Crônicas do Cortiço

Inicialmente explicarei ao leitor que chamo de “Cortiço” a um condomínio da COHAB (habitação popular de Campinas), então bastante deteriorado e depreciado, onde vivi de 1989 a 2002.

Aluguei sem ver! Sim, por incrível que possa parecer eu aluguei o primeiro “apartamento” (uma unidade mal-acabada, ainda no contra piso e caiada, sem nenhuma melhoria, após mais de 20 anos de construção), o L-32, sem sequer ir vê-lo, porque a imobiliária aceitou o “seguro fiança” fornecido pela UNICAMP (onde eu ainda estava matriculado) e pelo aluguel ser o mais acessível que eu encontrei.

Eu tinha urgência em me mudar para dar uma resposta à altura ao meu pai, que havia me desafiado (“Você não é sequer capaz de alugar um apartamento em Campinas!”) e para ir viver com o “problema de cabeça”, com quem me relacionei de 1988 a 1999.

Sobre o “problema de cabeça”, como ele passou para a minha história de vida, justifico que o apelido se deve a uma frase que ele sempre repetia; “Você precisa ter paciência comigo, porque eu tenho problema de cabeça!” O “problema de cabeça” era a “desculpa universal”: desculpa para ele ter parado de estudar na sexta série, desculpa para nem sequer tentar ler o que quer que fosse, desculpa para não entender nada, absolutamente nada que eu tentava ensinar (em quase 11 anos de relacionamento não consegui sequer ensinar qual a diferença entre cidade, estado e país, de maneira que ele hierarquizava Campinas, Itália e Europa como se fossem intercambiáveis!), desculpa por nunca ter feito qualquer curso profissionalizante, desculpa por chorar tanto e tão copiosamente qualquer que fosse o problema!

Ele era tão limitado que meu pai o havia apelidado de “borboleta louca” e afirmava que ele “não é má pessoa, mas não serve para você” ... Outros o chamavam de “pica-pau”, devido à mistura de vermelho intenso com acaju púrpura que ele usava nos cabelos!

E por que eu fiquei com a “borboleta louca”? O “pica-pau”? O “problema de cabeça”?

A resposta é bem complexa e se inicia anos antes com o meu primeiro namorado, uma paixão fulminante e arrebatadora que me tornou o ser humano mais chato, possessivo e ciumento que já houve na face do planeta! Tornei a vida do pobre coitado um inferno!

Desnecessário dizer que ele não apenas me largou, mas até “fugiu” de São Paulo, voltando para Campo Grande, para tentar ficar livre de mim!

Certa noite, 14 de agosto de 1988, bateu o desespero e eu falei para as minhas irmãs que eu iria à boate em Campinas e ficaria “com a primeira porcaria que olhasse para mim”. A palavra tem poder. Dito e feito! Já na “Bub’s”, na Rua José Paulino, tocava “Ilaiê” da Xuxa e a “borboleta louca” dava voltas e voltas em frente a um espelho, enquanto praticamente me comia com os olhos...

A sequência, levando em conta o que eu havia dito às minhas irmãs, foi bastante previsível, ainda mais se levarmos em conta que embora ele fosse insuportável, era de uma excelente família, que acabou se tornando minha família secundária aqui em Campinas.

E afinal, em percebendo o equívoco, por que eu não o deixei? Por que não larguei dele? Para não dar razão ao meu pai! Enquanto ele foi vivo eu quis demonstrar que ele estava errado e que eu não apenas era capaz de alugar um apartamento em Campinas, como também era capaz de viver aqui, fixar-me e fazer carreira, sem conhecimentos e nem apadrinhamentos, que eu era adulto!

Depois que meu pai morreu, permaneci na relação (já flexibilizada pelos parâmetros de um “relacionamento aberto” ou “casamento moderno” porque, do contrário, a vida com esta completa toupeira teria sido insuportável!) enquanto minha avó foi viva, porque se afeiçoara a ele, como se afeiçoa a um gatinho ou cachorrinho, sendo que pouco depois que ela partiu senti-me finalmente livre e me emancipei!

O interessante é que o pivô da emancipação foi um rapaz de 19 anos que ele atraiu primeiro, como havia feito outras inúmeras vezes, com vários rapazes da vizinhança, mediante a promessa dos cortes de cabelo gratuitos (em 1990 eu paguei tanto um curso de cabelereiro quanto o respectivo diploma!), e que acabou se apaixonando por mim.

Digo que ele se apaixonou porque me provou isso.

Eu estava substituindo direção de escola no Jardim Florence e, por convicções morais, desejava desesperadamente encerrar o romance com este garoto, razão pela qual fugia dele.

Certo dia, indo para a escola, notei o congestionamento que se formara logo à frente do meu carro e o “buzinaço”. Saí do carro e qual não foi a minha surpresa quando vejo que o motivo do congestionamento era a moto do rapaz, atravessada bem no meio da J. B. Dunlop. Ele veio em minha direção e se ajoelhou aos meus pés... Parece filme, mas foi exatamente assim que de fato aconteceu, em fevereiro de 1999...

A cena final, o clímax da “emancipação”, foi digna de nota: a “borboleta louca” chorando, como sempre, disse pela duodécima milionésima vez a sua “frase padrão” (“Você precisa ter paciência comigo, porque eu tenho problema de cabeça!”) e eu, já com a paciência na lua, arranquei um dos braços de madeira do sofá e disse: “Vem aqui que eu curo o seu problema de cabeça, agora mesmo!”

O relacionamento com um rapaz tão mais novo não durou nem um ano, como era previsível, mas serviu para me dar a alforria em relação ao “problema de cabeça” e me impulsionar para fora do “cortiço”.

Voltando aos anos em que ali estive, vou tentar organizar os fatos peculiares que ali eu vivi e as pessoas ímpares que conheci!

No apartamento 14 havia um jovem casal e uma porção de filhas, uma “escadinha” formada sequencialmente por 4 ou 5 meninas. Acredito que eles desejavam ter um filho e, como ele não vinha, continuaram tentando...

A esposa passava “pomposa” e sem cumprimentar ninguém, com as filhas, em fila indiana, da maior para a menor, andando atrás dela. O marido, um lindo loiro de olhos claros, cumprimentava sempre com o olhar baixo. Eu e o “problema de cabeça” os julgávamos “homofóbicos”, décadas antes desta palavra entrar em uso!

Bem, na época em que eu estava já separado do “problema de cabeça”, começaram a rondar o apartamento do casal. Eram carros elegantes, não velhos como os dos moradores do “cortiço”, com homens ricos e visivelmente gays no seu interior...Eles buzinavam algumas vezes e outras vezes até gritavam o nome do rapaz.

O tempo passou, ele ficou muito doente e morreu no Hospital.

A vizinha do apartamento 13 - que na mocidade havia sido empregada doméstica em casa de famílias ricas, e por isso adotara os modos e os cacoetes das patroas grã-finas – disse, em tom baixo e pausado a doença da qual ela achava que o rapaz havia falecido, e que provavelmente a esposa também estaria infectada.

Rapidamente o apartamento foi vendido e ninguém mais viu a esposa e nem a coleção de meninas.

Anos e anos depois, já morando fora do cortiço, qual não foi minha surpresa ao encontrar a esposa, totalmente transformada, trabalhando em uma loja dentro do hipermercado Enxuto. Ela não apenas tornara-se humilde, como também simpática e sorridente!

O apartamento 12 sempre esteve alugado e inclusive, certa época, uma família de “malacos” fizera um “gato” e usava minha linha telefônica!

Neste apartamento o mais engraçado foi a briga de um casal formado por uma paranaense loira de olhos azuis, professora de Educação Física, e o marido negro, de família ali do bairro mesmo.

A paranaense puxou a faca para o marido, esgotou todo o repertório de xingamentos racistas que se conhece (o prédio todo ouviu) e depois jogou o próprio filho, então com uns 3 anos, pela janela do banheiro. Saiu “queimando o chão” e cantando pneus e nunca mais voltou!

O apartamento 11 pertencia a um pai de santo bissexual, casado com uma argentina e que tinha uma mãe evangélica. Permaneceu a maior parte do tempo alugado.

No apartamento 24, para o qual eu acabei me mudando em 1997, morou uma família do norte de Minas Gerais. O maridão era lindo de doer, mas não eram muito asseados, tanto que certa vez uma varejeira colocou um ovo na testa do bebezinho e foi a vizinha do 22 quem teve de tirar a larva, usando um pedaço de bacon.

O apartamento 23 e o 21 estiveram quase sempre alugados ou desocupados. Não tenho lembranças relevantes sobre eles.

No apartamento 22 morou uma mineira que tinha os seios caídos na linha da cintura, sua mãe, a “avozinha” e seu filho, que foi meu aluno particular. Com o tempo eu acabei descobrindo que era desejo da mãe que eu ensinasse muito mais do que os conteúdos escolares (uma espécie de versão do “Amar Verbo Intransitivo”, do Mário de Andrade) razão pela qual nos desentendemos.

Logo que estes mineiros se mudaram veio para o 22 uma senhora que tinha uma porção de filhos, um mais bonito que o outro, que sempre a visitavam. Tornamo-nos grandes amigos e ela acompanhou minha vida muitos anos.

No 31 só morou “gente boa”, se me entendem...

Primeiro a família do “baianinho”, que roubou do meu apartamento o relógio do meu falecido sogro, na semana seguinte ao enterro, o que colocou o “problema de cabeça” aos prantos, como de costume, me obrigando a “enquadrar” o moleque.

Depois a família de uma “doidona” que colocava a própria dentadura de molho em um copo com cloro bem em frente da minha porta, para “ficar branquinha”, como ela dizia. Perguntada por que ela fazia isso, ela respondia: “para pensarem que é sua, seu bobo!”

As duas filhas eram “tristes”, bastando contar que no mesmo dia em que se mudaram havia 3 ou 4 carros buzinando lá embaixo e a filha mais velha saiu na janela, com uma toalha em volta dos cabelos e disse: “hoje não atendo, estamos mudando!”

No 32 eu morei com o “problema de cabeça” de 1989 a 1997.

No 33 morava uma enfermeira que era a “segunda esposa” de um senhor que tinha a família principal na Vila Teixeira.

No 34 uma vizinha enfermeira aposentada que foi a primeira a se interessar por nós, emprestar telefone e até fornecer gelo (pois não tínhamos geladeira).

Vivia com seu segundo marido e tinha vários filhos e filhas do primeiro casamento, que sempre a visitavam. Boa mulher. Mesmo décadas depois de separados, o primeiro marido morreu nos seus braços.

Ela teve um fim muito triste. Após um AVC tornou-se tetraplégica e acabou sendo “cuidada” por um filho drogadito.

O engraçado era que nos dias em que fazíamos compras as vizinhas do 22 e do 34 disputavam a nossa atenção. Se metiam ambas dentro do nosso apartamento e ficavam andando com sacos de arroz e de açúcar, pois cada uma delas dizia que estariam melhor guardados em locais diferentes!

Disputavam a nossa atenção diariamente e cada uma delas se gabava de ser melhor cozinheira do que a outra. Bom para nós pois sempre havia um pratinho ou uma travessa com algo delicioso que havia sido preparado por uma das duas!

Não me lembro absolutamente nada sobre o apartamento 41, mas em contrapartida, no 42, bem sobre as nossas cabeças, vivia uma acumuladora maluca, de português castiço e modos de madame. Ela retirara a janela da sala, depositara um monte de entulho e terra e ali plantava batatas, ajuntava talhas, filtros, móveis e objetos velhos...

Certa vez era já tarde da noite e ela bateu na minha porta:

- “Luiz, tenho visitas. Como não tenho condições de recebe-las na minha casa, recebê-las-ei aqui!”

De fato, qual não foi minha surpresa quando não apenas entraram, mas também foram se sentando várias pessoas. O “problema de cabeça” já estava até deitado.

Pouco tempo depois ela pediu:

- “Luiz, por favor...Você não vai fazer nem um café para eu oferecer às minhas visitas?”

Ela era tão abusada que acabamos brigando. A vingança dela não demorou: abriu todas as torneiras da casa e deixou encher. Meu apartamento foi praticamente inundado (graças às inúmeras frestas que havia na laje) por água suja.

O que ela não sabia é que, finalmente, após 5 anos pagando as prestações, meu telefone havia sido ligado naquele dia e minha primeira ligação foi exatamente para a polícia!

Ela não deixou a polícia entrar, alegando que eles não tinham mandato, mas ficou tão envergonhada que se mudou.

No apartamento 33 morava outra enfermeira aposentada, que foi quem diagnosticou a hipertensão do “problema de cabeça”...

Certa vez, voltando de uma festinha de família em Jundiaí, ele começou a passar mal e ter “estremelique”. Não tínhamos telefone e nem plano de saúde ainda.

Pela reação achei que a pressão dele estava baixa.

Dei sal, azeitonas e um gole de vinho...O “estremelique” piorou e ele não parava de tremer...

Subi no 33, pois sabia que a vizinha tinha aparelho de medir pressão e ela prontamente verificou que eu quase o matara, pois a pressão estava altíssima! Ela mesma deu propranolol e no dia seguinte ele foi ao posto de saúde.

No apartamento 44 morava uma família “normal”, coisa rara!

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