Celeste Costa

Contista


Soteropolitana, 29 anos, professora de Filosofia da rede básica de ensino. Escreve desde pequena motivada pela relação dos eventos do/no mundo com os problemas da vida e da existência humanas; a escrita sempre foi sua válvula de escape, terapia particular e melhor amiga. Foi uma das vencedoras do prêmio Malê de Literatura do ano de 2016 com o conto Vergonha e participou da antologia Beijo sem máscara, de 2021, com o conto Perdido: o palhaço bandido.


Genealogia

Dia desses estava procurando um papel colorido para embalar um presente que fiz para minha avó Madá, em comemoração ao seu aniversário de 70 anos, quando mexia na estante de caixotes da sala, abarrotada de livros empoeirados e esquecidos pelo tempo; os artesanatos inacabados e algumas caixas que nem lembrava o que havia dentro. Quando fui puxar o papel de presente que estava debaixo de uma dessas caixas, ela caiu por cima de mim junto com alguns livros e qual foi minha surpresa ao ver todo o conteúdo esquecido espalhado pelo chão: fotografias antigas da família, de quando era pequena, dos aniversários, dos passeios e meu primeiro diário dos Teletubbies em que escrevia os meus primeiros rabiscos da infância.

Me abaixei para recolher as fotografias espalhadas, mas não resisti, me tornei amante do tempo e namorei o passado em minhas mãos. Sentei no chão e fiquei por um bom tempo ali, lendo aqueles momentos outrora esquecidos por mim mesma, ou ignorados pelo meu próprio estranhamento cotidiano? Não sei...

Não sei quanto tempo fiquei ali sentada, tentando me encontrar nos encontros com os momentos que passaram. Peguei um livro que havia caído junto com a caixa e me deparei com a crônica de Cecília Meireles “Genealogia”. A autora narrava com tanto orgulho e saudosismo a sua herança familiar, falava dos avôs com brasões e glórias, cortejava os nomes e os feitos de suas avós desde o século dezoito. Ler seu orgulho, prostada ali, em meio àquelas memórias remotamente esquecidas, fez me sentir traída e abandonada pelo tempo.

Passei os olhos por entre as fotografias e olhei para uma foto que me chamava a atenção: minha avó Mada e sua irmã, minha tia-avó Tereza, abraçadas no sofá tomando uma cerveja. Registrei esse momento em um dia em que elas estavam felizes, contando a história das duas, a saudade dos velhos tempos e das comidas antigas. Minhas únicas referências de avó. Uma um pouco triste, o corpo já cansado do tempo e dos acontecimentos da vida, enquanto a outra, apesar de todo o sofrimento, da muleta e de, em vida, já ter enterrado filhos e netos, demonstrava alegria por ainda poder viver mais um pouco. Minha avó paterna só sei que se chamava Brasília, veio como imigrante portuguesa para o Brasil no início do século vinte com a família. Meus avôs? Só conheci por fotografia... nenhum com brasão ou glórias, mas sei que lutaram bravamente pela sobrevivência e sei que foram vencedores, porque herdei seus patrimônios presentes em meu corpo.

O mais longe que conseguia ir é conhecer o nome de minha Bisa materna, Maria... moradora do recôncavo baiano e de uma comunidade familiar quilombola. Vó Madá falava com saudade da época, em que apesar da pouca providência material, a união familiar era o que mantia a comunidade forte para lidar com os problemas que ocorriam - como na época da escravidão, pensei - e em como hoje a cidade está mudada... as pessoas estão mudadas... a família não é mais importante, disse certa vez minha avó Madá.

Olho para as fotografias, os livros espalhados pelo chão e a caixa de fotografias aberta ao meu lado. Reconheço nesse momento como vó Madá estava certa e sinto vergonha pelo meu alheamento. Separo algumas fotos da caixa e decido prendê-las no emborrachado de avisos da parede. Deixei um espaço especial para a foto de vó Madá e tia Tereza, as filhas da Bisa Maria, que trouxe na pele a marca e a estranha mania de ter fé na vida... Não sei o nome de todos que me antecederam até aqui, mas farei questão que saibam quem sou e de onde vim.



Moeda doce

Era por volta de sete e meia da manhã de uma quarta-feira de Outubro. O Sol começava a despontar por entre as frestas das lajes. O cheiro abafado de café misturava-se ao de temperos frescos, goiaba, carne cozida na panela e o amaciante que perfumava as roupas recém penduradas no varal. No beco rosa de maio, ecoava a sinfonia da panela de pressão provavelmente de Dona Janda. Por esse horário, o mercadinho dos Freitas já estava aberto. Como de costume, ele abria o estabelecimento às sete horas da manhã; não é do feitio dos Freitas perder cliente.


Jorge estava na seção de produtos de limpeza, repondo o estoque de sabão em pó, enquanto Rosália abria o outro caixa e separava as sacolas de embalagem, quando um senhor franzino adentrou o estabelecimento, com seu andar calmo e sereno, próprio da senilidade.

- Rosa! Olha quem lá évem!

- Tô vendo. Já era hora de vir bater o ponto dele.

- Esse daí não tem cumquê gastar a aposentadoria ou é muito sozinho pra querer nossa companhia todo santo dia.

O senhor vai até a sessão de laticínios, retorna com meia dúzia de ovos, uma caixa de leite e um pacote de pão.

- Bom dia! – diz o senhor à Rosália no caixa.

- Bom dia, seu Adilli! Como vai?

- Tô indo, minha filha, to indo. Um dia eu chego lá.

- Tô vendo.

- Seu Adili, tô sem moedas de vinte e cinco centavos, vou te dar essas balas aqui como troco.

Adilli recebe as balas em silêncio e na cadência de seu andar, sai do mercadinho.

- Como pode?

- O quê?

- Comer ovo, pão e leite todos os dias?!

- Mania de velho, rapaz. Provavelmente ele deve morar sozinho e não cozinha mais.

- Mesmo assim! Até na hora de pagar ele traz a mesma quantia todos os dias! Tô sem paciência já.

- É só um velhinho gagá e solitário.

- Jooorge! – grita seu Freitas de dentro do escritório.

- Sim, seu Freitas!

- Tem umas caixas aqui de biscoito, macarrão e extrato ainda, ouviu!

- Viu!

- Olha, deixa eu terminar meu trabalho aqui viu, Rosa. Cê ta de boa aí no caixa, boneca. – disse Jorge para Rosa.


O dia transcorreu sem muitas intervenções. Foi uma quarta-feira com sua típica rotina...


Na manhã seguinte, por volta das sete e meia da manhã, entra seu Adili no mercadinho dos Freitas. Rosa já estava no caixa e Jorge estava separando as caixas para repor na seção de laticínios, quando repara que seu Adili empurrava o carrinho do supermercado com uma sacola grande dentro. Ele começa a encher o carrinho com mantimentos e até mesmo bebidas. Passou pela seção de laticínios e pegou um queijo minas lacrado.

- Rapaz! Hoje a coisa tá boa hem! – disse Jorge para si mesmo enquanto separa as caixas e os produtos.

Ao chegar no caixa, Rosa estranha o carrinho cheio de seu Adili. Começa a passar os produtos e observa que ali parece ser a compra mensal.

- Deu tudo trezentos e quarenta e cinco e setenta e cinco centavos, seu Adili.

Adili lentamente retira do carrinho a sacola que trouxera contigo e põe em cima do balcão.

- O que é isso?

- Meu pagamento.

Rosa pega o saco, desconfiada, abre e dá de cara com muitas balas, todas misturadas e algumas já derretidas e grudentas, podia-se até ver algumas formigas fazendo a festa no meio daquele banquete doce.