Crônicas do Serviço Público

Pout-pourri de imagens que mostram momentos representativos dos meus mais de 30 anos de atuação no Serviço Público Municipal de Campinas.

Aqui o leitor encontra as "Crônicas do serviço público", escritas a partir de fatos verídicos, reunidos ao longo de minha carreira na Prefeitura Municipal de Campinas, numa linguagem literária e sem citar nomes. Devemos lembrar que estas crônicas são obras literárias e, em assim sendo, é evidente que se destinam ao entretenimento, ressaltando sempre o pitoresco e o anedótico. Não se pretende fazer denúncias e nem constranger quem quer que seja, tanto que, pelo menos uma crônica foi sugerida pela "homenageada" (Mãe Beverly). Embora eu sempre afirme que "perco o amigo mas não perco a piada", espero que ninguém que chegue a se auto identificar nestas crônicas fique magoado!

Crônica geriátrica:

A velha se equilibra sobre seus saltos altos... Já não são mais os saltos “ponta de agulha” de sua juventude – que de tão longe no tempo e no espaço já se tornou lenda – mas ainda são altos.

As costas estão arqueadas, mas a crista continua erguida, no esforço vão de se fazer reconhecer enquanto membro de uma elite há muito falida, com valores já esquecidos ou ultrapassados... Ela exige silêncio, quer que se fale baixo e pausado, come pouco ... Ela anda devagar, põe e tira os óculos o tempo todo ...

A velha é a própria imagem do comedimento, da repressão, da não-emoção. Ela é espartana nos seus hábitos e exigente em relação aos que a cercam, é taciturna, severa, arrogante...

Dizem que a velha tem marido, mas ao mesmo tempo “desdizem”, pois semelhante mal humor, constante e contínuo, só pode ser fruto de uma libido há muito irrealizada, castrada, domesticada.

Eu sei que a velha tem um filho, que ficou velho e careca antes do tempo, talvez por ser filho da velha. É como dizia uma amiga, “um pé de jabuticaba não pode produzir melancias; o fruto nunca cai muito longe da árvore que o gerou”...

A velha continua a se equilibrar sobre seus altos saltos, e a andar titubeante nos seus passinhos curtos, o seu andar lento e pausado. É um andar antigo, moroso, que já não combina mais com a rapidez e agilidade da nossa época.

A velha está alheia ao próprio tempo e à própria velhice. Ela é a própria imagem de uma época, onde o mundo antigo teima em se perpetuar, mesmo estando capenga, e as velhas idéias, conceitos e preconceitos cismam em permanecer, ainda que trôpegos sobre seus saltos.

Crônica CRÔNICA GERIÁTRICA ; in: COPPE (Coordenadoria de Programas e Projetos Especiais, Secretaria Municipal de Educação de Campinas-SP) Informativo COPPE EM MOVIMENTO , ano I, nº 1, 1º semestre de 2000, p. 5.

O apagar das luzes

Era final de dezembro, um dos últimos dias da gestão do velhinho, aquele que bebia...

A coordenadora do Departamento organizou uma reunião para a qual convidou também membros da equipe de transição. Fui, com minha coordenadora, para, na prática, entregarmos a coordenadoria a qual nós havíamos pertencido, ela por alguns anos e eu por alguns meses.

Logo ao chegarmos ao nono andar fiquei surpreso pelo clima reinante; algo apocalíptico, onde a “velha ordem”, elegante nas suas rendas, sedas, linhos e saltos altos, começava a conviver com a “nova ordem”, algo um pouco “hipponga”, arrastando seus chinelinhos de dedos e rodando suas saias indianas...O nono andar tornara-se, repentinamente, cosmopolita e democrático, ao menos no aspecto visual.

A “quase-ex-secretária” – que entrará para a história não como a melhor secretária da educação mas sim como a melhor doceira que já passou pelo nono andar , capaz de fazer um bolo imenso e confeitá-lo, caprichosamente, com folhas e borboletas de chocolate – havia tido, há pouco, uma discussão na imprensa com a “quase-secretária”. Ninguém lembra hoje o motivo. Certamente não era nada muito importante, porque também passou absolutamente despercebido na época, mas, não deixou de ser o “canto do cisne”, o último suspiro da “velha ordem” da secretaria municipal de educação.

Bem, voltemos à reunião...

Lá estávamos nós para, metaforicamente, entregarmos a nossa coordenadoria e, na sala de reuniões onde havia cadeiras da época dos barões do café, entalhadas, de espaldar alto e forradas de veludo verde, a coordenadora do Departamento disse: “estamos no apagar das luzes”...

Uma frase de efeito certamente e que teria tido um tom poético, algo melancólico, se ela não tivesse completado, logo à seguir: “...não sabemos se estamos deixando algo que será utilizado pelos que vem depois de nós, para uma iluminação maior, ou se só haverá trevas daqui por diante...”

Ela nunca mais ocupou nenhum cargo de confiança.

Eu sei que ela não desejava mesmo que isto acontecesse.

Ter estado em um cargo de chefia naqueles anos caóticos, na época do “velhinho que bebia”, era algo para heróis ou para alienados...Conheci pessoas, e não foram poucas, tanto da primeira quanto da segunda categoria apresentada...

O motorista de mamãe

Qualquer pessoa que conheça uma escola pública de Campinas – especialmente aquelas situadas na periferia da cidade – sabe como elas se constituem no mais autêntico e democrático espaço de circulação e de expressão das camadas populares. São meninos barrigudos e remelentos, que convivem com outros fortes, crianças altas, baixas, gordas, magras, de todas as cores e de todos os naipes... Gritam muito, correm, se agitam...

Décadas antes de sabermos o que eram “crianças hiperativas” já vivenciávamos, na prática, a ilustração deste conceito.

Os professores, direção e demais funcionários da escola, de tanto conviverem com as crianças e as comunidades – igualmente coloridas, agitadas e barulhentas – acabam incorporando o comportamento e os valores do meio no qual trabalham, de maneira que não é muito incomum vermos diretora falando palavrão, professora mascando chicletes, professor jogando bola com os alunos...Não digo isso em tom de crítica não, mas sim no sentido de demonstrar a construção do multiculturalismo, na prática cotidiana de cada Unidade Escolar, a construção diuturna da democracia.

Há algumas exceções à regra.

Uma certa aristocrata, de família mais que tradicional de nome pomposo e portentoso, não se sabe muito bem o porquê, decidiu fazer carreira na rede pública de Campinas.

Numa das escolas em que trabalhou se celebrizou pela tentativa vã de se parecer com os outros professores. Embora visivelmente ela fosse diferente, usava botinhas velhas – da marca Samelo, mas velhas – usava suas roupinhas de grife mais surradinhas e, desta maneira, pensava estar conseguindo algum grau de identificação com a comunidade com a qual ela trabalhava.

Certa feita, porém, toda esta tentativa de identificação naufragou fragorosamente.

A figura se submeteu a uma pequena reforma, na verdade uma cirurgia plástica, e retornou antes do tempo proposto para a escola.

Pensava ela certamente em não onerar os cofres públicos e, ao mesmo tempo, em não tornar público que ela de fato não precisava trabalhar.

Os colegas ficaram muito preocupados com o fato dela não poder dirigir ela mesma o seu carro.

Mais do que depressa, porém, ela explicou que eles não deveriam se preocupar, pois ela estava recorrendo ao “motorista de mamãe” .

Naquele dia, os colegas foram observa-la ir para casa e assistiram atônitos ao acontecimento único, algo ao mesmo tempo surreal e fora de contexto, o motorista vestido com paletó e gravata, no meio da rua de terra batida, a abrir e fechar a porta de trás do automóvel importado, pra dona pomposa entrar...

Crônica de refeitório

Esta aconteceu há tanto tempo que a EMEF ainda se chamava EMPG... Foi muito antes da época do velhinho que bebia, apesar que o prefeito daquela época, que ficou muito conhecido por ter mudado de partido no meio do mandato - dizem as más línguas - também era chegado na “manguassa”.

Bem, a diretora da escola, que hoje ocupa um cargo mais alto, era uma senhora muito fina e muito elegante. Usava sempre saltos altos, vestia-se com esmero, cabelo sempre arrumado, maquiagem...Falava “questã” ao invés de “questão” por julgar o som da primeira palavra mais delicado do que o da segunda e, desta maneira, priorizava sempre a estética em relação à fonética ou à gramática...

Todos os dias, às dezessete horas, pontualmente, ela realizava um pequeno ritual: abria sua bolsa, passava batom, escovava os cabelos e depois de ter guardado de volta o batom, o espelho de mão e a escova, andava pelo corredor central da escola até o fundo, fazendo barulho com seus tamancos de salto alto. Após ter feito o seu desfile particular, dizia á vice-diretora que ela estava com a responsabilidade em relação á escola dali por diante e, sem mais delongas, ia para casa.

Se o desfile particular era para se fazer presente – uma vez que todos, tanto alunos quanto professores, escutavam seus tamancos batendo no pavimento – ou para avisar que estava indo, jamais saberemos.

Certa feita a Sra. Diretora mandou reunir no refeitório todas as meninas que estavam, a seu ver, com a saia muito curta.

Começou por proferir uma espécie de palestra, sobre limites, e função da escola pública...Falou muito bem!

Fazendo um parêntesis, preciso contar que uma aluna ficou muito famosa na época porque, num teatrinho organizado para o sr. Prefeito, quando ele lá esteve para reinaugurar a escola, usou uma calcinha marrom escura. Nada de mais, não fosse o fato do teatrinho ser de orientação sexual e a menina ser negra... Em determinada cena, um suposto estuprador arrancou sua saia e...O prefeito ficou vermelho...Jurava que a menina, uma bela adolescente de uns 13 anos, estava nua!

Bem, voltando á “palestra” da diretora.

Após ter falado muito bem sobre limites e a função da escola pública, ela foi menos feliz ao falar sobre o comprimento da saia das meninas...

Naquele exato momento, uma menina, aquela mesma que o prefeito pensou que havia ficado nua em cena, falou em tom alto, e com autoridade:

- Sabe dona...Acho muito engraçado a senhora ficar falando sobre o comprimento da nossa saia...A senhora vem todo dia na escola com os peitos de fora!

A diretora enrubesceu (digo, sem pudor, que o prefeito ficou vermelho, mas ela, como é fina, diz-se que enrubesceu) e imediatamente as meninas voltaram para suas classes, sem maiores comentários.

A diretora continuou a ir decotada para a escola (com “os peitos de fora” como disse a aluna) e as alunas continuaram a ir de mini-saia, bem curtinha...

O poder dos tamanquinhos

Esta aconteceu comigo mesmo, na época do “velhinho que bebia”.

Aqueles eram tempos folclóricos, em que quase tudo era possível. A ordem natural das coisas havia sido momentaneamente subvertida, de maneira que professores saíam diretamente das salas de aula para a direção de escolas, ou para a orientação pedagógica...As pessoas não mais se referiam a si mesmas como fazendo parte da categoria profissional para a qual haviam ingressado, através de concurso público, pois, tal como na era barroca, a aparência tornara-se mais importante do que a essência e o “estar” tornara-se preponderante em relação ao “ser”.

Num destes felizes acasos do destino, acabei me tornando diretor de escola, sem nunca jamais sequer ter atuado como vice-diretor. Inscrevi-me para substituir vice-direção mas, havia uma escola especialmente grande e problemática, que ninguém queria assumir...Eu, um dos últimos colocados na lista de substituição de vice-diretores, acabei assumindo a direção desta escola!

Era uma escola enorme...Nunca me esquecerei de certas cifras, eram 1886 alunos, 52 classes...

Estávamos em reformas e 3 novas salas de aula estavam sendo construídas, dando a escola um aspecto um pouco “versaillesco”, em forma de U.

Havia uma oitava série que funciona, de forma provisória, no refeitório, sem lousa, o que obrigava os professores a ditarem, tanto conteúdos escolares quanto bilhetes aos pais e responsáveis.

Os alunos menos comprometidos, ou mais estressados, faziam então a censura prévia dos conteúdos, e se abstinham de copiar aquilo que julgavam desnecessário ou menos importante...

Eu havia realizado a eleição do Conselho de Escola e realizara também, de forma concomitante, a eleição da Associação de Amigos da Escola, numa grande assembléia onde – acreditava eu – haviam participado todos os interessados. Na reunião seguinte, estava eu dando posse aos eleitos quando a reunião foi subitamente interrompida pelo trote retumbante de tamanquinhos, ressoando pelo pavimento...

Fazendo um parêntesis, direi que este dia mudou minha vida. Pois o trabalho com o Conselho desta escola pautaria desde então minha atuação profissional...E o barulho de tamanquinhos sapateando pelo pavimento causaria em mim uma mistura de alívio e prontidão, e em minhas funcionárias algo como pânico ou estado de alerta!

Bem, voltando àquela tarde...Era uma tarde muito quente e a minha desidrose estava atacada (desidrose é uma espécie de hiper ressecamento alérgico da pele das mãos, que, na ocasião, chegavam a rachar), razão pela qual não é figura de linguagem dizer que a ata foi lavrada em meio ao meu sangue...

Ouvi o trotar dos tamanquinhos, o qual logo foi acompanhado de uma voz, audível a quilômetros de distância, e forte como um trovão...

Existia uma autoridade gutural naquela fala.

Aquela senhora questionou a eleição do conselho, pois, disse que não havia sido informada da data da assembléia. Ao que corroborou a fala do marido, que falou com tanta autoridade quanto ela, e me chamou de “ditador”...

De nada adiantou a colega de sala do filho do casal dizer que ele não havia copiado o bilhete, que tivera preguiça...De nada adiantou a professora da sala afirmar que ditara o bilhete...

O irado casal decidira transformar minha humilde primeira reunião de conselho, minha estréia, em palanque... Decidira também que existia mais semelhança entre a minha pessoa e Luís XVI, de desditosa memória, do que simplesmente o nome e, sendo assim, além de palanque, transformariam também a minha reunião em patíbulo!

Houve uma comoção geral e um constrangimento muito grande.

Entre a fala dos professores, funcionários e alguns alunos da escola, que queriam que eu mantivesse o resultado da eleição, e a fala do casal e de alguns pais que a julgavam impugnada, hesitei um segundo...

Foi então que olhei para a meia dúzia de pais que eu tentara há pouco empossar...

Pareciam crianças assustadas! Estavam visivelmente acuados e temerosos diante do casal, que falava com tanta autoridade.

Não haveria chance alguma de trabalhar com aquele conselho!

Tive uma inspiração divina e, eu mesmo, declarei que a primeira eleição estava impugnada. Convoquei uma nova assembléia para a semana seguinte e convidei a supervisão escolar a se fazer presente.

Nunca em minha vida tomei decisão tão acertada!

Aquele casal, que me tratara como Luís XVI ou Nicolau II e que tentara plantar o gérmen da minha decapitação metafórica, tornou-se desde então meu esteio, alicerce sólido sobre o qual construí toda a ação pedagógico-administrativa da gestão colegiada da escola naquele ano.

Este conselho foi atuante e participativo, parceiro e não rival da direção da escola. Ele avalizou muitas atitudes que foram necessárias num ano em que houve três greves e serviu de retaguarda aos profissionais.

Por várias vezes os tamanquinhos reverberaram, sonantes, pelo alpendre e escadarias da Prefeitura Municipal de Campinas. Igualmente se fizeram ouvir pelas avenidas centrais da cidade, por ocasião das nossas greves.

Por isso digo, que durante todo aquele ano, quando ouvi os tamanquinhos trotando vigorosamente no meu refeitório, me senti amparado. Sabia que era uma amiga que caminhava sobre eles.

Esta mesma amiga, dois anos depois, em parte devido ao nosso trabalho e atuação conjunta durante aquele ano no Conselho de Escola, ganhou assento na Câmara Municipal de Campinas.

Os tamanquinhos foram então substituídos por elegantes sapatos fechados de salto alto. Mas o discurso e a postura não mudaram. Continuou a ser sempre a mesma pessoa, comprometida com a causa da participação popular e da democracia.

Mãe Beverly

Certa vez, tendo eu ido prestar serviços numa Assessoria, ligada à Secretaria Municipal de Educação, notei que todas as pessoas que lá trabalhavam falavam o tempo todo em “entidades”, para se referir às instituições privadas e Ongs que trabalham ligadas á educação.

Desde os primeiros momentos ouvi falar em “entidades” para cá, “entidades” para lá, problemas envolvendo “entidades”, credenciamento e descredenciamento de “entidades”, repasse ou suspensão de repasse de verbas para “entidades”, “entidades”, “entidades”...

Uma em particular, dada a quantidade de vezes em que era citada (uma média de cinco citações a cada vinte minutos, e umas oitocentas alusões, diretas ou indiretas, diárias) me deixou bastante estressado.

Bem, acontece que qualquer pessoa que tenha tido o mínimo de contato com a cultura dos afrodescendentes sabe que “entidades” é o nome genérico pelo qual chamamos tanto os guias da Umbanda quanto todo o panteão ligado ao Candomblé. E, como todos sabem, sou professor de história!

Achava algo pitoresco, até anedótico, tantas mulheres brancas, sem nenhuma ligação aparente ou dedutível com à cultura afro, falarem o tempo todo em “entidades”.

Pelo tumulto que estas tais “entidades” causavam, elas bem poderiam ser identificadas com exus, pombas-gira, etc...

Bem, como todos sabem que eu costumo dizer que “eu perco o amigo mas não perco a piada”, confeccionei, utilizando-me de materiais diversos (madeira, pano, massa epóxi) uma boneca étnica, a qual batizei inicialmente de “Mãe Mocinha do Babado Forte” e a chefia rebatizou depois de “Mãe Beverly das causas impossíveis”.

A razão do rebatismo é simples: uma das referidas moças brancas (aliás, loira) que ficavam todo o tempo envolvidas em “trabalhos com entidades” (e não me refiro a trabalhos espirituais), tinha a alcunha de “Beverly”, em razão da identificação fenotípica da mesma com as personagens do seriado televisivo “As patricinhas de Beverly Hills”.

Mãe Bervely, já devidamente rebatizada, foi dada de presente à Beverly.

Consta que após ela ter recebido este presente, seus problemas com “entidades” diminuíram e, inclusive, quase não escutei mais falar daquela entidade específica, a qual teve seu registro nos conselhos cancelado.

“Causos” da EMPG

Ingressei na Prefeitura na época das “inhas”...Eu explico: todas as pessoas que ocupavam altos cargos na Secretaria Municipal de Educação haviam sido professoras de educação infantil ou, quando muito de 1ª a 4ª série, numa época em que a rede era ainda muito pequena e as soluções eram muito “domésticas” então, dada a intimidade que existia entre elas, tratavam-se todas no diminutivo.

Como já disse, em outra crônica, as EMEFs ainda se chamavam EMPGs e eram poucas...

Minha primeira diretora era uma das “inhas”. Muito conhecida na rede.

Não havia linha telefônica independente nas EMPGs, apenas ramais do telefone da SME, e as “inhas” se conversavam através deles.

A minha diretora, em especial, não se acanhava em se comunicar a todo instante com a “inha” lá da SME, cada vez que ela tinha uma pequena dúvida, ou cada vez que tinha de preencher um simples formulário.

Os pais da escola diziam:

-Como é possível alguém tão pequenininha ser diretora de escola? Parece uma criança!

E a vice diretora completava:

-(...)inha, você não deveria usar abrigo nunca! Fica parecendo uma criança de creche usando uniforme!

Por este motivo, quando ela teve de compor o seu primeiro Conselho de Escola, dias após a aprovação da lei dos Conselhos, subiu em cima de um caixotinho, atrás de uma mesa e escondeu o seu artifício colocando uma toalha muito comprida sobre a mesa, de maneira que chegasse ao chão, escondendo a caixinha.

Ela era muito medrosa também, de maneira que quando os próprios alunos alardeavam a notícia de que o “bandido barriguinha” estava rondando a escola, trancava-se a chave na diretoria e fazia com que nós trancássemos as portas das classes também. Éramos avisados que quando fosse informada que o “bandido barriguinha” tivesse ido embora, acionaria o sinal e poderíamos então abrir a porta das salas.

No ano seguinte, a “inha” já havia se removido para uma escola ainda menor e mais próxima da casa dela, e eu conheci o tal “bandido barriguinha”, frente a frente.

Eu estava esperando ônibus e ele passou. As velhas que também estavam no ponto falaram:

-Esse é o “barriguinha”!

Vocês acreditam que ele era apenas um adolescente, de uns 14 anos, bem mirrado, com uma barriga inchada (o que justificava o seu apelido). Não entendi o porquê de tanto medo...Mas, fazer o quê? Era a época das “inhas”!

“Mas é esse véio, zinfia?”

Há muitos anos, trabalhava conosco na escola uma professora que, apesar de já ter sessenta e poucos anos, era muito vistosa e “bem produzida”. Esta senhora costumava atrair a atenção de vários rapazes, obviamente muito mais jovens do que ela, o que levava as alunas adolescentes a procurá-la para pedir conselhos, para desabafos ou mesmo para rirem juntas, já que ela era muito querida por todos.

Certo dia algumas alunas da oitava série estavam animadas, conversando com esta nossa colega, quando uma delas deteve sua atenção nos dentes da professora:

-Muito bonitos os seus dentes! São seus mesmo?

-Claro que são meus... Paguei por eles!

Esta senhora era “ex-sogra” do comandante de uma famosa esquadrilha.

Apesar de ter 40 e poucos anos, ele aparentava bem mais. Pra ser sincero, ele parecia muito mais velho do que a ex-sogra. Era já um senhor grisalho e muito sisudo, mas isto não impediu que chamasse a atenção de uma amiga minha, que trabalhava conosco na escola e que o conheceu numa festa na casa do irmão dele.

O cúmulo da coincidência foi a ex-sogra me contar que o ex-genro era o comandante da esquadrilha, e que estava de visita em Campinas e, quase no mesmo instante, a minha amiga me contar que estava namorando o comandante da esquadrilha.

A minha dedução não demorou a acontecer.

Cruzei os dados e comuniquei à minha amiga que ela estava namorando o genro da colega. Comuniquei também à colega, e sua resposta não tardou em ser ouvida;

-Meu genro é um homem livre e desimpedido! Não tenho nada contra o namoro deles!

Pois bem, minha amiga estava envolvida - há pouco tempo na ocasião - com a umbanda e o candomblé e o comandante era um homem cobiçado (mais pela posição do que pela aparência) então ela decidiu se precaver.

Num trabalho em que a mãe de santo estava incorporando a “Vó Benedita” (ao que consta, uma negra velha que morreu com mais de cem anos, e há séculos), minha amiga apresentou a ela a foto do comandante, para ela benzer.

Ela olhou a foto, olhou para minha amiga, olhou a foto, minha amiga...Ficou perplexa. Acrescentou com um tom inconformado, se recusando a benzer a foto:

- Mas é esse “véio”, “zinfia”?

Daí eu digo: imaginem vocês o “estado de conservação” do comandante, já que uma negra velha, desencarnada há já mais de cem anos, o julgou velho demais pra minha amiga!

Falando na “Vó Benedita”...

A velha diretora de uma escola da rede, já na época das EMEFs, comparecia sempre aos trabalhos no cemitério, levando a lista dos seus desafetos, ou seja, as pessoas que – segundo ela – “atrapalhavam a sua vida”.

Certa vez ela compareceu com uma lista tão grande que parecia lista de compras de supermercado. Ela havia organizado os “itens”, ou seja, as pessoas, em ordem hierárquica, de maneira que começava com a secretária da educação (aquela mesma que confeitava bolos divinos, e que era muito simpática) e terminava com a sua própria secretária (uma boa moça, tão solícita que não se incomodava nem mesmo em lavar a dentadura da diretora).

Mas, como dizia minha avó, “quem nesta terra faz, nesta terra paga”. Anos depois, esta mesma diretora foi exonerada, “a bem do serviço público”, por desvio de verba!

Mas isto já é uma outra história.

Professor Fujão:

Foi nos primórdios da EJA em nossa escola que aquele professor chegou, para lecionar matemática.

Ele era falante e bem apessoado, esguio e com um grande bigode. Conversava com todos e parecia ser bem aceito pelos alunos.

Ninguém entendeu, a princípio, a antipatia “gratuita” que o inspetor de alunos do noturno – que também acumulava as funções de guarda – nutria em relação ao novo professor. Em grande parte, estranhávamos a postura do inspetor porque, ao contrário do professor, ele nunca foi muito popular na escola, nem entre os alunos e nem entre os professores. Ele era tido como um grande “dedo duro”, que estava constantemente a vigiar tudo e todos, no sentido de delatar as mínimas ocorrências à direção da escola.

Só fomos entender o que de fato acontecia quando a questão se tornou do conhecimento público, após a saída do profissional em questão.

Todos os dias ele entrava na classe onde deveria ministrar a ultima aula, enchia a lousa de exercícios, exigia silêncio absoluto por parte dos alunos e, sorrateiramente, pulava o muro do fundo da escola, atrás da quadra, onde a esposa o esperava com o carro já ligado!

O prato de polenta

Na gestão do “velhinho que bebia” a merenda foi terceirizada e, no início, foi difícil a adaptação às novas normas e procedimentos, como por exemplo ter de admitir que na escola haveria funcionários que não eram da rede, nem da fundação, e nem contratados pela escola. Além disso, a cozinha tornara-se quase “território estrangeiro”, onde, de tempos em tempos, chegavam as supervisoras da firma terceirizada.

Entre as inúmeras situações constrangedoras que se criaram, como por exemplo a desconfiança mútua existente entre as nossas funcionárias (merendeiras) e as da terceirizada, a pior de todas era a obrigação da direção da escola estar fiscalizando se os professores ou funcionários estavam degustando a merenda!

Sentia-me, enquanto diretor de escola que eu estava sendo (já expliquei numa outra crônica como saí diretamente da sala de aula para a mesa do diretor) muito constrangido e incomodado em ter de fazer esse papel, ainda mais porque o próprio secretário da educação da época almoçava comigo às terças-feiras, quando vinha com seu assessor para observar o trabalho das “classes de aceleração”, que era uma experiência pedagógica que estava sendo realizada na escola.

Achava injusto eu, o secretário, e o assessor do secretário, podermos comer fartamente da merenda, sob o pretexto de estarmos “verificando a qualidade da comida oferecida pela terceirizada” (que era deliciosa!) e os professores e demais funcionários apenas observarem à distância.

O fato é que descumpri ordens, e assumo...Todos comiam da merenda! Inclusive os pais que vinham visitar a escola. Sempre achei mais louvável oferecer um prato de comida a quem tem fome do que deixar que o excedente fosse jogado no latão de lixo, como previa o contrato com a terceirizada.

Bem, houve a mudança de secretário e, neste momento, as regras tornaram-se mais rígidas neste particular, até porque a nova secretária não almoçava em escolas...

Um belo dia minha amiga, professora de português, estava na porta da minha sala com um prato de polenta com carne nas mãos. Eu também tinha um prato de polenta com carne sobre a mesa.

Antes de continuar, me permitam fazer uma breve reflexão sobre o tempo, as voltas que a vida dá. Em um determinado tempo, antes da época que esta crônica está narrando, eu e esta amiga fomos colegas de faculdade, quando cursamos Pedagogia. No momento seguinte, anos depois, estamos nós enquanto diretor e professora que atuam na mesma escola. Em outro determinado momento, no futuro, tornou-se minha chefia num cargo que ocupei em sendo novamente afastado da sala de aula. O que me leva a crer que devemos investir nos relacionamentos interpessoais e não nos cargos, pois os cargos passam mas as pessoas ficam!

Bem, voltando á nossa polenta com carne...

Conversávamos animadamente e nem demos pela chegada da diretora do departamento – que havia “sobrado” no cargo, quando da mudança de secretário, mas que num momento próximo, logo em seguida, daria a vaga a outra pessoa, fazendo a fila andar, como dizemos - e uma supervisora, que era apelidada de “Barbi” na rede, devido à sua elegância em tons de rosa.

Elas estavam ali para me advertir, já que haviam sido informadas – pela supervisora da terceirizada - de que na “minha” escola os professores comiam merenda... E todos sabemos – inclusive o leitor – que não era calúnia.

Não havia como disfarçar ou negar... Fato incontestável: contra a força dos fatos não há argumentos!

Estava lá a minha amiga, na porta da diretoria, uma pessoa que sempre exerceu sua cidadania de forma plena - tanto que foi a primeira aluna do Estado de São Paulo a ser eleita para o Conselho de Escola, quando do ressurgimento desta instituição, na década de 1980 - comendo polenta...

Nas mãos dela, o prato de polenta adquiria ares de metáfora: era quase um baluarte, já que representava a classe trabalhadora!

Eu explico: quando a mão de obra escrava foi substituída pela imigrante – especialmente italiana – a base da alimentação dos trabalhadores passou a ser a polenta, o que continuou a ser costume nos primeiros tempos da indústria.

Estava lá o prato de polenta sobre a minha mesa...

É claro que, na minha mesa, o prato de polenta não era uma metáfora. Era comida mesmo! E, se levarmos em conta que sou descendente de italianos (embora seja já a terceira geração nascida no Brasil), podemos afirmar que eu a comia com muito mais legitimidade do que minha amiga, descendente do bandeirante Anhanguera, e com o mesmo sobrenome.

As autoridades pediram licença para os demais presentes. A secretária retirou o meu prato de polenta, a minha amiga foi para a sala dos professores e ocorreu uma reunião na diretoria a portas fechadas.

Tenho de dizer algo em defesa da diretora do departamento – que faleceu poucos anos depois, devido a um câncer – tida como tremendamente autoritária: ela não era! Se ela quisesse, poderia ter me advertido naquele exato momento: estava lá o prato de polenta, a prova material de que eu descumprira as ordens da Secretaria. Ela não fez o que poderia e deveria fazer.

Ao invés disso, ela falou sobre a sua própria experiência. Falou que não nascera diretora de departamento. Que fora professora muitos anos, diretora...Falou sobre como há ordens que emanam das instâncias superiores e que, às vezes, nos parecem absurdas ou incompreensíveis quando se está na escola...

Foi neste dia que percebi que ela era uma “pequena grande mulher”, porque pude perceber a sua dimensão humana.

Ela encerrou a conversa me aconselhando a ser formalista: proibir por escrito, no livro de comunicados, e permitir “de boca”, pois “palavras o vento leva” e eu sempre teria a ordem, escrita no livro de comunicados, para me respaldar caso houvesse nova denúncia no futuro.

Não houve nova denúncia e nunca mais a supervisora da terceirizada “cantou de galo no meu galinheiro” porque, logo em seguida, ela produziu uma situação, em represália, e eu a resolvi de uma maneira inusitada.

Ela arquitetou, juntamente com as funcionárias terceirizadas, uma maneira de pegar uma de minhas funcionárias “subtraindo” um saco de 5kg de arroz.

Descumprindo, ela sim, a legislação vigente, vistoriou a bolsa e as sacolas da merendeira – uma funcionária publica, no exercício da função – e a acusou de estar “roubando” um saco de 5 kg de arroz.

Não vou entrar no mérito da questão, ou seja, se a funcionária havia ou não “subtraído” os 5kg de arroz...Se ela subtraia naquela época, ou subtrai ainda hoje gêneros alimentícios da escola. A verdade é que, da maneira como foi forjado o flagrante, era evidente que – ao menos daquela vez – se tratava de uma “armação”, uma impostura para pegar a funcionária.

Eu poderia contar que a funcionária não era muito higiênica. Que desconfiavam da sua comida e muitos não tomavam nem o seu café...Poderia contar que foi vista pela minha secretária erguendo as calças dentro do banheiro, sem ter usado papel para secar “as partes” , e indo para a cozinha preparar os alimentos, logo em seguida, sem ter lavado as mãos...Poderia também dizer que muitas vezes eu mesmo reparei que sua dentadura tinha uma crosta de sujeira, denotando que não era lavada com freqüência...Poderia, poderia, poderia...

Poderia contar tudo isso, mas, pensando bem...talvez não seja boa idéia, para não indispor o leitor contra a funcionária.

Retomemos então a história de onde ela parou:

Chamei a funcionária, conversei com ela e com outras pessoas para ter idéias de como agir e qual postura tomar: ajudar na acusação, o que seria fácil, ou fazer o papel de “advogado do diabo” e tentar agir na sua defesa, o que seria muito difícil... Foi conversando com as minhas orientadoras pedagógicas que elas me alertaram para o fato de que a merendeira era uma funcionária pública, no exercício da função, e a terceirizada era “alienígena” dentro da escola. Além disso, por mais estranho que pudesse parecer, não havia provas de que ela de fato houvesse “subtraído” o arroz, o flagrante fora evidentemente forjado...Chamei a supervisora responsável pela escola e elaboramos um documento em defesa da funcionária, demonstrando como a “revista” havia sido irregular e arbitrária, como a chefia imediata – a direção da escola – não havia sido informada sobre o que estava acontecendo e como, em ultima instância, a firma terceirizada desrespeitava a escola, a direção, e os funcionários!

Nunca mais tivemos problemas com esta firma terceirizada e todos continuamos, alegremente, a comer merenda!

E os pratos de polenta sobre a minha mesa eram cada vez mais saborosos e mais fartos, preparados pela mesma funcionária – aquela que um dia quase foi mandada embora...Deus nos ajude!!!

Quem sou eu?

Existe uma piada corrente na qual, ao olhar uma fotografia a pessoa diria: “O velhinho de batina branca e chapéu de bispo eu não sei quem é, mas este ao lado dele é o Roberto Carlos...”

Se analisarmos a piada, poderíamos subentender que para os fãs mais ferrenhos seria mais fácil reconhecer o “rei” Roberto Carlos do que o papa. Não que o papa não fosse popular, mas sim que haja mais familiaridade com a figura do cantor, que todos os anos anima os especiais de natal de uma determinada rede de televisão.

Costumo sempre dizer que conheci de perto vários secretários e secretárias municipais de educação de Campinas. Cada um tinha uma personalidade diferente, mas apenas um secretário e uma secretária serão lembrados pela sua amabilidade, simpatia, cordialidade e por serem acessíveis a todos.

A secretária “confeiteira”, a qual já aludi em outras crônicas, apesar de ser uma grande dama da sociedade, extremamente elegante e fina, atendia a todos da mesma maneira e com a mesma afabilidade: desde a senhora que limpava a sua sala, ou a senhora do cafezinho, até a supervisora ou a Diretora do Departamento Pedagógico tinham o mesmo direito ao seu sorriso e recebiam o mesmo tratamento.

Anos depois, no mandato do “bom doutor”, tivemos um secretário igualmente simpático, agradável e acessível. Ousaria dizer que foi o mais simpático e acessível Secretário Municipal de Educação que passou pela rede.

Três episódios interessantes demonstram o grau de proximidade que este professor conseguiu atingir em relação à rede.

Soube, pela boca do próprio secretário, que em determinada ocasião, estando em visita a uma escola, ele estava na sala dos professores e foi surpreendido pela entrada da diretora que, afoita, disse aos presentes: “Gente! Gente! Precisamos nos organizar para a visita do Secretário!”

Ao que o professor teria respondido; “Mas...Minha senhora...Eu já estou aqui!”

De outra feita, a esposa do secretário teria telefonado e pedido para que o chamassem, mas, ao invés de pedir para chamar “o secretário”, o teria chamado pelo nome. O assessor, que atendeu ao telefone, irritado, teria dito: “a senhora sabe quem ele é?” E a esposa do secretário respondeu: “Sei sim. Ele é o meu marido!”

Para coroar este anedotário, colocaria a situação vivida na escola dirigida por uma amiga pessoal minha, na qual, estando em visita uma comitiva composta por diversas autoridades, ela teria dito, ao se despedir: “E o senhor? Quem é mesmo?”

A Viúva Carlos Gomes

Convivi na rede pública municipal, ao longo de várias administrações consecutivas, com uma figura ímpar, daquelas que se tornam lendas antes mesmo de desencarnarem.

Uma senhora vistosa e muito elegante, que ocupou vários cargos, ligados hora ao Pedagógico hora ao Administrativo, e que ganhou como “prêmio” da administração municipal, para uso próprio, a cadeira que ocupou, durante anos, enquanto coordenou determinado espaço público.

Quando me refiro à cadeira não o faço em sentido metafórico, ou seja, o cargo. Refiro-me a uma cadeira giratória, de espaldar alto, estofada e muito confortável, que ela levou para o próximo espaço onde foi atuar.

A principal peculiaridade de nossa homenageada sempre foi a sua dedicação incondicional à memória do grande campineiro, Carlos Gomes.

A sua dedicação extrapolou tanto os limites da atuação profissional e foi tão contínua e ininterrupta, ano a ano organizando “semana de Carlos Gomes”, “mês de Carlos Gomes”, “Seminário de Carlos Gomes”, “mostra de Carlos Gomes”, que ficou conhecida, em muitos segmentos da Rede Pública Municipal de Campinas como “a viúva de Carlos Gomes”.

Durante tantos anos, de uma maneira tão intensa e contínua se deu a sua dedicação que ela acabou sendo, denominada e auto-denominada, “a viúva oficial de Carlos Gomes”.

Ninguém jamais havia ousado questionar a sua legitimidade no “cargo” até o momento em que alguns segmentos da Secretaria Municipal de Educação decidiram entregar a outra, bem mais jovem, a tarefa de representa-la num evento destinado à memória Carlos Gomes.

Foi então que a “viúva oficial” e alguns colegas de trabalho decidiram instituir, além da sua figura, nos eventos destinados às homenagens ao maestro Antonio Carlos Gomes, a “amante de Carlos Gomes”.

Teia de Aranha

Aracnídeos em Campinas, os há de vários naipes: a Viscondessa de Campinas, os barões de Anhumas e de Itapura, o senhor que trabalha na imobiliária, a assessora da Prefeitura, a professora...

Convivi durante muitas gestões consecutivas com uma aracnídea. Nossos encontros foram pontuais e a nossa interação profissional sazonal. O que sempre ficou foi a excelente relação inter-pessoal pois, como já disse numa outra crônica, “os cargos passam, as pessoas ficam”.

Trabalhamos juntos na época daquele que mudou de partido no meio do mandato, na época do “velhinho que bebia” – quando também trabalhava conosco “aquele que virava os olhos”, que lhe passou uma grande rasteira mas, no frigir dos ovos, também foi tombado – e na época do “bom doutor”. Desta última vez posso afirmar que, tanto no aspecto qualitativo quanto quantitativo, formamos uma bela equipe.

É natural às aranhas que teçam as suas teias. Esta minha amiga não foge à regra: passa a vida a tece-las...

As teias podem ser de várias formas, e podem ter várias finalidades: há os que tecem teias para capturar presas e delas se alimentar, há os que tecem teias para dar suporte ou apoio aos que estão caindo, para proteger e alimentar a prole, para socorrer os que se precipitam nos abismos... As teias também podem servir para dar suporte às próprias aranhas, que nelas se agarram quando há um vendaval ou uma tempestade.

Ainda na época do “bom doutor”, certa feita, houve um vendaval que derrubou muitas pessoas, que pareciam solidamente assentadas em seus cargos. Nos dias e semanas subseqüentes, só víamos a nossa laboriosa aracnídea subindo e descendo as escadas do anexo, tecendo, tecendo, tecendo...Amarrando os fios de sua teia em todos os lugares que demonstrassem alguma firmeza. Teceu uma teia tão bem feita que o vendaval passou e ela se manteve.

Antes do vendaval passar nossa chefia imediata – personagem de outra crônica, a descendente do bandeirante Anhanguera – foi também levada pelo turbilhão.

A nova chefia – uma pessoa doce e amiga – viu-se, logo nos primeiros tempos, envolvida num episódio insólito, até mesmo surreal, eu diria: eu e a aracnídea tivemos de passar toda uma tarde escondidos com ela em sua sala, a portas fechadas, para escaparmos ao assédio de um casal extremamente agressivo e insistente, que participava de uma reunião na sala em frente a nossa.

Sobre este casal e a instância representativa que eles insistiam em se auto-intitular “legítimos representantes”, escreverei em momento oportuno, até porque se tratava de uma espécie de “tribunal do Santo Ofício”, travestido em espaço de discussão democrática.

A imperatriz das reuniões

“Filho de peixe, peixinho é”, conforme a sabedoria popular.

A mãe desta minha amiga (que bem passaria por irmã, diga-se de passagem) sempre foi chamada de “abelha rainha” por um dos filhos e, em várias situações da vida, deu provas da sua majestade. Minha amiga, quer seja pelo seu porte altivo, quer seja pelo dom da oratória – que sempre foi a sua característica mais marcante – não poderia ficar atrás e, em assim sendo, sempre teve atitudes, comportamentos e posturas que mais caberiam à realeza do que a uma militante de esquerda, que ela sempre foi.

Ela já aparece incidentalmente em minhas crônicas, carregando um prato de polenta e sendo levada por um turbilhão, mas faltava me deter mais na descrição de sua personalidade ímpar.

Sobre a “viúva Carlos Gomes” disse que é o tipo de personagem “daquelas que se tornam lendas antes mesmo de desencarnarem”. Sobre esta minha amiga, eu diria que ela se torna um mito.

Como disse antes, o seu principal dom é a oratória e ela é, com certeza, uma das poucas pessoas que eu conheço que podem falar ininterruptamente, sobre qualquer assunto, por mais de três horas em seguida...Basta apenas que ela fique em pé, empine os peitos, e assuma uma expressão fisionômica de orador romano. Claro que o seu gestual também ajuda. Cícero, Sêneca ,Caio Graco ou o próprio Júlio César – exímio na arte da retórica - não estariam a altura dela!

Ela é capaz de discursar sobre qualquer assunto, desde um projeto ou programa até a qualidade da água ou o calçamento das ruas...O tema sempre foi algo secundário, já que o essencial é apenas a sua vontade de falar.

Enquanto trabalhamos juntos, num determinado setor da Prefeitura, a divisão de trabalho entre nós – ela enquanto chefia e eu enquanto chefiado – era a ideal: eu realizava todos os trabalhos práticos e ela discursava...Participava com afinco de toda e qualquer reunião para a qual fosse convocada, convidada ou lembrada e falava horas a fio sobre todo e qualquer assunto, fosse ou não da sua alçada, e eu desenvolvia tranqüilamente toda a parte burocrática.

Certa feita, estávamos ambos participando de uma determinada comissão de um dos conselhos da cidade, ela como coordenadora e eu como membro da comissão. Nos reuníamos todas as quintas-feiras à tarde e, numa determinada ocasião, eu despachei sete documentos, enquanto ela falava ao telefone.

Cada um com as suas competências: ela tem o dom da argumentação, o que sempre me deixou seguro em participar de reuniões ao lado dela, e eu tenho o dom da organização, o que sempre a deixou segura em delegar-me a parte burocrática.

“O peixe morre pela boca”, também diz a sabedoria popular.

Paradoxalmente, o seu gosto pela oratória, o uso que ela sempre soube fazer da retórica, além da sua necessidade de participar de toda e qualquer reunião onde – ainda que mais remotamente – o assunto lhe dissesse respeito, que foram a razão da sua vitória, levaram-na algumas vezes à derrota.

Uma determinada ocasião em especial, num incidente do qual ela tomou parte, me fez crer que muitas vezes é muito mais sábio calar do que falar e que muitas vezes a vitória está em saber o momento de se render.

Mais este favor eu devo à minha amiga: além de ter me levado trabalhar consigo, neste determinado setor da Prefeitura, a sua queda me ensinou como me manter, ainda por algum tempo, dentro dele!

Sobre o fato de ter sido levado a trabalhar com ela, eu a alcunhei – muito justamente – de “a redentora” pois, metaforicamente, ela me “alforriou” ao fazê-lo.

Eu explico: ser professor numa escola distante, na periferia da cidade, muitas vezes se assemelha a uma morte em vida, ao ostracismo, ao esquecimento...Você nunca é lembrado, nunca é ouvido, nunca é consultado.

Podemos ter todas as restrições ideológicas a Benito Mussolini – e certamente nós as temos – mas, uma frase de sua autoria, em especial, deve ser levada em conta: “mais vale um dia como leão do que cem anos como cordeiro”...

Esta minha amiga viveu um ano num dos espaços centrais de discussão da rede pública municipal de educação de Campinas. Quando lá estava, fui lembrado, e ela então levou-me a estar consigo, dividindo não apenas o trabalho, mas também a glória.

Sou eternamente grato.

Ao contrário das demais crônicas que eu escrevo, que omitem todos os nomes próprios, esta eu quero que todos saibam que é dedicada a minha amiga, Rachel Aparecida Bueno da Silva: “Rachel, a redentora”.

Refiro-me a ela como aquela que segura o prato de polenta nas mãos, na crônica que se chama exatamente O prato de polenta. É ela a descendente do bandeirante Anhanguera, e que tem o mesmo sobrenome.

Foi muito fácil às pessoas se dizerem suas amigas enquanto ela estava num cargo de prestígio. Vi dezenas de aduladores dela se aproximarem naquela época.

Eu poderia muito bem ter escrito esta crônica naqueles dias... Não o fiz.

Ensinaram-me muito cedo, que nos momentos de glória todos querem ser conhecidos como seus amigos, mas é nos momentos de dificuldade que você os reconhece.

A senhora que não acreditava em Deus

Já ouvi que “o importante não é se você acredita ou não em Deus, mas sim se Ele acredita ou não em você.”

Meu pai era materialista. Criado em Colégio Confessional, onde minha avó o colocou muito cedo, pois havia ficado viúva, ele conhecia todas as vicissitudes da Igreja Católica, todos os seus cacoetes...Sabia a missa toda em latim, ladainhas, vidas dos santos...Não acreditava em nada!

Criou-nos acreditando que todos éramos capazes de mudar o próprio destino e que o único juízo de valor que pesaria sobre todos nós, durante o resto das nossas vidas, era o nosso mesmo. Mostrou-nos que o nosso próprio juízo de valor, na forma da autocrítica, era muito mais rigoroso do que os dez mandamentos da lei de Deus e os cinco mandamentos da Igreja juntos!

Como os valores dele eram humanos e não divinos, ensinou-nos a ser íntegros, a ter ética e a nunca prejudicar a outrem, fosse quem fosse, para não darmos margem a que alguém julgasse justo nos prejudicar. Nunca me lembro de tê-lo visto ter atitudes preconceituosas de qualquer tipo, fosse em relação à cor, à raça, à ideologia, confissão religiosa ou orientação sexual e nunca me lembro de tê-lo visto infringir qualquer lei, nem mesmo a legislação de trânsito!

Jamais praguejou ou agrediu verbalmente a quem quer que fosse, mesmo durante os 5 longos anos em que ficou morrendo de câncer no esôfago. Nos últimos 6 meses, morrendo devagar, perdeu a capacidade de se comunicar, e a única solicitação foi para morrer em casa.

Minha mãe, em contrapartida, que o acompanhou por quase quarenta anos (5 anos de namoro e 32 de casamento), teve com ele 5 filhos e que cuidou dele até o final, é uma “beata” confessa. Faz parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento, é catequista (assumiu o ofício por sentir falta da sala de aula, de onde saiu aos 64 anos, como professora de Educação Infantil na rede pública municipal de Jundiaí-SP), guarda “domingos e festas”, “reza” o tempo todo que tem livre...É, como se diria, “papa-hóstia” convicta! Uma legítima “rata de sacristia”!

Em comum com o meu pai, os ideais igualitários (cada um a sua maneira), a idéia da fraternidade entre as pessoas e a completa ausência de preconceitos: ela, querendo ganhar o céu, e ele querendo modificar a terra.

Conto esta historinha familiar para ilustrar melhor a personalidade da pessoa que dá nome a esta crônica: uma Diretora de Departamento que sempre me lembrou muito meu pai, não apenas na ausência de convicção religiosa, mas também na presença da convicção ideológica.

Pode parecer herético da minha parte e, com certeza, nem a “homenageada” concordará, mas, na verdade, quem conviveu com ela pode afirmar que “na prática, a teoria é outra”, ou seja, que “acreditar” é que faz a diferença.

Se tivermos uma Bíblia sobre o aparador da sala - aberta no Salmo nº 91 - ou um volume do Capital na estante e não tivermos convicção, o efeito é o mesmo: nenhum!

Da mesma maneira, se acreditamos em alguma coisa, em algo, ou em alguém (independente do que, ou quem) estaremos imbuídos de uma força interior que nos faz capazes de transformar o mundo.

Na prática cotidiana, esta senhora sempre foi altruísta, humana, sincera e ética.

Sem acreditar em Deus, eu a vi ser levada às lágrimas, pela indignação e sensação de impotência, ao ouvir um pai de determinada comunidade se referir a alguns adolescentes como sendo “bandidos”.

Sem acreditar em Deus, ela se responsabilizou por um completo estranho, que havia chegado de Piracicaba e precisava de uma orientadora para pleitear uma bolsa de estudos. Era um jovem carente, que não tinha condições de se manter estudando na Universidade. Ele mesmo me contou este episódio.

Sem acreditar em Deus ela sempre afirmou que o seu objetivo último, enquanto Diretora do Departamento, era conseguir oferecer “uma escola melhor às nossas crianças.”

Sem acreditar em Deus ela investiu em pessoas do povo, que conseguiram chegar, por esforço pessoal e pela boa vontade de alguns “notáveis” – como ela própria – a algum cargo.

Sem acreditar em Deus ela conseguiu construir uma carreira sólida, enquanto educadora e enquanto teórica da educação, comprometida com uma escola de qualidade para as classes trabalhadoras...

Sem acreditar em Deus, ela sempre se preocupou em receber bem e tratar de uma maneira respeitosa e igualitária todas as pessoas que a procuravam.

Foi ela quem me ensinou como devo me comportar numa reunião, fazendo “cara de paisagem”, para que os interlocutores jamais saibam se estou contra ou favor das suas proposições, guardando a minha neutralidade. Também foi ela a primeira pessoa que disse – em quase vinte anos que atuo na rede pública municipal de Campinas – que eu sou “importante” dentro da Secretaria...

Por todos os motivos descritos acima, talvez até à revelia da “homenageada”,eu encerro afirmando que ela pode até não acreditar em Deus...mas Ele acredita (e muito) no trabalho dela!

“Fazendo farofa”

Em todas as épocas, quando a educação das camadas populares foi gerida por membros da elite, sempre se fez questão de manter um certo ar burguês, uma certa “compostura”.

Ao analisarmos fotografias de escolas públicas, das décadas de 30, 40 e até de 50, do século passado, veremos alunos de gravatinha, alunas de saia plissada e sapato de “boneca”, escolas impecáveis e, muitas vezes, 2 professoras ao mesmo tempo dentro da mesma sala de aula.

Em compensação, quando membros das camadas populares acabam ocupando cargos de especialistas de educação, tais como diretores e supervisores, as coisas mudam um pouquinho...

Existe um grau de “entrosamento” tal entre os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem que permite algumas situações bastante pitorescas, que ilustram muito bem o caráter da cultura popular.

Lembro-me muito bem que foi logo após a inauguração do Shopping Galleria, “podre de chic”, que uma determinada orientadora pedagógica, “oriundi” como eu mesmo, decidiu levar os alunos da EJA, para assistirem ali uma sessão de cinema.

Alugamos alguns ônibus, tomamos o cuidado de convidar a supervisora responsável pela escola – outra “oriundi”, extremamente simpática e com forte sotaque paulistano, e que na ocasião estava muito acima do peso – os alunos colocaram as suas roupas dominicais...Estávamos todos bastante discretos e tentando parecer chiques.

Ao chegarmos ao novo Shopping, um primor de arquitetura contemporânea com fontes e “ilhas” com vegetação, os alunos ficaram deslumbrados...Confesso que eu mesmo não havia ainda conhecido aquele espaço.

Tudo corria bem, até o momento em que a supervisora se lembrou que os alunos ficariam sem merenda.

Ela então tratou de ir a uma rede que vende comida árabe...Aquela mesma que o leitor pensou, mas que não posso citar para não fazer merchandising.

Estava eu, sentadinho e quietinho com os alunos, todos muito finos e discretos... eis que entra a senhora supervisora carregando várias caixas fechadas e se pôs a gritar: “Quem quer kibe?”...”Alguém quer esfiha?”

Todos ficaram agitadíssimos e passaram a comer ruidosamente! Fomos alertados pelos administradores do cinema a não produzirmos lixo naquele espaço.

A nossa “finesse” rolou por terra e passamos todos a comer alegremente, como um bando de “farofeiros” em visita à Praia Grande em tarde de domingo!

Todos adoraram o passeio!

Uma questão de nível

Estava eu diretor de escola e adentrou ruidosamente a minha sala uma mãe de aluna.

Notei que a camiseta dela estava furada, mas fiz de conta que não percebi.

Ela passou a vociferar e praguejar...Disse que a escola era uma “zona”, uma verdadeira “bagunça”...Que imperava o desgoverno.

Disse também que ninguém ali tinha nível que as meninas eram “baixas” e que o espaço não era digno da filha dela!

Para sua surpresa, enquanto diretor da escola, concordei com todas as suas afirmações: disse que eu pedia desculpas, mas reconhecia mesmo que a escola era uma “zona”. Pedi a uma funcionária que lhe trouxesse um cafezinho e fiz com que se sentasse.

Arrematei dizendo que ninguém ali tinha mesmo nível – inclusive eu mesmo – e que, desta maneira, a escola não era digna de uma moça tão fina e educada como a filha dela...

Mas, o dever do gestor escolar não é apenas identificar o problema, mas sim propor uma solução e então disse que resolveríamos o problema naquele exato momento, transferindo a filha dela para uma escola que estivesse à sua altura.

A senhora ficou lívida...Não esperava esta reação da minha parte.

Ponderou que não seria fácil encontrar uma vaga para a sua filha aquela altura do ano...Ponderou que não teria tempo de procurar...

Eu então a tranqüilizei e disse que ela não precisaria se preocupar com nada: eu mesmo conseguiria uma vaga.

Peguei o telefone e, após apenas duas ligações, estava feita a troca: transferi a filha dela para uma escola ao lado do aterro sanitário, uma boa escola da rede estadual.

Ela, num misto de surpresa e arrependimento, assinou a guia de transferência.

Na semana seguinte ela voltou: queixava-se da nova escola, dizia que parecia uma cadeia cheia de grades...Queria traze-la de volta para a escola.

Eu respondi que ela mesma havia dito que a “minha” escola era uma “zona” e não era digna da filha dela...

Ela se conformou, e saiu cabisbaixa.

“E aí, morreu o Neves...”

Estudei em escolas públicas estaduais desde a primeira série até à pós-graduação.

Muitas das professoras, especialmente da primeira à quarta-série, haviam sido colegas de escola da minha mãe, então, havia algumas falas recorrentes e alguns ditos comuns que eu ouvia tanto em casa quanto na escola.

Ultimamente, acompanhando pela imprensa e outras mídias a releitura do 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas do World Trade Center, vieram abaixo, me lembrei de um destes ditos.

Certa vez, determinado aluno fez colocações impertinentes e inoportunas, a respeito de algo que não lhe dizia respeito, uma das professoras disse: “E aí morreu o Neves...A sogra do Magalhães botou luto. O que ela era?”

Começou uma grande especulação na sala, onde cada um arriscava seus palpites: ela seria prima, ou irmã do Neves...Talvez cunhada...

A professora, para nossa surpresa, arrematou; “intrometida!”

O episódio em questão aconteceu na segunda série, em 1974. Daquele ano em diante, até a oitava série, todas as vezes que alguém era pego dando palpite na vida alheia, ou se intrometendo em assunto que não lhe dizia respeito, bastava que alguém dissesse: “E aí morreu o Neves...”

Esta questão me leva ao episódio do World Trade Center: por acaso algum estilhaço de bomba, ou destroço das torres gêmeas chegou às praias de Santos? À Praça da Sé em São Paulo? À baia da Guanabara?

Por acaso o episódio (que empanou o brilho das exéquias do prefeito de Campinas, Antonio da Costa Santos, assassinado um dia antes) repercutiu de alguma maneira na vida cotidiana dos brasileiros?

Por acaso morreram mais pessoas neste dia do que na invasão do Afeganistão ou do Iraque?

O orgulho ferido dos estadunidenses, o seu ego inchado e enorme, o seu autoritarismo e a sua onipotência, a sua mão imperial e dominadora, estendida sobre as Américas, isto foi o que nos atingiu a todos.

O complexo de inferioridade, trazido pela dominação, o ímpeto de emulação incondicional em relação à nossa “matriz”, é que faz com que nos interessemos – e até nos comovamos – mais com os 3 mil mortos do 11 de setembro, do que com os mais de 30.000 mortos no Afeganistão e no Iraque.

Mas, afinal de contas...O que eu tenho a ver com isso?

“E aí morreu o Neves...”

A professora analfabeta

Esta aconteceu há poucos anos.

Era a época das professoras “substitutas contínuas”, profissionais que simplesmente se inscreviam junto à SME e, em possuindo habilitação, eram classificadas, listadas, escolhiam uma escola e lá prestavam serviços, substituindo qualquer professor que precisasse se ausentar.

Em nossa escola “apareceram” duas destas professoras, ambas bastante fracas, embora o grau da sua incapacidade não fosse o mesmo: uma delas preocupava-se mais com as peças de crochê – que ela produzia sob encomenda – do que com as aulas e a outra era quase completamente analfabeta.

A primeira, passava displicentemente qualquer série de exercícios na lousa, ligava o seu “walk-man”, colocava os fones no ouvido e, sem prestar atenção ao rumor e alarido das crianças, dedicava-se pacientemente aos seus pontos, ponto alto, ponto baixo, correntinhas...Houve uma semana em que conseguiu fazer um vestido de crochê inteirinho, todo feito, ponto a ponto, durante as aulas!

A outra, uma antiga merendeira da rede estadual que, a duras penas, conseguiu a sua habilitação com o auxilio dos professores que com ela atuavam na escola, era um desastre completo!

Certa feita, na pasta destinada às ocorrências disciplinares envolvendo alunos, eu mesmo tive oportunidade de ler uma anotação sua: “puiz u alunu pa fora pruque mi disacato”.

Em outra ocasião, pude presenciar, juntamente à direção e à orientação pedagógica, uma cena surreal: uma aluna da EJA, grávida de 8 meses, gritava com a professora na frente da classe. Questionada, a aluna argumentou que passaria sim a respeitar a professora, caso ela fosse capaz de ler uma única linha de um livro, que a aluna lhe apresentava...

Incapaz de fazê-lo, a professora pôs-se a chorar e saiu da sala.

Muitos pensaram que ela fosse desistir de trabalhar na escola.

Qual não foi minha surpresa quando ouvi, dias depois, a outra professora, aquela mesma do crochê e do “walk-man” aconselhando-a a que não tentasse mais ler com os alunos ou escrever nada na lousa, que ocupasse as suas aulas com trabalhos manuais, como recorte e colagem, ou mesmo jornais. Afinal, ela sempre poderia se justificar, dizendo que estava desenvolvendo algum projeto!

A diretora que subtraía

Malba Tahan, que eu li muito quando adolescente, escreveu O homem que calculava, obra onde demonstra praticamente todas as operações matemáticas, de forma lúdica.

Nos últimos anos tenho cada vez mais convicção de que algumas gestoras da nossa rede (felizmente uma minoria) precisariam muito ler este livro, pois não conhecem a soma dos esforços, no sentido da multiplicação dos recursos em prol de uma melhor divisão social da renda e do trabalho.

De todas as quatro operações, elas apenas exercitam a subtração, principalmente do erário público, ao qual elas acabam tendo acesso através do dinheiro do conta escola.

Sem nomear, poderia citar um exemplo, este bastante antigo, e que entrou para o folclore da Secretaria: a diretora de escola que levou “emprestada” para a própria casa a copiadora, e cobrava 10 centavos por cópia!

Houve também uma outra que usou recurso público para financiar a reforma da própria casa, outra, para mobiliá-la e outra ainda que usou o dinheiro da APM, cinco mil reais, para oferecer como contribuição durante o culto na igreja que freqüentava! Acreditando na “teologia da prosperidade”, fez um pacto com Deus para que o Todo Poderoso a tornasse bem sucedida e afastasse dela os problemas da vida pessoal.

Com certeza o Senhor não abençoou o donativo da diretora, não pactuou com ela, pois acabou sendo descoberta. Isto me faz lembrar o que uma amiga sempre diz: “não há mal feito sobre a face da terra que não acabe sendo descoberto”.

Algumas das gestoras aqui citadas já foram exoneradas, “a bem do serviço público” e no último caso, “a diretora que subtraía” foi obrigada a restituir aos cofres públicos, centavo por centavo, toda a soma (considerável) que havia oferecido à igreja. Assim sendo, inverteu-se o dito popular, pois da maneira como fez a diretora, “quem dá a Deus, empresta dos pobres”.

Cozinha da tia Cyrinha

É lugar comum dizermos que não podemos ser bons em tudo o que fazemos (ou que tentamos fazer).

Ela é um modelo de tia, quase uma mãe.

Pensando bem... Ela enquanto tia é melhor do que muitas mães.

Um exemplo de educadora, alfabetizadora de adultos.

Uma excelente administradora.

Uma amiga confiável, leal e sincera.

Mas...

Infelizmente...

Uma péssima cozinheira! Um completo desastre na cozinha!

São palavras suas que, se porventura alguma vez acertou na confecção de determinado prato, foi mero acidente.

São palavras de suas sobrinhas, que se determinada comida está boa, deve ser devorada avidamente, pois não será repetida jamais, com a mesma qualidade.

Soube que o seu "desacerto" com a cozinha é quase genético, já que a mãe jamais a estimulou a aprender a cozinhar.

Na adolescência, tentou fazer um bolo.

Foi pedindo instruções à irmã e, a certa altura, a irmã lhe disse que colocasse dois ovos "inteiros". A ênfase na palavra "inteiros" foi tanta que ela não teve dúvidas: colocou-os inteiros mesmo, sem se dar ao trabalho de tirar as cascas!

Perguntada, ela afirmou que lavou os ovos antes de joga-los, com casca e tudo, na mistura do bolo.

Anos mais tarde, solicitaram que picasse um frango.

Ela não teve dúvidas: recorreu até mesmo à caixa de ferramentas para "triturar" os ossos da infeliz ave a qual, uma vez preparada, ficou com todos os seus "restos mortais" virtualmente irreconhecíveis: as asas, as coxas, o peito e até mesmo as costas ficaram tão semelhantes entre si, tão triturados, que o conceito de "frango à passarinho" precisaria ser reformulado para conceituar o produto final ali apresentado.

Durante o processo de "esquartejamento" do frango, o ruído produzido chamou a atenção da vizinha, que adentrou a cozinha, muito preocupada em que estivesse acontecendo alguma coisa anormal na casa.

Ela é a única pessoa que conheço que é capaz de errar ao tentar preparar macarrão.

Esta antiga e famosa iguaria, inventada na China, levada para a Península Itálica por Marco Pólo e incrementada pelo molho de um fruto americano, é tão fácil de ser cozida que eu mesmo preparava macarrão desde os 7 ou 8 anos de idade.

Poderíamos tentar argumentar, mais uma vez, que é uma questão genética, já que ela não é "oriundi" mas, pelo que bem me lembro, na terra de seus ancestrais há até mesmo doces (deliciosos) preparados com macarrão.

Talvez seja uma questão de preferência, já que ela adora saladas. Como sabemos, as verduras, via de regra, são apenas lavadas, não preparadas.

Neste momento, lembro-me de uma ex-aluna da faculdade, que sempre afirmava que o que realmente diferencia o homem das demais espécies animais é a culinária. O ser humano é o único animal que prepara os alimentos, que os tempera, cozinha e se esmera na apresentação dos mesmos.

Posso garantir que ela é um ser humano, e da melhor qualidade.

Mas, como cozinheira...

A leoa e a ratinha

Trabalhei, durante três anos, em uma das assessorias da SME.

Alguns leitores talvez se lembrem de crônicas que escrevi sobre este espaço, como “A Imperatriz das reuniões”.

Ela mesma, a “imperatriz” é que estou, neste momento comparando a uma leoa pois, durante o curto espaço de tempo em que esteve no comando deste local de trabalho, ela ousou, inovou, movimentou, lançando-se como uma verdadeira leoa, sem medo ou hesitação à busca dos seus objetivos.

Ela “enxugou” o espaço, que estava excessivamente “gorduroso”, contando com uma série de profissionais que mantinham frentes de trabalho ou serviços completamente desarticulados entre si e que não se ligavam organicamente aos demais serviços existentes ou à própria assessoria.

Não teve pudores ou titubeou ao realizar mudanças, necessárias para uma maior agilidade e eficácia do setor e também não teve medo de colecionar antagonistas, na figura daqueles a quem afastou ou fez retornar aos locais de origem. Ela era uma funcionária pública, compenetrada da sua função de gerir um espaço que deve atender ao interesse público, pois mantido com verbas oriundas da contribuição de cada munícipe, na forma dos impostos pagos.

Durante um ano em que trabalhamos, freneticamente, neste setor, os verbos conjugados eram “criar”, “mudar”, “movimentar”...

Por assinar o que afirmava e por assumir o que assinava ela acabou sendo retirada do cargo e sendo considerada, por muitas pessoas, como sendo “encrenqueira” ou então “tagarela”, “aquela que fala mais do que deve.”

Algumas das pessoas que conosco trabalhavam, elas próprias, dependendo do seu grau de oportunismo e comensalismo, rapidamente mudaram o seu discurso, e de apoiadoras de primeira hora de nossa leoa, passaram a ser críticas fervorosas.

Lembro-me especialmente de uma pessoa, que consta “ter dado grande apoio” à “imperatriz” em seus últimos dias de posse do cetro e que, num passe de mágica, mal ela virou as costas, tornou-se sua rival.

Esta pessoa, aliás, poderia ser definida como a antítese dos anarquistas, que afirmam “hay gobierno, soy contra”, ela diria, “se há chefia, sou a favor.”

A personagem que foi colocada – em grande parte pelas mesmas pessoas que julgavam a “imperatriz” uma “encrenqueira” – para substituí-la não poderia ser mais diametralmente oposta a ela do que foi.

A leoa era grande, altiva, com um porte verdadeiramente nobiliárquico. Sua cabeça se erguia regiamente sobre os ombros, observando o todo ao seu redor de cima para baixo.

A ratinha pequena, tímida, com a cabeça mais ou menos “atarraxada” ao corpinho curto, observando o todo ao seu redor de baixo para cima.

A leoa era impetuosa, destemida, não tinha medo de mudanças, pelo contrário, provocava-as o tempo todo. Ela sabe que a história é dinâmica.

A ratinha medrosa, acanhada. Tem medo de toda e qualquer mudança e encara o novo com desconfiança.

A leoa era ousada, criava, ousava, movimentava...

A ratinha, com o campo de visão limitado de sua espécie, sempre conjuga verbos como “manter”, “reverter”, “acomodar”. É incapaz sequer de tolerar mudanças, quanto mais provocá-las! O único movimento que realiza, com uma constância absoluta, é a caminhada após o almoço, em busca de roupas, sapatos, vitrilhos, canutilhos e outros itens, absolutamente indispensáveis à sua sobrevivência.

A leoa transformava a vida dos colaboradores num turbilhão, devido ao frêmito inovador e aos furores criativos; a ratinha as transforma no mais absoluto tédio existencial, sensaboria, devido à sua tendência conservadora, de manter tudo exatamente como está, onde está e com quem está.

A leoa era franca, dizia exatamente tudo o que pensava o tempo todo, sem medo de ofender a quem quer que fosse. A ratinha sempre quer agradar a todos, é comedida e econômica em suas falas.

Quando tinha de ser impopular, a leoa fazia as suas falas em conselhos e outros espaços públicos. A ratinha, ao contrário, faz as suas falas na “salinha da intriga”: o espaço da sua própria sala, onde sempre há comentários em voz baixa, reuniões a portas fechadas e onde, todo o tempo, alguém está falando de outro alguém.

Aquela personagem, de comportamento duvidoso, de quem falei acima, é a mais assídua freqüentadora da “salinha da intriga” onde, se há duas pessoas reunidas, estarão sempre falando de uma terceira, que não está presente.

Durante os dois anos em que convivi com a ratinha, um após outro dos que trabalhavam naquele espaço, sempre foi posto na berlinda por algum tempo, tido e havido – nas reuniõezinhas “prive” da “salinha da intriga” – como sendo o responsável por todos os problemas, mais ou menos sérios, que o setor estava passando.

Demorei a perceber o quanto esta convivência me estava sendo prejudicial, enquanto profissional e enquanto ser humano, pois, mesmo a intriga sempre foi feita com doçura.

Demorei, aliás, a perceber a impostura que existia por trás de toda esta aparente doçura.

Por todas estas razões, parafraseando mais uma vez Benito Mussolini, de desditosa lembrança, termino esta crônica dizendo que “é melhor um dia de leoa do que cem anos de ratinha.”

O poder do bundão[1]

Todos nós brasileiros, independentemente do Gênero ou da Orientação Sexual, aprendemos, desde muito jovens, a apreciar uma bunda, a julgar a sua forma atraente.

Beth Carvalho a exaltou em “Coisinha do Pai”, bem como inúmeros outros compositores e intérpretes. Na época da “Axé Music” a tendência tornou-se tão evidente que as pessoas se referiam a este gênero como sendo “Música de Bunda”.

Numa época que eu situaria como imediatamente após a relatada na crônica “O apagar das luzes”, o poder da bunda fez-se sentir de forma soberana na Secretaria Municipal de Educação, quando a “secretária confeiteira” foi sucedida pela “secretária do bundão”.

Muito embora ela tenha ficado muito mais famosa por seu nome, quase homônimo do time de futebol mais popular da região sudeste (quem sabe, o time mais popular do Brasil), ficou famosa também pelas dimensões e volume de seu “derrière” o qual tinha o poder, conforme contam, de com um simples balançar, de um lado para o outro, derrubar pessoas dos seus cargos, extinguir coordenadorias, fechar programas e até tentar reinventar a roda!

Dizem as más línguas que para se alcançar altos cargos naquela época, era necessário ter uma bunda quase tão avantajada quanto a da secretária. De fato, se rememorarmos as pessoas que ocuparam os postos chave na SME durante o seu pontificado, veremos que, via de regra, possuíam este pré-requisito.

O velho Hegel já nos falava que a História se movimenta em espiral (a “espiral hegeliana”) logo, sendo cíclica. Estou tentado a concordar, pois, exatamente no dia de ontem, presenciei a cena histórica da retomada do “poder do bundão”, quando uma coordenadora, elegante e longilínea, de padrão europeu, foi substituída por uma tipicamente latina, com quadris de generosa circunferência.

O andar da carruagem (ou da “locomotiva da História”, como diziam os historiadores positivistas do século XIX) é que irá definir se, mais uma vez, será necessário possuir bundão para se acessar ou manter-se em alguns cargos...

[1] Crônica escrita em homenagem à nova Coordenadora da Coordenadoria Setorial de Formação, em 17/04/2010

Caduquice precoce

LUIZ CARLOS CAPPELLANO·SEGUNDA-FEIRA, 11 DE FEVEREIRO DE 2019

O Executivo das três esferas se conjumina ao Legislativo para aprovar a nefasta “Reforma da Previdência” a qual, dependendo de como vier, lançará uma pá de cal em minhas pretensões de aposentadoria.

Após 33 anos ininterruptos de atuação profissional, aguardava eu ingenuamente os 55 anos de idade para poder me aposentar. Neste ínterim, entra em pauta a idade mínima de 65 anos (60 anos para professores)!

Como é possível conceber um profissional da Educação, que atua no Ensino Fundamental e EJA (desde crianças de 10 ou 11 anos até idosos!) lecionando com 60 anos de idade? Apenas quem nunca esteve numa escola pública pode pensar que isto seja possível.

Ainda hoje tive provas suficientes de que já estou “caduco” ... Imaginem daqui há 8 anos!

Acordei um pouco mais tarde do que de costume e, ao consultar o grupo de whatsapp da escola, me dei conta de que havia uma nova versão do horário. Necessário se faz mencionar que o horário do período matutino tem tido versões quase diárias, tornando difícil que nos mantenhamos atualizados.

Tanto pelo horário “antigo” (de 2 dias atrás) quanto pelo “atual” (de hoje de manhã) eu entraria na quarta aula.

Acontece que “quarta aula”, para quem sempre entrou na primeira, é um conceito meio abstrato, meio genérico, nada de concreto. O que seria a quarta aula? Começa às 9h45, após o intervalo dos sextos e sétimos anos, ou às 10h35, após o intervalo dos oitavos e nonos anos?

Optei pela segunda alternativa e me dei mal.

Uma amiga, que conversava comigo no whatsapp, estranhou que eu ainda estivesse em casa. Eu, muito bobo, ainda respondi que entraria apenas na quarta aula.

Para piorar as coisas, parecia que eu iria chegar tarde demais, ainda que fosse para o segundo horário: ônibus atrasados, transito pesado, um caminhão de bebidas “trancando” a rua na entrada do Parque Oziel... Todas as dificuldades do mundo, possíveis e imaginárias.

Ainda assim, cheguei “à tempo”. Em cima da hora, para a aula errada!

Subi correndo as escadas, desenhei 3 pirâmides e uma esfinge na lousa. Pedi aos alunos que reproduzissem os desenhos no caderno e depois escrevessem pelo menos 5 linhas sobre eles.

Eu me virava para a classe, depois para a lousa, e para a classe de novo. Via os alunos todos meio vermelhinhos, segurando o riso...Não sabia o que estava acontecendo...

Foi então que uma menina muito doce chegou perto de mim, pediu para eu abaixar e cochichou no meu ouvido:

- Professor, estão todos com vontade de dar risada porque o senhor colocou a camiseta ao contrário... Está no avesso.

E eu, discreto como sempre, falei bem alto:

-A minha camiseta está no avesso?

Todos caíram na gargalhada. Riram copiosamente.

De fato eu vestira a camiseta chique, que eu ganhei do meu irmão engenheiro, ao contrário! Estava no avesso!

Atravessei a cidade, dois pontos de ônibus e dois ônibus diferentes com a camiseta no avesso!

Fui até o corredor bem rapidinho, tirei a camiseta e a coloquei do lado certo.

Neste momento chega a professora readaptada, que atua como inspetora de alunos, com o horário na mão e, meio sem jeito, me comunica que a aula é de outra professora e que a minha única aula nesta manha, pela atual versão do horário (de há poucas horas apenas) já havia sido a anterior...Por sorte, a colega foi compreensiva e foi possível desenvolvermos a dupla docência.

Isso tudo hoje, aos 53 anos.

Como eu disse no início: Imaginem só daqui há 8 anos!

O susto:

19 de fevereiro às 11:40

Que susto! No que eu desço do ônibus, uma autoridade, com pasta na mão e carrinho oficial ao lado grita meu nome:

- "Professor Luiz Cappellano!"

Pronto...encrenca! O que será que eu fiz dessa vez? Penso eu, em tempos que já visto camiseta no avesso e entro em sala errada na hora errada...

Por sorte a "autoridade" se identifica como camarada do meu amigo vereador Gustavo Petta e me entrega folhetos sobre o BRT, solicitando minha presença na reunião que acontecerá no bairro para divulgar o assunto.

Ufa! Não era confusão dessa vez! Agradeço a Deus e sigo em frente.

Caduquice Precoce – parte 2 (escrita em 28 de setembro de 2019)

Vocês devem estar lembrados que há pouco tempo eu lhes contei como atravessei a cidade toda e tomei 2 ônibus com a camiseta no lado avesso e, como se não bastasse isso, entrei na sala errada e na hora errada!

Pois bem, aquela foi a primeira vez, o primeiro dia em que eu me cientifiquei, de fato e de direito, que estou mesmo ficando caduco.

Hoje foi o segundo.

Fui para a escola ainda mais cedo do que o costume (entro às 19h00 às sextas feiras mas, em geral, chego à escola às 17h00, para não pegar ônibus muito cheios) e, algo entre feliz e orgulhoso, atravessei a rua e fui à loja de bolos. Meu objetivo era encomendar o bolo de aniversário do Carlos Eduardo Valim Rocha e da Maria Zanato. Os dois fazem aniversário no mesmo dia e já seria a segunda vez que comemorariam juntos, com um almoço em casa.

A loja pertence à família de um ex-aluno o qual, rapidamente, foi anotando a minha encomenda: um bolo de abacaxi com morango (na minha modesta opinião, o melhor que eles confeccionam) para o próximo sábado, daqui há uma semana. Eu deveria retirar às 11h30 e a obra prima em forma de bolo custaria apenas 44 reais.

Ainda feliz e orgulhoso atravessei a rua e entrei na escola. Contactei o Carlos no Messenger e comuniquei que havia encomendado o bolo.

Foi então que fui surpreendido por uma bofetada de realidade: o aniversário do Carlos e da Zanato é apenas daqui há 40 dias!

Senhor! Já não estava nem feliz e nem orgulhoso. Estava perplexo!

Na realidade, a caduquice é tanta, que nem por um momento eu deixei de saber ou me equivoquei em relação à data do aniversário: 6 de novembro. O problema foi que eu esqueci completamente que existia todo o mês de outubro, entre o dia de hoje e esta comemoração.

Isto é que é vontade que este ano terrível acabe!

Mães de alunos e suas “peculiaridades”:

Há mais de duas décadas atrás, na primeira escola onde fui efetivo na Prefeitura, durante uma reunião de pais, uma mãe me chamou de lado:

- Professor, o senhor está vendo aquele buraco ali no muro? Eu fico o dia todo observando o que acontece aqui nesta classe, onde minha filha estuda. Eu vejo as suas aulas, as aulas de todos os outros professores e tudo o que acontece dentro desta sala de aula!

Era uma das famosas “mães cervejeiras”, muito comuns naquela região e naquela época, anterior ao avanço neopentecostal.

Eram mães que, por não trabalharem fora, ficavam o dia todo nas imediações da escola, com um cigarro em uma das mãos e um copo de cerveja na outra. Em geral vestiam shorts e camisetas muito curtas e calçavam sandálias “rasteirinhas”.

Quando eu ia chegando de ônibus para as minhas aulas - que eram nos períodos intermediário, vespertino e noturno - uma das primeiras coisas que avistava eram as “rodinhas” que estas mães organizavam. Ficavam nos cantos e na frente da escola, sentadas na calçada, tomando cerveja e fumando.

Minha fala para aquela mãe naquela reunião foi no sentido de dizer a ela o quanto era afortunada em poder ficar o dia todo cuidando do que era feito naquela sala de aula, ou seja, ter tempo para cuidar da vida alheia, já que eu mesmo mal tinha tempo para cuidar da minha própria!

Outra mãe bem peculiar foi aquela que, já devidamente convertida ao neopentecostalismo, apenas quando o filho estava no nono ano, “descobriu” que ele é gay e culpou a escola por, segundo ela, “incentivar” a orientação sexual do filho!

Em primeiro lugar, necessário se faz dizer que se é que esta mãe olha para o seu filho ela de fato não o enxerga. Digo isto porque qualquer um que entre em contato com o rapaz percebe imediatamente qual a sua orientação sexual.

Sendo chulo, porém realista, eu poderia dizer que qualquer criança de um ano de idade perceberia que este rapaz é gay e que a própria mãe precisou que ele dissesse a ela, com todas as letras, para tomar consciência...

Em segundo lugar diria que não é a escola que “torna” alguém homossexual...Quando muito ensinamos aos demais alunos o respeito e a tolerância, para evitar o bullying homofóbico, inclusive criminalizado pelo STF, que equiparou a homofobia ao racismo. Neste sentido, a escola cuida para que a Constituição Federal, o ECA, a LDB e as demais leis vigentes no país sejam cumpridas.

Houve aquela mãe que apareceu na escola “dando barraco” com uma filmagem de menos de um minuto, do início de uma sexta aula, onde a única certeza é que seu filho, com os olhos arregalados e visivelmente surtado, estava batendo em um colega de sala.

Culpava o professor por “não fazer nada” (já que estava virado para a lousa) e dizia que a “escola não tem direção!”

Cúmulo do absurdo! Mãe que não educa e não dá limites para o filho – o qual, no final das contas, era visivelmente o agressor, e não o agredido - e depois vem demonizar o professor e a escola!

Em primeiro lugar que o filme é um fragmento, um recorte, que não dá conta de mostrar que todas as providências cabíveis foram tomadas, logo em seguida.

Em segundo lugar que ninguém ali havia autorizado a filmagem ou a divulgação da imagem, até porque o uso de celular em sala de aula é proibido!

Finalmente, em terceiro lugar, garanto a vocês que se o filme mostrasse o professor tendo uma intervenção mais incisiva - por exemplo, colocando a mão nos alunos para apartar a briga – esta mesma mãe, com toda certeza, estaria usando a filmagem para acusá-lo de ter batido no seu filho! Apostam quanto?

Há ainda, nesta mesma escola, a mãe que também é aluna da EJA.

Caso complicado. Mãe e filha são exatamente simétricas, com as mesmas deficiências e os mesmos cacoetes. Se falo com a mãe na reunião de pais da classe da filha, ou falo genericamente dos problemas de aprendizagem e comportamentais que ela apresenta – que são exatamente os mesmos que a mãe também apresenta – ou me limito a dizer “sua filha é exatamente igual a você, enquanto aluna” e deixo que ela mesma chegue às suas conclusões!

As Testemunhas:

O professor Mauro Rocha era também advogado.

Foi meu professor de Educação Moral e Cívica e, anos depois, trabalhou comigo, na mesma escola.

Contava que certa vez, num domingo, chegaram à sua casa alguns Testemunhas de Jeová para doutrina-lo.

Ele prontamente se qualificou:

- Eu sou advogado. Não vi nenhum crime, não conheço nenhum Jeová e, portanto, não posso ser testemunha de absolutamente nada! Passem bem. Bom domingo!

E fechou a porta.

Abrir a página principal