MAMUCAST!

Episódio #S01E07 Julia Serano

Link do episódio: #S01E07 - Julia Serano #visibilidadetrans

Salve Mamutinhes!

Aqui é a Rebeca e aqui é a Gabi, no mês do orgulho trans, para falar de uma escritora, doutora em bioquímica, pesquisadora, poeta, oradora, musicista, youtuber, trans e bi ativista, a Julia Serano!

Lembrando que não somos biólogas, nem teóricas e acadêmicas dos temas, mas SOMOS CIENTISTAS! E o caráter desse episódio tem como objetivo levantar algumas ideias e fomentar a discussão sobre gênero, sexualidade e seu papel na nossa sociedade através da história da Julia.

De acordo com a própria Julia, ela estava a par da sua “situação excepcional de gênero”, como ela mesmo descreve, desde que se conhece por gente. Discussões sobre a origem da transgeneridade não faltam. Contudo, a grande maioria delas peca pelo fato de serem centradas numa narrativa cisgênera e que, por isso, torna a nossa existência como algo anormal, imoral ou até mesmo um erro de desenvolvimento que deve ser corrigido ou erradicado. Isso fica absurdamente óbvio na inexistência da pergunta recíproca: por que existem pessoas cisgêneras?

Há um claro viés na comunidade científica, majoritariamente constituída por homens brancos cisgêneros e heterossexuais, contra as chamadas expressões de gênero excepcionais. Não surpreende, pois, que as teorias por eles propostas não passam de especulações demasiadamente simplistas sobre a nossa existência, para não dizer completamente erradas e infundadas. Uma vez que elas não apenas invisibilizam a identidade, as perspectivas e as narrativas de uma parcela significativa das pessoas trans, mas sobretudo as marginaliza ainda mais. Logo, torna-se premente, que nós como pessoas trans tomemos a frente e comecemos a propor nossas próprias teorias. Teorias que sejam capazes de descrever fidedignamente a complexidade e a diversidade de nossas experiências e percepções sobre sexualidade e gênero.

Sob essa proposta, a própria Julia propôs diversos conceitos, hipóteses e modelos para melhor descrever a diversidade de gênero em nossa espécie. Um termo central em seus textos é o de sexo subconsciente. Trata-se da autocompreensão subconsciente e intrínseca que todas as pessoas têm sobre a manifestação de suas características sexuais. Para as pessoas cisgêneras, esse conceito pode parecer completamente alienígena e desnecessário. Isso se deve ao simples fato de elas não o perceberem, uma vez que seu sexo subconsciente está alinhado com o seu sexo físico. Contudo, para a maioria das pessoas trans tal distinção não é apenas óbvia como muitas vezes muitas vezes dolorosa, dada a dissonância entre as percepções que têm sobre seu sexo físico e subconsciente. Nas palavras da Julia numa tradução livre: “pessoas trans frequentemente descrevem seu sexo subconsciente como uma percepção intrínseca e inexplicável de que há algo profundamente errado com o sexo que lhes foi atribuído ao nascimento, ou que elas deveriam ser do outro sexo.” Além disso, ela explica que o motivo de usar uma palavra tão ambígua quanto subconsciente foi o de capturar o quão vaga essa sensação pode ser, bem como para não passar a impressão de que ela acredita que sua origem possa ser atribuída a um dado gene ou região específica do cérebro. Julia escreve isso dessa maneira também por ter formação em biologia.

Julia nasceu em 1967 nos Estados Unidos, teve uma infância feliz e relativamente normal. Cresceu sendo encorajada a se ver como um menino e agir de maneira estritamente masculina. Há quem diga que ter liberdade para se expressar livremente é uma afronta aos bons costumes e que ainda seja parte da chamada “ideologia de gênero”. Ora, você nunca se perguntou sobre por que existe uma distinção entre brinquedos de menina e de menino? Nunca entrou em uma loja de brinquedos ou de roupas para crianças e viu uma clara separação entre o que é rosa e o que é azul? A primeira coisa que perguntam quando alguém anuncia uma gravidez é exatamente o gênero, ou, erroneamente o sexo do bebê. Tais constatações, apesar de parecerem triviais e inconsequentes, revelam o papel central que o gênero assume em nosso destino dentro da sociedade. É ele que infelizmente determina quase todos os aspectos da vida de uma criança: das roupas às brincadeiras. Nossos gostos são para a vida toda moldados sob suas imposições.

As concepções do que é apropriado para meninas e meninos são tipicamente sociais, tal qual a definição dos famigerados papéis e estereótipos de gênero. Sua construção diz muito mais sobre a sociedade em que estamos inseridas do que sobre alguma verdade fundamental da natureza humana. Dependendo do seu gênero alguns comportamentos são estimulados, enquanto outros são sumariamente proibidos. Enquanto, desde muito cedo, as meninas são estimuladas a participar de brincadeiras que emulam atividades domésticas e a maternidade, meninos recebem carrinhos, computadores ou arminhas de brinquedo. Assim, a sociedade estimula as meninas a serem afetuosas, emotivas e provedoras de cuidado, ao passo que encarrega os meninos das atividades de descoberta, proteção e provimento material. Nesse contexto há todo um código de comportamento que deve ser imposto: meninas não podem questionar, não podem levantar a voz, não podem ser independentes. Meninos, por sua vez, não podem chorar, não podem desmunhecar ou rebolar, não podem demonstrar sentimentos que não o ódio, a raiva e o tesão.

Como diz Simone de Beauvoir: “O homem é definido como o ser humano já a mulher, como fêmea – sempre que ela se comportar como um ser humano será percebida como uma mera imitação do macho. Ninguém nasce mulher, mas sim se torna uma.”

Não importava o quanto Julia tentasse, sempre havia algo profundamente errado em tentar se passar por um homem. Ela sempre soube que tinha algo faltando na sua vida, como se ela tivesse que representar uma existência masculina para o “mundo real”. Ela se via mulher em seus sonhos e no seu subconsciente. Nada associado ao masculino era simples, tudo tinha que ser aprendido com muito esforço. Ela mesma diz que, durante o ensino fundamental, esperava que eventualmente alguém bateria em seu ombro e diria: “O que você está fazendo aqui? Você não é um menino!”.

Ela tinha sonhos que adultos viravam pra ela e diziam que na verdade ela era uma menina, e que nunca havia sido um menino. Ela tinha muitas fantasias de como isso fazia sentido em sua vida, mas ao mesmo tempo, ela ainda não estava ciente de que queria “ser” menina. Pois como acabamos de discutir, desde o nosso nascimento, somos forçades a aprender o que podemos ou não fazer sendo uma menina ou um menino. Então ela tentava com todas as suas forças suprimir esses sentimentos e vontades para poder perfomar o papel de menino da melhor forma possível. Fazia um esforço hercúleo para demonstrar o seu total desprezo pelas coisas ditas de menina. Mas no fundo, o que ela sentia era mesmo um medo avassalador de que as pessoas soubessem que tinha algo de errado com essa máscara de menino que ela insistia em usar.

Julia não teve muitos problemas para se miscigenar com os garotos na infância, pois sempre gostou de esportes. Mas mesmo querendo ser aceita pelos meninos, detestava ter que usar roupas ditas masculinas ou ter que cortar o cabelo curto. Sempre teve interesse em ciência, estórias de fantasia, bonequinhos e legos. Por volta dos 11 a 12 anos, ela começou a ter crises de insônia. Numa dessas noites sem dormir, ela teve um acesso e tirou as cortinas da janela e as vestiu, como um vestido. Ao se ver no espelho ela teve uma revelação incrível: “Nossa eu pareço uma menina!”. Ela ficou se olhando no espelho por um bom tempo, talvez fazendo conexões com sentimentos que ela jurava sentir desde sempre. Depois desse episódio suas brincadeiras de fantasia ficaram repletas de histórias em que ela, como protagonista, era transformada em menina por um vilão. Ela deveria correr atrás do vilão para ser destransformada, algo que esquecia completamente no meio da brincadeira, querendo permanecer como menina. Acho que enfim ela percebeu que era mais do que apenas uma fantasia ou brincadeira, era um desejo real. Ela realmente queria ser menina. E ela era, né?

Do mesmo jeito que a revelação da brincadeira desencadeou uma euforia maravilhosa, também despertou uma grande tristeza, deixando-a completamente devastada. Ao ser criada como um menino, ela aprendeu muito bem que deveria evitar toda e qualquer proximidade a qualquer coisa que fosse dita feminina. Afinal, em nossa sociedade inerentemente sexista há uma hierarquia bem clara: masculino é bom e feminino é ruim. Logo, a pior coisa que poderia acontecer com um menino é que ele fosse afeminado. Posteriormente, Julia cunharia um termo, efemimania, para descrever essa obsessão cultural que temos com a feminilidade masculina. Mais especificamente, com a forma que as expressões de feminilidade em homens são paulatinamente execradas, sensacionalizadas, ridicularizadas e patologizadas. Duvida do que estou falando? Então faça o seguinte experimento social. Pegue um homem cisgênero e heterossoxeal aleatório, peça para que ele segure a sua bolsa em público e observe a distância astronômica entre a bolsa e seu corpo.

Vítima de toda essa doutrinação sexista onipresente: em casa, na escola, ou com os amigos, Julia sabia exatamente que comportamentos não poderia ter. Ao negar o privilégio masculino e não se mostrar como o homem estereotipicamente másculo, intocável e dominador, seus pares a enxergariam como uma afronta a tudo o que é “certo”. E como nossa sociedade machista ensina os homens a reagirem quando são confrontados? Com violência. Sim, infelizmente é isso que espera qualquer homem que ouse demonstrar, mesmo que timidamente, qualquer característica rotulada como feminina. Inclusive, homens gays afeminados sofrem muito dentro da própria comunidade LGBTQIA+! Mas Julia não queria ser um menino afeminado, ela era e queria ser MENINA.

Assim, Julia seguiu rezando todas as noites para que ou a vontade de ser uma menina simplesmente desaparecesse de sua cabeça, ou que ela fosse enfim transformada em uma menina. Como nada nunca acontecia,eventualmente ela simplesmente aceitou que isso fazia parte de sua natureza. Julia não conhecia mais ninguém como ela. Não havia discussão sobre gênero na TV, nem na escola e muito menos em sua família. Fora as representações torpes de pessoas trans em filmes e seriados, a primeira vez que ela ouviu falar em transição de gênero foi com o burburinho midiático ao redor da ex-tenista Renée Richards. Ela havia sido acusada de transicionar apenas para poder ganhar mais títulos contra atletas mulheres.

Num desses seriados, Soap, o ator Billy Crystal interpretava um homem gay, que ocasionalmente se vestia de mulher para atrair homens. Devido a essa identificação errônea entre sexualidade e identidade de gênero, ou seja, que o personagem de Billy deveria ser uma mulher só porque ele gostava de homens, Julia concluiu que também deveria ser um homem gay. Esse seriado teve um impacto na vida da Julia e, infelizmente, a falsa associação entre genitália, identidade de gênero e sexualidade ainda é muito presente em nossa sociedade genitalista e cisheteronormativa. Em outras palavras, ainda existe a noção equivocada de que se você nasceu com um pênis, você é um homem e necessariamente se sente atraído por mulheres. Reciprocamente, se você nasceu sem um pênis, você é uma mulher e deve sentir atração sexual por homens. Entretanto, atualmente, entende-se que esses três conceitos são completamente independentes. Assim, saber se uma pessoa tem um pênis não diz nada sobre a sua identidade de gênero e muito menos sobre a sua orientação sexual. Além disso, essas dimensões não são sequer binárias. Homem e mulher são apenas os extremos de um espectro contínuo de identidades de gênero. Algo similar ocorre com as dimensões de genitália e de orientação sexual. Mas a pequena Julia ainda estava presa no paradigma ultrapassado, e por isso ficou bastante confusa. De fato, anos depois a própria Julia teria um papel importante na separação desses conceitos.

Ela diz que a tentativa de ser gay durou apenas uma semana. Ela não entendeu como poderia gostar de meninos. Era demasiadamente estranho tentar se sentir atraída por eles. Tratava-se de uma concepção bizarra demais. Ainda mais ela, que sempre imaginou se relacionando com meninas. Com a única diferença de que ela seria transformada em mulher nesse processo. Se ainda hoje tabu falar sobre sexualidade e identidade de gênero de uma maneira aberta e honesta, imagina no final da década de 1970, quando ela se deparou com a inexorabilidade de sua realidade. Sem ter ninguém com quem confidenciar, para sua própria segurança, decidiu guardar esse segredo para si. Eu me lembro dos vários anos que passei perdida em uma confusão mental muito semelhante. Não sabia se eu me sentia atraída por uma dada menina ou se eu queria ser ela.

Aos 15 anos, ao assistir uma competição esportiva na escola, ela decidiu que queria “mudar de sexo”, por mais que nunca tivesse ouvido falar sobre assunto. De fato, mal sabia o que significava. Para ela tudo era ainda mutio confuso, como se ela precisasse “mudar de sexo” para ser a mulher que já era e só não sabia. E como ela teria acesso a esse processo? Teria que contar pra família e amigos? Nem pensar, melhor deixar pra lá.

A expressão mudança de sexo pode até parecer pertinente e precisa do ponto de vista raso e rápido a julgar da cisgeneridade. Contudo, em uma análise mais profunda e cuidadosa, ela não está nem errada, porque sequer faz sentido. Isso sem contar que é extremamente transfóbica. Mas vamos por partes. Primeiro vamos explicar porque ela está errada e depois clarificar toda a transfobia impregnada nessa expressão.

Comecemos com a questão do que é sexo, ou mais propriamente o que é sexo biológico. Prometo, não vou entrar em mais detalhes do que o necessário. Certamente, quando pensamos em sexo, a primeira imagem que nos ocorre é a da genitália. Contudo, diferentemente do que a nossa sociedade insiste, a genitália é apenas um dos fatores do sexo bilógico. Existem muitos outros: os cromossomos, as gônadas, as características sexuais secundárias. Sem contar que os sistemas endócrino e nervoso também contribuem com fatores extremamente não triviais. Lembra do conceito do sexo subconsciente que a Serano cunhou? Com a nossa noção de sexo biológico retificada, revisitemos a questão da mudança de sexo. Se é para essa expressão fazer algum sentido, deveríamos mudar simultaneamente todos esses fatores, não? Bem, isso é impossível, até onde eu sei não existe cirurgia de transplante de cérebro. Mas daí algumes de vocês vão reclamar e invocar a famigerada cirurgia de mudança de sexo. Para começo de história, esse nome é incorreto. Um nome mais adequado seria cirurgia de redesignação genital, porque nela os cirurgiões alteram a genitália da pessoa e não o seu sexo. E a gente já discutiu o quão errado é reduzir o sexo, ou ainda de uma maneira mais geral, o gênero de uma pessoa à sua genitália. Tem muito mais em jogo.

Mas onde entra a transfobia nessa história? Além de toda essa questão genitalista, que já é intrinsecamente transfóbica, o termo mudança de sexo invoca toda uma narrativa de que nascemos com o sexo ou corpo errado. Em outras palavras, usando o caso da Julia como exemplo, ela nunca foi um homem, mas sempre foi uma mulher. O que aconteceu é que os médicos erraram a letrinha que colocaram no prontuário, porque olharam apenas para um dos fatores do sexo biológico, o que ela tinha (ou não) entre as pernas. E vocês têm que concordar comigo que negar a identidade de gênero de uma pessoa trans é por definição transfobia.

Agora que vocês entenderam por que é errado usar a expressão mudança de sexo e me prometeram nunca mais usá-la, vou ensinar o jeito certo. A expressão adequada é transição de gênero. Trata-se do processo pelo qual pessoas trans passam para alinharem seu sexo físico ao subconsciente. Ele pode envolver desde a terapia hormonal até processos cirúrgicos, passando ou não pela transição social. Não há certo ou errado, quando falamos de transição de gênero. Cada pessoa sabe o que precisa fazer para ser feliz consigo. Algumas, como a Laerte, contentam-se com a transição social. Para elas, basta ser lida pela sociedade como membros de um certo gênero. Já para outras, como a Amanda Lepore, diversas intervenções cirúrgicas podem ser necessárias.

Além de se desanimar com a possibilidade de transicionar, Julia começou a entrar mais intensamente na puberdade de menino. Sua voz começou a engrossar, seu corpo a mudar e seus pelos a ficarem mais visíveis. E parecia que não havia nada que ela pudesse fazer para parar, ou pelo menos atenuar, esse processo. Apesar disso, o sentimento e vontade de explorar sua sexualidade cresciam cada vez mais! Por mais que ela se odiasse por ser menino, ao menos a maioria das meninas gostavam de meninos. Então externamente ela viveria como menino e, fora dos olhos da sociedade, seria a menina que ela sempre queria ser.

A escolha de se manter como homem perante a sociedade foi encorajada por muitos livros de psicologia que Julia leu quando tinha 18 anos. Especialmente a tipologia do transexualismo de Blanchard, dos anos 60 e 70, que propunha uma divisão entre “homens que queriam ser mulheres” em duas categorias: transexuais homossexuais, atraídas exclusivamente por homens e que procuravam a cirurgia de redesignação de genital, porque queriam ser femininas tanto no comportamento quanto na aparência; e transexuais autoginefílicas que são sexualmente excitadas pela ideia de ter um corpo feminino, fazendo cross-dressing (também chamado em português de transformismo).

Nesse contexto, as transexuais homossexuais deveriam odiar o seu corpo e por isso eram descritas como “mulheres presas dentro de um corpo de homem”. Seu tratamento consistia em terapia hormonal e cirurgia de redesignação de genital para poderem se relacionar com homens. Já as transexuais autoginefílicas só queriam se vestir como mulher como uma forma de prazer sexual! Foi a primeira vez que ela leu sobre o assunto e detalhe: pra vocês terem ideia de quão obsoleto eram os textos, não tinha nada sobre homens trans, por exemplo! Mas olhando para o quanto a nossa sociedade é sexista e privilegia tudo o que é maculino em detrimento do feminino, esse tipo de atitude nem surpreende.

O grande asco que a comunidade trans tem pelo termo transexual remonta exatamente a esse tipo de classificação patologizante que reinou durante as décadas de 60 e 70. Não apenas as pseudoteorias de Blanchard, mas a própria escala Benjamin, usada para classificar as pessoas trans em dignas ou não de receber qualquer tipo de apoio à sua transição. Apenas as ditas transexuais verdadeiras tinham o acesso garantido à terapia hormonal e às cirurgias. A partir da década de 1980 e sobretudo durante a década de 90, a comunidade trans começou a se organizar e a rejeitar publicamente esse tipo de medicalização. Em particular, foi nesse período que a palavra transgênero, ou mais simplesmente trans, surgiu como um termo geral para representar qualquer pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento. Cabe ressaltar que ainda existem muitas pessoas trans que se identificam como transexuais. E da mesma forma que é errado usar o termo transexual como um termo geral para se referir a uma pessoa trans arbitrária, não devemos deslegitimar essa identidade dentro do espectro transgênero.

Enfatizamos que as pseudoteorias de Blanchard e a escala Benjamin não são mais utilizadas para decidir se uma pessoa trans deve ou não ter acesso à terapia hormonal ou cirurgias. Até há poucos anos, o DSM-4-TR (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais) incluía alguns dos conceitos introduzidos por Blanchard, como por exemplo a autoginefilia, dentre as características descritivas do transtorno de identidade de gênero. Felizmente, a Associação Profissional Mundial para a Saúde Transgênero (World Professional Association for Transgender Health, WPATH) contestou sua inclusão como uma teoria válida, citando a total falta de evidências empíricas em seu favor. Enfim, em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais, porém, continua na Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), mas em uma nova categoria, denominada "saúde sexual". A França foi o primeiro país a despatologizar pessoas trans, em 2010.

Obviamente Julia não se entendeu naqueles textos. Para começar, ela sentia prazer com seu corpo, por mais que imaginasse ter uma genitália feminina em suas fantasias. Além disso, ela gostava de mulheres. Assim, não tinha como ela se encaixar na definição de transexual homossexual. Então, por exclusão, concluiu que deveria se enquadrar na segunda categoria, a de transexuais autoginefílicas. Consequentemente, o seu desejo de ser mulher seria apenas um fetiche bizarro que ela deveria manter escondido de todo mundo.

Até completar 26 anos, Julia se esforçou muito para ser um homem. Ela não era hiper-masculina, mas tentava com todas as suas forças se convencer de que seu desejo por ser mulher não passava de uma fantasia. Além disso, temia muito que o seu “segredo” fosse revelado. Por isso tomava um cuidado extremo para não deixar qualquer pista sobre suas fantasias. Julia só fazia “cross-dressing”, ou seja, se vestia com roupas ditas femininas, dentro de seu quarto fechado, quando não tinha ninguém em casa e em raras ocasiões. Ela comprava roupas de catálogo pelo correio e as mantinha muito bem escondidas no fundo de seu armário. No entanto, apenas vesti-las não era suficiente! Julia se via apenas como um homem em roupas de mulher. Sentia-se completamente inadequada. Tinha muita vontade de sair na rua vestida como ela mesma, mas ao mesmo tempo, muito medo de ser vista pelos conhecidos. Ela se preocupava demais com o que as pessoas pensariam se a vissem assim.

A vida no armário é sufocante. A capacidade cerebral que tem que ser devotada para emular uma personalidade que não é naturalmente sua é demasiadamente taxativa. Não sobra energia para mais nada. Muito menos para as interações sociais, onde há ainda o medo adicional de descobrirem o seu segredo sombrio. Não à toa, construí um muro impenetrável ao meu redor. Ninguém, nem mesmo a minha esposa, podia se aproximar demais. Contudo, ao mesmo tempo que essa muralha me protegia, ela também me impedia de viver.

Poucos anos depois, Julia começou a sentir os efeitos da repressão que vivia. Ela estava extremamente depressiva e pra ela, sua depressão tinha nome, número e série: ela era mulher! E não tinha como passar mais tempo suprimindo essa não tão pequena parte de sua existência. Nessa época, ela tinha acabado de defender seu doutorado em bioquímica e biofísica molecular na Universidade de Columbia (ela é formada em biologia pela Universidade de Filadélfia). Depois de formada, foi morar em Lawrence, no estado do Kansas, o que a fez procurar ajuda na capital do estado junto a um grupo de apoio para pessoas trans. Foi muito importante para ela encontrar, conhecer e falar com pessoas que estavam passando pelo mesmo que ela, para poder enfim trocar experiências e se perceber menos sozinha no mundo. Esse processo de aceitação foi longo e doloroso, mas foi muito importante para que ela pudesse começar a se expressar como a mulher que sempre foi. Ela começou a sair com suas roupas e viu que era “passável”, ou seja, as pessoas a liam como cis, o que a deixou com uma sensação de felicidade e tranquilidade.

A maioria dos amigos e pessoas com que Julia se relacionava reagiram bem quando ela começou a contar, primeiramente, sobre a parte de “cross-dressing”. Nos anos que se seguiram, ela começou a explorar e a expressar abertamente cada vez mais os diversos aspectos de seu gênero, personalidade e sexualidade. Com isso facetas de sua existência trans que não se enquadravam no “cross-dressing” começaram a emergir. E suas músicas e histórias começaram a refletir a sua transgeneridade.

Em 1998, já morando em São Francisco, Julia conheceu Dani e se deparou com mais uma das rachaduras em sua muralha de homem cisgênero heterossexual. Foi com um comentário inocente de Dani sobre a forma com que Julia se descrevia: “homem hétero que se veste de mulher ocasionalmente”, que fez com ela percebesse a inconerência de tal descrição. Para catalisar ainda mais o seu questionamento, Dani a presenteou com o livro “Gender Outlaw”, de Kate Borntein, ume acadêmique não-binárie que estuda gênero. Julia achou o livro bem provocador e começou a entender que ela era mesmo uma pessoa transgênera. Ela até por um tempo se considerou bi-gênero.

Mesmo com o novo entendimento, Julia não estava feliz. O “cross-dressing” já não lhe levava ao mesmo estado de euforia que antes. Ela precisava levar o velho hábito a um novo nível. Mas que nível seria esse? A depressão estava novamente à espreita. Não foi fácil para ela admitir que o “cross-dressing” não era mais divertido. De fato, deixara é de ser suficiente. Ela não queria apenas se fantasiar de mulher. Ela queria ser mulher. A dissonância entre seus sexos físico e subconsciente tornava-se cada vez mais explícita. E com ela, crescia em seu âmago uma angústia existencial implacável, que muitas pessoas trans denominam disforia de gênero. Ela até conseguia levar uma vida minimamente funcional: tinha relacionamentos, saia com amigues, era produtiva, dava até umas risadas, mas essa tristeza estava sempre com ela. E para piorar, ela sabia que essa sensação só deveria ficar mais intensa.

Nessa época, ela estudava drosófilas como parte de seu pós-doutorado em genética e evolução na Universidade da Califórnia de Berkeley. Contudo, por mais interessante que lhe fosse o seu objeto de estudo, ela não conseguia fazer nada além de passar os dias olhando para a tela do computador. A angústia emocional estava cada vez mais presente e paralisante. Não tinha vontade para nada, nem para escrever suas músicas e estórias. A própria vontade de viver parecia gradativamente lhe deixar.

Transicionar era algo aterrorizante. Ela não queria passar por um processo tão íntimo e profundo sob o escrutínio alheio. Não importa o quão passável você se torne, sempre teria alguém do passado que saberia de onde você veio. Ela se sentia como a Cassandra, aquela personagem da mitologia grega que tinha o dom de prever o futuro, mas ninguém acreditava em nada do que ela falava. Julia acreditava nisso, que ela realizaria o sonho de ser quem queria, mas sabia que muitas pessoas jamais aceitariam quem ela é de verdade.

Mas, por que temos tanto medo de transicionar? Porque tememos a reação desproporcional que nos aguarda. A transição é uma aposta de tudo ou nada. Arriscamos nossa família, nossos amigos, nossa carreira e nossa própria segurança para ter um pouco de paz interna. Não é nada fácil viver sob incessantes ataques de uma sociedade cissexista que, em nome da manutenção da cisgeneridade compulsória, usa de todos os artifícios para eliminar, deslegitimar e apagar as nossas identidades. Não há espaço verdadeiramente seguro para uma pessoa trans. Somos ainda desbravadoras que temos que lutar diariamente pelo simples direito de existir.

Você não precisa acreditar no que eu estou dizendo. Afinal, como parte de uma minoria oprimida, não espero que a minha palavra seja tomada como verdadeira. Por isso trago alguns dados coletados por uma pesquisa realizada pelo National Center for Transgender Equality, realizada com 28 mil pessoas transgêneras ou de gênero diverso dos Estados Unidos em 2015. Vamos aos fatos, então. Uma em cada dez das respondentes reportaram sofrer violência de algum familiar apenas por ser trans. Além disso, uma em cada doze foi expulsa de casa por ser trans e uma em cada dez precisou fugir de casa.

A situação fora de casa mostrou-se ainda pior, dado que a maioria das respondentes afirmaram ter sofrido alguma forma de maltrato no ambiente escolar: 54% afirmou ter sido abusada verbalmente, 24% fisicamente e 13% sexualmente. Já no ambiente de trabalho, 30% das respondentes que tinham algum emprego relataram terem sido demitidas, alguma promoção negada ou sofrido alguma forma de assédio em virtude de seu gênero. Além disso, 46% das respondentes relatam terem sofrido alguma forma de assédio: verbal, físico ou sexual no ano anterior à realização da pesquisa. Junta-se a isso as alarmantes taxas de desemprego e de vida abaixo da linha de pobreza para a população trans que são cerca de 3 vezes maiores do que para a população geral. Com tudo isso não é surpreendente que 39% das respondentes relataram sentirem sua saúde mental severamente abalada no mês anterior à realização da pesquisa.

Só que a Julia não contava com a facilidade com que passaria a ser confundida e tratada no feminino por completos estranhos na rua. Era como se ela já estivesse vivendo como ela realmente desejava, mesmo quando ela estava em “boy-mode”, ou seja, não exatamente vestindo roupas muito femininas. O que lhe fez pensar, “mas não estou ativamente fazendo ‘cross-dressing’ para me passar por mulher, só estou sendo eu mesma”. Exatamente a mesma coisa que as demais mulheres faziam para se passar por mulher: nada. E para ela que passara a vida toda se esforçando para ser lida como um homem e morrendo de medo que as pessoas percebessem o seu disfarce, foi um tremendo alívio. A sensação de poder ser ela mesma e assim reconhecida, a despeito de não estar maquiada ou com o xuxu aparente, deu-lhe uma nova perspectiva. Imagina, então qual seria o efeito de algumas sessões de laser na barba e alguns meses sob efeito do estrogênio? Poxa, daria muito certo, ela poderia ser ela e pronto!

Julia descreve esse ponto como se tivesse passado anos tentando resolver um problema matemático muito complexo. Atormentada por um conjunto de equações que pareciam não fazer nenhum sentido. Mas isso era porque ela sempre as olhou por um ponto de vista extremamente conservador. Bastou entrar em contato com novos e, revolucionários, conceitos para que de repente começassem a fazer sentido. Entender-se e sobretudo se aceitar enquanto uma pessoa trans não é um processo linear, muito menos constante.

Finalmente, depois de refletir muito, Julia se sentiu confortável em transicionar, mesmo sob o constante olhar de seus colegas de trabalho que a acompanhariam pelo processo. Felizmente, o chefe do laboratório em que trabalhava foi compreensivo, assim como seus colegas. Eles até inventaram o jarro do nome morto. Cada vez que alguém errava o nome ou o gênero da Julia, tinha que colocar uma moeda no jarro. O dinheiro coletado nessa brincadeira era investido em cerveja. Infelizmente, não é toda pessoa trans que tem essa sorte. Na mesma época em que Julia saiu do armário, ela conheceu uma pessoa que fora expulsa de um laboratório vizinho apenas por transicionar. Atualmente, a Universidade da Califórnia tem políticas contra discriminação de pessoas LGBTQIA+.

Em sua carreira na biologia, a Julia trabalhou basicamente com biologia do desenvolvimento, genética, biologia molecular e evolução e desenvolvimento. Para quem não sabe, a biologia do desenvolvimento é o ramo da biologia que estuda como as formas de vida se desenvolvem. Todos os animais e plantas começam como uma única célula e aos poucos se desenvolvem em organismos complexos com diferentes tipos de célula, por exemplo, neurônios, leucócitos, hemácias, para citar apenas algumas, cada qual com a sua função e localização.

Em geral, esse estudo é conduzido em alguns organismos modelo, como a Drosophila melanogaster, ou para os íntimos a mosquinha da fruta. Afinal, os genes que controlam os processos de desenvolvimento são conservados sob o fluxo da evolução. Assim, os genes responsáveis pelo desenvolvimento das pernas, dos olhos ou dos músculos dorsais nos seres humanos são muito parecidos com os que fazem essas mesmas partes em ratos, pássaros, sapos, minhocas ou até mesmo na nossa amiga a mosquinha da fruta. Com isso, ao estudarmos seu comportamento nesses organismos modelo aprendemos indiretamente sobre o processo similar em seres humanos. Contudo, as pernas humanas são notadamente diferentes das pernas dos ratos, dos pássaros e da mosquinha da fruta. Nesse contexto, a subárea da biologia denominada Evolução e Desenvolvimento se preocupa em estudar o desenvolvimento de animais próximos para entender como a evolução atuou para que alguns crustáceos, por exemplo, tivessem mais pernas do que outros.

Muito da pesquisa que a Julia conduziu consistiu em isolar genes específicos que estão envolvidos nos processos de desenvolvimento. Em alguns casos, ela manipulou tais genes para, através das mudanças decorrentes, entender o seu papel nos processos de desenvolvimento. Mais especificamente, ao longo de sua carreira na biologia, Julia estudou os chamados genes Hox em crustáceos, bem como diversos genes de drosophila melanogaster.

Depois que a bolsa do seu último projeto terminou, Julia passou a escrever livros, dar palestras sobre gênero, sexualidade, feminismo e questões LGBTQia+ em universidades e conferências. Seu livro mais famoso é o “Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity” (uma tradução livre seria Garota Abalada: uma mulher transexual falando de sexismo e a feminilidade como bode expiatório). Infelizmente sem tradução para português por enquanto (se fôssemos falar desse livro aqui seria outro podcast). Acho que seria interessante conversar com editoras brasileiras para trazer o livro pra cá!

E sua lista de livros, que são em grande maioria publicados a partir de sua editora própria (Switch Hitter Press). Em ordem de data de publicação (os detalhes estarão na nossa página):

  • Either/Or. 2002. OCLC 58926464.

  • Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. Seal Press. 2007. Seal Press. ISBN 9781580051545. OCLC 81252738.

  • Excluded: Making Feminist and Queer Movements More Inclusive. (2013) ISBN 978-1580055048.

  • Outspoken: A Decade of Transgender Activism and Trans Feminism. Switch Hitter Press. (2016). ISBN 978-0996881005.

  • 99 Erics: a Kat Cataclysm faux novel, o livro mais novo dela de ficção, saiu em 2020.



Encerramos o episódio de hoje com um trecho de seu livro mais famoso, o Whipping Girl.


“When the Majority of jokes made at the expense of trans people center on "men wearing dresses" or "men who want their penises cut off" that is not transphobia- it is trans-misogyny. When the majority of violence and sexual assaults omitted against trans people is directed at trans women, that is not transphobia- it is trans-misogyny.”


Tradução livre:


“Enquanto a maioria das piadas sobre pessoas trans versarem principalmente sobre “homens usando vestidos” ou “homens que desejam ter seus pênis cortados”, não estamos falando simplesmente de transfobia, mas sim de transmisoginia. Enquanto a maior parte violência física e sexual tiver como alvo primordial a população transfeminina, não estamos falando apenas de transfobia, mas sim de transmisoginia.”


― Julia Serano, Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity


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Fontes:

Gregoviski, Silva e Hlavac. “‘É Menino Ou Menina?’ – A Construção Da Identidade De Gênero Através Dos Brinquedos”. PERSPECTIVA, Erechim. v. 40, n.152, p. 89-99, dezembro/2016


The Scientist:A Transforming Field

https://www.the-scientist.com/uncategorized/a-transforming-field-43344


BARRETO, A.; ARAÚJO, L.; PEREIRA, M. E. (orgs.) Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. Versão 2009. – Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM. 2009.


Sites da Julia Serano: http://www.juliaserano.com/switchhitter/mystory.html e http://juliaserano.blogspot.com/ e https://juliaserano.medium.com/ e https://scholar.google.com/citations?hl=en&user=fAO0zhIAAAAJ&view_op=list_works&sortby=pubdate


http://www.mulheres.ba.gov.br/2019/06/2441/Masculinidade-toxica-faz-homens-e-mulheres-vitimas-do-machismo-conheca-o-jovem-que-sofre-por-ser-negro-e-gay-afeminado.html


Renée Richards https://en.wikipedia.org/wiki/Ren%C3%A9e_Richards


Bancroft, John. “Transgender, gender nonconformity and transvestism”. Human Sexuality and its Problems. Elsevier 3rd ed., 2019.


James, S. E., Herman, J. L., Rankin, S., Keisling, M., Mottet, L., & Anafi, M. (2016). The Report of the 2015 U.S.

Transgender Survey. Washington, DC: National Center for Transgender Equality.


Serano, Julia (2007). Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. Berkeley: Seal Press. ISBN 1580051545.


Editora da Julia Serano: http://www.switchhitter.net/


Mamucast! recomenda:

  • Pra aprender: Documentário da Laerte na Netflix, chamado Laerte-se. Nesse documentário simples, a Laerte discute várias questões sobre a identidade de gênero dela, e como isso se reflete na sua arte.


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Produção:

Música: Gabi

Pauta: Gabi/Rebeca

Arte/edição: Produção