. Capaz de criar uma Avenida Paulista, única por sua posição na cidade e insubstituível em sua elegância, para aos poucos destruí-la minuciosa e repassadamente. E, sem remorso."

Benedito Lima de Toledo[1]

 

Foi com a administração de José Teodoro Xavier (1872-1875) que a cidade de São Paulo tomou consciência de seu próprio poderio e importância. Na época, auge do ciclo do café, a economia paulista supera a fluminense e as fazendas do “oeste paulista” passam a se destacar em relação ao Vale do Paraíba. Aos poucos, os escravos serão substituídos por imigrantes assalariados e se instalará uma nova mentalidade, mais “empresarial”, entre os grandes fazendeiros. Em 1873, com a Convenção de Itu, é fundado o Partido Republicano Paulista, ensaiando a mudança da forma, de monarquia para república, e do sistema de governo, de parlamentarista para presidencialista.

 

No centro de todas estas transformações, enquanto capital do Estado, a cidade de São Paulo começou a envergonhar-se de seu passado colonial construído em taipa, da simplicidade de seus edifícios – de dimensões acanhadas e sem nenhum refinamento – e da ausência completa de urbanismo, de avenidas, praças e bulevares.

 

No sentido desta afirmação, havemos de notar que, de 1870 a 1889, era questionado por vários homens públicos, inclusive presidentes do Estado, o fato de São Paulo ser mantida como capital. Campinas, terra dos “barões do café”, denominada a “princesa d’oeste”, era mais populosa e melhor urbanizada e, além disto, contava com prédios mais notáveis como a imponente catedral (construída entre 1807 e 1883), com 4.000 m² e 70 m de altura em sua torre (sendo a maior e mais alta construção erigida em taipa-de-pilão do mundo), o Teatro São Carlos, um dos mais antigos do Estado (1850) e as mansões como o Solar Itapura (hoje edifício central da PUC- Campinas), o Solar do Visconde de Indaiatuba e o Palácio dos Azulejos (que já foi sede do poder Executivo Municipal).

 

Quanto à catedral, havemos de ressaltar que foi interiormente decorada pelo grande entalhador baiano Vitoriano dos Anjos Figueiroa (1765-1871), trazido especialmente de Salvador para esta atividade, e que a fachada foi concluída por Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), que foi quem dotou o templo de todos os melhoramentos existentes na época, inclusive canos embutidos para iluminação a gás.

 

Como afirmou Cândido Malta Campos Filho, Professor Doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), “Campinas perdeu um pouco o bonde da história na disputa que teve com São Paulo para se tornar a capital do Estado com o surto de febre amarela que ocorreu no final do século 19.”[2]

 

Tendo ocorrido a grande epidemia de 1889, que dizimou mais da metade da população da cidade e fez com que muitos dos que sobreviveram a abandonassem (como a família de Anita Malfatti, por exemplo), decidiu-se reurbanizar e reaparelhar São Paulo, agora incontestável capital do Estado.

 

Num primeiro momento, que coincide com a construção da Estação da Luz (1895-1901) e do Prédio do Liceu de Artes e Ofícios (1900) e a inauguração da Avenida Paulista (1891) e do Viaduto do Chá (1892), a cidade esconde habilmente os velhos beirais e telhadões coloniais sob os áticos neo-clássicos, e são projetados novos bairros, como os Campos Elíseos e Higienópolis.

 

 

 

Num segundo momento, teremos a inauguração do Teatro Municipal (1911) e demolição da antiga Catedral da Sé (1911). Os trabalhos da nova catedral, entregue parcialmente concluída em 1954, iniciaram-se em 1913, a partir do projeto do arquiteto alemão Max Hehl, que também projetou a nova Catedral da cidade de Santos.

 

Em 1919 houve o concurso para elaboração do Monumento Comemorativo ao Primeiro Centenário da Independência do Brasil. Participaram projetos de artistas brasileiros e estrangeiros e os três primeiros colocados foram italianos: Ettore Ximenes (Palermo, 1855 - Roma, 1926),  Luigi Brizzolara (Chiavari, 1868 – Genova, 1937) e Nicola Rollo (Bari, 1889 – São Paulo, 1970).

 

Analogamente, o Rio de Janeiro, então capital da República, irá implementar, no início do século XX, o processo chamado de “Regeneração”. No bojo da proposta, a demolição dos casarões coloniais do centro da cidade, que funcionavam como cortiços e abrigavam a população de baixa renda (obrigando esta mesma população a alojar-se nos morros ao redor do centro da cidade, criando as favelas), com a criação da Avenida Central (1904), a vacina obrigatória (para erradicar a febre amarela) e a mudança da sede do poder, da Praça XV (antigo cais “Pharaoux”) para o Catete, longe do cheiro do Porto e do cheiro do povo.

 

Em outro texto já afirmamos que “a principal meta da "regeneração" (termo que já carrega, por si só, uma referência asséptica muito grande) da cidade era por termo, de uma vez por todas, à imagem da cidade insalubre, insegura e obsoleta, habitada por selvagens, onde a imundície e a promiscuidade imperavam. Esta imagem, que causava asco e abominação aos estrangeiros e o mais profundo constrangimento (e vexame) à burguesia carioca, deveria ser substituída pela do progresso, que carregava então um inferente civilizatório sem par. A "regeneração" tinha ainda muito em comum com o resgate do "decoro nacional", pois a imagem que o Brasil necessitava vender ao exterior era a de um país próspero e moderno, em franco desenvolvimento; condição necessária para a concessão de polpudos empréstimos, dos quais a economia nacional dependia para desenvolver-se.”[3]

A transformação proposta em São Paulo é mais modesta e mais “decorosa”, já que, ao contrário do Rio de Janeiro, que tem o centro povoado por ex-escravos e mascates, a região central da capital paulista é ocupada por aristocráticos cafeicultores e imigrantes enriquecidos.

 

"Em 1896, Giulio Saltini e o seu mestre-de-obras Luigi Mancini são chamados para construir um palacete à Av. Paulista para Francisco Matarazzo, outro italiano que tinha se afirmado e havia criado uma indústria eficiente e muito ativa."[4]

 

O trecho transcrito acima nos fala de três italianos sendo um arquiteto, seu capomastro e o terceiro, ninguém menos do que o conde Matarazzo. A precocidade deste momento (1896) nos revela quão rápida e vertiginosa foi a ascensão de muitos dos imigrantes que aqui chegaram. O conde Matarazzo, um dos nossos primeiros grandes industriais, contrata o serviço de dois dos seus patrícios para recriarem, no ponto mais aristocrático da capital do Estado, um pedaço da velha Itália. Símbolo de ascensão social e de sucesso, a casa significava para o imigrante um sonho realizado.

 

Ocupam grande destaque nesta época as iniciativas de particulares, ou segmentos da sociedade civil organizada, mesmo em se tratando da malha viária ou de monumentos públicos, como por exemplo em 1910, quando um grupo de cidadãos pede autorização ao Governo para construir, às suas próprias custas e com todos os melhoramentos existentes na época, três grandes avenidas.[5] Também foi de iniciativa da “colônia italiana” a implantação das esculturas em homenagem à Carlos Gomes, na Praça Ramos de Azevedo, para comemorar o 1º Centenário da Independência do Brasil, em 1922. O artista escolhido foi Luigi Brizzolara (o qual também realiza em São Paulo o mausoléu da família Matarazzo, o túmulo da família Machado, 2 bandeirantes para o Museu do Ipiranga e o bandeirante Anhanguera, no Parque Trianon) que reutilizou algumas formas de um monumento que ele realiza em 1916, na “Plaza de los Congresos”, Buenos Aires, em comemoração ao 1º Centenário da Independência Argentina.

Entre os engenheiros e arquitetos brasileiros que se empenharam na urbanização de São Paulo podemos destacar Otaviano Pereira Mendes, Francisco Paula Ramos de Azevedo e o Uruguaio radicado no Brasil Joaquim Eugênio de Lima. A Escola Politécnica, cujos cursos foram organizados pelo próprio Ramos de Azevedo (diplomado na Bélgica em 1878) em 1894, formou grande parte dos arquitetos e urbanistas que se dedicaram à tarefa da remodelação da cidade e seus edifícios.

 

Os italianos, desde o início, ocuparam lugar de destaque neste cenário, até porque de 1876, ano apontado como o estopim da grande imigração, até 1920, às vésperas do Centenário da Independência, emigraram para o Brasil 1.243.633 italianos[6]. Destes, 965.000 vieram fixar-se no Estado de São Paulo[7].

 

Antes mesmo da grande imigração já haviam se deslocado para cá renomados artistas e arquitetos: Tommaso Gaudêncio Bezzi (Turim, 1844 – Rio de Janeiro, 1915), que era amigo pessoal de D. Pedro II, e foi o autor do projeto do Museu da Independência (RJ) e do Museu Paulista (Ipiranga, SP), Luigi Pucci (Grassina, 1853), também arquiteto, o engenheiro Bianchi Betoldi, o engenheiro Bertolotti, Cláudio Rossi, o escultor Adolfo Borioni (que foi colaborador de Ramos de Azevedo e que iniciou em 1896, juntamente com Domiziano Rossi, suas aulas no Liceu de Artes e Ofícios, onde ensinava escultura e modelagem).

 

Convém notarmos que a influência italiana não se restringiu à cidade de São Paulo e nem tampouco teve início ao final do século XIX. Houve vários casos isolados de artistas italianos que trabalharam no Brasil, ainda no período colonial, destacando-se Antonio José Landi (Bolonha, 1708 – Belém 1790) que projetou o teatro de Belém do Pará. Numa época em que o barroco ainda estava pleno de vitalidade e produzia os seus frutos mais vertiginosos na região de Minas Gerais, Landi projetou o Teatro da Paz num estilo que Robert Smith denominou de "neopaladianismo" em pleno século XVIII.

 

 

Para tentar amenizar a saudade da Itália e readquirir a identidade cultural perdida,  e também para, através desta, afirmar-se frente à burguesia local, o imigrante enriquecido tenta reproduzir em terras paulistanas um pouco da Itália. Vale lembrar que, nesta época, o modo de viver, a habitação e a vestimenta eram ainda os principais índices exteriores, ou seja, os indicadores de uma dada posição dentro da sociedade. Viver numa casa suntuosa, onde existe um piano, usar roupas de fino corte e de bom caimento, são ainda as maneiras mais simples e imediatas de identificar-se com a burguesia, atraindo o respeito da mesma.

 

Vindos de Sorocaba, Francisco Matarazzo e sua família, confortavelmente instalados na Avenida Paulista, foram prontamente recebidos pela alta sociedade de São Paulo. Como sabemos, os "barões do café", seus vizinhos, eram então já uma classe aburguesada. Para este segmento da sociedade, uma gorda conta bancária confere, até hoje, mais respeitabilidade do que a tradição.

 

Como testemunho fornecido pela literatura da época, lembramo-nos de A sociedade, um dos melhores escritos de Antonio de Alcântara Machado[8] onde a filha de um "quatrocentão" falido acaba por casar-se com o filho de um industrial "carcamano", novo rico e ex-feirante. Percebemos, através da leitura deste conto, que o capital estrangeiro, não importando a procedência ou o meio de acumulação, era sempre muito bem vindo.

 

Havia então, generalizada entre a elite tradicional e a emergente, uma grande ânsia de importação cultural, no bojo da qual, além de Gaudenzio Bezzi e dos outros já anteriormente citados, foram trazidos Domiziano Rossi, Giulio Micheli (1862-1919), Giuseppe Chiappori (1874-) Giovanni Battista Bianchi (1885-1942), escultores como Amedeo Zani, pintores como Enrico Vio e Alfredo Norfini, os quais possuiam no Liceu o próprio atelier, organizando ali, muitas vezes, exposições pessoais. Domiziano Rossi foi um grande colaborador de Ramos de Azevedo, que lecionou desenho na Escola Politécnica e também, de 1896 a 1920, Desenho Geométrico e Ornato no Liceu de Artes e Ofícios; tornou-se mais tarde inspetor do curso de artes na mesma instituição.

 

Nicola Rollo, o favorito da opinião pública e terceiro colocado no Concurso para o Monumento Comemorativo ao Primeiro Centenário da Independência do Brasil, acabou sendo professor de Escultura do Liceu de Artes e Ofícios, além de ter decorado o Palácio das Indústrias (década de 1920). Realizou 3 bandeirantes em bronze para o Museu Paulista, obras avulsas e vários túmulos, como o da família Trevisioli, no Cemitério da Consolação, que narra a lenda de Orfeu e Eurídice.

 

Próxima à capital, e com população predominantemente italiana, a cidade de Jundiaí traz, mediante recomendação expressa da Santa Sé, o pintor Arnaldo Mecozzi (Frascati, 1876 – Santos, 1932) para decorar sua catedral. O edifício havia transitado, mediante projeto de Ramos de Azevedo, do estilo barroco para o gótico em 1886, e foi brilhantemente decorado por Mecozzi entre os anos de 1921 e 1925.

 

Na cidade de São Paulo Mecozzi realizara as pinturas dos dois altares laterais da Igreja da Consolação, Fuga para o Egito (tema retomado depois em Jundiaí), São José e o Menino e a Morte de São José, em 1918. Entre 1929 e 1934 realizou a decoração do Santuário do Imaculado Coração de Maria, em Higienópolis.

 

Convém não omitir que, além dos renomados representantes da "grande arte" , floresceu todo um exército de pequenos artistas e construtores, muitos dos quais haviam tido uma formação teórica precária, compensada em parte por uma larga prática. Os pequenos construtores, dentre os quais destacaram-se Marzo, Milanese, Saltini, "Martini e Masini", Domenico Citti e os dois irmãos Calcagno , os primeiros a usarem em sua placa a expressão "engenheiros-arquitetos"[9].

 

Alguns acabavam adquirindo certa notoriedade, como Saltini, ou formando autêntico escritório de arquitetura, como os Calcagno. Na sua grande maioria, porém, estes pequenos construtores atendiam uma clientela que não era exatamente aquela dos grandes escritórios de engenharia. Acabavam se engajando na construção de casas populares, quando acabaram por formar a feição dos bairros mais tipicamente operários e imigrantes de São Paulo.

NOTAS:


[1] TOLEDO, Benedito Lima de, 1934- São Paulo: três cidades em um século / Benedito Lima de Toledo. 2ª ed. aum. São Paulo; Ed. Duas Cidades, 1983 – citação da p. 67.

[2] Texto disponível em: http://www.campinas.sp.gov.br/seplan/eventos/camp230/camp2303semipal1.htm

[3] CAPPELLANO, Luiz Carlos – Nos dédalos da memória, ao encontro de dois enigmas. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/2867/3/nos-dedalos-da-memoria/pagina3.html

[4]  SALMONI, Anita & DEBENEDETTI, Emma – Arquitetura italiana em São Paulo. 1ª edição. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1981

[5] TOLEDO, op. cit., pp. 99-105

[6]  Comissariato Generale dell'emigrazione. Annuario statistico dell'emigrazione italiana dal 1876 al 1925. Roma, Ed. C.G.E., 1926, p. 152.

[7]  ALVIM, Zuleika M. F. – Brava Gente! . Ed. Brasiliense S.A.. São Paulo, 1986, p. 124.

[8] MACHADO, Antonio de Alcântara, Novelas paulistanas (Brás, Bexiga e Barra Funda), Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1979, 6ª edição. 

[9].  SALMONI & DEBENEDETTI – (op. cit.)