Introdução
Neste trabalho são apresentados fragmentos ou sínteses das leis, dos decretos, dos atos e dos documentos citados no correr do texto, enfocando somente as questões relativas à localização (delimitação de áreas) das habitações operárias na cidade de São Paulo.
Localização das Habitações Operárias nas Diversas Áreas da Cidade
Nos documentos oficiais, em diversos momentos, a questão da determinação da localização das habitações das classes operárias foi tratada, tanto de forma direta como indireta.
No caso específico da localização das habitações, entende-se como forma direta aquela onde há prescrições e restrições específicas para a habitação operária, sem deixar qualquer tipo de dúvida. Por outro lado, a forma indireta é aquela em que o poder público, mesmo sem impor restrições específicas, atua de maneira a coagir ou a persuadir os construtores, ou proprietários, a ocuparem determinadas localidades.
A coação está presente ao se cobrar impostos com valores diferentes, conforme os locais ocupados; ou ao oferecer incentivos para a construção em determinadas localidades; e até mesmo, ao agir de maneira permissiva em alguns locais da cidade.
Independentemente da forma como estas questões foram tratadas, a população mais pobre foi expulsa gradativamente das áreas centrais, de maneira que os locais mais “nobres” foram reservados para a habitação e o comércio das elites.
As primeiras restrições às habitações das classes mais pobres, na legislação consultada, foram localizadas no Padrão Municipal (1886). Este documento proibia a construção de cortiços, casas de operários e cubículos dentro do “perimetro do commercio” (Figura 1).
Figura 1 - Delimitação do Triângulo (intervenção digital da autora, na marcação do perímetro), formado pelas Ruas Direita, São Bento e da Imperatriz, atual XV de Novembro. Mapa da cidade de São Paulo, de 1881. Fonte: <http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/ historico_demografico/img/mapas/1881.jpg>.
Conforme já apresentado, em outros pontos da cidade, para a construção de tais habitações, o proprietário deveria solicitar à Câmara, que poderia ou não expedir a licença, conforme julgasse conveniente; porém não havia qualquer indicação, na legislação, sobre o que era ou não conveniente. Se a licença fosse expedida, era necessário que as habitações seguissem, além do que estava estabelecido para as construções em geral, as indicações específicas apresentadas no Capítulo VI: Cortiços, Casas de Operários e Cubículos, daquele Padrão.
O “Relatório da Commissão de exame e inspecção das habitações operarias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia” (1893) apresentava recomendações para a localização das vilas operárias, que fossem construídas no município de São Paulo. A proposta era que, de preferência, fossem utilizados terrenos nos subúrbios, afastados em torno de 10 a 15 km da cidade, em locais onde houvesse acesso por meio de rede ferroviária, mesmo que fosse necessário investimentos, por parte do poder público, para ampliação deste meio de transporte (CORDEIRO, 2010).
Caso as vilas fossem construídas no perímetro urbano, o Relatório apresentava algumas sugestões de localização, é interessante observar a preocupação quanto aos preços praticados, e a valorização imobiliária da cidade, naquela época:
Alem destes terrenos mais distantes, servidos pelos trens de suburbios, ha dentro do perímetro da cidade terrenos ainda desocupados no Bexiga, Bella Cintra, Pacaembú, Pary, Mooca e Cambucy que seriam com vantagem utilizados na construcção de villas operarias se os seus proprietarios não vestissem mais elevadas ambições e se o preço de taes terrenos não se mantivesse, a pesar de tudo, em alta tão grande. (idem, p. 114).
No Código Sanitário (1894), no Capítulo V – Habitações das Classes Pobres, o Artigo 141 apresentava a seguinte indicação para a localização da vilas operárias: “As villas operarias deverão ser estabelecidas fóra da agglomeração urbana”. No caso da cidade de São Paulo, foi uma maneira de aumentar os primeiros limites definidos no Padrão Municipal.
A primeira forma indireta de determinação da localização dos cortiços foi localizada na lei no. 286 (1896), regulamentada no ano seguinte pelo acto executivo no. 20, que tratava da cobrança de impostos a partir de 1897. Embora o Código Sanitário tivesse proibido os cortiços, percebe-se que havia uma certa conivência com a existência dos mesmos, por parte da municipalidade de São Paulo. Faz-se tal afirmação pois haviam tabelas municipais, naquela lei, com valores de impostos específicos para os cortiços, ou seja, eram legitimados através de cobranças.
Nas tabelas de impostos referentes a “Industrias e Profissões”, da lei no. 286 (1896), os valores a serem pagos pelos cortiços constavam da “Tabella do imposto de Viação”. Nesta tabela os valores eram apresentados em dois grupos, o primeiro deles para os cortiços que estavam em conformidade com o Padrão Municipal, e o segundo para aqueles que não estavam em conformidade.
Os valores devidos também variavam conforme a localidade dos cortiços. Esta lei apresentava um determinado perímetro (denominado 1o. perímetro) onde os valores cobrados eram mais altos (Figura 2). O valor dos impostos para cortiços que estavam em conformidade com o Padrão Municipal eram de 50$000, por cubículo, quando localizados dentro do 1o. perímetro, e de 20$000, por cubículo, quando localizados fora do 1o. perímetro. Caso os cortiços não estivessem em conformidade com o Padrão Municipal, os valores que deveriam ser cobrados eram de 150$000, por cubículo, quando localizados dentro do 1o. perímetro, e de 100$000, por cubículo, quando localizados fora do 1o. perímetro.
Figura 2 - Delimitação do Perímetro estabelecido na lei no. 286 (intervenção digital da autora, na marcação do perímetro), formado pelas Ruas Direita, São Bento e da Imperatriz, atual XV de Novembro. Mapa da cidade de São Paulo, de 1905. Fonte: <http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/ historico_demografico/img/mapas/1905.jpg>.
Logo depois, em 1898, a lei no. 375 alterou as tabelas de cobrança de impostos para o ano de 1899 em diante. Em se tratando dos cortiços, o perímetro citado acima foi mantido, porém não havia mais cobranças para os cortiços que não estivessem em conformidade com o Padrão Municipal. Assim, o valor dos impostos que deveriam ser cobrados dos cortiços que estivessem em conformidade com o Padrão Municipal passaram a ser de 30$000, por cubículo, quando localizados dentro do 1o. perímetro, e de 10$000, por cubículo, quando localizados fora do 1o. perímetro.
As isenções de impostos municipais, e outras vantagens, para a construção de casas operárias, também foram maneiras de setorizar a cidade. Conforme já citado, algumas leis foram aprovadas com este intuito.
Em 1900, as leis nos. 493 e 498, indicavam perímetros denominados central (figura 3) e urbano (figura 4), respectivamente. Caso se construíssem casas operárias fora destes perímetros, e se atendessem a legislação pertinente, os proprietários e construtores poderiam obter as isenções e demais vantagens determinadas naquelas leis. O perímetro urbano (descrito na lei no. 498) era ligeiramente maior do que o perímetro central (definido na lei no. 493), mas ambos os perímetros eram igualmente restritivos à população mais pobre.
Figura 3 - Perímetro central definido na lei no. 493 (intervenção digital da autora, na marcação do perímetro). Mapa da cidade de São Paulo, de 1905. Fonte: <http://smdu. prefeitura.sp.gov.br/ historico_ demografico/img/mapas/1905.jpg>.
Figura 4 - Perímetro urbano definido na lei no. 498 (intervenção digital da autora, na marcação do perímetro). Mapa da cidade de São Paulo, de 1905. Fonte: <http://smdu. prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1905.jpg>.
Com a aprovação da lei no. 1.874 (1915), regulamentada pelo acto no. 849 (1916), a cidade passou a ser dividida em quatro perímetros: 1° perímetro ou central; 2° perímetro ou urbano; 3° perímetro ou suburbano e 4° perímetro ou rural. Na figura 5 foram delimitados os três perímetros (central, urbano e suburbano) configurados na lei no. 1.874, o perímetro rural era delimitado pelas divisas do município e os limites do perímetro suburbano.
Figura 5 - Perímetros definidos na lei no. 1874 (intervenção digital da autora, na marcação do perímetro). Perímetro central em vermelho, perímetro urbano em azul e perímetro suburbano em verde, perímetro rural até as divisas do município. Mapa da cidade de São Paulo, de 1924. Fonte: <http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1924.jpg>.
Os mesmos perímetros foram apresentados no Padrão Municipal (1920), no Capítulo I – Da divisão da cidade em zonas, só que com os seguintes nomes: primeira zona ou central, segunda zona ou urbana, terceira zona ou suburbana e quarta zona ou rural. Na legislação consultada, foi a primeira vez que se adotou esta terminologia (zona) na divisão espacial da cidade.
Com a definição dos perímetros, com regras distintas para cada um deles, foi dado o passo decisivo para a segregação na cidade de São Paulo:
A Lei n° 1.874, de 12 de maio de 1915, bem como o Ato n° 849, de 27 de janeiro de 1916, que a regulamentou, revelaram, explicitamente, que a Prefeitura assumiu e incentivou a existência de duas regras de legalidade na cidade: de um lado, a parte da cidade das elites, onde deveriam ser estabelecidas e obedecidas às normas urbanísticas e, de outro, a porção da cidade dos pobres, onde prescindia a necessidade de muitos regulamentos de controle urbano. (NERY JR., 2002, p. 68).
Para a construção, ou reconstrução, nos perímetros central e urbano eram exigidos plantas e memoriais descritivos da obra que seria executada. No perímetro suburbano só seriam permitidas construções em terrenos que já houvessem sido arruados, e no perímetro rural, não era necessário aprovação de plantas, alvará de licença ou mesmo pagamento de emolumentos, desde que a edificação fosse construída há, pelo menos, 6 metros da estrada, e 3 metros do terreno vizinho (lados e fundo). Tais restrições estavam presentes na lei no. 1.874 (1915), no acto no. 849 (1916) e no Padrão Municipal (1920).
A área urbanizada na cidade de São Paulo, até a década de 80 do século XIX, ainda era muito pequena (Figura 6). Com a permissão de construção de cortiços, e demais moradias operárias, em locais mais afastados, a área urbanizada aumentou. Neste momento é iniciado o processo de elitização do centro da cidade, com a consequente valorização de terrenos neste local, e a separação de classes em bairros para a elite e em bairros para operários.
Figura 6 - Área urbanizada até 1881. Fonte: EMPLASA, adaptação SEMPLA, DIPRO, obtido em: <http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/img/mapas/urb-1872.jpg>.
Quanto à ocupação da cidade, até 1914 (Figura 7), percebe-se que a urbanização aumento, principalmente, no eixo leste-oeste, junto às linhas férreas, e na direção sul, paralelamente ao caminho de Santo Amaro. A região central foi mantida como o espaço da elite, enquanto que as classes operárias foram segregadas à periferia.
Figura 7 - Área urbanizada até 1914. Fonte: EMPLASA, adaptação SEMPLA, DIPRO, obtido em: <http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/img/mapas/urb-1890-1900.jpg>.
De 1915 a 1929 (Figura 8), a tendência mostrada anteriormente, da população ocupar regiões mais distantes da área central foi mantida. Desta vez o fluxo foi mais intenso nas regiões sul e leste.
Figura 8 - Área urbanizada de 1915 até 1929. Fonte: EMPLASA, adaptação SEMPLA, DIPRO, obtido em: <http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/img/mapas/urb-1915-1929.jpg>.
Considerações Finais
Uma questão observada, ao serem analisados os documentos pesquisados, foi a delimitação de espaços e áreas específicas para as elites e, como consequência, a ocupação das áreas mais afastadas e isoladas, ou seja, as periferias, pelas classes operárias
A atual configuração da cidade de São Paulo foi, em parte, fruto daquela legislação, que permitiu a expulsão da população operária, de mais baixa renda, dos locais “nobres” da cidade.
Bibliografia
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