MAMUCAST!

Episódio Mamucast! S3E11 - Transpectivas Universitárias: desafios para a inclusão de pessoas trans no ensino superior

Salve, Salve, Mamutada! Aqui é a Gabi e neste episódio vamos traçar um breve histórico sobre as políticas de ação afirmativa no cenário brasileiro, discorreremos sobre a ausência de pessoas trans tanto na legislação quanto no ensino superior público. Vamos comentar sobre a  inexistência de dados oficiais sobre a população trans no Brasil que, mais do que um instrumento de invisibilização, serve como denúncia da necropolítica que financia o seu genocídio e aponta um possível caminho de resistência. Assim, ao mapearmos a presença de pessoas trans nas universidades federais e levantarmos as parcas iniciativas locais de inclusão da população trans na graduação e na pós-graduação, identificamos os desafios e as potencialidades que a sua presença transformadora nas universidades têm. Vai ser um passeio difícil, mas muito importante!


Introdução: a lei das cotas e ações afirmativas

Em 2022, a Lei no 12.711, popularmente conhecida como a Lei das Cotas, completou dez anos deflagrando uma série de debates em torno de sua avaliação e possível revisão. Sancionada em agosto de 2012 pela então Presidenta Dilma Rousseff, ela consolidou na esfera federal uma luta que já durava pelo menos uma década nas casas legislativas pela adoção de políticas de ação afirmativa com o intuito de democratizar o acesso ao ensino superior público. De acordo com Adriano Souza Senkevics: “ações afirmativas são políticas compensatórias, baseadas nos princípios de igualdade de oportunidades e discriminação positiva, visando mitigar efeitos de uma discriminação historicamente existente sobre grupos específicos, geralmente delimitados por critérios socioeconômicos, étnico-raciais ou demais características adscritas.” 


Esse termo surgiu nos Estados Unidos durante a década de 1960, que, de acordo com Sabrina Moehlecke vivia "um momento de reivindicações democráticas internas, expressas principalmente no movimento pelos direitos civis, cuja bandeira central era a extensão da igualdade de oportunidades a todos". Desse contexto antissegregacionista e com o protagonismo dos movimentos negros, o conceito de que o Estado deveria assumir uma postura ativa para a melhoria das condições de vida de grupos sociais historicamente discriminados ganhou o mundo com experiências semelhantes ocorrendo em diversos países da Europa Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros.


Já no Brasil, as lutas por políticas de ação afirmativa foram protagonizadas pelo Movimento Negro Brasileiro, em virtude da ausência de pessoas negras no ensino público superior e em cargos de poder. Os primeiros resultados práticos no contexto da educação superior afloram em 2002, com a adoção de um programa de cotas raciais para ingresso na graduação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que também adotou medida semelhante para a entrada de pessoas negras e indígenas em cursos de pós-graduação. Nos anos que se seguem, diversas universidades, através de iniciativas de seus conselhos universitários, instituíram algum tipo de ação afirmativa em seus processos de admissão. Finalmente, em 2012, após a legitimação da constitucionalidade das cotas raciais pelo Supremo Tribunal Federal, ocorreu a promulgação da Lei de Cotas.


Na prática, a lei federal prevê, primeiramente, que 50% das vagas por instituição, curso e turno devam se destinar aos alunos que estudaram na rede pública durante toda sua escolarização em nível médio. Em seguida, estabelece uma segunda reserva de vagas, dentro do primeiro contingente, voltada para outras duas condições: uma proporção mínima de 50% de estudantes oriundos de famílias cuja renda mensal per capita seja igual ou inferior a 1,5 salário mínimo; e uma proporção de autodeclarados PPI no mínimo igual à soma desses grupos na respectiva unidade da Federação onde se encontra o estabelecimento de  ensino, segundo o último recenseamento demográfico. 


Posteriormente, em 2016, o Ministério da Educação (MEC) instituiu, por meio da Portaria Normativa no 13, a política de ações afirmativas voltadas para pessoas negras, indígenas e com deficiência na pós-graduação em instituições federais de ensino superior. Apesar de incipientes iniciativas oficiais de monitoramento e avaliação dessa legislação, existe uma pletora de estudos independentes sobre seus efeitos em institutos de educação superior. No contexto da graduação, observa-se tanto um incremento na participação de egressos do ensino básico público, que passaram de 55% em 2012 a 64% em 2016, quanto de pessoas pretas, pardas e indígenas oriundas de escola pública que saltaram de 28% para 38% no mesmo período. 


Além disso, observa-se que mesmo em carreiras tradicionalmente elitizadas, seletivas e prestigiadas como o Direito, a Engenharia Elétrica e a Medicina houve um aumento significativo da presença de estudantes de escola pública, PPI e de baixa renda, cuja proporção em 2012 era em torno de 10 a 20%, passou para algo entre 20 e 40% em 2016. Mais especificamente, 96% dos cursos de Medicina, 92% de Direito e 84% de Engenharia Elétrica apresentaram variações positivas na presença desses estudantes. Com respeito à pós-graduação, observou-se um aumento de 174 para 747 programas com alguma forma de política afirmativa entre 2015 e 2018. Contudo, os estudantes de pós-graduação têm perfis significativamente menos diversos do que os de graduação, indicando a insuficiência das políticas de ação afirmativa voltadas para a pós-graduação, correspondendo a apenas 26,4% dos programas analisados, bem como sugerindo a existência de entraves relacionados à permanência e à conclusão da graduação. 


Escapam, contudo, tanto à Lei no 12.711, quanto à Portaria Normativa no 13 do MEC diversos grupos sociais historicamente excluídos do ambiente universitário como pessoas trans, quilombolas, ciganas, apátridas e portadoras de visto humanitário (refugiadas). Tais grupos são contemplados em apenas uma pequena fração das políticas afirmativas voltadas tanto para estudantes de graduação quanto de pós-graduação instituídas pontualmente em algumas universidades ou programas de pós-graduação. Neste episódio, debruçamo-nos especificamente sobre a população trans e como as políticas afirmativas podem colaborar no combate à discriminação que sofrem, na redução da desigualdade que as atinge e, finalmente, em sua integração na socisedade por meio da valorização de suas vivências e saberes. 


Assim, após esse breve histórico sobre as ações afirmativas no cenário brasileiro, discorremos sobre as condições que impedem o pleno exercício da cidadania por pessoas trans com ênfase no acesso e permanência ao cistema educacional. 


E as pessoas trans no ensino superior?


A última década foi marcada por uma série de conquistas históricas para a população trans, fruto de uma intensa pressão por parte de ativistas trans. Internacionalmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu, na 11a edição de sua Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11), o chamado “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero”, despatologizando, pois, a transgeneridade, que até então era considerada um transtorno mental.


Nessa nova edição, publicada em 2018, mas que só passou a vigorar em 2022, foi criado um capítulo adicional, dedicado à saúde sexual, onde as incongruências de gênero foram incluídas. Trata-se de um passo importante para dirimir o preconceito e estigma que pessoas trans sofrem, porém sem afetar a oferta de cuidados médicos no processo de transição de gênero. Nacionalmente, o Provimento no 73 de 2018 da Corregedoria Nacional de Justiça possibilitou, para pessoas maiores de 18 anos, a alteração de nome e gênero nos documentos diretamente nos cartórios de registro civil, sem a necessidade de ação judicial. No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal decidiu por enquadrar condutas homofóbicas e transfóbicas na tificação da Lei do Racismo através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26.


No contexto educacional, a universalização do acesso ao nome social a partir dos anos 2010 possibilitou que as primeiras pessoas trans ingressassem (e permanecessem) no ensino superior público com um mínimo de dignidade e legitimidade. Processo que culminou nas "primeiras defesas de dissertações e teses de pessoas que utilizavam o nome social, muitas vezes conhecidas como as primeiras, ou algumas das primeiras, pessoas trans* a se diplomarem na pós-graduação brasileira". A despeito de sua importância, o nome social é uma gambiarra legal que surgiu como uma reivindicação histórica do movimento travesti brasileiro diante da dificuldade em se alterar o registro civil e com isso evitar situações vexatórias. Sua implementação se deu originalmente no âmbito da saúde e, posteriormente, na educação.

A partir de 2008, no Brasil, observam-se mobilizações dos Movimentos Sociais de Lésbicas, Gays, Travestis e Pessoas Transgênero (LGBT) pela utilização do nome social nas escolas públicas estaduais, considerando os altos índices de evasão escolar dessa população, que é impossibilitada de permanecer na escola pública por ser vítima de preconceito e discriminação. 


No ensino superior, o pioneirismo da adoção do nome social coube à Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), que, em 2009, autorizou a inclusão do nome social nos registros acadêmicos (diários acadêmicos, cadastros, históricos, certificados e demais documentos internos). Posteriormente, um pouco após a implementação do nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em 2014, a resolução no 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação/LGBT forneceu orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização. Finalmente, em 2016, o decreto no 8727 regulamentou o nome social na esfera federal.


Cabe enfatizar que até 2018 a alteração do registro civil era feita apenas por via judicial, frequentemente exigindo a apresentação de laudos médicos e, por vezes, a realização de cirurgias. Não obstante, mesmo com Provimento no 73, o nome social continua como um direito fundamental para o acesso e permanência de pessoas trans no ambiente escolar e universitário, pois nem sempre a alteração do registro civil é desejada ou sequer possível. Diversos motivos, desde o custo, passando pelas diversas certidões negativas exigidas até a inelegibilidade de pessoas menores de 18 anos, podem impedir que uma pessoa trans solicite a mudança de nome e gênero diretamente nos cartórios de registro civil.

Figura 1: Solicitação do uso do nome social no ENEM em função do tempo.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) através dos Painéis ENEM.

Um efeito colateral interessante da implementação do nome social é que ele tem permitido um primeiro levantamento de dados sobre o acesso de pessoas trans ao ensino superior. Na pauta, disponível em nosso site, a figura 1 mostra a proporção de solicitações de uso do nome social em cada cem mil inscrições no ENEM desde 2015 até 2022. Através de uma regressão linear (com fator de concordância R²=0,696), estimamos um crescimento de cerca de 40% do número relativo de solicitações a cada ano. Crescimento também observado nas inscrições para outros vestibulares para universidades públicas. Embora tragam em números uma busca pelo acesso ao ensino superior por parte da população trans*, vale enfatizar que esse número ainda é extremamente reduzido quando comparado à população como um todo!


Uma das organizações com protagonismo na produção de dados quantitativos sobre a população trans é a ANTRA, que estimou que cerca 56% das pessoas trans não completou o ensino fundamental, 72% não concluiu o ensino médio e apenas 0,02% estaria no ensino superior. Por outro lado, o relatório de pesquisa do Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo indica que 18% da população entrevistada não completou o ensino fundamental, 38% não concluiu o ensino médio e apenas 12% tem o ensino superior completo. Com respeito ao recorte de gênero, o estudo aponta que pessoas não-binárias e homens trans possuem índices de conclusão do ensino superior (21% e 18%, respectivamente) significativamente maiores do que de mulheres trans (9%) e travestis (7%).  


Dentre os diversos fatores que contribuem para a perpetuação da marginalização da população trans, podemos destacar essa exclusão sumária do ambiente escolar. A sociedade brasileira, de maneira geral, não aceita pessoas com diferentes identidades de gênero e sua permanência na escola leva-as a vivenciar situações de bullying, assédio e de ridicularização, motivando-as a deixar a escola. Não há abandono e sim a expulsão. É um processo que muitas vezes começa com o desrespeito ao nome social ou com o impedimento de usar o banheiro de acordo com o seu gênero. Dada a inexistência de qualquer discussão séria sobre temas como Transfobia ou LGBTFOBIA dentro das escolas, essa série de exclusões culmina na desistência forçada. Consequentemente, colocando a população trans e, sobretudo as mulheres trans e travestis, que, de acordo com o Censo Trans, encontram-se majoritariamente (89,5%) na prostituição, numa situação de extrema vulnerabilidade social. Disso decorre o inglório título que o Brasil detém há 14 anos de país que mais assassina pessoas trans. Só em 2022, de acordo com os dados levantados pela ANTRA, pelo menos 151 pessoas trans foram mortas, sendo 131 casos de assassinato e 20 pessoas trans suicidadas. 


A partir da análise dos dados da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior, os únicos dados produzidos até hoje pelo Estado, podemos traçar um panorama rudimentar do acesso que as pessoas trans têm tido a cursos de graduação em instituições federais de ensino superior (IFES). Tal pesquisa considerou os estudantes de cursos presenciais de todas as 63 universidades federais existentes até fevereiro de 2018, bem como de 2 Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets), totalizando 65 IFES, envolvendo mais de um milhão e duzentos mil discentes de graduação, em todas as áreas do conhecimento. Ao todo, 11.114 estudantes se autodeclararam trans, correspondendo a aproximadamente 0,93% da amostra considerada. Do total de estudantes trans, 1676 (15,1%) são pessoas transfemininas, 1703 (15,3%) são pessoas transmasculinas e 7735 (69,6%) são pessoas não-binárias. 


O Nordeste concentra o maior número de estudantes trans com aproximadamente 0,27%, sendo seguido pelo Sudeste com 0,26%, o Sul contribui com 0,17%, o Norte com 0,13% e o Centro Oeste com apenas 0,13%. Proporcionalmente, contudo, o Norte conta com 1,03% de estudantes trans em seu corpo discente, o Sul com 1,0%, o Nordeste com 0,92%, o Centro Oeste com 0,87% e, finalmente, o Sudeste com somente 0,86%. Considerando que pessoas trans representam cerca de 2% da população brasileira (SPIZZIRRI, 2021), vemos que elas ainda estão significativamente sub representadas nas IFES. Contudo, a predominância de pessoas não-binárias é condizente com a sua prevalência na população trans, correspondendo a aproximadamente 63,3% de acordo com o estudo de Spizzirri et al (2021). 


Com respeito à distribuição por área do conhecimento, temos que as Ciências Humanas são a área que concentra a maior parcela des graduandes trans com 20,7%, sendo seguida pelas Ciências Sociais Aplicadas com 18,2% e pela área de Linguística, Letras e Artes com 15,5%. Em particular, quando olhamos a proporção relativa de discentes trans em uma determinada área do conhecimento, é essa última que apresenta a maior proporção, com aproximadamente 1,8%, um número muito próximo da prevalência de pessoas trans na população brasileira, seguida pelas Ciências Humanas com aproximadamente 1,3%. Por outro lado, são as Engenharias e as Ciências da Saúde que apresentam os piores resultados proporcionais com, respectivamente, 0,57% e 0,68% de seus estudantes trans. A área multidisciplinar, apesar de concentrar apenas 2% des estudantes trans, possui uma proporção de 1,12% de graduandes trans em seu corpo docente. Trata-se, provavelmente, de uma consequência do pequeno percentual de alunes matriculades em cursos dessa área, apenas cerca de 0,017% da amostra total. 


A figura 2 exibe a distribuição de identidade de gênero de acordo com a área do conhecimento. Conforme, esperado em todas as áreas observamos uma maior prevalência de pessoas não-binárias. Notamos contudo, que há uma concentração de identidades transfemininas nas áreas de Ciências Exatas e da Terra (18,5%), Ciências Agrárias (19,8%), Ciências Humanas (17%) e Multidisciplinar (16,9%) e de identidades transmasculinas nas Ciências Agrárias (20,4%) e na Multidisciplinar (27,2%). Esses dados mostram sobretudo a presença de pessoas trans nas mais variadas áreas do conhecimento.


Figura 2: Pessoas trans na graduação por área do conhecimento.
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES, 2019).

Nossa análise revela, então, que os maiores desafios para a inclusão de pessoas trans na graduação se encontram nas áreas de Engenharias e Ciências da Saúde. As Ciências Sociais Aplicadas, apesar de concentrarem uma parcela significativa da amostra de graduandes trans, ainda apresenta uma baixa proporção de pessoas trans em seus cursos de graduação e, por isso, ainda requer atenção. Apenas as Ciências Humanas e a área de Linguística, Letras e Artes apresentam um panorama que pode ser considerado positivo no que tange à presença de estudantes trans. 


Portanto, na última década, em decorrência de políticas públicas como a do nome social, não apenas houve um aumento da procura ativa de estudantes trans por acessarem a educação superior pública, como também (e principalmente) da sua presença em tais espaços. Ainda que reduzida, é essa presença que tem catalisado a criação e a implementação de políticas de ação afirmativa para o ingresso e a subsequente permanência de cada vez mais alunes trans na universidade pública.


Tá, mas quais as ações afirmativas exclusivas para pessoas trans?

Se, conforme discutimos anteriormente, já faltavam dados oficiais sobre a adoção e repercussão das políticas de ação afirmativa como previstas pela Lei de Cotas ou pela Portaria Normativa no 13 do MEC, a ausência de dados relativos à população trans é ainda mais atroz, condizente apenas com a exclusão e invisibilização dessas pessoas ao longo da história brasileira. Para tanto, analisamos os dados coletados pela organização não governamental TODXS em 2020 e os comparamos com o estudo anterior e mais abrangente sobre ações afirmativas na pós-graduação conduzido entre janeiro de 2002 e janeiro de 2018 por Anna Carolina Venturini e João Feres Júnior. 


Antes de nos debruçarmos sobre os dados, é importante notar que existem algumas diferenças metodológicas, sobretudo na escolha de indicadores adotados, entre o levantamento da TODXS (2020) e o trabalho de Venturini (2020). Enquanto o primeiro contabilizou cursos de pós-graduação incluindo todas as suas modalidades, como cursos de mestrado (profissional e acadêmico), doutorado (profissional e acadêmico), especialização e residência médica, o segundo considerou apenas programas de pós-graduação que ofereciam mestrado ou doutorado acadêmico com notas de 3 a 7 na última avaliação quadrienal da Capes. Tratam-se, pois, de números que, apesar de diferentes, estão intimamente correlacionados e, por isso, permitem uma comparação direta quando consideramos as proporções encontradas nos dois trabalhos. Em ambos os casos a coleta de dados se deu a partir da leitura crítica dos editais de seleção e foram considerados apenas cursos ou programas vinculados a instituições de ensino superior públicas. 


Dos 2763 programas (correspondendo a 66,2% de todos os programas do país) apenas 737 (26,7%) apresentaram algum tipo de ação afirmativa, beneficiando em sua maioria pessoas pretas (92%), pessoas pardas (91,3%), indígenas (90,4%) e pessoas com deficiência (78%). Em menor proporção estavam as iniciativas que incluíam estudantes transgênero, correspondendo a 10,4%, ou seja, cerca de 77 programas. Posteriormente, o levantamento realizado pela TODXS (2020) encontrou 292 cursos de pós-graduação com políticas afirmativas voltadas para a população trans, dos quais 191 (65,4%) oferecem mestrado ou doutorado acadêmicos. Usando adicionalmente os dados da Plataforma Sucupira, podemos então estimar que até 2018 aproximadamente 1,7% dos programas de pós-graduação acadêmicos já apresentavam alguma política afirmativa voltada para população trans e que até 2020, aproximadamente 2,7% dos cursos de pós-graduação já as haviam implementado. Além disso, considerando que em média um programa de pós-graduação oferece aproximadamente 1,5 cursos de pós-graduação, podemos afirmar que entre 2018 e 2020 houve um aumento de programas que reservam vagas para pessoas trans na pós-graduação de aproximadamente 63,2%. Não obstante, trata-se ainda de uma fração ínfima, indicando que há muito trabalho pela frente para garantirmos a inclusão da população trans na pós-graduação.


Os 292 cursos de pós-graduação com vagas reservadas para a população trans identificados pela TODXS (2020) estão distribuídos em 28 instituições de ensino superior públicas, 7 estaduais e 21 federais, distribuídas em 17 estados de todas as regiões do país:


Em 8 dessas instituições (UEA, UFRB, UFSB, UFRPE, UFBA, UNEB, UFCA e UEMS) o estabelecimento de políticas afirmativas voltadas para a população trans ocorreu em decorrência de resoluções de seus conselhos universitários, que determinaram a sua adoção em todos os seus programas de pós-graduação. Entretanto, é importante ressaltar que nem todos os editais contam com essa política na prática, e as iniciativas em todos os cursos de pós-graduação raramente as tem de modo efetivo. 

Figura 3: Cursos com ação afirmativa para pessoas trans por área do conhecimento.
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do levantamento conduzido pela TODXS (TODXS, 2020).

Assim como ocorreu com a adoção de cotas étnico-raciais para, sobretudo, a inclusão de pessoas pretas, pardas e indígenas na pós-graduação, áreas menos valorizadas pelo mercado de trabalho, como as Ciências Humanas, foram as que mais incluíram a população trans em seus editais. Em particular, como mostra a Figura 3, as Ciências Humanas são responsáveis por mais de ¼ dos programas que adotaram políticas de ações afirmativas para pessoas transgênero. Em seguida, aparecem as áreas Ciências da Saúde, Multidisciplinar e Ciências Sociais Aplicadas.


Já em relação à oferta de cursos de pós-graduação com ação afirmativa para pessoas trans, o mestrado acadêmico é a modalidade prevalente, com o doutorado acadêmico ocupando o segundo lugar. Apenas as Ciências da Saúde oferecem todas as modalidades. Notamos a oferta proporcionalmente significativa de vagas para pessoas trans na modalidade mestrado profissional nas grandes áreas de Ciências Exatas e da Terra, de Ciências Humanas e de Linguística, Letras e Artes, em virtude dos cursos voltados para a formação de professores da educação básica nas respectivas áreas ofertados em redes nacionais como PROFARTES, PROFFIS, PROFLETRAS, PROFMAT, PROFQUI.


Ao analisarmos a distribuição da forma de instituição das ações afirmativas em cada área do conhecimento (Figura 4, abaixo), percebemos que cursos de áreas historicamente consideradas duras, como Ciências Agrárias, Ciências Exatas e da Terra e Engenharias, apenas adotaram tais medidas em função dessas resoluções institucionais. Observa-se a persistência de uma cultura de conservadorismo meritocrático nas Engenharias e Ciências Exatas e da Terra, que ainda apresentam grande resistência a essas ações.

Figura 4: Distribuição dos cursos com ação afirmativa para pessoas trans por área do conhecimento e forma de instituição.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do levantamento conduzido pela TODXS (TODXS, 2020).

Por outro lado, nas Ciências Humanas aproximadamente 36,8% das políticas de ações afirmativas voltadas para a população trans foram instituídas por iniciativa dos próprios programas. Juntamente com a maior proporção de adoção autônoma por programas das áreas de Linguística, Letras e Artes (25,0%), Multidisciplinar (18,9%) e Ciências Sociais Aplicadas (11%), permite inferirmos que a proximidade dos campos de estudo com as questões enfrentadas pelas pessoas trans desempenhe um importante papel em tal decisão. Além disso, conforme discutido anteriormente, é exatamente nas áreas de Linguística, Letras e Artes e Ciências Humanas que se encontra a maior concentração de graduandes trans. Logo, além da proximidade acadêmica, existe naturalmente nessas áreas uma maior pressão interna para a criação de oportunidades de pós-graduação voltadas para a população trans.


Com respeito à distribuição geográfica, 76,4% dos cursos de pós-graduação que implementaram ações afirmativas voltadas para a população trans se encontram no Nordeste, concentrados sobretudo na Bahia, que sozinha contribui com 55,8% dos cursos. Trata-se de uma consequência direta de 6 das 8 instituições que adotaram tais políticas por decisão de seus conselhos universitários se localizarem no Nordeste e 4 dessas na Bahia. Similarmente, a instituição mandatória das vagas para pessoas trans pela UEMS reflete na segunda maior concentração de cursos a adotarem tais políticas afirmativas no Centro-Oeste com 10,3%. Não obstante, a resolução da UEA não teve um impacto significativo na região Norte que concentra apenas 1,0% das iniciativas. Finalmente, o Sudeste e o Sul contribuem respectivamente com modestos 7,2% e 5,2%. De acordo com dados disponibilizados na Plataforma Sucupira, aproximadamente 43,1% dos programas de pós-graduação estão localizados no Sudeste, 21,2% no Sul, 20,9% no Nordeste, 8,6% no Centro-Oeste e apenas 6,2% no Norte. Consequentemente, tanto de uma forma geral quanto com respeito especificamente à população trans, a oferta de ações afirmativas ainda não reflete proporcionalmente a distribuição regional de programas, enfatizando, particularmente, o esforço que tem sido feito no Nordeste para a inclusão de populações historicamente marginalizadas na educação superior, bem como, denunciando o descaso no Sul.


Em relação às vagas, de acordo com o levantamento realizado pela TODXS (2020), a maioria dos programas considerados optaram por criar vagas suplementares reservadas para candidates autodeclarades trans. Contudo, em apenas 31,2% dos casos, tais vagas eram exclusivas para pessoas trans. Na grande maioria dos editais (correspondendo a 68,8% dos cursos de pós-graduação), as vagas voltadas para ações afirmativas deveriam ser compartilhadas por diferentes grupos sociais, por exemplo, pessoas trans, negras, indígenas ou pertencentes a povos tradicionais, pessoas negras remanescentes de quilombos ou quilombolas e com deficiência. Trata-se de um formato inadequado, pois ignora sumariamente as particularidades de cada um desses grupos sociais, em particular, aquelas que suprimem a sua presença no ambiente universitário e sobretudo da pós-graduação. Além do que, para construirmos uma universidade verdadeiramente diversa é necessária a presença simultânea de todos esses grupos sociais. Finalmente, apenas 17,8% dos cursos exigem adicionalmente algum critério socioeconômico, como, por exemplo, ter cursado o ensino fundamental e/ou médio em escolas públicas ou comprovar estar em situação de carência econômica, para que es candidates sejam beneficiades pelas políticas afirmativas.


Diferentemente do que ocorre na pós-graduação em que cada programa tem a liberdade para adotar individualmente alguma política de ação afirmativa, a graduação é refém da aprovação nos respectivos conselhos universitários. O resultado é  uma situação um tanto quanto mais complicada, pois apenas 6 instituições contam com políticas afirmativas:


O critério socioeconômico é mobilizado adicionalmente de forma parcial (por exemplo, no caso da UFABC) ou integralmente (caso da UFSB) com a reserva de vagas à pessoas de baixa renda ou egressas do ensino básico público.


Conclusão e desdobramentos

E aí, quais os desdobramentos dessas políticas, suas limitações e os desafios que se delineiam para uma verdadeira inclusão das identidades trans nas universidades?


Dez anos depois, vemos o impacto positivo que a Lei de Cotas teve na transformação da educação superior no Brasil ao catalisar o desembranquecimento das universidades, tornando-as cada vez mais diversas e, por que não, acolhedoras. Contudo, trata-se de uma democratização ainda parcial, pois não considera um dos grupos historicamente mais marginalizados e, por isso, sumariamente excluído do cistema educacional: as pessoas trans. Não obstante, alguns desses corpos dicisdentes conseguiram entrar pela porta da frente em várias univercisdades públicas, em parte graças a políticas como a do nome social, e iniciaram um processo inevitável e irreversível de transição do ensino superior público com a reivindicação e a subsequente adoção (mesmo que em apenas um número ainda reduzido de universidades e programas) de políticas de ação afirmativa voltadas para a população trans.


Simultaneamente e em oposição a essa revolução, observou-se ao longo dos últimos anos uma intensa disputa ideológica em escala global com o avanço do conservadorismo sobre os campos político e cultural. De acordo com Keo Silva e Alexandre Fernandez Vaz "um dos principais pilares em que se sustenta essa posição é o combate à pejorativamente chamada ideologia de gênero", colocando o corpo, o gênero e a sexualidade no centro do debate. Episódios como o PL 5248/2020 e a anulação do edital do vestibular com vagas destinadas a pessoas trans na UNILAB em 2019 constituem apenas dois exemplos do pânico moral acionado contra minorias, nesse caso para justificar os ataques à população trans. Nas palavras de Jaqueline Gomes de Jesus, podemos concluir que:


“A oposição a cotas para pessoas travestis e trans  nas universidades se deve, em sua origem, à negação sistemática da própria humanidade das pessoas trans, de uma relação cisnormativa radical com esse grupo social ao nível da repulsa e do nojo, o qual, não podendo expor institucionalmente o seu ódio (por meio da aprovação pública do assassinato de pessoas trans, que no Brasil se configura como um genocídio, por objetivar o aniquilamento, e mais particularmente um feminicídio, dada a magnitude de sua violência de gênero contra as mulheres trans e travestis), expressa-se por uma desavergonhada oposição ao direito das pessoas trans à educação, desde a Educação Fundamental e o Ensino Médio, até o Superior. No pensamento social brasileiro, aceitam-se pessoas trans enquanto marginalizadas no  mercado de trabalho, inclusive estas são responsabilizadas por sua condição e avaliadas em termos moralistas, ao passo em que aquelas que encontram brechas no cistema e começam a  furar as barreiras históricas do acesso à educação em nosso país são invisibilizadas, continuamente testadas, muito pouco reconhecidas pelos pares, não são publicadas e lidas como mereceriam. A própria academia, por não ter mudado ainda o seu paradigma, reproduz essa lógica. Porém sempre há frestas, e a chama da mudança preservada por alguns grupos ou pessoas nessas instituições têm possibilitado parcerias e alianças para a transformação.” 


Então, respondendo aos debates acalorados quanto à revisão da Lei das Cotas, sim, ela precisa ser urgentemente revista, pelo menos no que tange à inclusão de pessoas trans. Garantir a sua presença no ensino superior não é apenas uma questão de reparação histórica perante a série de exclusões estruturais e abusos institucionais que sofreram, mas também (e principalmente) uma questão de sobrevivência da própria academia que precisa superar as suas limitações de gênero, raça e classe se quiser produzir um conhecimento contextualizado, relevante e socialmente referenciado.


Cotas trans, já!

Fontes:


====================================================================

Mamucast! recomenda: 




Nossas redes sociais:

E você, alune/ouvinte, o que acha disso? Escreva pra gente nas nossas redes: 


Produção:

Música: Gabi

Pauta: Gabi

Arte/edição: Produção