Observatório Alain Goussot
Por Rosa Soares Nunes
A Alain Goussot, - que sonhou com este Projeto Internacional -,
o Observatório, num tributo ao seu pensamento e às suas causas.
O lugar de encontro é aquela ocasião rara do acontecimento em profundidade.
Pela natureza material e simbólica das suas condições de emergência, o “Observatório Alain Goussot” é esse lugar, num tempo de sujeição mundializada ao caldo neoliberal comprometido com a formação de sujeitos dóceis, socialmente descomprometidos, maleáveis e adaptados ao imediatismo das necessidades do mercado, mais flexíveis do que com convicções e princípios: sem profundidade.
Alain Goussot já não está fisicamente entre nós. Mas a sua breve passagem sob os céus da Bahia e de São Paulo deixa-nos um legado de preocupações para “atrapalhar o trânsito”, na contramão a uma escolaridade geradora do sofrimento que a reprodução da injustiça social sempre comporta. Um desafio que não podemos alienar.
Da história da educação escolar sabemos da ligação da chegada ao sistema educativo dos testes de inteligência à escolarização obrigatória de alunos com os quais a escola não sabia lidar nem o que com eles fazer. Porque eles não estavam munidos, quer dizer, não estavam dotados pelo seu meio familiar de predisposições que o funcionamento do sistema pressupõe: um capital cultural e um acordo tácito a respeito das sanções escolares.
É mimando a impossível objetividade das chamadas “ciências fundamentais”, e também da psicologia experimental, que a pedagogia experimental encontrou uma fundamentação médica.
E tentou fazê-lo num impressivo esforço de analogia conceptual e do discurso correspondente. É que o poder envolvido na linguagem pericial não é aqui de pouca monta. Uma reflexão epistemológica, com a psicologia escolar por objecto, levanta de imediato a questão do poder que esta ciência, ou a prática desta ciência, tornou disponível.
A particular ênfase que Michel Foucault deu a esta questão*, enquanto tecnologia do poder, mostra como a ciência, transmutada em terapia social e técnica, pode ser um efetivo meio de violência disciplinar.
Mas é Ivan Illich que, com particular clareza, substantiva o conceito de medicalização dos pressupostos de natureza político ideológica e social que o significam, e o impregnam do carácter interrogador quanto aos efeitos de âmbito individual, social e ético para que ele remete.
A transposição para a educação escolar do modelo diagnóstico-tratamento e o crescente apelo às soluções medicamentosas para problemas educativos não são inocentes no efeito de etiqueta que se cola à pele com tanta mais pregnância quanto mais precocemente se configuram em exercício preditivo.
Os valores que se vão introduzir são os das diferenças de competências, diferenças de velocidade nas aprendizagens, distúrbios da personalidade e da atenção, os abençoados dis (dislexia, disgrafia, disortografia, discalculia, descartada a reflexão da dispedagogia que lhes corresponde), a avassaladora hiperactividade e, já agora, o surpreendente TOD (Transtorno de Oposição Desafiadora).
Num exercício crítico às abordagens condutivistas, Giampino & Vidal (2009:103) referem-se aos efeitos das profecias auto-realizadas, em consequências que nos comprometem com uma profunda revisão de muitos dos procedimentos que a própria academia tem ajudado a naturalizar, com o seu poder legitimante: “As grelhas de observação de comportamento, de fatores de risco, dão ideias preconcebidas, “prevenções” aos que as manipulam, a priori(s) que podem produzir efeitos de indução, de projeção que recaiam sobre a criança”. Logo que a prevenção se posiciona contra uma ameaça anunciada (“o risco de…”), logo que ela não é uma démarche no âmbito de um projeto de futuro, ela cai na predição e nos seus efeitos perversos.
Deslizando entre “Indicadores de risco”, “critérios de risco”, “famílias de risco”, nas grelhas que conformam este “cuidado” antecipador, depressa se derrapa para “crianças em risco”. Com diagnósticos cada vez mais precoces a augurar a identificação premonitória de perigosa agressividade e mesmo de delinquência, a mudança de linguagem, na sua aparente inocência, descarta a responsabilidade adulta do cuidar para a da vigilância policiada: em vez da criança, o menor… cada vez mais precocemente imputável. Sob a aparência científica, uma deriva ideológica ameaça aqui com uma espécie de psico-pato-sociologia que releva de um imprudente mas não neutro controle social das famílias.
Em tempo de submissão dos Estados às exigências de exclusão disciplinada das novas necessidades do sistema capitalista, isto é, de gestão controlada da exclusão, os apelos da escola vão para a intervenção médica e psicológica, ao mesmo tempo que assistimos à aplicação, no âmbito da intervenção pedagógica, de testes diagnóstico como o alfa e o ómega da caracterização prévia dos alunos – quantas vezes para justificar e legitimar antecipadamente a ulterior ausência da resposta educativa a que todos têm direito – e comprometem os professores com a sua aplicação, como se de uma medida ideologicamente neutra se tratasse.
Frequentemente com pouca condição crítica e contra-argumentativa, a tomada de consciência pelos docentes de que a formação dos professores é o lugar da mais forte concentração ideológica, e que as escolhas no domínio dessa formação, apenas secundariamente são técnicas e organizativas mas sim escolhas políticas – essa tomada de consciência não é facilitada pelo centro do sistema.
Lembrando Marx, quanto mais distantes estiverem as práticas dos princípios orientadores, mais as relações entre as pessoas são mediatizadas pelas coisas. Nesta asserção se anuncia ser a prática o lugar de legitimação da teoria, com o que Marx desafia o rasgão milenar que separou pensamento e ação, numa consistente e consequente rutura paradigmática que, enquanto tal, requer uma nova linguagem. E, como todas as linguagens, se mune de um vocabulários e de uma gramática, na emergência de uma nova teoria do conhecimento, inusitadamente propícia a, neste alvor do sec. XXI, nela se inscrever o repensar da formação dos professores: na dialeticidade endógena teoria/prática, a produção de conhecimento útil a transformações libertadoras.
E será a “Investigação–Ação” - na sua mais criativa e criadora acepção de alternativa a uma ciência causalista, frequentemente esquecida dos fins e da ética - esse caminho emancipador? Alain Goussot pressentia que sim. Ainda que consideradas as dificuldades de exequibilidade que essa escolha comporta e a que adiante daremos desenvolvimento. Tanto mais que, remetida essa escolha para o sintagma Investigação Ação Participativa I(A)P, ela é elevada ao estatuto científico de alternativa epistemológica (e não de simples metodologia), informada ideologicamente no sentido de transformações profundas, profundamente ligadas à Educação Popular, redignificada enquanto fonte substancial de desenvolvimento da própria ciência e da cultura. Uma deriva epistemológica propícia à criação de condições de capacitação dos oprimidos para analisarem a sua própria condição subalterna, no lastro de uma hierarquia calcada em privilégios da sociedade capitalista, e a se comprometerem com tentativas de deslocamento dos ciclos de reprodução social existentes. Num promissor contexto de experimentação social, é a América Latina dos anos 80 o espaço privilegiado de desenvolvimento conceptual da I(A)P e um lugar de implementação de políticas educativas a ela associadas.
Aqui entra como uma das tarefas deste Projecto Internacional, a construção dinâmica do Observatório Alain Goussot, como lugar seminal de encontro.
Assumida a natureza ideológica das escolhas pertinentes a um percurso Histórico Crítico, a necessidade de considerações atinentes ao quadro epistemológico em que se insere esse percurso desafia a função interrogativa da linguagem para um conjunto de considerações que remetem para a pertinência da atenção crítica a subtilezas indutoras da recuperação da dimensão emancipatória da Investigação-Acção na direcção da sua instrumentalidade à gestão da nova economia. Neste percurso não é negligenciável a estreita ligação entre os processos educacionais e os processos sociais de reprodução mais abrangentes.
No atual contexto de mundialização capitalista, sobretudo a partir de meados da década de 1990, novas redes, envolvendo não só os governos nacionais, mas também organizações como o Banco Mundial, a Organização Mundial de Comércio e a OCDE, ganham legitimidade e credibilidade através de discursos de sustentação de reformas neoliberais, respaldadas por essas novas redes. As novas formas de aparência filantrópica, dando curso ao imaginário neoliberal, promovem, através de soluções funcionais aos desígnios dos mercados, respostas aos problemas sociais e educacionais em coerência com as propaladas “virtualidades” do capitalismo social. A Investigação-Ação, sobretudo com a banalização da sua adjetivação “participativa” retirando a esta a força ideológica da sua emergência, não é imune à sedução e investida neoliberal nos projectos de Investigação Ação em educação. Mas não há palavras neutras. Num Projeto respaldado por uma orientação Histórico Cultural, é em contramão a esta investida que ganha sentido o Observatório Alain Goussot, como repositório de encontros pluridisciplinares e de diversidade idiossincrática, teleologicamente virados para um mesmo ímpeto transformador do que temos feito, porque outra coisa temos que fazer.
A divisão social do trabalho na Investigação em Educação
Emergente da necessidade de transformações reais, por via da identificação de problemas reais sentidos por quem os vive de dentro, e quem, “de fora”, se torna “de dentro” por condição solidária de um certo conhecimento (a ciência), sensibilidade e responsabilidade social, a Investigação-Ação (I-A) tem, do ponto de vista da escala em que opera – pouco terreno com muito detalhe -, essa dimensão virtuosa de desafio à confluência de diferentes mundivisões, diferentes cosmogonias, talhada na compreensão do conhecimento como entidade plural, no desejo de superação da incompletude que avassala a sua condição singular. Superação que não deixa espaço a negligenciar a sua inscrição estrutural – lugar das transformações profundas, onde se esclarecerá o seu carácter emancipatório. Sem esta inscrição, e a vigilância crítica que lhe é inerente, a I-A vagueará no apetecível e eufemístico mar da “neutralidade”, exposta à recuperação, à cooptação, para as tarefas de amplificação do Sistema Mundial, servindo-lhe de neg-entropia. Daí que, dificilmente nos possamos dar à ousadia do desperdício da experiência, configurada na praxis, no reconhecimento da funcionalidade do resgate desta ao esclarecimento numa área onde a divisão social do trabalho se impõe como matriz das dificuldades de ruptura com um paradigma do conhecimento (e do seu modo de produção) que, num estertor entrópico, ainda assim, hegemoniza o campo das ciências sociais. No lastro do rasgão milenar que separou pensamento e acção a modernidade ancora a antinomia sujeito/objecto, que tem aqui lugar relevante, pela sua instrumentalidade à emergência legitimada de muitas separações arbitrárias e da linguagem que as consolida.
A maior parte da literatura sobre I-A, ainda quando se auto-designa arauto de alternativa epistemológica, não foge muito ao bem intencionado discurso da colaboração entre teóricos e práticos, entre investigadores e actores do terreno, como se a desigual distribuição de poder que o prestígio visceralmente ligado a esses diferentes estatutos não corroesse a superação de uma comunicação assimétrica com o que se mantém a lógica daquilo que se pretende criticar. O que aqui está em causa não é a articulação da prestação que advém de diferentes papéis - e que é, em si, factor insubstituível de enriquecimento do trabalho coletivo -, mas a diferenciação desigual envolvida.
A esclarecedora asserção de Marx, outorgando ao mesmo cérebro a concepção dos sistemas filosóficos e o fazer das linhas do caminho de ferro com as mãos dos operários é o mais límpido esclarecimento que nos previne da persistente diferenciação desigual dos diferentes estatutos envolvidos num colectivo de Investigação-Acção: uma clareira de interpelação das relações de poder assimétricas que têm atravessado o modus faciendi da investigação-acção, colado ainda à legitimação académica de um modo de produção de conhecimento que em si veicula os efeitos da divisão social do trabalho e de onde investigação e acção saem desigualmente prestigiadas.
A Investigação Acção, ao rever-se numa relação endógena entre uma e outra, num espaço de reforço da dialéctica teoria-prática, dá guarida à configuração de um mosaico epistemológico, onde as problemáticas i) da produção de conhecimento; ii) da transformação da realidade em que opera; iii) da inerente auto-formação cooperativamente gerida; iv) da tensão sujeito-objecto; v) da gestão da implicação em alternativa à neutralidade distanciadora e descomprometida; da avaliação permanente, intrínseca a todo o processo, se ressignificam, numa miríade de questões delas decorrentes, a mais imediata das quais diz respeito à construção dinâmica do Investigador Coletivo (qualitativamente diferente de um coletivo de investigadores) - essa entidade quase utópica mas sem a qual, a alternativa epistemológica de que se diz arauto, fica comprometida. Aqui se põe, em grande plano, a centralidade das questões relativas à comunicação e à linguagem:
na tomada de consciência do efeito propulsor das transformações endógenas e exógenas da avaliação, imanente à compreensão e transformação do real, e tão necessária que a nossa condição humana não tem sentido sem ela. Basta pensarmos no trabalho, enquanto categoria central para a compreensão do próprio fenómeno humano-social: a condição projectual do ser humano; o carácter de actividade orientada para um fim (o para quê); o seu carácter colectivo; o imperativo ontológico de fazer escolhas, são inerentes à natureza avaliativa de toda a acção humana (no sentido mais lato). E não se confunde com qualquer processo classificatório ou duvidosa mensurabilidade imediatista.
a mesma centralidade se lhes reconhece (à comunicação e à linguagem) na hora da imersão no contexto social e do confronto com as consequências das desigualdades no mundo, traduzidas em problemas reais e locais decorrentes de um modo de produção que se alimenta da exploração e da opressão, alheio ao sofrimento que desencadeia. Dessa imersão nasce a implicação, a cumplicidade e o sentido da responsabilidade social assumidas na Investigação Ação.
das consequências para as causas: é este um percurso matricial a uma Investigação-Acção transformativa e emancipatória. Um percurso que recusa a menorização da dimensão teleológica da produção de conhecimento, avessa aos efeitos da diacronia compartimentadora entre a investigação e a sua aplicação. Compartimentação que deixa esta última – a aplicação - de fora da reflexão epistemológica crítica e do comprometimento ético (que é político) com consequências sociais que nos interpelam e comprometem: na subliminar tensão sujeito/objeto, o tratamento dos dados é contemporâneo da ação.
a escala em que opera a Investigação-Acção, funcional às condições compreensivas propiciadas pelo muito detalhe que a delimitação de pouco terreno oferece, sugere a I-A como texto não separável de um contexto que não pode ser visto como simples pano de fundo. A não ser por um artifício de abstracção que aliene os dados que possibilitam situar o texto no contexto, o imediato no mediato, isto é, a situação particular na estrutura social. Sabemos que o mundo não pode ser transformado se não for dinamicamente compreendido. Das consequências para as causas: aí se desenha a exemplaridade de um percurso comprometido, ao encontro das condições explicativas dos modos de exploração e espoliação das classes subalternas; da sua objectivação; da sua universalização; dos modos da sua legitimação.
Da vigilância crítica
Em “Action Research for educational reform: remodeliing action reseach theories and practices in local contexts”, Zeichner e Somekh (2009), explorando como as teorias da Investigação Acção e as suas práticas têm sido remodeladas nos contextos locais e usadas como suporte da reforma educacional, dão conta da cooptação da I-A pelos governos ocidentais e seus sistemas educativos para controlar os professores.
Num momento em que a Investigação-Acção é condição privilegiada de aprovação de projectos para financiamento por instituições internacionais, ligadas às atuais redes internacionais (referidas na parte I) , em espaços mundiais de grande fragilidade económica e social, a vigilância crítica reporta-nos a Habermas e às possibilidades de recuperação de um instrumento de emancipação para facilitar (e consolidar) a colonização do mundo da vida pelo sistema, isto é, com a educação e a Investigação-Acção educativa a se integrarem funcionalmente no sistema administrativo, mediante a adopção do subsistema económico do neoliberalismo e a progressiva juridificação do seu mundo. Esta colonização tem como consequência uma perda de sentido da Investigação-Acção como prática emancipadora. Movendo-se o seu potencial transformador dentro da razão instrumental neoliberal, não se pode, nestas condições, caminhar sem “um questionamento radical dos fins do melhoramento da produtividade educativa” (Cascante, 2007). O foco da vigilância crítica será, então, a direcção que, eventualmente, conduza a Investigação-Acção a ser um instrumento de gestão da nova economia. A partir dos anos noventa até à actualidade, a ruptura do sistema mundial com o mundo da vida reconhece-se na progressiva colonização da educação pelos interesses da economia capitalista e a sua consequente juridialização. “Produz-se um triunfo definitivo das teorias do capital humano: qualidade total, organizações que aprendem, currículo por competências. Actualmente assistimos ao fecho do círculo. Quase nada escapa a esta colonização: partidos políticos, organizações sindicais, e a maioria dos grupos autónomos” (ibidem).
Contrariando este paradigma, há que investir na criação de espaços públicos não colonizados de crítica, onde seja possível colocar as questões de fundo que sustentem a perspectiva emancipadora para a Investigação Acção. Do ponto de vista estratégico, aponta-se para a aproximação aos movimentos sociais que se movem em torno de posições altermundialistas, propícia ao desenvolvimento de novas perspectivas teóricas não essencialistas que permitam reorientar as práticas meramente procedimentais em que, nesta voragem imediatista, nos vamos movendo. É este o grande desafio que se coloca a este Projeto Internacional e ao Observatório Alain Goussot como ferramenta crítica e seu núcleo estruturante.
Um outro paradigma científico e social
Dando consistência reflexiva a anseios que já estavam no ar nos anos setenta ( basta referir a “pedrada no charco” de Feyerabend com Ageinst Method), e não descurando as tarefas de integridade e disciplina a que, tradicionalmente, sempre aspirou a investigação universitária, sobreleva do movimento que conduz à I(A)P preocupações práticas relacionados com a desconstrução científica e a reconstrução emancipatória, que remete para a reflexão de Orlando Fals Borda sobre as possibilidades de conjugação do conhecimento académico associado à sabedoria popular, tornando-se num importante guião teórico para a I(A)P. Afinal o conhecimento popular tem sido sempre uma fonte de conhecimento formal.
Para O. F. Borda (2001), figura maior da I(A)P, se pudéssemos descortinar uma forma de fazer convergir o pensamento popular e a ciência académica, poderíamos obter simultaneamente um conhecimento mais completo e mais aplicável – especialmente através de e para classes desfavorecidas, necessitadas de apoio científico.
É ao encontro dessa convergência que se perfila o potencial democratizador de uma dupla ruptura epistemológica: a celebração de um novo senso comum capaz, no âmbito do combate à funcionalização e à recusa dos saberes locais tão central na ciência positivista, de articular alta cultura, cultura popular e cultura de massas, num genuíno espírito cosmopolita. No quadro de uma reflexão sobre I-A, ela não se pode desenquadrar da construção de um paradigma científico mais satisfatório que, numa situação de transição paradigmática, que é suposto estarmos a viver, aponta para a reconsideração da phronesis aristotélica que traduzo na síntese de Boaventura S. Santos, cheia de consequências: «uma ciência prudente para uma vida decente». Que melhor desígnio para a Investigação Acção Participativa emancipatória?
Aviso à navegação
Em “Epistemología e Investigación Participativa – Se construye el conocimiento en cooperación”, E. Lúcio e V. Ramos (2005) esclarecem a certa altura que, na Investigação Acção Participativa, o problema nasce na comunidade que o define, o analisa e o resolve; que o fim último da investigação é a transformação radical da realidade social e a melhoria da vida das pessoas envolvidas; que este processo pode suscitar, em quem nele intervém, uma melhor tomada de consciência dos seus próprios recursos e mobilizá-los com vista ao desenvolvimento endógeno. Daí que considerem tratar-se de uma investigação mais científica do que a tradicional, no sentido de que a participação da comunidade facilita uma análise mais precisa e mais autêntica da realidade.
Nesta mesma linha, O. F. Bordas, num desabafo, partilha o sentimento de que
«os colegas que declaravam trabalhar com “neutralidade” ou “objectividade” apoiavam, de forma consciente ou inconsciente, o status quo existente, impedindo uma compreensão alargada sobre as transformações sociais nas quais estávamos envolvidos ou aquelas que queríamos estimular. Rejeitamos a tradição académica de usar – e muitas vezes explorar – a investigação e o trabalho de campo principalmente para o avanço da própria carreira». (O.F. Bordas, 2001).
E, dos passos dolorosos necessários à reversão de uma herança incapaz de responder aos desafios que a I(A)P impõe, o autor releva a desconfortável «necessidade de nos descolonizarmos a nós próprios».
Então, não será descabida a convicção de que não é a racionalização pura (palavra que a não define) dos fenómenos sociais que potencia uma explicação/compreensão das suas relações de causalidade. E não é a emoção que nos desarma face ao poder do saber distanciado e descomprometido, legitimado nas capelas auto-legitimantes da comunidade científica. Mas é a Razão saturada de afetos, tão imanentes ao conhecimento tácito (cada vez mais relevado pela moderna teoria do conhecimento), que esteia o caminho das consequências para as causas: na imaginação de um outro modo de compreender a investigação e a ciência; na frescura de um outro tempo possível. Ocorre ser a arte e a poética (uma poética da comunicação) que se veem convocados (sempre se viram) para corajosas mediações na desconstrução do edifício conceptual sacralizador de compartimentações arbitrárias da realidade material e simbólica, cúmplices da perpetuação do silêncio gritante de quem não tem como dizer aquilo que deveria ser dito. Na sua construção se tem concentrado a eficácia nuclear de um “conhecimento-colonização”. De mansinho, a lógica de uma “exclusão disciplinada” vem, vigorosamente, impondo-se. Romper a lógica dessa exclusão compromete a Investigação-Acção em educação num desafio à superação de contradições (todo o desenvolvimento é o desenvolvimento de aspetos que se contradizem - como o afirma Marx) que, em si mesma, se institua em subversão de uma ordem tecnocrática dominante que vem tratando da felicidade das pessoas, apesar delas.
Em nota final
Menos audacioso, mas talvez mais pragmático face à exigência incontornável de coerência interna subjacente às escolhas ontológicas que informam e enformam a Investigação Ação Participativa, seja a opção de partida por, nesse percurso sinuoso, se assumir uma aproximação à I(A)P. Mas, sendo da natureza da Investigação Ação o fascínio de acolher o imprevisto e com ele lidar criativamente, quem sabe? Audaces fortuna iuvat. A sorte acode aos audazes!
Em todo o caso … “com o sonho é que vamos”!
Nota:
*Michel Foucault, sobretudo na sua obra de 1975 Surveiller et Punir: Naissance de la prison, Mas também Pierre Bourdieu sobretudo em Questions de Sociologie (1984).
Bibliografia:
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Bordas, F. (2005), “Experiências Teórico-Prácticas”, Investigación-Acción Participativa: Quê, Recife – Ed. Bagaço
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Habermas, J. (1989), Consciência Moral e Agir Comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro
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