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Episódio #S01E01 Lynn Conway

Link do episódio: #S01E01 - Lynn Conway

Celebrando o mês do orgulho LGBTQIA+ resolvemos unir a ciência com a pauta trans em nosso primeiro episódio “oficial”, pra falar sobre uma mulher trans na engenharia e tecnologia!

Falaremos hoje sobre Lynn Conway, Professora Emérita de Engenharia Elétrica e Ciências da Computação da Universidade de Michigan, Sócia da Academia Nacional de Engenharia (EUA) e pioneira na história do desenvolvimento de chips de computador!

Ela é conhecida por melhorar significativamente arquitetura de chips de computador, trabalhou na IBM, na Xerox, na defesa americana, deu aulas no MIT e atualmente ela é professora aposentada na Universidade de Michigan.


Nossa história começa em 1998, quando um jornalista estava fazendo uma matéria sobre como a IBM estava perdendo o jogo na área de supercomputadores e caiu num limbo de papéis que a própria IBM “esqueceu”, sobre um tal de projeto Y. Quando o jornalista deu como matéria perdida (depois de escrever em fóruns online e procurar pessoas), recebeu um email estranho de uma tal de Lynn Conway, e aparentemente ela sabia tudo sobre o projeto! Ele achou mega estranho, pois não tinha ninguém com o nome dela em nenhum registro de funcionários da IBM na época. 


Quando perguntada, Lynn só respondeu que, na época do projeto, ela tinha outro nome. A questão colocou Lynn num dilema: ela queria muito falar sobre o projeto da IBM que participara, mas, ao mesmo tempo, não queria “sair do armário” pra esse jornalista de graça.


Uma das questões centrais da vivência trans diz respeito exatamente a tal dilema: ser abertamente trans ou tentar passar por uma pessoa cis? Discussões intermináveis sobre tal tema permeiam qualquer espaço voltado para o acolhimento de pessoas trans. De certa forma, pode-se até dizer que há um certo embate interno à própria comunidade. 


Tentar passar por uma pessoa cis envolve na maioria das vezes cortar abruptamente relações com o passado pré-transição, ou seja, abandonar família e amigos e trocar de emprego ou cidade. Em suma, começar uma nova vida completamente do zero em um contexto inteiramente novo. De fato, tal era um dos requisitos para que pessoas trans pudessem receber o apoio médico para transicionar (hormônios e cirurgias) ao longo das décadas de 60 e 70 nos EUA. Hoje em dia, não se trata mais de uma condição necessária para iniciar a transição. Contudo, o medo da discriminação, do ostracismo social e da violência fazem com que muitas pessoas trans prefiram não revelar seu passado. Há um baita privilégio envolvido nessa escolha, afinal apenas pessoas trans passáveis podem se dar ao luxo de se miscigenar adequadamente na sociedade cis.


Depois de agonizar por semanas, Lynn contou ao jornalista que durante sua passagem pela IBM, ela usava seu nome morto (que eu não vou falar aqui por respeito a ela, diferentemente dos jornais que falam dela).


Ninguém em momento algum deve invocar o nome morto de uma pessoa trans. Mesmo quando se tratar de narrar algum acontecimento do passado pré-transição. Pessoas trans sempre foram trans e por isso do gênero com o qual se identificam, só demoraram um pouco mais para externalizar tal fato.


Lynn contou ao jornalista que ela sabia que quando transicionasse, a vida dela se tornaria muito mais difícil do que era na época. Muitas pessoas trans passam de alguma forma por esse momento de escolher viver como eles mesmos ou morrer


Muitas pessoas trans sabem desde muito cedo sobre sua condição. Contudo, o preconceito é ainda grande o suficiente para que, a despeito do sofrimento emocional e físico que a dissonância entre alguns aspectos distintos do sexo biológico causa, mantenham-se no armário a espera de condições mais favoráveis para transicionar. Infelizmente, ainda vivemos numa sociedade em que nem sempre tais condições são atingidas e muitas pessoas trans ainda só juntam a coragem para transicionar quando se deparam com ideações suicidas.


Lynn nasceu em NY em 1938 e desde muito criança sempre brincou com suas amigas e, aos 7, numa loja de departamento ela pediu um vestido pra mãe. A partir desse momento, seus pais começaram a observá-la muito mais e oprimiram tudo que era afeminado em sua personalidade, jeitos, modo de falar e andar. Cortaram seu cabelo quase na raiz e seus pais deixaram de abraçá-la e dar carinho. A vigilância melhorou depois que seus pais se divorciaram, foi quando Lynn começou a ficar mais sozinha com seu irmão e brincando com os materiais de aulas de ciências da sua mãe. 


Lynn já demonstrava habilidades pra área de tecnologia desde os 14 anos, quando fez um sistema de som no seu quarto. Ela se jogou nos estudos como uma maneira de lidar com o fato de não ser quem queria. Quando os primeiros sinais da adolescência começaram a surgir, Lynn lutou nas sombras pra poder revertê-los de alguma forma, raspando as pernas em segredo ou usando roupas de suas primas. No auge dos anos 50 não haviam discussões sobre identidade de gênero e sexo de maneira aberta entre as famílias, tudo era visto como tabu. Os pais de Lynn faziam vista grossa e se a sociedade não discutia esse assunto, eles continuariam ignorando a condição da filha. 


Aos 17 ela foi estudar no MIT, chegando aos 2% dos alunos no topo da turma no primeiro ano de faculdade. A saída de casa deu liberdade de Lynn explorar sua própria personalidade, comprando suas roupas, lendo sobre hormonização, eventualmente começando sua transição sozinha, contando para poucos amigos e vivendo uma vida dupla. Infelizmente com a falta de apoio e dinheiro, Lynn começou a perder as esperanças no final da sua graduação, começou a beber muito e se automedicar para conseguir viver. Um dos amigos, Karl a ajudou a encontrar um psicólogo, que disse pra ela “infelizmente não tem nada que você possa fazer pra virar uma mulher”. Lynn achou que seu psicólogo fosse ajudá-la a chegar perto do seu objetivo de fazer a cirurgia de redesignação sexual (sendo que na época, a modelo Christine Jorgensen tinha acabado de voltar da Dinamarca depois de fazer a operação de redesignação sexual. Ao que seu psicólogo respondeu “essas operações não te fariam uma mulher, te fariam uma aberração”. Devido à pressão de não poder ser quem queria, Lynn acabou saindo do MIT antes de se formar e voltou pra casa.


Casos de destransição existem. Contudo, diferentemente do que a mídia insiste em enfatizar, eles quase nunca estão relacionados com qualquer arrependimento relativo às mudanças físicas ocasionadas pelos hormônios ou cirurgias. De fato, o que força as pessoas trans de volta para o armário são as inúmeras dificuldades enfrentadas ao encarar uma sociedade inerentemente transfóbica. Dentre elas podemos destacar:

De fato, assim que conseguem encontrar condições mais favoráveis, elas voltam com a transição. 


Ela conseguiu um emprego de técnica em informática, vivendo com sua mãe, mas ao mesmo tempo sem se falarem. Sua mãe a ignorava e Lynn nunca encontrou pessoas como ela para que se sentisse pertencente ao mundo. 


Ainda hoje, mais de meio século após, ainda há muito desconhecimento sobre a comunidade trans. De fato, em pesquisa realizada no final de 2019, a GLAAD constatou que mais de 60% dos estadunidenses não conhecem uma pessoa trans pessoalmente. Restando, pois, apenas os estereótipos deturpados que a mídia insiste em propagar. Felizmente, na última década, esse cenário começou a mudar. Mesmo que vagarosamente, narrativas escritas e interpretadas por pessoas trans estão começando a permear a grande mídia.


Em 61 ela tentou voltar aos estudos, na Universidade de Columbia, terminando o bacharelado e obtendo o título de mestre em engenharia elétrica logo em seguida. Ela começou a trabalhar na IBM e foi escalada para trabalhar no projeto Y, um time que ia desenvolver novas arquiteturas de chip para novos supercomputadores no Vale do Silício.


Lynn, ainda impossibilitada de transicionar, namorou e casou com uma colega de trabalho depois dela engravidar de Lynn. Ela ficou muito feliz que ia ter um filho, parecia um milagre. Seus amigos que conheciam a Lynn de verdade, imaginaram que ela tinha decidido viver essa vida de casada e pai e abandonado seu passado. Com dois filhos e um salário baixo, Lynn não tinha tempo e condições de pensar na sua existência fora da esfera de engenheira, vida de casada e com filhos. Principalmente agora, que o efeito dos hormônios tomados começaram a passar.


Ao mesmo tempo, as discussões de sexo e gênero começaram a voltar a tona quando um médico endócrino alemão, Harry Benjamim veio para os EUA e lançou o livro The Transsexual Phenomenona (o fenômeno transexual). Harry já era conhecido por tratar muitas pessoas trans e ajudar essas pessoas a conseguirem terapia hormonal e cirurgias quando era da vontade dos seus pacientes. Ele ficou tão famoso no estudo e tratamento de pessoas trans que, em 69 houve o primeiro congresso da Harry Benjamin Association (que depois passa a se chamar World Professional Association for Transgender Health, WPATH), precedendo as revoltas de Stonewall.


Lynn estava tão pressionada a ser casada, provedora e pai que achava que nunca seria quem queria ser de verdade. Nisso ela começou a fazer coisas mais arriscadas, os passeios de moto eram mais radicais, suas escaladas e trilhas, mais remotas com pensamentos ruins de que um acidente a livraria daquela vida de sofrimento. Até que um dia, voltando de uma festa, ela parou o carro no acostamento da estrada e desesperadamente gritou que “precisava ser mulher!”. Aos prantos, Lynn tentou tirar sua vida e foi parada pela esposa, que disse que faria tudo pra que sua vida melhorasse. Então Lynn foi se consultar com Harry, um pouco antes dele se aposentar.


Lynn imaginou que se mudasse de laboratório e se a IBM só mudasse seu registro, ela conseguiria começar a sua vida nova tranquilamente. Visitaria seus filhos (de 2 e 4 anos na época) como tia Lynn e daria tudo certo. Mas seu supervisor simplesmente lhe disse “esse não é o jeito da IBM”. E Lynn foi mandada embora.


Seus amigos todos ficaram do lado da esposa que se divorciou de Lynn rapidamente, dizendo que Lynn mentira sua vida toda pra ela e pros filhas. Mas para Lynn, era a cirurgia ou a morte. Mas ainda, pra infelicidade de Lynn, sua ex a barrou de qualquer contato com suas filhas depois que ela saiu da cirurgia, adquirindo custódia total das filhas. Ela só se reencontrou com elas depois de 14 anos.


Lynn teve uma grande dificuldade de arranjar um emprego após a mudança final de nome e cirurgia. Ela passava no começo das seleções, mas ao ter que responder questões sobre seu histórico médico, ela era barrada. Mas ela não desistiu e continuou a procura em muitas empresas, chegando na Xerox, que queria muito novos profissionais experts em computaçao digital, algo que Lynn era pioneira. Lembrando que estamos nos anos 70 e computadores eram extremamente nichados. Lynn entrou num grupo especial de pesquisa somente nesse assunto (PARC, Palo Alto Research Center na California), desenvolvendo os primeiros computadores pessoais.


O processamento de informações dos computadores são feitas através de dispositivos chamados transistores. Cada um deles computa o valor 0 ou 1, que chamamos de bit. Nessa época começou a se fabricar circuitos integrados com muitos transistores, pra que cada vez os computadores tinham capacidade maior de computar! É aí que entra a genialidade de Lynn, repensando em como montar esses circuitos para que computadores fossem cada vez melhores e em larga escala, ela é uma das cientistas responsáveis pelo desenvolvimento da arquitetura usada no  processador pentium. Esse trabalho lhe deu muito destaque, sendo chamada pra dar aula no MIT! 


Lynn, no auge dos seus 35 anos, diz “estou vivendo uma nova realidade completa e profunda, tendo uma segunda puberdade”. Sua vida começou a realmente melhorar, ter amigos, um emprego desafiador e poder namorar livremente. E nesses namoros Lynn começou a ver que nem sempre seu passado poderia ser compartilhado. Os namorados iam embora quando sabiam sobre ela e a realidade de não ser amada sempre vinha bater na porta.


Um dos estereótipos de mulheres trans mais propagados pela mídia é o da mulher trans extremamente passável cujo único objetivo é ludibriar homens e os levar para a cama. Nesse momento, ela é obrigada a revelar seu passado, visto que, tais representações sempre envolvem mulheres trans com pênis. O que se segue é sempre um choque da contraparte masculina seguido ora por uma reação de nojo extremo (vômitos como em Ace Ventura) ou de extrema violência, levando muitas vezes à morte da mulher trans. Tal representação banalizou a violência a que somos submetidas quando precisamos revelar algum detalhe sobre nosso passado. 


As discussões sobre a melhor forma de revelar nossa transgeneridade para parceiros masculinos é um dos tópicos mais recorrentes em fóruns de apoio a pessoas trans. Existe um medo extremo, baseado em inúmeros relatos de violência e morte, sobre a reação do homem. De forma que o recomendado é que tais revelações sejam sempre feitas em lugares públicos ou através de mensagens. 


O abandono afetivo de mulheres trans, em particular das heteroafetivas, é uma das mais tristes realidades que enfrentamos decorrentes do sexismo oposicional que fundamenta a visão cisheteronormativa de nossa sociedade. Em particular, de acordo com essa visão deturpada, a presença de um pênis, mesmo que apenas num passado remoto, é o suficiente para colocar em cheque a masculinidade frágil do parceiro. 


Lynn tinha medo que descobrissem seu passado e tudo que ela lutou tanto desabasse como um castelo de cartas. Por isso ela nunca falou que trabalhou na IBM e no projeto Y. Então ela nunca falava muito dela mesma, era sempre lembrada como extremamente inteligente e profissional, mas distante. 


Enquanto isso, na mídia e sociedade, cada vez mais se falava sobre a transgeneridade e imaginou que logo não teria mais que evitar falar do assunto. Ao começar a trabalhar pro departamento de defesa americano (DARPA), ao ser interrogada pelo FBI pra ter acesso, imaginou que eles já tinham conhecido pessoas trans e já sabiam sobre ela (e estava tudo bem). No DARPA ela desenvolveu novos protótipos de processamento de chips conectados com a internet e computação de alto nível.


Felizmente, nesse meio tempo, ela conseguiu reatar a relação com seu irmão mais novo, depois que os pais morreram nos anos 70 (ainda sem reconhecer a filha). Já com suas filhas, foi diferente. Sua ex simplesmente tentou apagar Lynn da vida das meninas, elas viam o nome Lynn Conway e achavam que era o nome da advogada da mãe, pois Lynn nunca deixou de pagar pensão. Só quando Tracy, a mais velha, fez 18 anos, Lynn retomou uma tentativa de contato através de cartas e finalmente pode voltar a falar com suas filhas e realmente conhecê-las. O começo foi difícil, mas assim que Lynn foi chamada pra ser professora da Universidade de Michigan (Silicon Valley tóxico), elas se reconectaram cada vez mais.


Mas nem tudo era flores, o sistema lógico que Lynn desenvolveu na IBM começou a ser usado e seu crédito passado a quem não trabalhou nele, o que fez Lynn ficar em outra posição difícil. Pra poder ter os créditos do seu trabalho, feito com o nome morto, ela teria que sair do armário pra todo mundo. Ela começou a perceber que cada vez mais pessoas trans estavam aparecendo mais na mídia, e com isso a contemplar quantas mais estariam na mesma condição que ela? A comunidade gay e lésbicas já tinha conseguido bastante apoio, porque não falar sobre ser trans?


Lynn juntou todos seus artigos e manuscritos da época da IBM, colocou seu nome neles e enviou pra IBM pra ter seus créditos, ela fez isso em 1999 antes que a IBM fizesse. Nessa época ela também se aposentou da carreira de professora. E aproveitou o ensejo e contou pra todos amigos de infância e antigos colegas de trabalho. Nessa época ela já tinha um livro sobre arquitetura de circuitos integrados, diversos artigos em revistas especializadas, ganhado prêmios, escrito patentes e dado vários cursos em várias universidades. Empresas como a Apple, HP, Intel, Kodak, Verizon, Xerox e até a IBM usavam das invenções de Lynn. Então ela sentiu que apesar dos traumas de contar sobre sua condição, começou o ativismo para que pessoas como ela tivessem as mesmas oportunidades profissionais que pessoas cis.


Ela começou seu ativismo ajudando outras mulheres trans com informações médicas e prestando consultoria a empresas da área de tecnologia para promover a igualdade de contratação de pessoas trans. Ela também entrou em brigas contra pesquisadores duvidosos sobre transgeneridade, que faziam declarações abertamente transfóbicas sobre “homens que querem ser mulheres”, tratando o assunto como uma caricatura das mulheres trans.


Em 2004, Lynn participou da peça “Monólogos da Vagina” em LA com um elenco totalmente trans e em, 2009 foi condecorada como um dos 40 heróis de Stonewall. Em 2014, com os esforços de Lynn e Leandra Vicci, conseguiram adicionar os direitos da pessoa LGBT no código de ética da profissão no Instituto Internacional de Engenheiros Elétrico-Eletrônicos (IEEE), que conta com 160 países.


Lynn foi considerada uma das pessoas trans mais influentes da cultura americana pela revista TIME. Ela acumulou 22 prêmios relacionados à sua carreira, 5 patentes, e em 2016 foi condecorada como doutora honoris causa em engenharia pela Universidade de Victoria.


“By openly sharing our stories and life-experiences, we can help build a more realistic knowledge of and genuine wisdom about transgender issues. We can also help society see us as the human beings we truly are. In the process we can enable more and more people to live fuller and happier lives in an increasingly inclusive, harmonious society.”


“Ao compartilharmos abertamente nossas experiências ajudamos a construir um entendimento genuíno da questão trans. E com isso, ajudar a sociedade nos enxergue como os seres humanos que somos. Nesse processo permitimos que mais pessoas trans vivam mais felizes e plenas, numa sociedade inclusiva e harmoniosa.”


Se hoje temos computadores cada vez mais velozes, mais baratos e potentes, é por causa de Lynn! <3

Fontes:


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Produção:

Música: Gabi
Arte/edição: Rebeca