Alexandre Nodari
Título:
“Quasi-corpus”: indeixificação e texterioridade literárias
Resumo:
Partindo da hipótese aventada por Barbara Smith em “Poetry as fiction” de que a literatura não consiste na mímesis (em sentido amplo) de ações e feitos, mas de discursos e enunciados, ou seja, de que o ficcional em um texto literário não é (apenas) a referência, mas a alusão a ela (ou seja, a própria enunciação), pretendemos extrair algumas consequências que permitam esboçar uma ontologia da experiência literária. Em primeiro lugar, o caráter historicamente indeterminado ou mesmo (contr)a-histórico do texto literário (“a estória, em rigor, deve ser contra a História”, habitar o tempo do tal vez) implica que o contexto de interlocução da sua enunciação, o aqui-e- agora do eu fictício que o enuncia, não está dado nem pode ser reconstruído de uma vez por todos, mas deve ser produzido, feito – poetizado – a cada vez pela leitura: em certo sentido, o leitor promove uma “ocupação” (para usar uma expressão de Lucius Provase) da posição de enunciação. Um poema seria, argumenta Smith, como uma partitura musical ou o roteiro de uma peça de teatro, que precisa ser performado pelo leitor, o qual deve, para usar uma expressão de Ibã Huni Kuin, “pôr [o texto] no sentido” – nos dois sentidos: significação (alma) e materialização (corpo). Todavia, essa experiência performadora não consiste em uma deixificação completa da linguagem, em que o “eu” da enunciação do texto literário se reduz ao “eu” do leitor, nem tampouco em uma identificação subjetiva pura e simples, pelo qual o “eu” do leitor se cola ao “eu” poético, mas em uma espécie de equi-vocação dêitica entre “eus”, que sugerimos chamar pelo neologismo de indeixificação. Pois o fora de um texto literário (seu contexto, seu sentido, sua referência, o aqui-e- agora para o qual aponta) não coincide completamente com o seu dentro (há uma referenciação, embora fictícia, i.e., equívoca), nem é estabelecido por ele de forma positiva; antes é indicado pelos seus buracos, pelas suas entrelinhas, pelos intervalos da trama da tessitura, sem os quais essa não existe. Assim, se “todo texto tem seu fora do texto” (Eduardo Viveiros de Castro), então o texto literário parece constituir uma texterioridade: um espaço-tempo transicional, constituído pela intersecção dos eixos dentro-fora e eu-outro, a ser ocupado na experiência performadora da leitura por um sujeito igualmente transicional (termos inspirados em Winnicott), um “ego experimental” (Milan Kundera), uma terceira margem oblíqua entre o eu e o outro, a interioridade e a exterioridade, embora heterogênea a eles. A experiência literária parece, ou ao menos é o que tentaremos defender, dar corpo a uma relação, tornar palpável uma metamorfose.
Palavra-chave 1:
corpo
Palavra-chave 2:
texto
Palavra-chave 3:
experiência
Palavra-chave 4:
exterioridade
Flávia Letícia Biff Cera
Título:
Corpo do texto, corpo no texto.
Resumo:
Há texto quando há encontro. E há encontro quando há estranhamento. Talvez seja só assim, ou seja, saindo das malhas de identificação, e nos aproximando do incômodo que possamos experimentar os efeitos de um texto. Essa experiência nos faz ler o que não pode ser escrito – que, segundo Lacan, é o real da relação sexual –, porque não é mais um gesto de interpretação, nem mesmo um gesto de suposição. É algo que ressoa do corpo e no corpo, perto do tremor e do abalo. O choque do texto com o corpo que cria, no gesto de leitura, um corpo do texto. Corpo que não corresponde à linguagem, esta entendida como um sistema de significantes e significados, mas que corresponde à língua. Ponto sem articulação que passa por fora do sentido e se escreve no corpo. Um texto do corpo, portanto. Para discutir esses temas tomaremos Clarice Lispector que em A paixão segundo GH apresenta um corpo que na?o se encerra em si mesmo: e? no corpo da barata, na alteridade absoluta, que G.H. faz uma experie?ncia de si, nesse atravessamento dos corpos, nessa relac?a?o em que o outro e? tomado em sua diferenc?a radical.
Palavra-chave 1:
corpo
Palavra-chave 2:
texto
Palavra-chave 3:
escrita
Palavra-chave 4:
experiência
.
Cecilia Cavalieri
Título:
jardim do corpo
Resumo:
queria escrever e ler e nadar então mergulhou em uma piscina vazia cheia de cacos de vidro cheia de plantas cortantes com uma espinha de peixe nas costas a sustentar seus livros favoritos¬¬ existe uma relação singular da performance com a poesia, no sentido de o "programa" performativo sempre ser uma espécie de poema; quase como se a performance fosse a realização de um poema, como se ela desse literalidade à experiência poética ou, ainda, como se realizasse a experiência físico-química e espaço-temporal da própria poesia: não sua representação, mas a própria coisa em si dita no espaço, excedendo à linguagem. jardim do corpo é o desdobramento de uma residência artística chamada becoming an image, feita por um grupo de artistas do campo da performance, pilotada pelo fotógrafo e performer italiano manuel vason e realizada em 2014, na casa do sol, morada bucólica de hilda hilst em campinas. o poema-epígrafe deste resumo nada mais é do que uma pequena narrativa descritiva de uma das cenas que se materializaram durante esta residência. me explico: trata-se de uma composição da artista ana hupe, que pesquisa a relação da escrita com o nado, e na ocasião construiu uma espinha de peixe em madeira, dela fez uma estante onde depositou os livros mais importantes de sua vida, pendurou-a nas costas e andou pela gigantesca piscina vazia e abandonada nos arredores da casa do sol. em sua tese de doutorado [nyu, 2006] eleonora fabião, performer e teórica da performance, cunhou o termo “programa performativo” como uma operação composicional específica a partir da ideia de programa proposta por deleuze-guattari no famoso cso, em escrito de 28 de novembro de 1947. no fragmento do texto os autores sugerem que o programa é o “motor da experimentação”, ou motor de experimentação psicofísica e política. partindo da proposição de fabião e deste encontro na casa do sol, jardim do corpo performa uma certa literatura ou literaliza os acontecimentos dos dias na casa, estabelecendo uma relação entre programa performativo, performance e poema: as imagens produzidas durante a residência, cada cena – registrada em fotografia ou não – colocada no papel como texto ganha força poética de acontecimento. mais do que uma grande coincidência, uma residência sobre performance na casa de uma poeta, hilda hilst, é uma espécie de confirmação desta hipótese, a de que a performance seria a encarnação do poema. naquele lugar historicamente encharcado de corpo, acidentar os espaços durante uma residência de performance era materializar poemas: nua elen rastejou entre as folhas por 8 metros úmidos por 80 minutos ofegante até sangrar o ventre jardim do corpo é uma investigação que propõe, a partir da “análise” das imagens resultantes da residência, uma inquietação diante das noções de poesia e performance.
Palavra-chave 1:
performance
Palavra-chave 2:
programa
Palavra-chave 3:
poesia
.
Rodrigo Ielpo
Título:
As máscaras de si: performances do autor em Jean-Benoît Puech
Resumo:
Starobinski, em seu texto sobre “Os problemas da autobiografia em Rousseau”, explica que a linguagem funcionaria para o autor das Confissões de duas maneiras: seria tanto a instância de uma experiência imediata através da qual o ser se criaria, quanto uma mediação entre interior e exterior, atuando como “dar-a-ver” de uma verdade profunda – porém transparente - do sujeito. A autenticidade do relato surgiria, assim, no ato da sincera espontaneidade com que o autor se entregaria ao próprio lance da escrita. No que pese a importância desse aspecto para a produção autobiográfica ao longo do século XX, vemos, sobretudo na segunda metade do século, certo grupo de textos que parecem inaugurar outro regime de sinceridade. Neste, a autenticidade passaria a orbitar ao redor de uma exterioridade produtiva na qual o sujeito parece se ver, desde o início, não mais a auscultar suas profundezas, mas a performar suas superfícies por meio de narrativas que ao mesmo tempo em que o despossuem se oferecem como chave de reinvenção. A sinceridade, nesses termos, se daria menos por espontaneidade que pela construção de estratégias narrativas que permitiriam ao autor, como nos diz Barthes em O grau zero da escritura ao falar dos signos romanescos, “indicar a máscara que está usando”. O comentário de Barthes nos remete diretamente à experiência ao mesmo tempo crítica e ficcional encenada pela obra do escritor francês Jean-Benoît Puech. Misturando análises de livros imaginários e autores inexistentes que não cessam de flertar com biografemas do próprio Puech, La bibliothèque d’un amateur pode ser pensado como um interessante exemplo dessa problemática. Como nos diz um dos autores de seu livro, “essas páginas tecem os efeitos que nos cobrem e sem os quais nós nos apagaríamos.” No regime de sinceridade em que esse texto se inscreve, não haveria mais uma distância possível entre as máscaras e o próprio autor que as porta, performando por essa via seus possíveis aparecimentos através dos quais ele se dá a ler a si próprio. O objetivo dessa comunicação é pensar esses efeitos de que nos fala Puech a partir da questão lançada por Judith Butler em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética: “O que posso me tornar, dada a ordem contemporânea do ser?
Palavra-chave 1:
performance
Palavra-chave 2:
máscaras
Palavra-chave 3:
autor
Palavra-chave 4:
Puech
.
Juliana Pereira
Título:
Susana Thénon e Angélica Freitas: poesia, corpo e excesso
Resumo:
Em suas reflexões sobre a arte contemporânea na obra Volverse público (2014), Boris Groys discute, entre outras questões, sobre a “time-based art”. Trazendo o pensamento de Bataille sobre a noção de dispêndio e de Derrida sobre diferença e repetição – e afirmando que Sísifo, de Camus, poderia ser compreendido como um protótipo dessa arte –, Groys afirma que a repetição literal na “time-based art”, por ser artificial, provoca um furo no tempo, produz excesso de tempo. Não se trata de uma obra que pode ser contemplada ao ser exibida; diante dela, o “espectador”se vê impossibilitado de criar um juízo estético. Uma vez que na vida contemporânea exige-se tempo produtivo e o tempo desperdiçado não faz parte do registro de narrativas, Groys afirma que a “time-based art” documenta esse tempo que corre o risco de se perder, e que por isso essa arte é contemporânea, pois, segundo o autor, é “camarada do tempo”, sentido esse tomado da acepção alemã do termo “contemporâneo” ("zeitgenossisch", em que "Genosse" significa "camarada"). Interessante observar que, com relação à poesia, o excesso recorrentemente foi compreendido como algo a ser desvalorizado e rechaçado. Quanto às poetas que interessa a este trabalho, que são Susana Thénon e Angélica Freitas, observam-se produções críticas (sobre aquela, um exemplo é a resenha “Asesinato del espíritu santo”, de Ricardo Herrera, em Hablar de poesía; sobre esta, o artigo “Feminismo ralo serve a interesses comerciais imediatistas”, de Denise M. Freitas, publicado na Sibila) que partem de uma noção de estética como elaboração de procedimentos puramente formais, excluindo aquilo que não se encaixa nessa noção: segundo seu entendimento, essas poesias são ou verborrágica e estéril, no caso de Thénon, ou uma repetição sem critério e infrutífera do coloquial, no caso de Angélica Freitas. Contudo, assim como, na performance, o corpo é mediação (Ana Bernstein, 2001), e segundo Groys, os meios agenciam relações, na poesia, o próprio poema é corpo e, enquanto tal, está sempre em relação. Assim, não seria, no lugar dessa percepção formal de estética, mais interessante perguntar de que forma tal “verborragia” e repetição do cotidiano podem ser compreendidas como performáticas, principalmente porque, na relação que se coloca por meio do corpo do poema, a operação de repetição e de “esterilidade”cria efeitos, produz excesso que, conforme Groys, é contemporâneo porque produz um inscrever-se incessante do presente? Podemos fazer, diante do poema, a mesma pergunta que Didi-huberman faz diante da imagem, “que tempo é esse?”, e então observar que se coloca uma imensidão, uma abertura, provocada por este excesso que fura o tempo? O objetivo deste trabalho, portanto, é discutir, a partir dos poemas, que possíveis perguntas provocam esse “falar desvairado” e “verborrágico”, repetitivo; como isto pode ser compreendido como performativo; e, nesse sentido, de que modo um movimento do poema para fora de si produz contato e fricção e se insere na partilha do sensível (Jacques Ranciére, 2009).
Palavra-chave 1: poesia Palavra-chave 2: corpo
Palavra-chave 3: tempo Palavra-chave 4: estética
.
Guilherme Gontijo Flores
Título:
Perder o espírito - a tradução como poética nas performances dos K?sêdjê
Resumo:
Ver como outros povos traduzem ou performam isso que nós ocidentais chamamos pela metáfora de traduzir (nas línguas neolatinas, derivado "traducere", "conduzir para o outro lado") ou trasladar ("translation", em inglês, a partir "translatio", em latim) ou "Überseztzung" (com o mesmo sentido etimológico, em alemão, apesar de origem diversa), etc., pode oferecer uma ampliação imensa em nosso escopo das ideias tradutórias, porque mostra como nosso modo de pensar esse ato — e portanto de teorizá-lo e praticá-lo — é profundamente marcado pelas metáforas que o circundam. Basta pensarmos em um termo indiano como "rupantar": segundo Maurizio Bettini (2012: x) "ru" significaria “forma” e também significa “beleza”, o que faz com que essa mesma "mudança de forma" produzida pela tradução produza uma nova beleza. Um caso como esses nos faz pensar que, muito embora a mudança de língua de um texto possa parecer banal, o modo de encarar esse mesmo ato muda muito. Daí a necessidade de uma espécie de antropologia tradutória e performática. Exatamente por isso, limitar-se a traduzir as palavras para ‘traduzir’ por ‘traduzir – o trocadilho é inevitável – leva não apenas a falsear o sentido dessas palavras específicas, mas, pior ainda, a mistificar o contexto cultural onde elas foram geradas (2012: ix). Mas não é apenas o vocabulário que muda. Também podemos encontrar lógicas tradutórias em espaços muito diversos. No estudo antropológico de culturas do presente, por exemplo, como observa James Clifford a respeito dos trabalhos de campo em pesquisas etnográficas, “muito do nosso conhecimento sobre outras culturas deve agora ser visto como contigente, o resultado problemático do diálogo intersubjetivo, da tradução e da projeção” (2014: 73), mas aqui tradução/projeção indica, para além do confronto linguístico, um processo interpretativo em que um etnógrafo se relaciona com um determinado grupo; é o mesmo que sugere Eduardo Viveiros de Castro, ao lembrar como é praticamente um clichê a comparação entre antropologia e tradução (2002: 15 e 2009: 54). O ponto que instiga, aqui, é pensar não especificamente a tradução antropológica necessária para qualquer relato, discurso etnográfico, estudo cultural, etc.; mas pensar antropologicamente como a tradução toma forma em determinados grupos. Desejo fazer isso com o modo com que o povo k?sêdjê entende a origem de seus próprios cantos, segundo a análise feita por Anthony Seeger em "Por que cantam os K?sêdjê?" (2015). Veremos há um problema crucial na abordagem: em momento algum Seeger fala dos cantos k?sêdjê como traduções, em momento algum vemos o termo tradução nas citações dos próprios K?sêdjê. Mas isso não quer dizer que não haja aí um pensamento tradutório em ação; muito pelo contrário, ampliando a citação de Bettini, poderíamos dizer que não devemos nos limitar a traduzir as palavras para traduzir por traduzir, mas precisamos ainda pensar como um traduzir se dá até onde uma palavra para tradução não aparece. Desse confronto imaginativo, podemos sugerir uma categoria peculiar dos K?sêdjê: não uma poética da tradução, nem mesmo uma reflexão sobre tradução poética, mas a tradução como poética.
Palavra-chave 1: Tradução Palavra-chave 2: Antropologia Poética
Palavra-chave 3: Performance Palavra-chave 4: K?sêdjê
.
João Camillo Penna
Título:
Pragmática e poética do programa
Resumo:
« O ‘programa’ performativo é sempre uma espécie de poema » (Cecilia Cavalieri). « Ninguém me representa. » O "programa" da performance (cf. Eleonora Fabião) é um gênero interessantíssimo : misto de descrição, narração e imperativo, contrato entre o performer e os participantes da perfomance, enunciado preditivo que estabelece as coordenadas da espacialização e temporalização do programa. Escrito, em geral, ele constitui uma cifra a ser realizada. Seu espaço é o da virtualidade do real. O programa é um « performativo », no sentido estrito que Austin empresta ao termo, de um enunciado que age, que é ação. A chamada « virada performática » procurou dar conta do deslocamento da noção de obra e de texto para a de acontecimento. Se a literatura não produz representações mas pautas ou programas de ação, hipótese que gostaria de sustentar aqui, seria preciso repensar integralmente a noção de mito, de literatura e de ficção. Algumas referências para esboçar essa pergunta. Sabemos que o Livro de Mallarmé se queria uma espécie de « partitura » a ser «performada»: uma cerimônia ou ritual, baseada no modelo da missa, mas sem o anteparo de um padre, representante de um deus, e de fato sem deus, um ritual imanente, pensado a partir do modelo da música que junta pessoas sem representá-las (cf. « Ofícios »). Um show de música. O Livro é a cifra de um ofício, uma festa cívica, organizada em torno de um « significante vazio », para usar a expressão que Ernesto Laclau sugeriu para se pensar o modo de articulação de coletivos singulares, constituídos de grupos heterogêneos com reivindicações distintas, contraditórias e frequentemente inconciliáveis. Outra referência : o livro impossível novaiorquino de Hélio Oiticica (cf. Frederico Coelho) surge da frustração pela não realização do ambicioso projeto indefinidamente redesenhado de instalar quatro penetráveis interligados no Central Park. Excessivamente custoso, o projeto nunca foi realizado, e o artista imigrante, instalado no centro da periferia do império, e agora de fato um marginal, que ele havia antes heroicizado, encolheu os penetráveis que viraram maquetes, modelos, instruções, manuais, visando a uma realização sempre projetada, e afinal nunca levada a cabo. O livro seria literalmente a materialização de uma regra de construção, que acaba se realizando em si mesmo, um penetrável que penetra no espaço em construção do modelo. Terceira referência: uma manifestação, por exemplo, as manifestações de junho de 2013, que inseriram a política contemporânea brasileira no espaço da rua, e a rua como espaço privilegiado da manifestação da política não-representativa, é a realização de um programa. O caminho aqui seria o inverso : a pauta composta pela manifestação, realizada por ela, precisaria ser post factum deduzida. As manifestações, que se espalharam pelas ruas das maiores cidades do Brasil, articulam e são articuladas por grupos, coletivos e reivindicações as mais diversas, em torno do significante vazio anti-poder, anti-governo, anti-estado. Minha hipótese : instaura-se aqui um novo programa da política, cujos termos ainda precisam ser decifrados, coisa que quem sabe a performance nos ajude a fazer.
Palavra-chave 1: performance Palavra-chave 2: programa
Palavra-chave 3: Mallarmé Palavra-chave 4: manifestações de junho de 2013
.
Mariana Patrício Fernandes
Título: Onde esta a paixão? Onde está a política? Manifestações (in)tensas) da relação entre corpo e política na contemporaneidade
Resumo:
O presente trabalho toma como ponto de partida as indagações levantadas por duas artistas da dança cujas obras se relacionam de forma intensa com a literatura e o pensamento para pensar os desafios contemporâneos da relação entre corpo, literatura e política na contemporaneidade: Yvonne Rainer e Mathilde Monnier. Nos anos 1960 a coreógrafa, cineasta e escritora americana Yvonne Rainer estava pensando modos de colocar o corpo em cena no qual este não estivesse submetido à um sistema de significações que lhe eram exteriores. Quarenta anos depois de sua composição, a coreógrafa faz a autocrítica do seu desejo de construção, nos anos sessenta, de uma presença neutra do performer em cena na palestra proferida no Rio de Janeiro, em 2006 intitulada Where’s the Passion? Where’s the Politics? or How I Became Interested in Impersonating, Approximating, and End Running Around My Selves and Others’, and Where Do I Look When You’re Looking At Me? A questão foi lançada por uma aluna de Patrícia Hoffbauer, bailarina e professora do Departamento de dança de Yale University. A aluna lançou a questão após assistir a um vídeo da emblemática coreografia de Rainer Trio A, criada em 1966. Recusando o virtuosismo ou a expressividade do movimento, Rainer impossibilita a construção de qualquer linha narrativa ou de dramaticidade através da dança. No entanto, como comenta na palestra de 2006, esse vínculo entre corpo e identidade não se desfaz através do ideal de uma neutralidade assubjetiva do performer. Há sempre um “eu” que insiste em ocupar a cena. Como então problematizar essa questão? Em 2005, a coreógrafa francesa Mathilde Monnier e o filósofo francês Jean-Luc Nancy escrevem o livro Allitérations no qual discutem temas relativos aos modos de produção de sentido através corpo. A esse respeito Nancy reconhece no corpo que dança um lugar por onde o sentido escapa: “Le corps c’est le lieu par ou le sens s’échappe”. Problematizando essa afirmação, Monnier dizia que em seu trabalho tinha o desejo de pensar como a dança poderia se articular com questões políticas e subjetivas que a cercavam, nesse processo de esvaziamento do sentido. Agenciar essas questões com o corpo em movimento era para Monnier o grande desafio da dança (Nancy, Monnier,2005:20). É possível notar nesse desejo de pensar em um modo de relação entre corpo e política que não submeta o primeiro a um sistema de discursividade normativa, mas que ao mesmo tempo possa manifestar inquietações políticas e sociais, um prenúncio da explosão de corpos insurgentes que tomaram as ruas do mundo a partir dos movimentos de ocupação dos anos 10 do presente século. O desejo de ocupar espaços públicos com corpos excluídos do sistema político coexiste com a necessidade de reinventar a sua relação com a linguagem. Escapando às capturas autoritárias da arte engajada, mas capaz de resistir aos ditames normativos da onda conservadora do capitalismo contemporâneo. A literatura oferece uma resposta possível para esse impasse? Através dessas questões o trabalho pretende pensar nos desafios contemporâneos que a noção de engajamento enfrenta.
Palavra-chave 1: Corpo Palavra-chave 2: Literatura Palavra-chave 3: Política Palavra-chave 4: Engajamento
.
Nathalia Greco de Freitas Cardoso
Título:
“na asa do vento corre o melancólico corpo”, escrita e performance em Diários, de Al Berto
Resumo:
Um dos poetas contemporâneos que se embrenhou pelo labor diarístico foi o português Al Berto, cuja singularidade se dá no redimensionamento do lugar desse gênero considerado menor, centralizando-o enquanto escrita de dimensão ética e estética em nada inferior à noção de obra literária inventiva ou poética. Em sua obra completa, hoje reunida sob o título de O medo, há uma pluralidade de gêneros em que é possível perceber um espraiamento do eu em poesia, autorretratos, cartas, gravuras, desenhos, fotos e, no objeto dessa comunicação, seu diário, que revelam uma forte necessidade do mis-en-coeur à nu. Para além disso, o fato do escritor autorizar a reunião desses diferentes registros todos sob um único título aponta para a possibilidade de ler a sua obra de uma mesma maneira (há, constantemente, um tu, um endereçamento nas poesias, como se elas também fossem diarísticas, pessoais). Pode-se ler como poesia, os diários, e as poesias como o diário. No presente trabalho, intenta-se perfilar o lado de um Al Berto como escritor-performer, que sofre o mundo no corpo, uma vez que pode-se perceber uma potente tensão entre vida/obra que se extravasa em uma “escrita frenética”. Na escrita albertiana, a importância de se tratar a performance como operadora de práticas e sentidos parece reverberar na inseparabilidade entre escrita e vida, entre o viver e o dizer. O gênero adquire um outro sentido, performativo, no que tange a passagem de um modelo de representação e descrição dos dias para o de um ato de fala que realiza a subjetividade de um eu em relação incontornável com a linguagem. A performance age, portanto, na realização de um mundo criado em ato, continuamente, ao mesmo tempo em que é sintoma não só da realidade linguística como único real possível, mas também de certo “declínio da sinceridade” (Carla Damião), projetada desde Baudelaire, com a noção de “sinceridades artísticas” como habilidade de criar “impressões de verdade” ou verdades realizadas pelas pequenas intensidades em ação na linguagem, isto é, como prática da própria língua. A própria capa da sua antologia, O Medo, é Al Berto em uma encenação caravaggiana, com partes de seu corpo à mostra e que nos revela o intenso jogo proposto entre representação, subjetividade e sinceridade, de um eu que procura essencialmente uma assinatura. Golgona Anghel, importante pesquisadora e organizadora de sua obra, além de poeta, afirma no prefácio de Diários, que “estamos perante um corpus que se expõe a si mesmo”, muito porque é alimentado por um corpo, tão fragmentado quanto o estilo da escrita do devir, que sente e escreve tudo que vive e experiencia. Estamos diante de uma escrita que passa pelo corpo, “escrevo-te a sentir tudo isto.”.
Palavra-chave 1: diário
Palavra-chave 2: subjetividade
Palavra-chave 3: corpo
Palavra-chave 4: perfomance
.
Adriana Sucena Maciel
Título: Variações – poéticas em movimento
Resumo: Para lidar com as demandas de sua multiplicidade, as complexas formas de escrita do século XXI, é preciso colocar em jogo os diferentes modos de escuta dessas escritas e os meios pelos quais se fazem ouvir. Nesse cenário intenso, há escritas que são performáticas e performativas. Performáticas no sentido em que organizam, em sua própria feitura, uma invenção singular com a linguagem, performativas, porque agem no tempo e no espaço de sua recepção. O pensamento não se desata do corpo que produz, esse corpo é, ele mesmo, pensamento em ação. São formas críticas de lidar com as realidades, formas narrativas que produzem ficções, que em nada opõem-se ao real, mas, ao contrário, realizam dissensos. Os novos cenários da escrita incluem a de produção de pensamento, produção crítica de conteúdo, considerando, sempre, que conteúdo não exclui forma. A forma é linguagem. Há modos e limites fluidos que buscam seus contornos. As contemporaneidades, múltiplas, exigem novos desafios e outros modos de leitura/escuta. Ressignificações. A dispersão é uma forma de percepção capaz de produzir arranjos cognitivos singulares e desviantes da tradição, abrindo linhas de fuga importantes para o pensamento crítico às realidades em que estamos inseridos. A escrita é, também, espaço de estabilização de gestos artísticos fluidos que não geram um corpo estruturado, mas corpos imateriais em disseminação. Toda narrativa é uma maneira de lidar com o tempo, é interpretação desta temporalidade, é duração que delimita espaço. Em grande medida, as experiências estéticas atuais são sinestésicas e comunitárias. Instauram, durante o momento do encontro, pequenas comunidades circunstanciais, no caso de textos em livros formam-se microcomunidades, sem objetivos comuns, sem laços, sem comprometimentos. Essas linguagens se fazem em um tempo flutuante e propõem uma experimentação, sempre em processo. Em muitos casos, é a partir de uma escrita verbal que elas se estabilizam. Se é impossível – e desnecessário – eliminar o hábito da interpretação, é, da mesma forma, imprescindível perceber a constituição de realidades que as experiências estéticas promovem. As escrituras inventam um espaço habitável de reverberação de corpos. Esse espaço é, ele mesmo, experiência real, não uma simulação ou tentativa mimética da vida. No exercício da sua complexidade, entre ordem e contingência, encena formas ativas e potentes de desconfigurar o mundo, reconfigurando-o a partir de práticas que nos ultrapassam, que não se fazem no solipsismo de nossas histórias e referências pessoais, mas na intrincada rede de relações entre os diversos corpos que ocupam o planeta. Som é matéria, presença. No momento da escuta, ganha forma e, talvez, sentidos, nem sempre estáveis. Frágeis e potentes. Os sons no mundo são realidades que se fazem e desfazem de acordo com encontros. Às vezes deixam rastros. Às vezes, nada. A experiência da escuta não traz um sentido geral de verdade, é uma prática contingente, particular e incompleta. Em vez de um nome, na prática de John Cage, o som é um verbo, age intransitivo, molda realidades, produz afetos, gera e apaga memórias. A escuta é possibilidade de invenção. Os sentidos se misturam na percepção e criação de mundos. Quanto mais aguçados, mais oportunidades se fazem ouvir, mais nos aproximamos do caos. Caos, nesse caso, é afirmação da vida em sua desordem ruidosa, sem hierarquias e sem razão. A partir de 1958, Cage começou a compor uma série de trabalhos a que chamou de indeterminados, nos quais passou a usar, cada vez mais, sistemas e equipamentos eletrônicos. As Variation, de I a VII, é com elas que se escreve este texto.
Palavra-chave 1: John Cage
Palavra-chave 2: Escrita
Palavra-chave 3: performance
Palavra-chave 4: escuta
Lia Duarte Mota
Título: Escrita em movimento
Resumo: Este trabalho pretende desenvolver um conceito de escrita performática, entendendo-a como uma escrita composta com o corpo, como experimento realizado na estrutura do texto e em sua forma, na recriação da sequência frasal e de sua pontuação, de modo a reverberar no sensível e afetivo antes de ser capturada pela representação, pois é na tentativa, no experimento, que o corpo aprende algo novo. Uma escrita performática só é possível após o questionamento dos limites da arte e a dissolução de barreiras entre o pop, o marginal e a arte estabelecida. Artistas como José Agrippino, Lygia Clark, Luiz Ruffato e Paulo Nazareth, em seus trabalhos, parecem expandir a noção de arte ao experimentarem com os limites impostos pelas áreas nas quais atuam. Luiz Ruffato chama "Eles eram muitos cavalos" de instalação. Paulo Nazareth propõe uma peregrinação pela América Latina, Notícias da América, uma residência móvel, uma arte de conduta. José Agrippino desenvolvia happenings ou, como preferia nomear, teatro rock. Lygia Clark interessava-se pelo “ato imanente realizado pelo participante”. A partir de tais percepções, parece produtivo explorar como a escrita textual, em "PanAmérica" e "Eles eram muitos cavalos", reverbera no corpo físico que a lê para além de seu corpo da linguagem, e como os trabalhos "Caminhando", "Notícias da América" e "Aqui é arte", que colocam o corpo em ação e o ato como trabalho, tocam a escrita textual. Parte-se, aqui, da proposta de escrita como movimento. Movimento dos dedos, das mãos, antebraço, ombro, até que se chegue ao tronco, centro do corpo. Principalmente, movimento do pensamento. Não se trata do binômio mente-corpo, imaginado pelos cartesianos. O pensamento se desloca. Desloca-se pelo corpo até chegar à folha branca do papel, podendo ser originado em qualquer parte dele. O pensamento, esboçado no papel, torna-se escrita. O movimento desta pede um esforço originado no centro do corpo que se espalha pelas extremidades. Por isso, trata-se de um esforço no sentido de espalhar. A escrita é um movimento de espalhamento. Ela se dissemina. Movimentos são formas de expressão. Rudolf Laban, dançarino e coreógrafo, compreendeu que os movimentos são realizados por impulsos internos. O corpo produz um esforço que os origina e define a sua singularidade. O esforço pode ser percebido, pode ser visto, ouvido, tateado. É composto por tensões musculares e formas espaciais variadas. Como corpos são diferentes, os movimentos são únicos. Assim, quando realizam um movimento, os homens se distinguem. O corpo está sempre em movimento, mesmo quando parece parado. O fisiologista John Basmajian, no século XX, descobriu que não era preciso um feedback (uma demonstração visual) para que as pequenas unidades do corpo entrassem em movimento, bastava colocar a atenção em determinada parte do corpo para que a musculatura ganhasse tonicidade. Pensar, portanto, produz movimento. Assim, esses trabalhos produzem uma experiência transformadora, que causa sensações físicas e emotivas, ativa-as no corpo todo. Coloca-o em prontidão, mesmo o corpo deitado que lê, pois produz movimentos, ainda que bem pequenos e só internos, invisíveis no exterior, produz pensamento que o circula.
Palavra-chave 1: escrita
Palavra-chave 2: performance
Palavra-chave 3: corpo
Palavra-chave 4: movimento
Érika Rodrigues Corrêa
Título:
Dar com a língua nos dentes: o conto sertão.
Resumo:
A comunicação pretende estabelecer como questão que sertão é uma espécie linguística performativa orientada pelo estalar da língua de Riobaldo. Tendo por guia a escuta do seguinte trecho da obra Grande Sertão: Veredas, escrita por João Guimarães Rosa, o qual diz: "Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo" (ROSA: 1994, 245), busca-se compreender como a palavra pegante sertão, enquanto signo linguístico, ganha corpo e chão – entendendo-se aqui a extensão de suas veredas -, ao passo que o contar de Riobaldo vai atravessando, sulcando qualquer escuta que se oferece a pôr-se diante de si e a testemunhar o que o ele afirma conhecer. Indo além, entende-se que sertão é mais do que um som que reverbera na voz de Riobaldo e uma palavra prenhe de significados que se organizam no interior de sua narração, é a instalação de uma imagem que dá aparência às coisas narradas e à Riobaldo, instrumento do narrar, a visão de si mesmo e o pertencimento ao que o sertão funda. Tendo esse pensamento em vista, ao colocar diante dos olhos ou dos ouvidos o dito de Riobaldo, "O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?" (ROSA: 1994, 840), o leitor, congênere desse narrador, percebe que sertão – aquela palavra pegante – roça nas coisas, inclusive no próprio leitor, enredando-as numa trama que, em sua ação performativa, artificializa uma forma falada, que acende a própria ideia de conto, de uma reprodução de extensões, de imagens repassadas ao longo do tempo. Assim, segue o leitor, envolvido pela “matéria vertente” (ROSA: 1994, 134) que é o sertão e sendo requisitado pela própria busca de expressão da obra, glosando de ditados que parecem lhe ensinar algo sobre o contar. Ainda, incidindo na ideia de que sertão trama um grande conto e também o é, essa comunicação investe suas reflexões para pensar o gesto literário do contar, deposto em terras brasileiras por João Guimarães Rosa, buscando reconhecê-lo como um gesto inaugural de fundação e de descoberta de uma nova terra, ainda inabordável, que se supõe apta a declinar sua filosofia. Filosofia essa que, aludindo às contribuições da filosofia emersoniana, se desenreda ao passo que a palavra sertão, por constituir-se em peso, finca o lugar e destrincha, pelo seu poder de deslocamento, a ideia filosófica de chão, de fundamento. Sendo assim, ao ouvir Riobaldo ao leitor dizer "O senhor faça o que queira ou o que não queira – o senhor toda a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão." (ROSA: 1994, 763), pretende-se pensar no quanto sertão, essa espécie linguística, é, em sua performance, o labor do contar a mirar a travessia filosófica de se pôr a caminhar com ela.
Palavra-chave 1: Sertão
Palavra-chave 2: Conto
Palavra-chave 3: Filosofia
Palavra-chave 4: João Guimarães Rosa
.
Marilia Librandi Rocha e Sergio Bairon Blanco Santanna
Título:
Usina de ruídos: Machado de Assis e o eco fonográfico.
Resumo:
Essa fala analisa a imbricação entre morte, escuta e escrita no romance de Machado de Assis. Qual a relação entre a escrita da morte (“memórias póstumas”) e a escuta da vida, e entre a escrita da vida (autobiografia) e a escuta da morte, que compõem a revolução estética de Memórias Póstumas de Brás Cubas? Para responder, estabeleço uma analogia entre o surgimento simultâneo desse romance, em 1880/1881, e o aparecer das novas tecnologias na mesma década, em especial aquela que desde seu anúncio mais se aproxima da morte: o fonógrafo. Patenteado por Thomas Edison em 1877, eis sua anunciada magia: a de que a partir de então seria possível ouvir (e não apenas ler) a voz dos mortos, e guardar as vozes (sem o corpo). A partir dessa coincidência histórica, indago: seria possível ler Memórias Póstumas de Brás Cubas como um “romance-fonógrafo”? Como um texto performando os ruídos na escrita de modo similar ao fonógrafo, que registra os barulhos, a fisicalidade do corpo em ação, e não apenas palavras articuladas? Como é possível que a voz continue viva separada do corpo que lhe deu origem? Como é possível entender a junção entre voz e morte? Para pensar essas questões, sigo de perto a narrativa histórica das mídias, proposta por Friedrich Kittler, e a analogia que ele estabelece entre dois eventos contemporâneos da década de 1880: as novas tecnologias e a psicanálise. A partir da terminologia de Jacques Lacan, Kittler propõe que o fonógrafo está para o Real lacaniano, assim como o filme está para o Imaginário, e a máquina de escrever para o campo do Simbólico. A grande mudança do fonógrafo, de acordo com Kittler, é a mudança de uma ordem em que o simbólico domina para uma (des)ordem na qual o real assume preponderância, pois o fonógrafo grava e reproduz os ruídos de fundo, os restos e resíduos, que nem o espelho do imaginário nem as grades do simbólico podem captar. Brás Cubas pode ser assim definido: como uma voz falante em um corpo, literalmente, morto. Brás Cubas é a escrita simbólica sendo comida pelo real (dos vermes). Bras Cubas é um corpo sendo roído, em ruído, enquanto escreve, assim como a agulha roendo o disco enquanto ouvimos as vozes que dali emanam. O narrador defunto autor seria como uma espécie de presença espectral entre o nada e o simbólico, que inaugura a morte da autoria por meio de uma voz autoral que só se torna possível postumamente. Podemos falar dos Machadianos arruídos, sussurros, soluços das damas, do burburinho surdo das conversas, do bulicio, do diálogo entre Adão e Eva, do palavrear de estômagos, do chocalho de Brás Cubas. O "som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro", e que compõe a “orquestra da morte” que Brás Cubas ouve ao morrer, é também o som do fonógrafo: a não-linguagem dos ruídos que só pode ser compreendida pela escuta na escrita.
Palavra-chave 1: Machado de Assis
Palavra-chave 2: Fonógrafo
Palavra-chave 3: Friedrich Kittler
Palavra-chave 4: Textura sonora
.
Lucius Provase
Título:
A performance como produção de lastro
Resumo:
A minha fala partirá de um pressuposto teórico-conceitual: vivemos, hoje, um momento em que o discurso perdeu seu lastro. Explicando rapidamente, há dois pontos que sustentam essa hipótese: as condições de partilha de um mínimo múltiplo comum do nosso discurso se perderam devido a uma dificuldade em compartilhar o tempo; as palavras sofreram um ataque especulativo, resultando em uma circulação excessiva de significantes. Tal perda se relaciona diretamente com uma mudança no intervalo entre espaço de experiência e horizonte de expectativa, termos do historiador alemão Reinhardt Koselleck, causando uma maior dificuldade de relacionar a experiência do tempo presente com a experiência de tempo passado e, ao mesmo tempo, causando a dificuldade em projetar o tempo presente no horizonte de expectativa. Essa quebra na maneira como o tempo é percebido provoca uma fissura nas relações sociais. Com a ausência de um tempo comum a ser partilhado, o discurso passa a funcionar sem a experiência de tempo necessária que permitiria construir contextos, materialidades, cenas de enunciação que constituem a base de qualquer lastro. O outro aspecto, a especulação linguística (essa ideia me foi apresentada por Alexandre Nodari), é algo que, podemos dizer, deriva diretamente do uso que a propaganda, o marketing, fazem da palavra, ou seja, o uso da linguagem como expansão do consumo, como o duplo do consumo, produzindo uma circulação excessiva de significantes. Disso provém o fato de que o cinismo, no sentido que lhe atribui Peter Sloterdijk, passa a ser a forma base de funcionamento da ideologia, pois sua racionalidade específica permite navegar pela indeterminação e justificar a saída mais imediatista e utilitária possível sem que, com isso, crie-se uma contradição. Ora, o que pode a literatura diante deste cenário? O que vemos, com frequência, é uma tentativa de recriar narrativas, daí o predomínio do gênero romance sobre a poesia, ou, na mesma linha, o surgimento dos quadrinhos, a força do filme e das séries de tv no campo cultural contemporâneo, como forma de recriar lastros. Nessa perspectiva, os lastros só podem ser recriados se, com eles, forem também recriadas as grandes narrativas. Essa tem sido a alternativa de parte da produção contemporânea: atrelar o lastro a uma narrativa; ater-se ao histórico, esquecendo a historicidade. Há, no entanto, uma outra forma de responder a esse mesmo problema da perda do lastro, uma que não envolve a retomada da estrutura narrativa. Parece-me que a compreensão de performance, o discurso atravessado pelo corpo, trabalha, justamente, com essa possibilidade. O ato de performar produz o lastro necessário, por meio da materialidade inerente ao corpo, sem, com isso, produzir uma narrativa, obrigando o crítico a pensar na historicidade e não no histórico. Em minha comunicação, procurarei mostrar como isso acontece na poesia contemporânea no Brasil, não apenas na performance propriamente dita, mas no cruzamento das artes que vem se tornando uma linguagem comum no campo poético, retomando o conceito de perda de lastro e o trabalho com a historicidade da obra de arte, tal como aponta Henri Meschonnic.
Palavra-chave 1: poesia Palavra-chave 2: perda de lastro
Palavra-chave 3: performance Palavra-chave 4: historicidade
.
marcelo reis de mello e Khalil Andreozzi
Título:
Poesia: O ilegível da escrita e a escrita do ilegível
Resumo:
O outro século, em que Haroldo de Campos escreve Metalinguagem e outras metas (1959), defendendo uma literatura gaguejante (Machado de Assis é o tartamudo arquetípico) e seu irmão, Augusto de Campos, sai à procura de uma poesia com sinal de menos (o livro Poetamenos data de 1953), é também o século em que Gilles Deleuze defende a gagueira nos textos iniciais de Crítica e Clínica (1997) e em Kafka: por uma literatura menor, escrito em parceria com Félix Guattari. Não há dúvidas acerca do impacto dessas ideias frutificadas no pós-guerra, a partir das rupturas estabelecidas pelas vanguardas históricas, sobre a língua dos poetas e artistas de um modo geral. A crise (ou se preferirmos: a gagueira, a afasia) da poesia torna-se o seu próprio leitmotiv. Diante desse limite traumático (um limite assintático) em que voltar a fazer poesia parecia impossível, uma saída é reenviar a escrita à sua essência ilegível, ao gesto da mão, o peso do corpo que imprime uma imagem, ou a voz produzindo sons tão indecifráveis quanto o canto dos pássaros ou o címbalo dos grilos. Em um de seus ensaios, intitulado Mistério Ritmo, o poeta Arturo Carrera diz: “Transcrevemos apaixonadamente um ritmo encouraçado pelo segredo das sensações das coisas”. Então a escrita se apresenta como um ritmo trazido por um dialeto remoto, infantil (infans), e que, portanto, não oferece acesso a um significado, mas a uma sensação. Como afirma Giorgio Agamben, ao concluir um breve texto publicado em 2015, “a poesia é aquilo que faz a escrita regressar até o lugar de ilegibilidade de onde provém, aonde ela continua se dirigindo”. O próprio fundamento da escrita, vinculado a uma dimensão performática e não-instrumental, parece iluminar as margens cada vez mais tênues entre o escritural, o gráfico e o pictórico. O apagamento dessas margens pode ser identificado em personagens consagrados da modernidade, como Mira Schendel e León Ferrari, ou em contemporâneos como a grega Nina Papaconstantinou e os inúmeros praticantes de asemic writing, que passam a se organizar a partir dos anos 1990 em torno do rótulo “post-literate”. Há também os artistas/escritores de que fala Roland Barthes, sobretudo a partir de Variações sobre a escrita, publicado postumamente em 1994, como Erté, Réquichot, Mirtha Dermisache e André Masson (companheiro de Georges Bataille na aventura acefálica, cujas semiografias parecem remeter ao ápice da caligrafia oriental, principalmente às escritas assêmicas do louco Zhang Xu e do bêbado Huai Su). Pode-se avançar também à noise art realizada hoje por Joseph Nechvatal, calcada em grande parte na arte brimful ou transbordante da abside da caverna de Lascaux (a mesma que fascinou Bataille). Enfim, o que se coloca aqui não é a volta da literatura a uma suposta origem mítica, mas, de acordo com Raul Antelo (ao falar de uma “concepção mnemônica” – via Alfred Métraux), talvez o que a defina, ao carecer de um marco fundacional, seja “a infinita oscilação em sua indecidibilidade”.
Palavra-chave 1: escrita Palavra-chave 2: ilegibilidade
Palavra-chave 3: poesia
.
Sabrina Sedlmayer Pinto
Título:
Jacuba é gambiarra
Resumo:
A partir da leitura do livro de Cao Guimarães intitulado "Gambiarra", pretendo deter-me acerca de uma determinada cena da arte contemporânea brasileira que ao mesmo tempo que dialoga com o ready made e o objet trouvée, convida-nos ao alargamento conceitual do termo ao aproximá-lo, ontologicamente, da noção de sobrevivência e de formas de vida. Na Wikipédia lê-se: "Gambiarra provém do Tupi-Guarani, Gambiarã, e significa acampamento provisório em território desconhecido". Para além dos adjetivos relacionados à improvisação e ao mal acabamento, gambiarra coloca em questão a noção de performance, de originalidade, de reprodutibilidade e de experiência, e questiona, a um só tempo, a cultura material e imaterial. Numa entrevista sobre o tema, Cao Guimarães esclarece: "O meu conceito de gambiarra é algo em constante ampliação e mutação. Ele deixa de ser apenas um objeto ou engenhoca perceptível na realidade e se amplia em outras formas e manifestações como gestos, ações, costumes, pensamentos, culminando na própria idéia de existência. A existência enquanto uma grande gambiarra, onde não cabe a bula, o manual de instrução, o mapa ou o guia. A gambiarra enquanto ‘phania’ ou expressão, uma manifestação do estar no mundo. A gambiarra é quase sempre um ‘original’ e não uma cópia, uma reprodução. E por isso é uma entidade viva, em constante mutação. Registrá-la é torná-la reproduzível, multiplicá-la modificando sua função fundamental" (Guimarães, 2009). Nesse sentido, encontramos em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a reverberação dessa problemática ligada à fome e às soluções inventadas para a nutrição do jagunço. A receita de jacuba sugere uma relação de proximidade ao conceito de patrimônio. Jacuba, segundo o Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, é um prato do Brasil regional, popular: refresco ou pirão feito com água, farinha de mandioca, açúcar ou mel e por vezes temperado com cachaça. A farinha de mandioca pode ser trocada por fubá de milho. O açúcar pode ser substituído por melaço de cana. Jacuba é um prato da fome, para enganar a fome: “Naquele dia eu estava de jejum quebrado só com uma jacuba. (GSV, 416). Jacuba é um improviso com finalidade última de aplacar a urgência da fome. Sacia-se por um tempo. Protela-se e adia-se a nutrição. Mas essa precária solução, tal como a gambiarra, aponta para questões além desse campo lexical. Relacionar a gambiarra à jacuba é a tarefa desta comunicação.
Palavra-chave 1: Gambiarra
Palavra-chave 2: Jacuba
Palavra-chave 3: Cao Guimarães
Palavra-chave 4: João Guimarães Rosa
.
Fábio Roberto Lucas
Título: Nu como um grego, ouço um músico negro – o kairos político da desagregação poético-corporal de Paulo Leminski
Resumo: Nossa proposta é ler um haicai de Paulo Leminski – “Nu como um grego / ouço um músico grego / e me desagrego” (La vie en close, 1991, p. 151) – pondo-se à escuta de sua equivocidade, sobretudo aquela que ressoa a partir das diferentes expectativas em torno da pronúncia da sílaba tônica na rima final, vocalizada seja em acordo com os hábitos da linguagem cotidiana (|e| aberto, desagrégo), seja em acordo com as preferências da convenção poética (|e| fechado, desagrêgo). Nesse conflito entre o convencional e o habitual, o poema – “esse sempre ressuscitado atrito entre dois (ou mais) códigos” (Anseios Crípticos, 1986, p. 100) – expõe sua implicação em diferentes sistemas de valor e redes significantes, restitui ao signo sua virtualidade, efetua sua sobredeterminação (cf. Patrice Maniglier, “Surdétermination et duplicité des signes de Saussurre à Freud”, 2005, p. 158-159), isso não só para abri-lo a um número infinito de interpretações, mas também para conduzir cada interpretação, cada leitura, à sua infinitude e inacabamento singular (ibid, p. 152). Exposta em seus limiares, tal leitura passa a ter lugar a partir de uma brecha no contínuo do sentido, ponto de vibração que, segundo Jean-Luc Nancy, não delimita mais a posição do sujeito com predicados e “necessidade de ser reconhecido para se reconhecer” (La communauté desouvrée, 1986, p. 207), mas retoma a escritura, nela reinscreve seu corpo e ex-creve suas dobras, sua pele, “lá onde há ao mesmo tempo dentro e fora, nem dentro, nem fora” (ibid, p. 224; cf. id, “L’excrit”, 2013, p. 312-320). Nessa leitura – em contágio e ressonância com o ato de escrita, reenunciando seus tons, reencenando seus gestos – o haicai de Leminski deixa de ser um poema sobre um corpo nu, ou sobre os dilemas da trajetória poética do escritor (com suas idas e vindas entre música popular e herança concretista) ou mesmo sobre os cruzamentos intricados entre o visual e o sonoro. Por certo, tais elementos estão aí, mas não como referentes externos, supostos beneficiários de uma relaxada e caprichosa retórica construída pela forma, conjurada para suturar as dores de um corpo que se guardaria à distância, aquém da desagregação final. Muito pelo contrário, é toda tentativa de ler e apreender desse modo o haicai leminskiano que ficaria aquém de seu corpo equívoco, infinito, “inachevé et inachevant” (id, 1986, p. 159), corpo em que o nu (grego, visual-concreto ou libertário-contracultural), a música (negra, contraposta ou convergente à plástica nudez helena) e a desagregação (como liquefação de heterogêneos ou síntese disjuntiva em que eles mútua, sutilmente se sobredeterminam) partilham sua diferenciação recíproca. Seguindo o movimento dessa diferenciação, ao longo de seus deslizes contínuos entre o habitual e o convencional, o natural e o positivo, nossa leitura pretende evocar o kairos político da elaboração poética leminskiana, seu modo específico de desoperar discursos com pretensão à esquematização unívoca de mundos (ibid., p. 195), em meio ao período da redemocratização brasileira dos anos 1980, evocação que, por sua vez, certamente também diferirá nossa implicação nos problemas poético-políticos do momento.
Palavra-chave 1: Paulo Leminski Palavra-chave 2: Poesia contemporânea
Palavra-chave 3: Equivocidade e sobredeterminação
Palavra-chave 4: Corpo e Linguagem
Mariana Lage Miranda
Título: A temporalidade suspensa e a contingência do estético como performance
Resumo: Em torno do final da década de 1970, o filólogo suíço Paul Zumthor alterou a direção metodológica de suas pesquisas em torno da poesia oral medieval: de uma perspectiva estruturalista e semiótica a uma abordagem mais diversificada e abrangente, que incluía contribuições da antropologia, etnografia, linguística, fenomenologia e estética. Ao analisar diversas formas contemporâneas e arcaicas de comunicação poética oral em redor do mundo, ele compreendeu o caráter essencialmente corporal, dinâmico e movente da forma poética. Tendo como objeto de pesquisa poesias da Idade Média secular, da África Ocidental, do sertão brasileiro, do folk norte-americano, dos nômades do Saara aos maori da Nova Zelândia, Zumthor reconheceu que, mais do que oralidade, tratava-se de falar em vocalidade, assumindo o aspecto de ação e engajamento corporal envolvidos na comunicação poética. Ao destacar, deste modo, a corporeidade das produção, transmissão e recepção da poesia vocal, Zumthor utiliza a noção de performance para compreender um fenômeno sobretudo fugidio, evanescente, reiterante e sempre movente: a poeticidade como corporeidade, ou ainda, o fato de que a forma da poesia somente surge no momento aqui agora de uma percepção em copresença entre poeta, poesia e público. O aparecimento deste conceito em Zumthor marca também a ousadia do autor em propor que a teoria literária, a análise estética e a filologia tratem de seus objetos de pesquisa de forma mais aberta e sobretudo menos totalizante, permitindo, deste modo, que as ciências humanas exercessem, como dizia, um pouco mais de “imaginação crítica”. Embora para Zumthor a performance advenha das pesquisas etnográficas e do folclore, é possível perceber contribuições da performance como poética artística contemporânea, demonstrando que uma abordagem performativa da arte e da literatura, essencialmente corporal e contingente, se situa para além das dicotomias, tais como real e representação, arte e vida, significado e superfície, forma e conteúdo. Nesta perspectiva, a forma estética/poética, entendida como performance, somente vem a ser enquanto um instante – dependente da contingência aqui e agora de um corpo (copresente ao performer e ao poeta) que percebe. Em outras palavras, a forma estética e/ou poética é um acontecimento; um acontecimento que se forma e/ou conforma no mesmo instante em que se retira e desvanece, permanecendo como forma estética-poética apenas para uma percepção e uma experiência. Desta forma, o trabalho não só analisa o papel preponderante da performance nas pesquisas de Zumthor, como destaca as contribuições recíprocas entre uma estética do performativo (tanto na Estética quanto na teoria literária) e as artes contemporâneas. Em última instância, visa-se apreender, com o conceito de performance de Zumthor, a qualidade mesma do estético (e da forma poética) como acontecimento, instante e movência.
Palavra-chave 1: performance
Palavra-chave 2: Estética
Palavra-chave 3: Paul Zumthor
Palavra-chave 4: experiência estética
.
Juliana Caldas
Título:
Vozes dotadas de silêncios: a comunicação e a incomunicabilidade em Hilda Hilst e Lygia Clark
Resumo: Para além do fato de que Hilda Hilst gostava de desenhar “São as horas da respirada, quando não dá para dizer nada, quando está muito difícil tudo. Aí então, eu desenho um pouco” e Lygia Clark mostrava inclinação literária nas cartas e diários que escreveu, como também no livro Meu doce rio que “não tem nenhuma pretensão de literatura e em que entram as vivências arcaicas e mitológicas de minha análise, banalizando toda a minha fantasmática e emprestando mágica às coisas banais”, essas artistas tematizaram em sua obra literária ou plástica a performatividade como topos privilegiado de suas poéticas, a ponto de tal questão deslocar-se para rupturas formais que colocaram em xeque a materialidade de suas linguagens – as palavras e as imagens –, e os limites de suas gramáticas – a narrativa e a pintura. Nesse sentido, a proposta desta comunicação é apresentar uma leitura transversal da narrativa “Fluxo”, do primeiro livro em prosa de Hilda Hilst, Fluxo-floema (1971), em comparação com as obras relacionais de Lygia Clark, a partir da série Bichos, de 1960, até a obra Pensamento mudo, de 1971. Tendo como eixo norteador o par analítico “vozes dotadas de silêncios: a comunicação e a incomunicabilidade”, pretende-se discutir nesta fala como essas artistas convocam, por meio de procedimentos formais, o outro (espectador ou leitor) a co-habitar as obras, ressignificando-as. Aqui Hilda Hilst e Lygia Clark se aproximam na medida em que veem na arte contemporânea um problema de ordem filosófica também, afinal o que está em jogo é a vida e a vida social esgotada dos homens no mundo pós-vanguardas. Assim, quando as artistas se deslocam em direção à implosão da forma, seu interesse é também ético, político e social. É um ato poético não cristalizado na gramática da narrativa ou da pintura no qual uma forma de vida transforma uma forma de linguagem e vice-versa. Na medida em que os corpos rasgados e descontínuos da obra de Hilda Hilst e Lygia Clark recriam-se ao tomarem conhecimento de suas fraturas e convidarem o outro a costurar sobre elas possibilidades de reencontro com alguma totalidade, a vontade de comunicação que anunciam revela a busca por uma continuidade possível para além do fechamento dessa obra em si mesma. No entanto, esse procedimento de abertura ao outro só é possível ao tornarem sua nudez e a consciência do seu vazio um espaço privilegiado para frutificarem as fantasias. A partir da pergunta: se há na vida pulsante que emerge das expressões destas artistas uma busca pela religação com a alteridade, seja ela imediata, como o espectador ou leitor de suas obras, seja ela transcendental, como o Deus ou a natureza em seu estado bruto, por vezes, cruel; como a alteridade, a corporeidade e o erotismo são convocados a adentrar essas obras a partir dos dispositivos formais criados pelas artistas?
Palavra-chave 1: alteridade Palavra-chave 2: performatividade
Palavra-chave 3: Hilda Hilst
Palavra-chave 4: Lygia Clark
.
Luciana María di Leone
Título:
A economia do leite: o corpo e as trocas da poesia latino-americana
Resumo:
Sabemos que a interpretação da tradição literária em termos paternalistas tem sido a mais corrente, mas também a mais discutida nas últimas décadas, talvez no último século. Esse modo unidirecional de realizar a transmissão e a herança literária foi muitas vezes contestado por um gesto maniqueísta de reivindicação do novo, outras vezes por um gesto temporalmente heterogêneo – anacrônico, borgeano – de explosão da mão única. Talvez um desses gestos anacrônicos mais radicais tenha sido enunciado por Oswald de Andrade ao reivindicar o matriarcado como o sistema de trocas próprio do mundo americano, do seu entre-lugar não verticalista, não capitalista, um sistema que encena outro tipo de relação com a alteridade. Continuando esta reflexão, esta comunicação se propõe pensar a partir de alguns poemas de, entre outras (e outros) Ana Cristina Cesar, Roberta Iannamico e Tamara Kamenszain, uma “economia do leite”: economia da nutrição e do contato maternal com a alteridade na qual, como diz Jean-Luc Nancy, se invertem os papeis: “a criança que foi contida contém, por sua vez, o corpo que a continha”. Poemas onde se encena, performa ou encarna, um modo de troca onde o corpo (no leite) não cessa de se mostrar.
Palavra-chave 1:
economia do leite
Palavra-chave 2:
maternidade
Palavra-chave 3:
corpo
Palavra-chave 4:
tradição
.
Ana Paula Veiga Kiffer
Título:
A agitação de uma folha de papel
Resumo:
“As palavras desse não diário, desse relato tão esburacado, lacunar, dão a ver e fazem ainda mais sensível a distância que separa a elaboração e a execução da obra, a agitação por assim dizer de uma folha de papel, de sua inscrição sobre os muros e as bancadas de um museu, como sobre a página tipografada”, escreve Mauriès a proposito dos Cadernos de África de Miquel Barcelò, que tomo como ponto de partida dessa reflexão que buscará pensar nessa “agitação da folha de papel”, nas relações que ela coloca entre a matéria escrita e a matéria corpo ou: sobre a potência performativa da escrita – vista aqui na sua ‘forma disforme’, através desse suporte processual e inacabado que são os cadernos. A minha pesquisa atual sobre a escrita de cadernos parte dessa direção e toma essa posição: entrar em contato com o pensamento e a escrita larvar, lacunar. A atenção às formas larvares de escrita ou aos processos do pensamento [e aos pensamentos processuais, em fluxo ou devir] teve início anos atrás face aos cadernos de Artaud. Segundo Grossman, “Nada menos literário, então, do que esses cadernos por um lado enroscados uns dentro dos outros e por outro lado como que arrastados para um fora, misturando temporalidades e espaços”. Eu completaria: temporalidades e espaços, letra e traço, corpo e sentido, eu e outro, num gesto que recolhe e deshierarquiza as relações entre uma coisa e outra. Os cadernos, como uma das dimensões corpórea da escrita foram também trabalhados pelo artista Anselm Kiefer, que diz: “Há um outro aspecto: esse do corpo. Nietzsche dizia um dia: eu danço. De fato ele não sabia dançar, ele sublinhava desse modo o lado corporal, físico. Uma biblioteca possui algo dessa ordem. É preciso subir numa escadinha para chegar, e se esses gestos desaparecem faltará o toque sensorial.” Vamos aqui buscar pensar os cadernos como essas escadinhas, fora das prateleiras das bibliotecas. Esse mesmo fora apresenta-se recentemente na publicação daquilo que de fato são os Cadernos escritos e guardados por Piglia ao longo de sua trajetória, publicados recentemente como os Diários de Emilio Renzi onde se lê: “Por suposto não há nada mais ridículo do que a pretensão de registrar a própria vida. Você se converte automaticamente num clown”, afirmava. No entanto, está convencido de que se não tivesse começado uma tarde a escrevê-lo, jamais haveria escrito outra coisa. Publicou alguns livros –publicará quiçá alguns mais- somente para justificar essa escrita”. Se tomarmos “a sério” o que disse Piglia sobre Emilio Renzi, ou o que diz Piglia ter ouvido de Emilio Renzi entendemos que não existe “o escritor”, assim chamado, sem "essa escrita", esse caderno, “clown da literatura”, essa palhaçada da vida, essa vida falida, essa matéria larvar da existência e essa penosa necessidade de atravessar o pulsante e o insignificante de “nós mesmos”, performando a sua “própria” voz ou, como entendemos, essa voz sempre tão “imprópria”.
Palavra-chave 1: caderno
Palavra-chave 2: corpo
Palavra-chave 3: escrita
Palavra-chave 4: performance
.
ROBERTO ZULAR
Título:
No fluxo dos recados: ler a fala escrita em A queda do céu de Bruce Albert e Davi Kopenawa e O Recado do morro de Guimarães Rosa.
Resumo:
O começo é um tanto esquisito. Um artigo de jornal de José Miguel Wisnik em que ele atribui a Eduardo Viveiros de Castro a posição de Nomenidômine em O Recado do Morro de Guimarães Rosa. Mas o que parecia uma “boutade”, eis que ecoa com intensidade no final do prefácio à edição brasileira de A queda do céu onde Viveiros de Castro treslê o magistral livro de Bruce Albert e Davi Kopenawa atravessado e atravessando o fluxo de recados roseanos. Nossa comunicação pretende acompanhar a singularidade dessa teoria do funcionamento da linguagem implicada na noção de recado, atentando para o espaço tenso de relações que aí se produz entre um crítico literário e um antropólogo, literatura e antropologia, entre o mundo indígena e o ocidente, a fala e a escrita, corpo e linguagem, o não-humano e sua insistência como eco que dá força e forma à relação entre os recados e a urgência de um modo de ler que nos torne capazes de ouvi-los.
Palavra-chave 1:
leitura
Palavra-chave 2:
antropologia
Palavra-chave 3:
voz
Palavra-chave 4:
recado
.
CLARISSA LOYOLA COMIN
Título:
Confluências: experiência, corpo e linguagem em galáxias e fragmentos de um discurso amoroso
Resumo:
O famoso aforismo barthesiano, “a linguagem é uma pele”, é prenhe em desdobramentos. A pele é o nosso maior órgão e caracteriza-se por uma simultaneidade comunicativa, isenta de centro difusor. É impossível precisar com exatidão onde começa ou quanto dura cada estímulo (carícia, corte, princípios alergênicos, tudo se alastra) e todos eles passam por um centro racionalizante – cérebro – onde recebem, invariavelmente, uma tradução linguística: “isso fere, isso refresca, isso faz cócegas”. A obrigação de dizer é o fascismo da língua e o enrijecimento dos corpos já que cada estímulo, assim que inicia sua flutuação livre, alastrado no corpo, é capturado por uma máquina significante. Mas, se há um fascismo da língua, nem tudo na língua é fascista. “O vocabulário é uma verdadeira farmacopeia”, diria o mesmo Barthes. Devolver ao corpo seus estímulos: aí há uma verdadeira farmácia. O escritor é aquele alquimista ancestral capaz de dosar e combinar efeitos, inventando um espaço – terceira margem – inapreensível, que foge à máquina significante do cérebro, um espaço feito de línguas e linguagens (semioses). Alguns chamam tal farmácia de literatura. E o artista, – o escritor –, ensaia sempre uma nova resposta para o que é literatura? Fazer a linguagem se alastrar. Uma linguagem esfrega-se na outra e evidencia, assim, um desejo de ramificação. Nesse sentido, a literatura nasce no espaço de atrito entre as linguagens: abandonar-se, apenas sentir. É impossível localizar e apontar o desejo, pois ele é minha pele (dentro) e a do outro (fora). Esta pele, um “papel machucado e sensível como uma ferida de vida aberta e úmida” (Haroldo de Campos), é o lugar onde se inscrevem as novas constelações de signos, onde a língua se rearranja deixando ver seu avesso. Assim, as galáxias são uma verdadeira dança da potência da linguagem, liberta dos automatismos tirânicos da língua que engessa o corpo ao obrigá-lo a dizer e significar segundo a regra. A permuta constante entre os sentidos e o vaivém do mar-pele faz com que, neste livro de viagens (linguagens), tudo esteja vibrando – polifluxbórboro, polivozbárbaro, fluctissonante. Nessa experiência de leitura-viagem somos constantemente invadidos por cores, sons, aromas, gostos, – o texto vivencia suas metáforas. É ele (tecido) que se dobra e desdobra, pele sob pele, pli selon pli, com sua trama difusa e prolixa, confluência de estímulos, pele para que te quero. A pele é a literalização da metáfora do texto, é a metáfora do têxtil radicalizada. Ir à raiz dos signos é desbastar o texto, ver que o tutano é a pele: a pele é o osso. A linguagem é uma pele, diz Barthes; o texto é um mar, uma viagem, diz Haroldo de Campos. Há, em ambos os autores, a proposta de uma erótica da linguagem. À luz deste encontro, proponho a leitura cruzada de algumas passagens de galáxias e dos Fragmentos de um discurso amoroso.
Palavra-chave 1: Linguagem
Palavra-chave 2: Literatura
Palavra-chave 3: Corpo
Palavra-chave 4: Experiência
.
Adriana Bolite Frant
Título:
Linhas de errância / traços de vida nos cadernos de Tatsumi Hijikata
Resumo:
Conforme atenta Henri Lefebvre em A Produção do espaço, há algo em comum entre o modo como as palavras são inscritas numa página de texto e o modo como os movimentos e os ritmos da atividade humana e não humana são registrados no espaço vivido. Essa constatação parece se contrapor a sugestão de Roland Barthes que, ao tratar do traço gestual do pintor Cy Twombly, repara: “ O traço—todo traço inscrito na folha—desmente o corpo importante, o corpo de carne, o corpo de humores; o traço não nos leva nem à pele nem as mucosas”. O que Tatsumi Hijikata, precursor do butô no Japão, com seu método de anotação de dança, denominado butô-fu, parece justamente questionar é: mas e se levasse? E se o traço na folha levasse à pele e às mucosas? Esta comunicação pretende girar em torno da hipótese de que através dos butô-fu é possível vislumbrar uma linha – errante – que perpassa o traço na página e segue em direção ao corpo, vivo, no espaço. Formulados entre 1970 e 1985 (período esse em que Hijikata deixou de dançar), em um total de dezesseis cadernos, os butô-fu não indicam passos a serem seguidos, mas compreendem uma cartografia de corpos, gestos e movimentos, produzidos a partir de um emaranhado complexo de colagens, que mesclam textos poéticos, citações literárias e imagens, com centenas de referências iconográficas. Trata-se, portanto, de um sistema completamente original, contendo uma rica gama de propostas teóricas que iluminam a relação complexa e dinâmica entre corporalidade e escritura. Nesse âmbito, os cadernos de Hijikata podem ser compreendidos como um suporte para a criação de um espaço fluido por onde se traçam linhas de errância que atravessam as fronteiras entre a página e o corpo, estabelecendo-se, portanto, através de um processo de escrita performática e gestual que não se encerra no formato do livro supostamente imposto pelo caderno, mas, conforme alude Derrida, se inscreve antes da letra, ou ainda, se inicia com o fim do livro. Nessa perspectiva, o caderno funciona como uma extensão do corpo, uma espécie de prótese, ou ainda um agenciamento, uma máquina de escritura que tem não apenas a página, mas o próprio corpo como o suporte de inscrição. Se é possível, a partir dessa noção alargada de escrita, compreendemo-la como a forma pela qual os viventes humanos e não humanos produzem toda a espécie de rastros e inscrições, nessa mesma perspectiva, pode-se questionar a afirmação de que Hijikata deixou de dançar nos últimos anos de sua vida, mas ao contrário, com a feitura dos cadernos, criou e efetuou uma escrita dançante, traçando suas linhas de fuga na vida, borrando as fronteiras entre o dançar, escrever e o viver.
Palavra-chave 1:
caderno
Palavra-chave 2:
linha
Palavra-chave 3:
corpo
Palavra-chave 4:
gesto
.
Fernanda Ribeiro Marra Título: A escritura curadora de Verônica Stigger
Resumo: Esta comunicação é sobre as obras Os Anões e Delírio de Damasco de Verônica Stigger. O assunto abordado é a identificação, em ambas as obras, do trânsito promovido pela autora entre universos artísticos e não-artísticos, a priori considerados distintos, e também entre papéis performados por Stigger no âmbito das artes que ela cria e pesquisa. Assim, entendendo o movimento de fluxo como o próprio desenho da escritura da autora, concebo uma chave de leitura dessas duas obras que não as desvincula de seu trabalho como pesquisadora, crítica de arte e curadora. Ao contrário, entendo que o movimento provocado e produzido resulta em uma literatura que desobstrui e desmonta os parâmetros que permeiam os discursos da arte fazendo transbordar fronteiras que ilusoriamente distinguem: artes entre si, arte e crítica, vida e ficção. Uma relação de quase derivação aproxima as duas obras de Stigger. A concepção semelhante acerca dos textos os reúne na sessão “Pré-Histórias”, de Os anões, e pode ser também verificada nas frases de Delírio de Damasco. Em ambos os casos, o que encontramos nos textos curtos e muito curtos são sugestões narrativas, lufadas, como a própria autora diz, que inquietam e desestabilizam o leitor. As pré-histórias e os delírios estão, assim, ecoando entre o arquivo bruto e o manipulado (selecionado, recortado, esvaziado, travestido) pela autora. Esse trabalho pode parecer simples intervenção, de um certo ponto de vista. E pode ser que seja efetivamente simples em termos operacionais. A questão, no entanto, é de autoria e concepção de uma obra, temas caros não apenas à Stigger escritora, como também à pesquisadora e crítica de arte. Ao trabalhar com arquivos, Stigger nos remete a uma série de pressupostos conceituais que esses arquivos transportam para sua arte. Exemplo disso é o que Derrida entende ser o aspecto constitutivo do arquivo: a um só tempo unidade de conservação e de deterioração. Em outras palavras, o mal de arquivo, de que nos fala Derrida, dialoga com a noção de mal batailliana e com a psicanalítica de pulsão de morte. Reúne essas acepções o fato de que operam ao modo de um sistema biológico auto-imune em que a morte é condição para vida tanto quanto a vida depende da morte. Enfim, todo esse arcabouço conceitual evoca uma perspectiva ambígua, não-contraditória e não-excludente que se faz presente no trabalho com arquivos. Ainda a propósito do mal, destaco que a violência e a morte irrompem nas narrativas de Os Anões como nos sonhos, isto é, sob a forma de realização do desejo (Flávia Cera). Assim, atento para essa performance de Stigger como escritora má, que oscila entre o acontecimento, a ficção e o absurdo. Destaco que vários de seus narradores comungam dessa característica de descrever o horror com tamanha trivialidade que ele acaba assumindo um caráter duplamente hediondo ao chegar ao leitor. Em síntese, comento uma literatura que entendo circular dentro e fora dos limites da arte concebendo o texto como corpo permeável aos vestígios desses universos e como espaço de manifestação e elaboração do que ela, autora, descobre e vivencia. O trabalho da artista, nesse sentido, está arraigado ao de pesquisadora, crítica de arte e, sobretudo, de curadora. Sobre esse último, destaco ser proveniente dos estudos críticos das artes plásticas a ideia de que o curador é autor, autor independente. Logo, não se trata de um lugar neutro. Ao dispor dos arquivos alheios, o curador constrói sua própria narrativa curando (Groys) a arte de um discurso sacro e unívoco. Compreendida a partir dos desenvolvimentos da arte pop, do minimalismo e da arte conceitual, que tomaram a cena artística nas décadas de 1960 e 1970, a ideia de performance pressupõe a corporeidade do artista e o instante. Stigger, vinculada a conceitos e técnicas desenvolvidas no âmbitos das artes plásticas modernas – tal como o conceito de dètournement, desenvolvido pelos Situacionistas da década de 1950, e a noção de ready-made criada por Duchamp – empresta seu corpo e seu tempo para curar os arquivos da enfermidade da banalização cotidiana (quando vai ao shopping, por exemplo, recolher as frases entreouvidas enquanto come um doce) e oferece a eles a oportunidade saudável de reverberar em sua escrita. É nesse sentido que entendo a performatividade curadora da escrita de Stigger. Explorando com genialidade o modo de escrita não-criativa (Goldsmith) e expondo a palavra, seja nos tapumes ou nas páginas de seu livro, o trabalho de Stigger consiste em empreender escolhas em meio aos arquivos de que dispõe, promover o esvaziamento do traço, da imagem, da palavra e devolvê-los, ao mesmo tempo, ocos de sentidos rijos e fecundos de possibilidades.
Palavra-chave 1: Verônica Stigger Palavra-chave 2: arquivo Palavra-chave 3: curadoria
Palavra-chave 4: autoria