A História do “nosso” casarão

Trata-se de um antigo Casarão, com mais de 600 m² de construção, que existia no centro de Jundiaí-SP, na Av. Dr. Cavalcanti nº 1008.


O terreno era muito grande e se estendia quase de uma rua a outra, sendo que faltavam apenas uns 20 ou, no máximo 30 metros (onde havia uma pequena construção), para chegar à Rua Prudente de Moraes.

Crédito da imagem: Google Earth (acesso 04/03/2024, 09h49) com anotações do autor  

O imóvel foi comprado, relativamente barato e “de porteira fechada” (com todos os móveis e objetos), por meus pais em 1974. Havia sido reformado em 1953 pelo antigo proprietário, Sr. Antonio Jayme Elias, nascido em 1900, em Cajuru-SP, e falecido em São Paulo, em 1984. Não se sabia a idade exata da propriedade e nem a quem pertenceu originalmente.


A venda estava sendo difícil, já que não apareciam interessados. Embora fosse bastante apegado à propriedade, basicamente eram dois os motivos que levaram o Sr. Jayme a desejar se desfazer da casa. 


Em primeiro lugar, uma de suas filhas havia sido acusada de assassinar o marido, logo após o casamento em Jundiaí e lua-de-mel na Argentina, em agosto de 1946. Grávida, ela foi presa (após o delegado encarregado do caso decidir que ela era culpada), dando à luz a uma menina na cadeia. Defendida pela eminente criminalista Esther de Figueiredo Ferraz (1915-2008), que viria a ser Ministra da Educação no governo do general João Batista de Figueiredo (1918-1999, governo de 1979 a 1985), acabou sendo absolvida e libertada apenas em 1948.


A verdadeira epopéia causou comoção em nível nacional, tendo sido amplamente coberta pela imprensa, especialmente os periódicos A Noite, DIário da Noite (tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro)  e Jornal de Notícias. Foram inclusive vinculadas várias fotografias, que eu não irei encartar aqui porque, em consulta a um destes veículos de imprensa, fui informado via e-mail que há o custo de R$ 80,00 (oitenta reais) para a liberação dos direitos autorais em relação a cada imagem (fotografia) ou cada página reproduzida/exibida. Há também toda uma série de formalidades burocráticas, razão pela qual apenas divulguei algumas das reportagens e fotografias aos meus irmãos, em particular, no privado, sem dar publicidade.


Havia inclusive, em uma das matérias, uma fotografia das duas filhas do Sr. Jayme, no interior da “nossa” casa, com um conhecido quadro do Sagrado Coração de Jesus ao fundo, e uma entrevista que ele mesmo havia concedido, em que alegava a inocência da filha.


Aqueles que desejarem ter acesso a este legítimo "drama da vida real", noticiado em detalhes pela imprensa da época, basta acessarem os periódicos listados na Bibliografia, através da Plataforma da Hemeroteca Digital Brasileira (https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ ).


Em segundo lugar, a amada esposa do Sr. Jayme, D. Josephina Rosa Paschoal Elias (Cajuru, 1900 - Jundiaí, 1973), mulher virtuosa, conhecida em Jundiaí apenas por “D. Rosa”, ali sofreu um terrível acidente. Muito zelosa em relação à casa, ela estava colocando uma das cortinas quando caiu da escada. Ao bater as costas em uma peça de mobília, quebrou a espinha. O acidente a deixou paraplégica, tendo ficado presa a uma cadeira de rodas pelo resto da vida. Ela faleceu enquanto estava vivendo nesta mesma casa, em 1973, um ano antes de meus pais, Ignez e Walter Cappellano, a comprarem.


A casa era muito grande, muito velha e, portanto,  de difícil cuidado, o que explica o Sr. Jayme, já idoso, ter se mudado para São Paulo, indo viver com uma das filhas, no final da vida, após a morte da esposa.


Como eu disse antes, a venda da casa foi difícil e acabou acontecendo apenas por intermediação de minha avó, Gilda Sciamarelli, velha conhecida e quase da mesma idade do Sr. Jayme.


Para entender a história da casa, precisamos percorrer a história do urbanismo em Jundiaí no século XIX e início do século XX.


Em 1867, época em que existia um Cemitério no antigo Largo São José, hoje Praça Domingos Anastácio, este local era "zona rural". Nesta época, o centro da cidade ainda era bem pequeno.

Crédito da imagem: Google Earth (acesso 24/02/2024, 20h00) com anotações do autor 

Lembrando que na geração da “nona” Ignez Taddei Picchi, que nasceu em 1909, a Rua XV de novembro, onde estava a chácara de seu pai, bisnono Pedro Taddei, ainda era zona rural!


Havia um núcleo central, em forma de L, um outro núcleo ao redor da estação da Vila Arens, o "núcleo colonial" (hoje bairro da colônia), bairro mais antigo de Jundiaí, que era zona rural,  e distritos afastados.



O bairro Ponte São João, originalmente ligado ao núcleo central por uma ponte de madeira, só surgiu no final do século XIX, quase na virada para o século XX.


Nossa primeira hipótese de trabalho é que, pela idade da casa (na sua conformação original, bem anterior ao período em que pertenceu ao Sr. Jayme) se tratava de um imóvel rural, sede de um sítio ou de uma chácara, datada do último quartel do século XIX.


Esta hipótese de trabalho se baseia no fato de que, mesmo na época em que meus pais compraram a casa (1974) ainda havia um terreiro de tijolos, para secar café, estendido à esquerda do terreno, nos fundos, e uma senzala, à qual não faltava nem mesmo porta com grades ou correntes, embaixo da mesma.


Já na época dos meus pais, o terreiro de café foi desmanchado e os tijolos usados para pavimentar metade do quintal, de um lado a outro do terreno, deixando a outra metade sem pavimentação. Lembrando que, como afirmado antes, o terreno se estendia quase de uma rua à outra, logo, o quintal devia ter uns 50 metros de comprimento por 10 de largura, sendo que 25 metros aproximadamente foram pavimentados com os tijolos do antigo terreiro.


Quanto às correntes e demais apetrechos, utilizados na era imperial para contenção dos escravizados, tão logo a casa foi comprada, meu pai se encarregou de lhes dar um fim. Sendo instrumentos de metal, suponho que ele os vendeu em algum ferro velho, o que era bastante comum na ocasião.



Crédito das imagens: fotografias do autor



Quando meu pai ainda era vivo, ele tinha uma planta da reforma de 1953 em seus arquivos, que o Sr. Jayme havia lhe passado. O documento fazia alusões vagas também à primeira reforma, com elementos como a "fachada original". Então, pela figura que lá havia, tenho certeza absoluta como era a metade direita da fachada: 3 degraus que levavam a uma pequena área (varanda), que afundava menos de 2 metros na fachada, com 2 colunas na frente, porta com postigos ao fundo, e 2 janelas. 

Crédito da imagem: desenho do autor (usando paint) 

A porta de entrada original era exatamente aquela que depois foi deslocada para a cozinha. Em relação às janelas, sobraram 2 janelas originais: no quarto que era meu e do meu irmão Luiz Henrique, e outra no canto da sala de estar. Noto que as vidraças haviam sido substituídas por "guilhotinas" (as vidraças originais, bandeiras e 2 folhas com dobradiças, ainda estavam no porão quando vivíamos ali). 


Claro que a sala de visitas (que era de tacos, ao contrário das outras, que eram de assoalho) só apareceu em 1953, então, aquela parede da esquerda (que aqui aparece com 3 janelas, opção possível) era 4 metros mais para trás do que nós conhecemos. 


Em compensação, onde nós conhecemos como sendo a garagem, era outra sala, ou mesmo um quarto, de assoalho com porão embaixo. Isto é certeza porque uma vez apareceu um buraco na parede do quarto de estudos (primeiro cômodo do subsolo, bem ao lado da escada) e, ao iluminarmos e observarmos lá dentro, vimos que o porão continuava por baixo da garagem. 



Crédito da imagem: fotografia do autor 

Coloquei 3 janelas naquela parede da esquerda porque fachadas antigas eram sempre simétricas: 3 aberturas na parte da direita (porta e 2 janelas) deviam corresponder a 3 aberturas na parte da esquerda. 


A divisão era exatamente na metade do terreno, logo, as duas metades da fachada tinham exatamente o mesmo tamanho, tanto antes quanto depois da reforma. Telhado mantendo exatamente o mesmo formato, apenas que depois da reforma ele perdeu o beiral e foi escondido por platibanda/ático.



Crédito da imagem: desenho do autor (usando paint) 

Entre a provável concepção original, do final do século XIX (esquerda) e a última, de 1953, que nós conhecemos (direita), houve uma intermediária, na qual viveu a família do Sr. Antonio Jayme Elias, concebida num estilo muito utilizado no Brasil nas décadas de 1920 e 1930, chamado "bangalô urbano". Este estilo contemplava construções desde as mais simples até relativamente suntuosas. Há vários exemplos ainda remanescentes de casas com características deste estilo na mesma rua, a Av. Dr. Cavalcanti e sua continuação, a Rua Marechal Deodoro da Fonseca.

Fonte das imagens: Google Earth, acesso 01/03/2024, 10h44.

Baseando-nos nos exemplares de bangalô ainda existentes, na planta e nas duas outras formatações (original e de 1953) podemos tentar elaborar um esboço de como seria a concepção intermediária, que existiu apenas por 20 ou, no máximo, 30 anos. Nesta segunda formatação, da segunda ou terceira década do século XX, a antiga senzala teria sido convertida numa garagem, ganhando uma rampa de acesso (da qual conhecemos parte, no final do antigo porão). Foi na área anteriormente ocupada por esta rampa que foi construída, na reforma de 1953, uma laje sobre a qual foram colocados tacos, formando a sala de visitas, com porta de correr de ferro e envidraçada, que conhecemos.

Como pode ser demonstrado/observado através da planta comentada, foi apenas com a reforma de 1953 que a metade esquerda da fachada avançou 4 metros, devido à criação da nova Sala de Visitas, com piso de tacos sobre laje, construído sobre a antiga rampa de acesso à garagem. A necessidade de ter de adequar o telhado à nova conformação, prolongando-o por 4 metros, talvez explique os eternos problemas de goteiras, ou seja, infiltração de água da chuva, que meu pai jamais conseguiu resolver.

Crédito da imagem: desenho do autor (usando paint) 

Crédito da imagem: desenho do autor (usando paint) 

Como já foi afirmado aqui algumas vezes, a casa era muito grande e muito velha, de conservação excessivamente onerosa para as nossas posses. Quando começou a entrar em colapso (trincas/rachaduras estruturais comprometendo a estrutura, parte hidráulica e elétrica caótica, etc) nossa única opção foi aceitar permutá-la com os proprietários da “Escola Duque de Caxias”, o que aconteceu em 1997.


Aproximadamente em 1999 a casa foi demolida e seu terreno foi aproveitado pela Escola.



Fonte da imagem: Google Earth, acesso 27/02/2024, 17h23. 

Vídeo sobre nosso casarão: https://www.youtube.com/watch?v=98WILTTBfE8 

BIBLIOGRAFIA:

CALHEIROS, Rogério Fernandes. O MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE JUNDIAÍ E O CULTO E DEVOÇÃO À SANT’ANA NA VILA FORMOSA DE NOSSA SENHORA DO DESTERRO (1668-1764)   -  Dissertação de Mestrado apresentada à Pontifícia Universidade Católica de Campinas. https://repositorio.sis.puc-campinas.edu.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/16542/cchsa_ppgcr_me_Rogerio_FC.pdf?sequence=1&isAllowed=y&fbclid=IwAR3QUKt-MKe2k681FNtZxVompxoRAgvWAMMOwZJULKq0NdUrLAYQHWB-Y4Q, acesso 17/02/2024, 12h15.

Family Searchh - https://www.familysearch.org/pt/ , acesso 27/02/2024, 17h38.

 RODRIGUES, Letícia. Jundiaí 364 anos: a verdadeira história da nossa cidade - in Tribuna de Jundiaí - https://www.google.com/url?q=https%3A%2F%2Ftribunadejundiai.com.br%2Fcidades%2Fjundiai%2Fjundiai-364-anos-a-verdadeira-historia-da-nossa-cidade%2F&sa=D, acesso em 26/02/2024, 19h22.

SANTOS, Karla Di Giacomo Dias dos & GHIRARDELLO, Nilson. UM HABITAR “MODERNO” PARA AS CIDADES INTERIORANAS DO BRASIL: O BANGALÔ . https://www.anparq.org.br/dvd-enanparq-4/SESSAO%2017/S17-04-SANTOS,%20K;%20GHIRARDELLO,%20N.pdf acesso em 01/03/2024, 10h50.

PERIÓDICOS (MÍDIA IMPRESSA) - acessados através da Plataforma da Hemeroteca Digital Brasileira (https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ ):

A noite - Rio de Janeiro, segunda-feira, 5 de agosto de 1946, p. 11

Diário da noite, Rio de Janeiro, 26 de junho de 1948, p. 5

Jornal de Notícias - Sexta-feira, 3 de janeiro de 1947, p. 1