MAMUCAST!

Episódio Mamucast! S4E06 - A Ameaça Trans: como a extrema direita está tentando erradicar as pessoas trans

Salve salve mamutada, aqui é a Gabi e janeiro, como vocês já devem bem saber, é o mês da Visibilidade Trans. Então para variar um pouco, vamos falar novamente desse tema já tão recorrente nas nossas pautas. Infelizmente, este episódio não é para comemorar nenhuma conquista do movimento trans ou celebrar alguma personalidade transgênero. Estou aqui para denunciar, desabafar e alertar sobre algo que tem tirado as minhas (e de muitas outras pessoas trans e aliadas) noites de sono. Então se prepare para uma conversa pesada e desesperadora. 

Este episódio nasceu da urgência de quem teme pela própria vida, de quem está sob a mira de um revólver segurado por uma mão trêmula, cujo dedo, embalado por salmos bíblicos, acaricia o gatilho. É fruto de uma profunda preocupação com a derradeira chegada do movimento antitrans em terras brasileiras, cujos ecos já reverberaram violentamente nas casas legislativas. Não bastasse o Brasil se consagrar pelo décimo quinto ano consecutivo como o país que mais assassina pessoas trans no mundo, de acordo com os dados levantados pela organização não-governamental Transgender Europe (TGEU), o ano de 2023 assistiu uma explosão sem precedentes da proposição de projetos de lei com temáticas antitrans. 

Introdução

De acordo com um levantamento realizado pelo projeto Corpas Trans, que eu coordeno com profe Silvana, que já participou do Mamucast!. Só em 2023 foram propostos pelo menos 71 projetos de lei com temáticas antitrans nas esferas municipal, estadual e federal. Para termos de comparação, um levantamento realizado pela ONG   Democracy Reporting International, sediada em Berlin, e pelo Programa de Diversidade e Inclusão da FGV Direito Rio identificou que um terço dos 60 projetos de lei antitrans apresentados na Câmara dos Deputados entre 2019 e 2023 foram propostos apenas em 2023 (DINIZ; MACÁRIO, 2023).

Essa explosão de transfobia nas casas legislativas não é, infelizmente, uma exclusividade do Brasil. De uma forma bem mais preocupante, trata-se de um reflexo de uma intensa disputa ideológica que tem sido travada em escala global com o avanço do conservadorismo sobre os campos político e cultural e que encontrou na agenda antitrans uma arena fértil para o crescimento mútuo dos movimentos de extrema direita e da cultura da transfobia. Assim, para podermos compreender e possivelmente comb ater essa onda de ataques transfóbicos coordenados, precisamos analisar as suas origens e o que tem acontecido sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. 

Europa

O Reino Unido é um dos epicentros desse movimento antitrans, que teve como um de seus estopins uma tentativa de tornar o Gender Recognition Act mais transinclusivo. De uma maneira sucinta, o Gender Recognition Act, numa tradução livre: Ato de Reconhecimento de Gênero, é uma lei promulgada pelo parlamento do Reino Unido em 2004, que permitiu que pessoas trans alterassem o gênero em seus registros civis de nascimento sem a necessidade de intervenções cirúrgicas. Apesar de corresponder a um processo burocrático e com inúmeras limitações, incluindo um viés patologizante sobre as existências trans, ele proporcionou a primeira lei de reconhecimento de gênero no mundo a não requerer a esterilização forçada. Assim, a partir de 2017, iniciou-se uma intensa campanha de pânico moral plenamente veiculada na mídia e capitaneada por grupos de feministas radicais transexcludentes (TERFs) que contou com o apoio de grupos cristãos e conservadores numa vasta aliança antitrans, incluindo, em particular, uma parcela da comunidade LGB(T)QIA+ a favor da exclusão da letra T do acrônimo.

Poucos anos depois, as terras da então rainha foram palco de um dos episódios mais emblemáticos da cruzada jurídica antitrans, o caso Bell v. Tavistock. Em 2020, a Alta Corte de Justiça determinou que crianças menores de 16 anos não poderiam ser consideradas capazes para consentir com o uso de bloqueadores de puberdade. Mesmo com essa decisão tendo sido revogada pela Corte de Apelação em 2021, a discussão sobre os cuidados de saúde para jovens trans já havia se intensificado e assumido um caráter explicitamente transexcludente tanto no Reino Unido quanto na Europa e no Ocidente de uma forma geral. De fato, tal caso é explicitamente citado como precedente na formulação de diversos projetos de lei que tentam restringir ou até mesmo proibir o acesso de pessoas trans a cuidados médicos em seu processo de transição de gênero.

Mais preocupante, contudo, é a situação das pessoas trans na Rússia. A legalização da transfobia escalou abruptamente em 24 julho de 2023, com a aprovação de uma lei banindo todo e qualquer cuidado médico relacionado com o processo de transição, bem como o reconhecimento legal do gênero de pessoas trans. A lei não apenas deixa as pessoas trans sem acesso a cuidados médicos relacionados com o processo de transição, mas também sem aqueles não relacionados, uma vez que médicos já estão se recusando a tratá-las com medo de serem responsabilizados legalmente. Além disso, ela também proíbe pessoas trans de adotarem crianças e de se casarem, permitindo, inclusive, que casamentos já sacramentados sejam anulados.

E esse é apenas o triste começo da caçada às pessoas trans na Rússia, já que, posteriormente à aprovação dessa lei, seu proponente solicitou à Procuradoria Geral que investigasse as clínicas que emitiram atestados médicos permitindo a mudança de gênero. Em uma declaração de 20 de novembro de 2023, ele acusou as organizações trans de enganarem as pessoas para que transicionassem e anunciou uma “repressão à máfia transgênero”. A sua proposta inclui uma “reavaliação psiquiátrica” de pessoas que mudaram o seu gênero pouco antes da entrada em vigor da lei anti-trans. Contudo, engana-se quem acha que a perseguição se encerrará com as pessoas trans, já que em 30 de novembro de 2023, o Supremo Tribunal Russo declarou o "movimento LGBT internacional" como uma "organização extremista", colocando não apenas as pessoas trans, mas as pessoas LGBTQIAP+ de uma forma geral, sob o risco de perseguição criminal e prisão.  

Estados Unidos

Atravessando o Atlântico, não encontramos uma situação muito mais animadora. Os dados coletados pelo projeto Trans Legislation Tracker, que monitora a proposição e o andamento de projetos de lei que possam afetar a população transgênero dos EUA, denunciam o aumento significativo do esforço legislativo para eliminar as pessoas trans da vida pública estadunidense. Vemos, a partir de 2020, um crescimento exponencial no número de projetos de leis propostos nas diversas esferas legislativas. De fato, em 2015 tramitaram apenas 19 projetos de lei; em 2016, 55; em 2017, 45; em 2018, 26; em 2019, 19; em 2020, 66; em 2021, 143; em 2022, 174; em 2023, 591 e, em 2024, já estamos com 325. Similarmente, também aumentou o número de leis anti-trans aprovadas: em 2021, foram 18; em 2022, 26 e em 2023, 86. Esses projetos de lei podem ser convenientemente classificados em três categorias: espaços segregados, saúde e outros.

A categoria espaços segregados contempla projetos de leis que versam não apenas sobre o acesso a espaços como banheiros e vestiários como também a participação em práticas esportivas nas quais as pessoas sejam separadas de acordo com seu gênero. Assim, de uma forma geral, eles mobilizam alguma distorção do conceito obsoleto de essencialismo biológico para restringir legalmente a autonomia de pessoas trans. O pretexto é sempre o de proteger as ditas "mulheres biológicas" dos "homens biológicos" que visam invadir o seu espaço, seja para violentá-las, no caso dos banheiros, ou para ter alguma vantagem expressiva, no caso das competições esportivas. De acordo com o Movement Advancement Project (MAP), mais de um terço dos estados estadunidenses já aprovou algum tipo de lei que proíbe a participação de estudantes trans em competições esportivas de acordo com a sua identidade de gênero. 

Já, na categoria saúde estão os projetos de lei que visam restringir ou banir o acesso a cuidados médicos relativos ao processo de transição de gênero, como bloqueadores de puberdade, hormonização cruzada e cirurgias de afirmação de gênero. O que começou em 2020, com as repercussões do caso britânico Bell v. Tavistock, visando primariamente crianças e adolescentes trans com leis como a Lei para Salvar Adolescentes da Experimentação, aprovada no estado do Arkansas, passou também a ameaçar adultos, como no caso da Carolina do Sul e de Oklahoma, em que projetos de lei se aplicam a menores de 26 anos. Além disso, alguns projetos de lei também ameaçam criminalizar os profissionais da saúde que oferecerem algum cuidado médico a pessoas trans em seu processo de transição, resultando, em particular, na possibilidade de perda das respectivas licenças médicas.

Finalmente, na categoria outros, temos projetos de lei que limitam ou impedem a atualização de informações como nome ou marcadores de gênero em documentos oficiais, que enfraquecem as leis contra a discriminação, que restringem a liberdade de expressão de pessoas trans ou com expressão de gênero diversa e que censuram o sitema educacional na abordagem de temas relativos a gênero e sexualidade. O Arizona forneceu exemplos prototípicos dessa categoria de projeto de lei. Uma encorajava os pais ou responsáveis a reportar e, subsequentemente, propunha banir livros que "promoviam a fluidez de gênero ou pronomes de gênero". Outra requeria que tanto os pais ou responsáveis quanto os professores aprovassem os pronomes empregados pelos estudantes. Felizmente, nenhum desses dois foi aprovado, diferentemente de um terceiro, também no Arizona, que abria precedentes para a discriminação de cunho religioso contra pessoas LGBTQIAP+ no processo de adoção e assistência social.

Brasil

No Brasil, foram propostos em 2023 pelo menos 71 projetos de lei com temáticas anti-trans nas diversas esferas: federal, estadual e municipal. Seguindo a classificação apresentada anteriormente no contexto estadunidense, 16 versavam sobre espaços segregados, 20 sobre saúde e os 35 restantes em outros. As propostas partem majoritariamente de bancadas pautadas pela defesa dos chamados valores tradicionais da família brasileira fortemente calcadas em dogmas religiosos e com grande influência militar. As famigeradas bancadas do boi, da bala e da bíblia. Destacam-se, na categoria outros, os projetos de lei que visam restringir ou proibir o uso da linguagem neutra, juntamente com aqueles que atacam o acesso à saúde de pessoas trans. 

Alusões desconjuntadas a uma suposta defesa da moral e dos bons costumes se misturam a chamados ensandecidos à proteção da integridade física, mental e emocional das crianças e adolescentes trans que, na mesma linha falaciosa do argumento empregado no caso britânico Bell v. Tavistock, estariam sendo forçosamente submetidos a protocolos experimentais visando a supressão do chamado desenvolvimento "natural da puberdade".  Talvez, o caso que melhor ilustre os ataques derivados do caso britânico Bell v. Tavistock em terras brasileiras seja a instauração, em junho de 2023, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo com a finalidade de 

"apurar e investigar as práticas adotadas pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo no diagnóstico, acompanhamento e tratamento de menores de idade com suspeita ou diagnóstico de incongruência de gênero ou transgêneros e, em especial, a submissão de crianças e adolescentes a hormonioterapias para transição de gênero realizadas pelo hospital em possível violação às disposições do conselho federal de medicina".

Invocando, similarmente ao caso britânico, a incapacidade de crianças e adolescentes em consentirem sobre intervenções médicas, a CPI recomendou, em dezembro de 2023, pela "suspensão imediata de novas admissões de pacientes para tratamento de transição de gênero no AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual)" do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Além disso, encaminhou um projeto de lei proibindo a utilização de bloqueadores de puberdade em crianças e adolescentes menores de 16 anos e penalizando todo e qualquer agente público que os porventura utilize no processo de transição de pessoas trans de acordo com as normas do funcionalismo público do Estado de São Paulo.

Espantalhos Argumentativos

Após esse breve panorama das leis que têm sido propostas e aprovadas ao redor do mundo com o único intuito de promover a erradicação da população trans, debruçamo-nos sobre dois dos argumentos mobilizados mais frequentemente. Nosso intuito é desmontá-los, discorrendo sobre a sua natureza falaciosa e anticientífica, para assim explicitar o discurso de ódio subjacente que os motiva.

Estão hormonizando e mutilando as nossas crianças e adolescentes

O discurso derivado da argumentação do caso britânico Bell v. Tavistock, empregado tanto na Lei para Salvar Adolescentes da Experimentação, aprovada no estado do Arkansas, quanto na CPI contra o AMTIGOS é facilmente desmontado com uma leitura superficial das Normas de Atenção à Saúde das Pessoas Trans e com Variabilidade de Gênero, publicadas periodicamente pela A Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero (WPATH, World Professional Association for Transgender Health) com o intuito de promover as melhores e mais atualizadas diretrizes clínicas para auxiliar profissionais da saúde no tratamento de pessoas trans, ou da Resolução no 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina. 

De fato, além do acompanhamento psicoterapêutico, a única intervenção permitida para crianças é a da transição social. Trata-se do processo pelo qual a criança passa a ser reconhecida (em alguns ou todos os seus ambientes de convívio) de acordo com o gênero com que se identifica, envolvendo, possivelmente, a mudança de nome, pronomes e expressão de gênero. Além disso, pesquisas recentes sugerem que a transição social proporciona uma melhora significativa na saúde mental e bem-estar das crianças. Assim, a possibilidade de a criança voltar a se reconhecer no gênero atribuído ao nascimento não é uma justificativa para proibi-la de explorar socialmente a sua identidade de gênero.

Para adolescentes menores do que 16 anos é permitida apenas a supressão da puberdade por meio da administração de agonistas do hormônio liberador de gonadotrofinas. Trata-se de um procedimento seguro, efetivo, sem efeitos adversos de longo prazo e completamente reversível. Embora ainda exista um debate sobre o seu impacto no desenvolvimento ósseo, uma vez que a hormonização cruzada seja iniciada ou a puberdade endógena retomada, a taxa de mineralização óssea rapidamente se recupera, refutando, pois, os argumentos empregados nos projetos de lei transfóbicos. Enfatizamos que a hormonização cruzada é recomendada apenas a partir dos 16 anos.

Finalmente, a realização de qualquer procedimento cirúrgico voltado para a afirmação de gênero de uma pessoa trans só é permitida se duas condições forem satisfeitas: ela for maior de 18 anos e estiver sendo acompanhada por pelo menos 1 ano por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar. Além disso, uma série de laudos atestando a maturidade cognitiva e emocional, bem como o conhecimento e a compreensão dos efeitos reversíveis e irreversíveis, dos riscos e dos benefícios do tratamento são exigidos. Com todo esse rigor, não deveria ser surpreendente que a taxa de arrependimento e destransição figure entre 0,3% e 3,8%. Se formos considerar mais especificamente a taxa de arrependimento relacionada a procedimentos cirúrgicos envolvidos na transição de gênero, a taxa é inferior a 1%. Para efeitos de comparação, a taxa de arrependimento para cirurgias em geral é de aproximadamente 14,4%.

Epidemia Trans é um "mau generacional" espalhado por contágio social

Esse foco excessivo sobretudo em crianças e adolescentes não serve apenas para apelar para a proteção incondicional da inocência e da pureza, mas também para caracterizar a transgeneridade como um suposto "mau generacional". Nessa visão deturpada ser trans é enquadrado como estar corrompido por um movimento extremista oculto que estaria manipulando a grande mídia. Assim, buscam justificar o fato de a temática trans ser amplamente difundida e melhor aceita entre os jovens que, por serem pessoas "instáveis",  estariam infectados em uma epidemia de contágio social em escala global. Essas observações enviesadas encontraram respaldo na falaciosa hipótese da disforia de gênero de início rápido, publicada em um artigo da PLoS One em 2018. A despeito das inúmeras críticas, que forçaram a revista a realizar uma reavaliação pós-publicação e, inclusive, a modificar o artigo, esclarecendo os erros metodológicos, as severas limitações e os vieses do trabalho, tal hipótese continua a ser invocada pelos ativistas antitrans em face ao aumento do número de pessoas trans.

Contudo, além de o número de pessoas trans ser reduzido, estima-se, no caso brasileiro, que correspondam a pouco menos de 2% da população, há uma série de explicações extremamente mais simples para esse aparente crescimento da população trans. Uma delas se baseia no aumento da aceitação das identidades e na diminuição do estigma associado, em grande parte devido ao aumento da visibilidade positiva na mídia e a um maior acesso a cuidados de afirmação de gênero.

E então, o que resta nesses projetos de lei?

Como diria Butler, a argumentação anti-trans não passa de uma "incitação reacionária, um conjunto incendiário de afirmações e acusações contraditórias e incoerentes", das quais sobra apenas a justificativa, explícita ou não, de preservar a todo custo a chamada "ordem natural" como o princípio organizacional da existência humana em sociedade. Nesse contexto, a existência de pessoas trans constitui uma rachadura crítica na estrutura que sustenta a nossa socisedade: o binário sexo-gênero enviesado por seus preconceitos coloniais, brancos, cristãos e cisheteronormativos, justificado a posteriori pelos saberes-poderes médico-científicos.


Gostaria de terminar este episódio com um poema pertinente do pastor luterano alemão Martin Niemöller:

"Quando os nazistas pegaram os comunistas,

eu fiquei em silêncio;

eu não era comunista.


Quando eles prenderam os social-democratas,

eu fiquei em silêncio;

eu não era um social-democrata.


Quando eles pegaram os sindicalistas,

eu não protestei;

eu não era um sindicalista.


Quando eles levaram os judeus,

eu fiquei em silêncio;

eu não era um judeu.


Quando eles vieram me buscar,

não havia mais ninguém para protestar."


Fontes:


====================================================================

Mamucast! recomenda: 



Nossas redes sociais:

E você, alune/ouvinte, o que acha disso? Escreva pra gente nas nossas redes: 


Produção:

Música: Gabi

Pauta: Gabi e Corpas Trans

Arte/edição: Becs.