Estado Sólido

Disciplina de Estado Sólido e Caracterização física

A disciplina de Estado sólido e caracterização física teve como objetivo geral apresentar ao aluno, os fundamentos do estado sólido na indústria farmacêutica, tendo como plano de fundo a interdisciplinaridade entre academia, indústria e órgãos regulamentadores.

Ao final da disciplina o aluno estaria apto a:

  • Interpretar os fundamentos e a nomenclatura de materiais sólidos e formas cristalinas.

  • Diferenciar as características de materiais sólidos e o impacto destas em propriedades farmacêuticas.

  • Reconhecer as transformações de fase que podem ocorrer durante a manufatura.

  • Selecionar e identificar técnicas de caracterização e controle de materiais sólidos.

  • Analisar textos regulatórios, compêndios farmacêuticos e outros documentos oficiais em que o estado sólido de materiais farmacêuticos se mostra relevante.

  • Discutir a seleção de insumos sólidos para o desenvolvimento de um medicamento.

A atividade trabalhada em sala de aula teve como objetivo consolidar o conhecimento do aluno e atingiu todos os objetivos propostos. Abaixo é possível encontrar a avaliação da disciplina, em que foi estimulado o pensamento crítico do aluno frente a uma situação real envolvendo aspectos desafiadores do estado sólido do IFA darunavir.

Caracterização do estado sólido do insumo farmacêutico ativo Darunavir

No dia 30/07/2021 foi proposta uma atividade de discussão sobre as propriedades relacionadas ao estado sólido do insumo farmacêutico ativo (IFA) darunavir. Para isso, apresentou-se um estudo de caso com a seguinte temática:

Durante o desenvolvimento de um produto na forma de comprimidos revestidos de liberação imediata de darunavir 600 mg, foi necessário optar pela compra do IFA a partir de dois fabricantes. Enquanto o fabricante A comercializava o etanolato de darunavir, o fabricante B comercializava a forma amorfa do IFA. Decidiu-se pela compra da forma amorfa do fabricante B para o desenvolvimento do produto e a empresa desenvolvedora realizou ensaios de caracterização da matéria-prima. A forma amorfa de darunavir foi avaliada pelas técnicas de espectroscopia de infravermelho, difração de raios-X (DRX), calorimetria diferencial exploratória (DSC), análise termogravimétrica (TGA) e microscopia de luz polarizada.

O espectro de infravermelho obtido era semelhante ao encontrado em literatura, o que confirmou a identidade química da substância darunavir.

O difratograma de raios-X apresentou um halo no padrão de difração, que a princípio foi condizente com o que se esperava da forma amorfa do darunavir.

Os resultados de TGA demonstraram eventos térmicos associados a perda de massa nas temperaturas de 71,89 °C, 340,76 °C e 409,80 °C. A perda de massa referente à temperatura de 71,89 °C foi bem sutil enquanto que nas outras temperaturas a perda de massa foi acentuada. Era de conhecimento que a temperatura de 340,76 °C estava relacionada ao ponto inicial de degradação química do IFA.

O resultado de DSC apresentou curva que alcançou uma temperatura limite próxima de 200 °C. Na curva observou-se um evento endotérmico acentuado cuja temperatura foi de 69,74 °C, que poderia denotar uma fusão ou dessolvatação.

A imagem ampliada e obtida pela microscopia de luz polarizada demonstra que o IFA apresenta o fenômeno de birrefringência, que é característico de formas cristalinas.

Considerando todas as análises, os resultados do DRX (halo característico de um sólido amorfo) foram conflitantes com os resultados de DSC (evento endotérmico acentuado se assemelhando a um evento de fusão característico de sólidos cristalinos) e de microscopia de luz polarizada (birrefringência, específico para sólidos cristalinos).

Diante dos dados, os alunos debateram com a professora Lívia sobre as possibilidades que justificariam o cenário observado. Aliado a isso, diversas dúvidas conceituais foram sanadas.

Por fim, os alunos elaboraram diferentes perguntas que ajudariam a atestar as hipóteses sobre o que estaria acontecendo com o IFA. Assim, sintetizaram-se as perguntas numa única questão de aprendizagem que auxiliaria na busca da solução do problema.

A questão final de aprendizagem foi:

  • Por que ocorreu a inconsistência nos resultados de caracterização da forma sólida do darunavir, considerando as técnicas abordadas no projeto ou na literatura?

Posteriormente à formulação da questão, os alunos tiveram uma semana para buscar documentos na literatura que ajudassem a respondê-la. Portanto, os objetivos principais da atividade foram:

  • Estimular os alunos a aprimorar os conhecimentos sobre as propriedades do estado sólido e suas técnicas de caracterização;

  • Sedimentar o conceito de que o máximo de técnicas analíticas possível devem ser empregadas para a caracterização do estado sólido;

  • Fomentar o debate crítico sobre um problema representativo e presente na realidade do desenvolvimento farmacêutico de um produto.

Após buscas na literatura foram encontrados alguns trabalhos relevantes que ajudaram a construir uma possível solução. Dentre eles o trabalho de Van Gyseghem e colaboradores (2009) foi o mais representativo para a mim. Segundo os autores, existia a possibilidade da forma amorfa se converter em forma hidratada após exposição a ambiente moderadamente a altamente úmido. Além disso, o trabalho apresentava gráficos de DSC e de DRX comparativos entre as fases amorfa, hidratada e do etanolato de darunavir, onde foi possível diferenciá-las entre si. Com os dados apresentados foi possível supor que o darunavir amorfo do fabricante B necessitaria de condições especiais de armazenagem para evitar uma possível conversão. Ademais, as amostras analisadas do IFA poderiam conter uma mistura de amorfo e hidrato de darunavir, onde a quantidade de amorfo seria significativamente superior à do hidrato, o que explicaria as inconsistências nos resultados.

Artigo: Solid state characterization of the anti-HIV drug TMC114: interconversion of amorphous TMC114, TMC114 ethanolate and hydrate

Abstract

The interconversion of the ethanolate, hydrate and amorphous form of TMC114 ((3-[(4-amino-benzenesulfonyl)-isobutyl-amino]-1-benzyl-2-hydroxypropyl)-carbamic acid hexahydrofuro-[2,3-b]furan-3-yl ester) in open conditions was characterized. TMC114 hydrate and ethanolate form isostructural channel solvates. The crystal structure of TMC114 was obtained from single crystal X-ray diffraction, confirming that it is a channel solvate. Ethanol and water can exchange with one another. TMC114 ethanolate converts into TMC114 hydrate at moderate or high relative humidity (RH) at 25 degrees C, and it converts back into the ethanolate in ethanol atmosphere. The hydration level of the hydrate is determined by the environmental humidity. TMC114 hydrate collapses to the amorphous product when water is removed by drying at low RH or increasing temperature. TMC114 ethanolate becomes amorphous at elevated temperature in a dry environment below the desolvation temperature. Amorphous TMC114 obtained by dehydrating the hydrate during storage at room temperature/<5% RH, by increasing the temperature, or via desolvating the ethanolate by heating, converts into the hydrate at moderate or high RH at ambient conditions, and into TMC114 ethanolate in an ethanol atmosphere. Under ambient conditions, TMC114 ethanolate may convert into the hydrate, whereas the opposite will not occur under these conditions. The amorphous form, prepared by melting-quenching shows a limited water uptake. Whereas TMC114 ethanolate is stable in the commercialized drug product, special conditions can trigger its conversion.

Na aula do dia 06/08/2021 os alunos se reuniram novamente para discutir as soluções para o estudo de caso. Após buscas na literatura, diferentes interpretações foram apresentadas e finalmente a professora informou as suspeitas de seu grupo de trabalho. Para elucidar as suspeitas, a professora ressaltou as pontuações da colega Rosana sobre o grau de cristalinidade e a microestrutura cristalina de uma partícula sólida.

Comentou-se que quanto menor o tamanho do cristalito (ou domínio cristalino), maior o alargamento nos picos do padrão de difração de raios-X. Isso ocorre de tal maneira, que o padrão de difração de raios-X passa a apresentar características de um halo de dispersão no difratograma, semelhante ao que se esperaria de um amorfo. As regiões de alargamento não coerentes oriundas do cristalito não amplificam o sinal dos picos no difratograma ocasionando, consequentemente, a expansão da base destes.

Um sólido cristalino com tamanho de cristalito muito pequeno geraria um evento endotérmico de fusão com uma baixa entalpia no DSC e, além disso, poderia apresentar birrefringência através da microscopia de luz polarizada. Por estas razões, a possibilidade do darunavir possuir um estado sólido cristalino com pequeno domínio cristalino deve ser considerada. O uso de técnicas mais sofisticadas contando com uso de luz síncroton, por exemplo, poderia detectar picos que a DRX não seria capaz de distinguir.

Ao final da atividade, ainda foram abordadas as propriedades que um IFA de estado sólido cristalino, com cristalito diminuto, poderia apresentar. Dentre elas ressaltaram-se a dissolução e a biodisponibilidade que poderiam ser mais elevadas que as de um IFA com maior domínio cristalino.

O estudo de caso sobre o estado sólido do darunavir cumpriu com os objetivos pré-determinados, uma vez que se ampliaram os conceitos sobre as propriedades do estado sólido. Ademais, evidenciou-se a necessidade do máximo de técnicas de caracterização possíveis para a determinação do estado sólido de um IFA e foi possível buscar literaturas que sustentassem as hipóteses formuladas na primeira aula, ainda que não se tenha pensado exatamente na possibilidade do IFA com o domínio cristalino reduzido.


REFERÊNCIAS

VAN GYSEGHEM, E. et al.. Solid state characterization of the anti-HIV drug TMC114: interconversion of amorphous tmc114, tmc114 ethanolate and hydrate. European Journal Of Pharmaceutical Sciences, v. 38, n. 5, p. 489-497, dez. 2009.