Pantera Negra: identidade e representatividade no cinema

Vencedor de três prêmios Oscar nas categorias Trilha Sonora Original, Figurino e Design de Produção; nomeado para mais quatro categorias do prêmio mais importante do cinema mundial, incluindo a de Melhor Filme; e uma receita global de bilheteria de aproximadamente 1,350 bilhão de dólares. Essas são as credenciais de Pantera Negra (2018), o filme de super-herói mais bem sucedido de todos os tempos e que é considerado um divisor de águas por contar com um protagonista e grande maioria do elenco composta por pessoas negras, em uma história que apresenta uma visão diferente da África. Seria esse um indício de novos ares de representatividade no cinema, ou apenas uma aposta mercadológica no fortalecimento do público afrodescendente?

Para buscar responder a esse e outros questionamentos sobre a representação das pessoas negras na indústria cultural, em especial no cinema e nas histórias em quadrinhos, o publicitário e ex-estagiário do MPPE Rodrigo Sérgio Ferreira de Paiva estudou o impacto social e mercadológico do filme no seu trabalho de conclusão do curso de graduação em Publicidade e Propaganda da Universidade Católica de Pernambuco. O trabalho é intitulado Panther is the new black: representação e cultura na comunicação do filme Pantera Negra.

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Olá, Rodrigo. Antes de falar do filme, na sua pesquisa você contextualiza qual é o papel dos personagens negros nas histórias em quadrinhos e no cinema. De que forma essas pessoas são retratadas nessas artes?

O cinema, de um modo geral, ao mesmo tempo em que ele se mostra encantador, divertido e entretém o público, ele se mostrou bastante controverso ao longo de sua história. Por exemplo, eu posso citar o primeiro blockbuster da história, chamado O Nascimento de uma Nação (1915), que retrata a Guerra Civil Americana. Ele traz uma visão bastante eurocêntrica da imagem do negro. Eles utilizavam atores brancos para interpretar personagens negros, que eram todos antagonistas, e esses atores utilizavam uma maquiagem, que é uma técnica chamada de blackface. Eles pintavam a pele para interpretar personagens negros, que eram vilões. A imagem negra, nesses filmes, costumava mostrar um homem negro sujo, animalesco, quase comparável a um animal mesmo. Inclusive nesse filme, O Nascimento de uma Nação, tem uma cena em que uma mocinha branca pula de um precipício para não ser estuprada por um antagonista negro. Para termos uma noção de como o negro, desde o princípio, era retratado de uma forma distorcida da realidade.

Nos quadrinhos, a situação foi um pouco diferente porque, a princípio, super-heróis da Marvel e da DC Comics, desde a sua origem na década de 60 tinham um forte paralelo com as causas sociais em prol dos direitos civis. Então, por exemplo, o Pantera Negra surgiu na revista do Quarteto Fantástico em um paralelo ao movimento dos Panteras Negras. Já era um personagem que levava o nome do movimento negro. Além disso, outros personagens, como os X-Men, por exemplo, sempre foram construídos como uma crítica social muito forte, porque é justamente a ideia de você ser diferente, não se encaixar, a princípio, na sociedade, que é algo que realmente existe, só que trabalhado com elementos fantásticos, o que torna tudo muito mais interessante. Inclusive, eu me lembrei de uma fala do Stan Lee, que faleceu no ano passado, e ele fala que o que torna os super-heróis tão cativantes para o público não são seus superpoderes, suas características excêntricas, mas é o fato de eles, no fundo, serem apenas seres humanos. Você se identifica muito fácil com eles, por exemplo, o personagem que não consegue a garota dos seus sonhos, a criança que apanha na escola; os super-heróis têm, desde o princípio, uma relação muito forte com a questão da identidade e da representação, isso é uma coisa básica na essência desses personagens.

E, em cima do personagem, Pantera Negra, ele surge na década de 60 trazendo que tipo de perspectiva, que tipo de narrativa sobre a África e sobre suas origens? O que ele traz de diferente?

O continente africano sempre foi retratado pela cultura popular como um continente miserável, que foi explorado. E a mitologia do Pantera Negra vem justamente trazer uma distorção completa desses tabus, digamos assim. Ele mostra que a África pode ser desenvolvida por causa de Wakanda, que é uma nação que detém o metal mais valioso da Terra. E isso permitiu que eles evoluíssem ao longo dos anos, em total segredo da humanidade. Isso é muito interessante se a gente fizer um paralelo com a realidade, inclusive no próprio filme, se a gente for ver a cena pós-créditos, por exemplo, ele traz uma indireta muito forte ao atual governo americano, em que ele fala que Wakanda, que permaneceu por tanto tempo escondida agora tem que se revelar para o mundo porque os povos precisam se unir. Porque o sábio constrói pontes, não barreiras. Há essa fala bem explícita no filme. Isso é um contraste muito grande ao atual governo americano, por conta do atual cenário das imigrações.

Rodrigo, outra coisa que é crucial no entendimento da cultura pop é a questão dos fãs. Hoje eles interagem com o cinema, com todo tipo de produção cultural de forma muito mais intensa, seja nas redes sociais, seja diretamente na produção artística. No caso do Pantera Negra, você coloca no seu trabalho que aconteceram, nos EUA, muitas ações afirmativas de defesa da identidade afroamericana como resultado desse filme. Como foi a reação ao sucesso do filme?

Foi algo realmente sem precedentes. Tivemos ações nos EUA que engajaram muitas celebridades que buscaram levar crianças da periferia para assistir ao Pantera Negra. Isso causou uma repercussão muito grande, pois muitas campanhas foram impulsionadas diretamente pelas redes sociais. Essas campanhas foram realizadas tanto por celebridades, figuras de Hollywood, como também pessoas comuns. Essas campanhas, de um modo geral, elas mostram como o sucesso do filme ocorre, em grande parte, em função do fator representatividade porque a mobilização social percebida foi muito forte. O fã hoje em dia não tem mais aquele papel passivo de assistir e aceitar tudo que vê, ele vai cobrar aquilo com que ele se identifica. Então a representatividade ela passa a ser vista, também, como um recurso mercadológico. Por exemplo, Solomon já dizia que a cultura e a identidade de um povo sempre foram fatores muito determinantes para qualquer relação de consumo, inclusive de um produto cultural como esse. E o fã de um modo geral, principalmente por causa da internet e das redes sociais, ele passa a produzir, ele passa a se engajar, ele vai atrás de campanhas como essa. Eu até pesquisei uma ação prosumerista —porque os fãs hoje são prosumers, consumidores ativos e que vão atrás das coisas— de um fotógrafo nigeriano que recriou os cartazes do filme utilizando crianças negras. Isso é muito legal em questão de representatividade.

Agora trazendo a conversa um pouco para o Brasil: você visitou o estúdio do Maurício de Sousa, que é muito conhecido pelas histórias da Turma da Mônica. E lá você conversou com roteiristas que trabalham com histórias em quadrinhos aqui no Brasil. A partir dessas conversas, como é que você vê a abordagem do tema da identidade das pessoas negras aqui no Brasil?

Eu visitei a Maurício de Sousa Produções em outubro de 2018 e foi uma experiência muito boa para mim, porque eu sou um grande fã da Turma da Mônica, sempre fui muito fã dos quadrinhos nacionais. E eu resolvi unir o útil ao agradável, justamente porque o momento em que eu visitei lá foi o momento em que eu estava desenvolvendo o corpo da monografia. Lá eu pude conversar com Flávio Teixeira, um dos mais renomados roteiristas do estúdio; e eu conversei com ele sobre o personagem Pelezinho, que é um dos mais famosos do Maurício de Sousa, inspirado no jogador Pelé, e que foi alvo de muitas polêmicas recentes. O personagem, a princípio, era desenhado com seus lábios muito avantajados, muito destacados pelo desenho. Sendo que, atualmente, quando o personagem foi relançado por volta de 2013, ele passou por uma reformulação gráfica em que seus lábios foram cortados. Era como se o personagem não tivesse lábios. E isso gerou muita polêmica entre os fãs, alguns falaram que ele tinha que ter o lábio avantajado e outros diziam que não, porque isso era considerado uma visão racista. O roteirista informou que isso faz parte de um processo de evolução dos personagens da Maurício de Sousa Produções de uma forma geral, o que não vai evitar que ainda existam polêmicas em torno do personagem.

Uma coisa interessante que você aponta na sua monografia é a identificação dessas crianças que leem as histórias em quadrinhos e se veem representadas no personagem. Você acha que isso também acontece no Brasil, apesar de a gente ter pouca representatividade nas histórias que aqui são contadas?

Eu posso dar um exemplo maravilhoso, bem recente, que é uma graphic novel lançada ano passado justamente pela Maurício de Sousa Produções, que é chamada Jeremias Pele. É a primeira vez que ela traz um produto para falar sobre a questão do racismo. E essa graphic novel, se eu não estou enganado, no ano passado foi o terceiro livro mais vendido no Brasil. Acho que isso mostra que sim, é um tema forte e que pode inspirar as crianças, os leitores de um modo geral.

Rodrigo, para concluir a nossa conversa, nos últimos anos a gente tem visto, na cultura pop em geral, em todo tipo de arte, um aumento dessas pautas representativas. A cultura pop sempre foi alimentada por padrões e estereótipos e hoje a gente vê a pauta LGBT, pauta feminista, pauta do povo negro entrando nessas produções culturais. Você, a partir da sua pesquisa, acredita que essa representatividade chegou para ficar? Ou que não, que é mais uma jogada para agregar público e aumentar o resultado do business?

Eu acho que as duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo. Eu concluí que a representatividade pode ser tanto vista como um recurso comercial como ela mesma, propriamente dita. Eu acho que ela veio para ficar nos produtos culturais, embora a gente precise esperar para ver como isso vai impactar o público porque a Marvel, por exemplo, ela já deixou bem claro que ela pretende trabalhar muito a representatividade de outros grupos nos seus futuros filmes. Vai ter agora um filme dos Eternos que, já se especula, vai ter um personagem que é homossexual. E a gente vai ter que esperar para ver como o público, de uma forma geral, vai reagir a isso, mas eu considero que é muito importante essa representatividade, porque os personagens, de modo geral, sempre tiveram essa representatividade como essência. A valorização de “minorias”, entre aspas, porque não são minorias, são maiorias na verdade. Então, é importante que o público passe a ver esses heróis não apenas como figuras poderosas e fantasiosas. Não que seja errado, tem que ver dessa forma também, mas que passem a ver com mais força o subtexto por trás desses personagens, que é tão importante quanto e acho que vai definir, sim, o futuro dos filmes de super-herói.

Outra dúvida, que é uma questão pessoal. A gente vê que, mesmo com essa questão da representatividade, atores negros sendo premiados, nos papéis mais técnicos, na direção, nos roteiros, a gente ainda vê uma predominância de pessoas não-negras. Isso está chegando também a esses papéis-chaves de produção dos bens culturais?

Eu acredito que isso ainda requer uma evolução muito grande, principalmente no Brasil. Mas até mesmo o próprio Pantera Negra, na premiação do Oscar, teve uma vitória muito importante, que foi a diretora de arte Hannah Beachler que ganhou o Oscar de Melhor Design de Produção. Isso é um passo muito grande para os bastidores da indústria. Mas isso ainda é algo muito carente, principalmente no Brasil, porque se os atores negros já não aparecem, nos bastidores das grandes produções está tudo ainda muito carente, requer uma evolução muito grande, pelo que eu vi nas minhas pesquisas.