Cristal
Mistérios, sonhos e aventuras
Mistérios, sonhos e aventuras
"Na vida tudo passa, mas as lembranças permanecem"
Partindo
Pedalando pelas estradas em busca do meu passado, descendo e subindo ladeiras intermináveis, percorrendo longos caminhos sobre minha bicicleta. Em certos momentos o cansaço toma conta do meu corpo, me obrigando a parar e saborear uma fruta. O sol estava brilhando naquela tarde, por volta das 13 horas. Entre uma pedalada e uma caminhada, fui aos poucos, galgando o meu objetivo.
O suor pingava do meu rosto como gotas de água em uma torneira. Assim fui seguindo o meu caminho em busca daquele momento mágico, do passado, do lugar onde passei boa parte da minha infância. Um lugar que há muito tempo não via desde a última vez que estive lá. De vez em quando uma pausa nas pedaladas para tirar algumas fotos e recuperar as energias.
Que sensação maravilhosa sentir o gosto da liberdade, olhando toda aquela imensidão de terras sem fim. Longe do agito da cidade, apenas eu, na solidão do asfalto. O vento, o sol, meus companheiros. A ansiedade de chegar ao lugar onde meu corpo adulto sentia as emoções de reviver os momentos da infância inocente. Os pulos de cima do barranco para dentro do rio. As pescas e as caçadas, eu e o meu irmão, munidos das nossas armas mortais, nossos estilingues. Andávamos sempre juntos como se um quisesse proteger o outro. Na verdade ele me protegia mais do que eu a ele. Tinha um cavalo com o qual sempre saíamos montados. Eu ia sempre à garupa do animal. Mas estas são recordações para mais tarde.
Voltando ao presente, ainda estou indo em direção a estes momentos sublimes da minha infância. Estou descendo os degraus da vida em busca das lembranças que ficaram no passado. Ainda estou sobre a minha velha bicicleta, lenta e pesada, pedalando com dificuldade.
Minhas energias já não são as mesmas desde que saí da cidade. Passei pela serra, parei um pouco para admirar a linda paisagem, as montanhas, as casinhas ao longe. Não podia demorar muito. Minha meta era chegar o mais próximo possível do meu destino antes do entardecer.
Tinha calculado sair do meu local de origem pela manhã e chegar em meu destino no mesmo dia. Atrasei-me. Cheguei à primeira cidade (Itambé), muito tarde, primeiro ponto de parada, distante 40 quilômetros de Vitória da Conquista. Isto me obrigou a fretar um ônibus que seguia para Itapetinga, meu segundo ponto de parada, praticamente metade do percurso total até onde eu queria chegar. Coloquei minha bicicleta no bagageiro e segui viagem. Aproveitei para recuperar o fôlego.
Imagens: detalhes da Serra do Marçal, abaixo, distante 16 quilômetros de Vitória da Conquista.
Primeiros quilômetros percorridos
Já era noite quando o ônibus chegou em Itapetinga. Agora precisava de um local para dormir. Liguei para o meu irmão que estava na cidade trabalhando naquele dia. Ele foi me encontrar na rodoviária, de carro. De lá fui conduzido até onde ele estava passando aqueles dias de trabalho. Passei a noite num velho sofá da sala. As demais dependências estavam repletas de mercadorias.
No dia seguinte acordei antes que todos. Comi alguma coisa, arrumei a mochila e segui em minha bicicleta. Naquela hora um pequeno nevoeiro pairava sobre a cidade. Estava um pouco frio, mas logo meu corpo se aqueceu com as pedaladas.
Minha ansiedade aumentava à medida que observava a paisagem, as pequenas lagoas no meio do mato, as casinhas, o gado pastando e os pássaros voando ao redor. Mas o caminho parecia não acabar nunca. Aos poucos o sol foi surgindo no horizonte. Quanto mais ficava alto, mais o calor aumentava. O meu corpo doía, sentindo o peso da jornada escaldante. Peguei carona num carro de leite que seguia para uma fazenda ali perto. Foi o suficiente para repor um pouco a energia perdida.
De volta às pedaladas, subindo ladeiras íngremes, com movimentos quase em câmera lenta devido ao esforço. Algumas marchas da minha bicicleta não funcionavam, o que dificultava ainda mais a subida. Quando as minhas pernas ficavam pesadas demais, descia da bicicleta e sentava um pouco no meio do caminho, continuando o resto da subida andando. As longas descidas faziam a minha alegria. Apenas tomava cuidado, dosando os freios para não me esborrachar no asfalto.
Já se passara algumas horas desde que saí de Itapetinga, não me lembro quanto. Devia ser por volta de meio dia quando avistei a cidade de Maiquinique, ainda na Bahia. Era um bom sinal, pois deveria ter completado mais da metade dos meus duzentos quilômetros de percurso.
Parei na cidade, fiz um lanche para saciar a fome e fiquei algum tempo descansando. Naquele momento fiquei sabendo de alguém que estava indo numa caminhonete para Itarantim, última cidade baiana, próximo à divisa do Estado de Minas. Não desperdicei a oportunidade para pedir uma carona. Em poucos minutos já estava em Itarantim. Peguei a bicicleta, agradeci o rapaz e segui meu caminho pela cidade.
O sol estava rachando os neurônios. Não estava com ânimo para dar nem mais uma pedalada. Pedi informações aos moradores sobre algum carro que estivesse indo para Jordânia naquele dia, não importava o horário. Disseram que tinha o carro do leite, mas segundo fui informado, já deveria ter ido logo cedo. Minha alternativa, então, foi esperar o ônibus num pequeno barzinho situado à beira de um riacho, último ponto antes de sair da cidade.
Alguns moradores lavavam os carros naquele instante. No barzinho, algumas pessoas ouviam música regional. Daquele ponto em diante o caminho era de terra. Quando chovia era quase impossível a passagem de qualquer carro. Depois de tantos anos nunca asfaltaram aquele trecho que ligava Jordânia à cidade de Itarantim. Uns dias antes havia chovido, porém boa parte da estrada estava seca devido ao sol forte. Atualmente não sei como está. É provável que continue a mesma coisa.
Lembranças
Enquanto espero o ônibus chegar vou relembrando alguns detalhes de Jordânia, minha cidade natal. Está localizada bem próximo à divisa com a Bahia. Lembro-me de uma velha ponte de madeira que existia sobre o rio Ribeirão. Essa ponte foi levada pela correnteza, após uma forte chuva, segundo informações que obtive pela internet de um morador da cidade. Foi construída uma nova ponte de concreto. Se não me engano essa ponte separa o Estado de Minas da Bahia.
Chamávamos o local de Barra, um dos pontos mais frequentados pelos moradores. De cima da ponte eu me arriscava, dando alguns pulos dentro da água. Não dava mergulhos porque logo do lado tinha uma grande pedra. Qualquer descuido poderia ser fatal. Subíamos de volta à ponte por meio de uma das toras de madeira que a sustentava. Quando o rio estava cheio, o local ficava perigoso devido à correnteza.
Um pouco mais acima costumávamos brincar de bola numa pequena prainha que se formava quando o rio estava em seu leito natural. Do lado tinha um velho motor de sucção, na margem do rio, que
puxava a água para abastecer a cidade através de um grande cano de ferro. De vez em quando aventurávamos atravessar o rio sobre esse cano.
Bem mais acima do rio havia outro local que também era bastante comum estarmos lá. Em vez de uma ponte era um grande tronco de árvore que possibilitava a passagem de uma margem para a outra do rio. Esse velho tronco deveria ter muitos anos que estava lá. Quando chovia forte, a água passava sobre ele, ficando impossível atravessar o rio. O jeito era esperar as águas baixarem.
Gostávamos de brincar e pescar naquele local. Uma das nossas brincadeiras prediletas era descer o rio em cima das tabocas. As tabocas são uma espécie de planta que nascem em lagoas, brejos e nas beiradas dos rios. Cortávamos várias tabocas até formar um grande fardo, depois amarrávamos como se fosse um bote. A molecada descia o rio, fazendo disputa para ver quem chegava na frente até à Barra.
Um dos bairros curiosos da cidade é o Rola Pote. Reza a história que o bairro recebeu esse curioso nome porque uma mulher estava subindo a ladeira com um pote cheio de água. No final da subida, a mulher deixou o pote cair. O pote desceu a ladeira rolando e se espatifou somente quando chegou lá embaixo. Atualmente esse bairro tem o nome de Saudade.
Lá no alto do Rola, como chamávamos antigamente, encontra-se o cemitério local. Lembro-me certa vez que fui a um enterro naquele cemitério. Nunca tinha ido antes a um enterro. Fiquei curioso naquele dia e fui. Todas aquelas cruzes e montes de terras cobrindo as covas me deixou assustado. Saí apressadamente, olhando para trás. Tomei um susto quando percebi que estava subindo em uma cova. Depois daquele dia fiquei traumatizado e jamais voltei ao cemitério. Os moradores contavam casos estranhos sobre as pessoas enterradas lá. Um desses fatos estranhos que me lembro foi o de uma moradora do bairro. Disseram que nasciam cabelos na cova onde estava enterrada certa pessoa.
Outra curiosidade da cidade era o bairro Piolho, que hoje chama-se Maracanã. Era a popular zona de Jordânia, local onde as mulheres vendiam seus corpos. Esse bairro fica perto da casa onde morei pela última vez naquela cidade. Ali, bem próximo, quase em frente de casa, ficava a Igreja Matriz. Minha tia morava por ali também.
Era comum brincarmos nos fundos da Igreja, de esconde-esconde, à noite, e de bola durante o dia. Nas brincadeiras de esconde-esconde eu costumava enganar os outros meninos. Enquanto eles terminavam a contagem até 50 para sair em perseguição, eu ficava escondido bem próximo à esquina da parede da Igreja. Eu sabia que eles viriam correndo e passavam direto. Quando eles percebiam, já era tarde. Eu voltava correndo, sem chances de ser alcançado e tocava o local marcado para ficar livre de ser pego. Sempre fazia assim. Nunca falhou uma.
Na época das bolas de gude, uma turma de meninos reunia-se nas ruas e praças de terra para brincar. Uma das opções era o jogo da "corroída". Tinha esse nome porque era uma jogada violenta de uma gude de encontro à outra. Fazíamos um risco no chão e colocávamos as gudes no local. De uma distância de cerca de 3 metros atirávamos o "cocão" (a maior gude) com bastante força. Se alguém acertasse a gude que estava no risco e essa lascasse, o jogo estava ganho. A outra opção era a "roladinha". Diferenciava da corroída apenas pelo modo suave como atirávamos uma gude de encontro à outra, sem arrebentar. Quem tirasse apenas uma ou mais gudes na primeira tentativa, ficava com as que tirou, prosseguindo na tentativa de tirar todas as outras. Caso conseguisse tirar todas as gudes na primeira roladinha, o jogo acabava e começava outro. Se não conseguisse tirar nenhuma, passava a vez para o outro jogador. Para o jogo ser ganho era necessário tirar todas as gudes do risco e assim, iniciar outro jogo até que o adversário corresse da briga ou perdesse todas as gudes.
Num dia desses acabei brigando e apanhando de outro menino. Não concordei com a jogada que ele fez, discutimos e partimos para a briga, rolando os dois no chão. Ele enlaçou meu pescoço com um dos braços, enquanto socava meu nariz com o outro. Logo fomos apartados pelas pessoas que estavam por perto. Minha boca ficou com um leve gosto de sangue, minhas roupas sujas de poeira, mas estava tudo no lugar. O moleque era maior do que eu, mesmo assim não fugi do confronto.
Não era um comportamento típico da minha parte ficar arrumando brigas. Sempre fui sossegado, apenas não aguentava provocações sem revidar. Quando ficava nervoso, enfrentava qualquer um. Aliás, esta sempre foi uma característica minha, mesmo sabendo que ia apanhar.
Ainda em Jordânia, outro fato que marcou minhas memórias foi um dia que estava no rio tomando banho com meus irmãos e uns amigos. No mesmo local estava Clóvis, um rapaz com problemas mentais. Suas feições lembravam aqueles personagens de filmes de terror, sempre babando. A turma de meninos estava provocando-o. Lembro que ele ficou nervoso, balbuciou algumas palavras e de repente a molecada saiu em disparada, cada qual para um lado.
O Clóvis veio correndo em minha direção, babando e fungando como um cão raivoso. Meu corpo ficou gelado, o coração acelerou, e saí correndo também. Eu corria desesperado pela areia, gritando: "não fui eu, Clóvis! Não fui eu"! O Clóvis se aproximava cada vez mais, com o rosto desfigurado pelo ódio, com os dedos das mãos em formas de garras, agitando os braços.
Correndo e olhando para trás, tropecei num monte de areia e caí. Comecei a chorar, sentindo que seria alcançado logo pelo Clóvis. Se ele me pegasse - com a raiva que ele estava sentindo -, poderia me acontecer o pior. Levantei rápido, já cansado, para começar a correr de novo quando, ao olhar para trás, percebi que ele tinha parado. Talvez porque tenha me reconhecido, por ter ouvido meus gritos de inocência, ou quem sabe por ter sentido pena de mim. Só sei que ele desistiu de me pegar, voltando a ficar calmo outra vez.
Aqueles poucos, mas angustiantes minutos de perseguição feroz me deixaram traumatizado por alguns dias. O Clóvis era conhecido na cidade pelo problema mental que ele tinha. Apesar disto, era um sujeito aparentemente tranqüilo e bondoso. Andava pelas ruas como qualquer pessoa normal. Mas naquele dia, as provocações dos meninos o deixaram louco. Ele morava perto da nossa casa, na Praça da Igreja Matriz.
Um dos momentos mais críticos no começo da minha vida de adolescente (por volta dos onze anos de idade) foi numa época de festas juninas. Estávamos comemorando, sentados ao redor de uma fogueira. Um menino passou e me entregou um foguete do tipo morteiro (uma espécie de fogos de artifício) de uma única explosão, bastante forte. Imaginando que o mesmo já estivesse detonado, coloquei fogo na ponta e fiquei assoprando. Um instante depois senti o impacto do estouro em meu rosto.
A explosão foi tão forte que fui atirado para trás com cadeira e tudo. Acho que nem tanto pela força da explosão, mas pelo fato de impulsionar o meu corpo para trás, devido ao susto. Meus olhos ficaram como se estivessem cheios de areia. Não conseguia abri-los direito, visualizando apenas um monte de fumaça. Fui levado às pressas para dentro de casa, chorando, gritando que ia ficar cego, ouvindo os brados do meu pai. Minha mãe lavou meu rosto com bastante água fria. Em seguida fui levado para o hospital, andando.
O hospital ficava a certa distância da nossa casa, que na verdade era do irmão do meu pai. Fui examinado, o médico limpou o local da queimadura, me liberando minutos depois. Segundo ele, caso o ferimento se agravasse, seria preciso me deslocar para outra cidade, pois naquele hospital não havia equipamentos adequados para uma cirurgia. Felizmente não fiquei cego. A pomada cicatrizou a queimadura da minha face com perfeição após vários dias de cama.
O efeito da explosão me deixou com sequelas. Minha visão ficou reduzida em cerca de metade de uma visão normal. Por conta desta infelicidade passei muitas dificuldades na escola. Por não enxergar direito, sentava bem na frente. Ainda assim não conseguia visualizar corretamente as palavras no quadro. A opção era copiar do colega ao lado.
O uso de lentes corretivas só ocorreu depois de concluídos os estudos. Ao preparar-me para ingressar no mercado de trabalho, tive que passar por um exame oftalmológico. O resultado foi um pesado óculos na cara que me feria o nariz e as orelhas.
Eu continuava sentado do lado de fora do boteco, esperando o ônibus, que parecia não chegar nunca. O sol persistente fervendo o ar. As lembranças das aventuras de moleque afloravam em minha mente. Dentre estas, mais um episódio, quase fatal, pelo qual eu e meu irmão passamos.
Já em outra casa, estávamos brincando à noite na rua. Amarramos uma corda na cintura e saímos puxando uma "renca" (palavra que usávamos para um monte de meninos juntos) pela rua, simulando uma carruagem. Quando menos esperávamos, uma velha rural entrou pela rua a toda velocidade. Era a rural de Auremar. A meninada largou a corda, espalhando-se pela calçada.
Sem tempo para nos desvencilharmos das cordas, cada um foi para um lado da calçada. Pressentindo o pior, me agarrei ao poste. Meu irmão tentou jogar a corda por cima do carro. Foi inútil. A rural pegou a corda bem no meio. A força da pegada me fez saltar, indo cair perto do pneu direito do carro. Saí dando cambalhotas, enquanto meu irmão era arrastado do outro lado. Enquanto saía rodopiando perto do pneu do carro, sentia a corda apertando cada vez mais a minha cintura. Uma mulher gritou desesperada para o motorista parar. Ouvindo os gritos e gestos dela, Auremar parou o carro.
Fomos arrastados sobre a rua de pedras pelo menos por uns quinze metros. O mais incrível de tudo é que saímos sem nenhum arranhão. Foi uma sorte incrível. Até hoje fico perplexo como aquilo aconteceu. Parecia coisa de cinema. Além da mulher que gritou para o motorista parar, uma força poderosa deveria estar nos protegendo naquele instante.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho do ônibus da Viação Rio Doce. Finalmente era o transporte que eu aguardava. Após alguns minutos para embarque e desembarque dos passageiros, vi aos poucos, a cidade ficando para trás. A viagem foi tranqüila, apesar dos maus tratos da estrada.
Imagem: vista frontal da Igreja da Matriz, em Jordânia, local onde costumava enganar meus colegas em nossas brincadeiras de esconde-esconde.
Jordânia
O dia foi embora, dando início à noite. O que antes havia sido a minha cidade, agora eu estava de volta como visitante. Assim que desci do ônibus fui direto para a casa da minha tia. Deu para perceber as mudanças que a cidade sofreu ao longo dos anos. O número de casas cresceu de forma considerável, e as ruas, que antes eram de terra, passaram a ser ruas de pedras.
Eu ia observando todos os detalhes possíveis, tentando me situar melhor, afinal vinte e um anos haviam se passado desde que nossa família saiu de Jordânia. Aos poucos fui me lembrando dos detalhes: da escola e do ginásio onde tive contato com os estudos, do campo de futebol e do mercado.
Primeiros dias de aula
Lembro que no meu primeiro dia de aula eu não queria ir. Corri para a casa dessa mesma tia para onde estava indo naquele momento, só que em outro local da cidade. Minha mãe foi me buscar, obrigando-me a ir de qualquer jeito. Chorando, rendi-me às suas ordens. Na escola conheci o professor Edgar, um homem de cor negra, com idade entre quarenta e cinqüenta anos. Sua masculinidade era meio duvidosa, pois as pessoas da cidade sempre comentavam.
No início senti muito medo, tudo era novo para mim. Com o passar do tempo fui me acostumando. Ainda contei com o apoio do meu irmão, que também estudava no mesmo local. Apesar das dificuldades de adaptação, fui um bom aluno. Certo dia o professor me passou no caderno duas contas de somar. Eu arrisquei uns números e, por incrível que pareça, acertei as duas. Até hoje fico impressionado como consegui acertar o resultado de duas contas sem saber como eram resolvidas. Quando fui aprovado do segundo para o terceiro ano, o professor Edgar colocou-me direto no quarto ano.
Conheci novos alunos, um pouco mais velhos que eu. Meu irmão sempre me defendia das provocações de dois irmãos, Celino e Marinho, os mais encrenqueiros da escola. Eu não reagia às provocações deles, apesar de ter vontade. Quando havia algum atrito dentro da sala de aula, o professor Edgar saía batendo nas batatas das pernas dos alunos com uma palmatória. A ordem, então, era restabelecida.
Muitos alunos desordeiros eram punidos com a palmatória, inclusive eu. Não me lembro o motivo, mas levei uma punição. Estendíamos a palma da mão para que o castigo fosse efetuado. A famosa palmatória era o único meio de manter a ordem na sala de aula. Às vezes as mãos ficavam inchadas. Anos depois essa prática foi banida das salas de aulas.
Na escola tinha uma coleguinha com quem eu flertava. Era loirinha e muito bonita. Fiquei com muita saudade dela por um longo tempo depois que mudei-me. Cheguei a escrever algumas cartas, que ficaram sem respostas. O tempo passou e acabei esquecendo. Era coisa de criança mesmo.
Casa da tia
Através de informações, fiquei sabendo que a minha tia ainda morava no mesmo local, o bairro São Caetano. A casa ficava no final da rua. Bati na porta e aguardei um instante. Ela abriu um pouco a porta, olhou-me com ar de quem não estava me reconhecendo. Não é muito do meu feitio hospedar-me em casa de parentes, mas naquela oportunidade eu não tinha escolha. O dinheiro estava contado no bolso.
Ao viajar, gosto sempre de ficar à vontade, sem dar trabalho para os outros e fazer minhas coisas sem problemas. Quando ela me reconheceu, deu um sorriso e pediu-me para entrar. Conversamos um pouco, depois tomei um banho, enquanto ela preparava algo para que eu comesse. Falei que no dia seguinte, logo pela manhã, iria para a roça. Algum tempo depois fui dormir. Estava fadigado.
A caminho da roça
Após o café da manhã, despedi-me da minha tia, partindo em direção à roça. No caminho passei em frente a uma antiga casa onde ela havia morado. Vi um pedaço do Ribeirão. Mais acima, o velho bairro do Rola Pote.
Estava com os dias contados naquela viagem. Se fosse visitar todos os locais em que passei parte da minha infância, perderia muito tempo. Assim, fui observando as casinhas, os coqueiros do corredor, os moradores antigos e os mais novos. Tudo era diferente para mim, apesar das poucas mudanças. Era como se estivesse ali pela primeira vez.
A minha mente funcionava como uma máquina do tempo. Eu tinha a impressão de estar voltando ao passado a cada metro percorrido em minha bicicleta. As lembranças dos lugares passavam em câmera lenta. Eu estava ali, vivendo naquele mundo entre o passado e o presente.
No mesmo instante em que sentia uma ansiedade enorme de chegar à roça onde moramos, as horas era o que menos importava agora. Diferente de quando comecei minha viagem, o tempo não me preocupava mais. Faltavam apenas dezoito quilômetros para que o passado fosse revelado, rodando pelas trilhas de acesso à roça.
Os longos anos que ficaram para trás não foram suficientes para trair a minha memória. Quantas vezes havia passado por ali, andando, ouvindo o canto das mexeriqueiras na beira das lagoas... O gado, os pássaros e a natureza eram meus únicos companheiros naquele momento sublime. Parece que eles liam o meu pensamento, me proporcionando aquela sensação de estar vivendo parte da minha infância outra vez.
A velha fazenda que foi do meu padrinho era ponto de passagem para a nossa casa. Ninguém mais morava lá. Estava abandonada. Pela trilha estreita fui seguindo adiante. Já quase próximo à casa de João Neto, meu primo que ainda mora na roça, um dos pneus da minha bicicleta furou, me obrigando a seguir o resto do caminho andando. Errei a trilha e acabei por passar atrás da casa. Do ponto onde eu estava dava para ver a casinha lá em cima. Contornei a lagoa que fica entre a casa de João Neto e de minha tia Lió, que também ainda mora no local, juntamente com minhas primas Carlinda e Rosinha.
Touros e sucuris
A lagoa que acabei de contornar, foi no passado, palco de uma história muito antiga e interessante. Não sei se é lenda, mas o pessoal conta que certo dia uma sucuri gigante, que vivia ali, se atracou com um touro na beira da lagoa. Há, inclusive, uma foto de vários homens juntos segurando uma grande sucuri. Se é a mesma, não tenho como comprovar. De fato aquela região era bastante povoada por esses répteis. O resultado desse confronto entre réptil e boi não recordo quem levou a melhor. A serpente lutando pelo seu alimento e o forte touro defendendo-se para escapar da garganta do enorme bicho. Um confronto bem interessante que desperta a imaginação de qualquer um.
Lembro de um momento pelo qual minha mãe conta que passou. Ela estava sozinha em casa com os meninos, todos pequenos. Segundo conta, uma enorme serpente apareceu no quintal de casa. Com medo, fechou todas as portas e janelas da casa. Meu pai tinha uma espingarda do tipo cartucheira, muito potente. De posse da arma, minha mãe disse ter tentado atirar na cobra, estirada no quintal. Mas por não saber manusear a arma, talvez tomada pelo nervoso e medo, acabou quebrando o cabo da espingarda.
Mesmo assim conseguiu disparar um tiro, um único cartucho. A fumaça e o cheiro de pólvora queimada tomou conta da sala. Minutos de silêncio e angústia. Ao olhar para fora, pela fresta da janela, imóvel, a grande serpente continuava lá. Será que estava crivada de chumbo, morta? Ela não dava sinal nenhum de vida, nenhum movimento. Minha mãe não soube explicar, disse apenas que a cobra sumiu.
Susto no brejo
Naquele tempo aconteciam coisas muito estranhas e misteriosas em nossa casa da roça. As matas eram fechadas, local apropriado para a existência de onças e várias outras espécies de animais selvagens.
Quando criança, sempre andava junto com meu irmão mais velho. Às vezes saíamos a pé para caçar no meio do mato com badoque, uma espécie de arco para atirar pelotas feitas de barro. O badoque era do meu irmão. Como eu não tinha nada, atirava as pelotas com a mão.
Em outras ocasiões, saíamos montados em Pampinha, nosso cavalo preferido, por ser bastante manso e obediente. Meu irmão montava na sela e eu na garupa do animal. Certa manhã saímos montados em Pampinha para tirar ingá, fruta típica que nasce na beira das lagoas, comprida como uma vagem, de polpa branca e adocicada.
Sem energia elétrica, muito menos televisão e computador com internet, nosso passa-tempo favorito era a natureza. Existia apenas um rádio de pilhas que só funcionava durante à noite. Nos períodos de seca a falta de água nos obrigava caminhar várias léguas até o rio Jequitionha. Na época das chuvas a Fazenda Cristal era boa e dava belos frutos. O capim era renovado, proporcionando comida farta durante vários meses para os animais. As melancias eram enormes, doces como mel.
A roça ficava a certa distância da nossa casa. Para trazer as raízes de mandiocas, batatas, abóboras e as melancias, era necessário o uso dos jumentos. As cangalhas ficavam abarrotadas, fazendo com que os animais desempenhassem um esforço muito grande.
Ao chegarmos no local onde fomos procurar os ingás, de cara, um grande pé na beira do brejo estava carregado de frutos. Estava tão carregado que nem foi preciso descer do cavalo para pegá-las. Os galhos pendiam para o chão. Tiramos vários frutos e amarramos.
Enquanto estávamos distraídos, um assustador rugido veio de dentro do mato. O capim estava muito alto, não dando para perceber o que era. O cavalo empinou. Segurei firmemente na alça da sela para não cair. Em seguida, Pampinha saiu em disparada, como nunca havia feito antes. Sempre foi um cavalo manso, mas naquele dia foi como se ele tivesse ganhado asas.
As ingás não importavam mais naquele momento de desespero. No meio do caminho, uma forte chuva desabou. Os pingos de água batiam no meu rosto com violência. O ritmo do animal continuava o mesmo, enquanto eu me esforçava para não cair da garupa. Meu irmão segurava as rédeas com firmeza para manter o controle do cavalo pela trilha estreita, depois, na estrada.
O que poderia ter soltado aquele berro para deixar o nosso cavalo tão assustado? Talvez uma onça. Naquele tempo era comum a existência delas pelas matas da região. Poderia ser até mesmo um boi desgarrado. Ficamos sem respostas.
Tudo foi tão rápido que logo avistamos nossa casa. O cavalo finalmente parou, extenuado pela corrida desenfreada. Pulamos rápido para o chão e corremos para dentro de casa, encharcados. Dona Laudicena, nossa mãe, estava acabando de preparar o almoço. Mais calmos e recuperados do susto, contamos o que se passou no brejo minutos atrás. Secamos a água da chuva, trocamos de roupa e fomos comer. A comida estava muito gostosa, por sinal, feita em fogão de lenha. Ainda lembro que tinha abóbora.
O cavalo branco
Meu pai tinha um lindo cavalo branco. Vivia sempre isolado no mangueiro, nos fundos da casa. Nunca o montei porque era bem alto, também pelo fato de estar com um ferimento no flanco direito. Aquele ferimento nunca sarava. O nome do cavalo era Bossanova, nome dado em homenagem ao estilo musical criado no final dos anos cinquenta e início dos anos 60. Nunca soube o que causara aquele ferimento. Alguns familiares diziam que alguém havia ferido o animal propositalmente por pura inveja. Outros comentavam que ele devia ter se ferido em algum lugar.
Bossanova não era cavalo para sair pelos matos, então a hipótese mais próxima da realidade é que tenha sido proposital aquele ferimento. Poderia ser até marca de algum projétil, disparado por algum vizinho invejoso. Nossa fazenda despertava algum interesse nas pessoas que moravam nas redondezas. Lembro que muitos diziam que uma barragem ia ser construída no rio Jequitionha.
As águas represadas cobririam toda a região. Anos mais tarde, meu pai vendeu a fazenda. Minha mãe, juntamente com todos os meus irmãos, jamais aceitamos esse fato. Sempre lamentamos a decisão do meu pai de ter vendido a fazenda por um preço irrisório. O tempo passou, até hoje, nada foi construído no local. Nenhuma barragem, nada de inundação.
A pedra de Santa Maria
Equanto caminhava empurrando a bicicleta com o pneu furado em direção à casa de João Neto, fiquei observando uma pedra que lembra o cupim de um boi, longe, no horizonte azul. Desde criança aquela pedra sempre me chamou a atenção. Era a pedra de Santa Maria. Tinha um desejo muito grande de ir lá. Ficava imaginando o que poderia existir naquele lugar cheio de montanhas.
Eu me sentia encantado com a paisagem. Era como se aquela pedra exercesse algum poder mágico sobre mim. Nunca me cansei de admirá-la. Se pudesse eu passaria o dia todo olhando para ela, hipnotizado pelo mistério que me tomava conta. Um dia, talvez, meu desejo de conhecer aquela pedra bem de perto seja realizado. Aquela era uma boa oportunidade, mas a distância me desencorajou.
A casa de João Neto
A vendinha continuava existindo na frente da casa de João Neto. De vez em quando ele aproveitava a oportunidade para tomar uma milome (nome que ele dá para a cachaça). Ali, por onde eu estava passando no momento, na lateral e ponto de entrada principal da casa, existia um campo de futebol. Agora estava coberto pelos arbustos rasteiros. Dali, a visão da pedra de Santa Maria era ainda mais exuberante.
Um senhor de certa de idade cuidava dos animais, jogando milho para as galinhas e perus. Se não me engano o nome dele era Lula. A pele escura, mostrava os sinais de longos anos sob o sol implacável da região. Era mudo. Parece que ele vivia ali somente para cuidar dos bichos.
Enquanto ele alimentava os perus, lembrei dos meus tempos de menino em que vivia sempre pelado. Minha mãe inventou que se eu continuasse andando pelado, um peru ia me beliscar. A partir de então passei a ter pavor de peru. Não podia nem ouvir aquele som estridente dos perus, que ficava apavorado. Até hoje, quando vejo um peru, tenho a sensação que o bicho vai me atacar.
Imagem: Lula alimentando os animais.
João Neto
No momento a memória me falha sobre a presença de João Neto na hora em que cheguei. A esposa dele encontrava-se em casa. De qualquer forma acabei encontrando com ele, sempre de bom humor e contando suas histórias mirabolantes. Fico sem saber se é invenção ou se é verdade. Mas é impossível não dar boas risadas quando ele conta algo engraçado.
O João é quem toma conta do lugar. É um dos filhos mais velhos do falecido tio Juca (irmão do meu pai), que era dono daquela área de terra. Os poucos fios de cabelos que lhe restaram na cabeça são cobertos a maior parte do tempo por um chapéu de vaqueiro. Usando um par de botas vistosas, ao entardecer, ele sai pela manga para prender as vacas. No dia seguinte tira o leite. Uma parte fica para consumo, a outra ele vende.
Tia Lió
Descendo para a casa da tia Lió, passei por dentro do curral. A primeira impressão que tive é que não havia ninguém. Logo fui recebido por minhas primas Carlinda, Rosinha e tia Lió. Todas com a mesma expressão de simpatia estampada no rosto. O que mais me impressiona é o vigor físico daquelas mulheres. Minha tia, na casa dos 90 anos, ainda apresenta uma lucidez e uma atividade motora impressionantes. Carlinda e Rosinha pareciam estar seguindo os mesmos passos de uma vida bastante prolongada, sempre sorridentes e bem dispostas.
Diferente dos anos em que vivemos na fazenda, hoje o lugar encontra-se com energia elétrica, proporcionando um certo conforto aos moradores, levando informações através do rádio e da televisão. Uma antena parabólica está fixada no pátio da casa. Mesmo assim, o tempo ali parecia não passar.
Da varanda da casa de tia Lió era possível visualizar a casa que um dia morei, onde vivi parte da minha infância, o motivo pelo qual me aventurei sobre uma bicicleta até ali. Não me aguentava mais de ansiedade. Fiquei olhando atentamente para aquela casinha, sentindo uma nostalgia enorme. Parecia estar vivendo um sonho.
Tantos anos se passaram, e agora eu estava de volta ao lugar por onde deixei minhas marcas apagadas pelo vento, pela terra molhada de chuva, na alma inocente de um menino. Tive que conter meu desejo por mais algum tempo. Antes fiquei conversando com a tia Lió e as primas, contando minha louca aventura.
Imagens: na primeira foto, abaixo, João Neto apartando as vacas. Segunda foto, da esquerda para a direita, Carlinda, tia Lió e Rosinha. Foto tirada no quintal da casa. Ao fundo, bem distante, nota-se um pedacinho da Pedra de Santa Maria. Na terceira foto, parte frontal da casa.
De volta para minha casa
Carlinda gosta muito de pescar no riozinho que passa pelos fundos da fazenda. Rosinha prefere ficar mais em casa. Então combinei com Carlinda para irmos pescar, pois também adoro pegar alguns peixes no anzol. Carlinda me arrumou umas botas de cano longo. Devido ao grande número de cobras existentes na região, era preciso prevenir. Antes de calçar as botas bati com elas com o cano voltado para baixo. Esse gesto era para verificar a presença de caranguejeiras ou cobras no interior das botas. Era comum esses bichos ficarem dentro dos calçados, ainda mais que as botas ficavam penduradas entre as telhas de um cômodo do lado de fora da casa. Carlinda me contou que um dia ao calçar a bota sem batê-la antes no chão, sentiu uma coisa “macia” lá dentro. Ao tirar a bota e verificar, viu que tinha uma aranha caranguejeira dentro da bota. Levou um baita susto.
Deixei Carlinda pescando na beira do rio, enquanto fui esgueirando-me pelas margens. O velho riozinho estava todo assoreado. Nem parecia aquele rio que durante muito tempo foi palco da minha diversão. Em algumas partes dava para passar andando. Tirei as botas e cruzei as margens, saindo no fundo do mangueiro, onde meu pai deixava preso Bossanova, o lindo cavalo branco que citei anteriormente.
Naquela parte estava mais limpo. O capim que antes cobria a terra, agora não passava de um pasto rasteiro e seco. Andei ao redor do lugar, saindo na estradinha que dava de frente com a nossa casa. À medida que ia me aproximando, caminhando lentamente, meus olhos foram enchendo-se de lágrimas. Finalmente eu estava onde queria estar.
Larguei pelo chão as varas de pesca. Sem como conter minha emoção, deixei que as lágrimas escorressem por meu rosto. "Mãe, estou voltando para casa". Não sei por que, mas estas foram as palavras que eu disse ao ajoelhar-me no chão. Fiquei assim por algum momento, como querendo estar de volta ao passado.
Onde estavam os animais? Não havia mais nada além de mim naquela hora. Eu voltei no tempo, mas as coisas continuaram as mesmas dos anos que se passaram. O curral sem o gado, o mangueiro sem Bossanova, o pasto sem os cavalos.
Das árvores, apenas o pé de caju ainda existia. Eu não ouvia o ladrar dos cães, nem minha mãe chamando para comer. Meu irmão não estava perto de mim para sairmos montados em Pampinha, em nossas aventuras. Estava sozinho, de volta no tempo. Minha idade de menino ficou perdida em algum lugar. Era somente eu e minha solidão, ajoelhado, fitando o que restou do meu passado. Um curral vazio, o capim seco e deserto, o quintal sem os cães, minha casa sem meus pais e meus irmãos.
Levantei-me para ver mais de perto os fragmentos que restaram daquela época. O pouco que restou da casa estava quase vindo abaixo. As janelas e a porta da frente estavam lacradas. Dei a volta pelo fundo. Entre os matos do quintal apenas escombros do forno de barro. Era como se eu visse minha mãe, minha avó e minhas tias ali preparando os queijos, requeijões e biscoitos. O grande tanque onde a água era guardada estava seco. A casinha onde era preparada a farinha, chamada de farinheira, era somente mais um monte de entulho esparramado pelo mato.
A porta de entrada dos fundos da cozinha parecia estar fechada. Havia outra entrada pelos fundos que dava acesso à casa, pela copa, mas os matos tomaram conta do local. Fui empurrando a porta devagar. Apesar de ser dia claro, lá dentro estava muito escuro. Aos poucos o interior da casa foi se revelando à medida que a luz penetrava o local.
Com um certo receio, fui entrando devagarzinho. Não sabia se havia alguém em casa, talvez os animais peçonhentos, cobras e aranhas, tivessem tomado conta de tudo.
Sobre o fogão de cimento ainda restavam vestígios de lenha queimada, sinal de que alguém esteve por ali. Poderia ter sido apenas um itinerante. Era o fogão onde minha mãe preparava as deliciosas comidas.
Ainda hesitante fui percorrendo todos os cômodos daquele que um dia foi o meu lar. Da despensa, que ficava ao lado da cozinha, olhei pela janelinha o lado de fora da casa. Foi dali que observamos uma estranha luz, numa noite escura, que apareceu no meio do curral. Parecia alguém andando com uma tocha na mão. O gado permaneceu em silêncio, sem se assustar com a presença daquela luz.
No quarto que foi da minha mãe, alguns ganchos estavam pendurados na madeira de sustentação do telhado. Aquilo deu um aspecto fantasmagórico ao ambiente. Escuridão, silêncio e ganchos pendurados no teto. Mesmo assim não me abalei, estava apenas tomado pelo sentimento emotivo naquele momento.
No quarto da sala tentei entrar, mas a porta estava lacrada. Parece que alguma coisa do lado de dentro impedia a porta de abrir. Era costume dos moradores sair das casas e deixar tudo fechado.
Abri a janela da sala. A visão que tive não era a mesma daqueles anos que vivi ali. Eu via apenas a tristeza vindo lá de fora para dentro de mim. O vento suave que entrou pela janela chorava a morte das árvores, a ausência dos animais pastando e o canto dos pássaros. Foi o mesmo vento que tocou o meu rosto como se quisesse compartilhar comigo a sua dor, sua desolação.
Deixei, então, a janela aberta para que o vento pudesse me seguir, para que juntos pudéssemos compartilhar daquele momento que talvez não se repetisse em outra ocasião.
Eu tinha realizado o meu sonho, foi o que me deixou feliz. Peguei as varas de pescar que havia largado pelo meio do caminho. Aos poucos a imagem foi se invertendo. Agora eu não estava me aproximando da casa. A cada passo de volta para o meu presente a imagem da minha velha casa ia se apagando, se desmanchando entre o sentimento de um desejo realizado, até desaparecer por completo no meio dos matos.
De volta à casa da minha tia Lió, o meu destino era outra vez somente um quadro pintado ao longe.
Imagens: na primeira foto, abaixo, vista frontal da casa. Segunda foto, vista frontal de um ângulo diferente. Terceira foto, vista lateral direita. Quarta foto, o pé de caju nos fundos da casa. Quinta foto, porta de entrada da cozinha. Sexta foto, vista lateral esquerda.
Mais sobre João
Ainda faltava algo para saciar por completo a minha aventura. Queria andar a cavalo. Saí com João Neto para vermos um cavalo que estava ferido. O ferimento estava bastante inflamado. Perguntei ao João se o cavalo ficaria bom, enquanto ele ia passando creolina no local ferido. Respondeu que sim. Aquela resposta me deixou aliviado, pois era triste ver o animal naquele estado.
O João sempre foi bem-humorado e gostava de contar suas histórias mirabolantes sobre os moradores da roça. Provavelmente a maioria das coisas que ele contava deveria ser invenção. Poderia ter um pouco de verdade com uma boa dose fantasiosa da mente criativa dele. Foi assim a maioria do tempo que passamos juntos andando pelos arredores.
A água estava escassa naqueles dias. Para fazer a manutenção dos utensílios e afazeres domésticos, a água era retirada de uma pequena lagoa, colocada no lombo de um jumento, depois despejada dentro de um pequeno reservatório. O banho era feito com a cuia. Era a mesma água que os animais bebiam. Apesar de tudo o gosto não era ruim.
De manhã cedo o João ia para a casa de tia Lió tirar o leite das vacas. No finalzinho da tarde ele saía pela manga, prendia o gado no curral, separando as vacas dos bezerros. O leite extraído era vendido a cinqüenta centavos o litro. Não era a única fonte de sustento, pois o que ele conseguia tirar não era suficiente, no máximo um balde por dia com capacidade para uns vinte ou trinta litros de leite mais ou menos.
Nem as vacas escapavam das alcunhas do João. Era comum ele colocar apelidos em todas elas. Infelizmente não me lembro, mas dei boas risadas com os causos antigos e os nomes que ele colocava em cada uma das vacas. E para deixar a ocasião ainda mais engraçada ele fez uma das suas vacas ajoelhar no chão usando um galho seco de árvore. Aquilo foi demais. Ele parecia um domador de circo com seu chapelão, o cinto e as botas impecáveis.
Galopando nas asas do vento
Antes de vir embora fui dar uma cavalgada lá pela fazenda do falecido Doutor Otelino Sol, antigo morador da região, rico e bem sucedido. Em suas andanças pelos arredores, caiu do cavalo e bateu com a cabeça num toco de árvore. Seu filho Orozimbo herdou a herança do local, juntamente com Dona Edna, esposa do falecido.
João preparou o cavalo, me alertando sobre uma cerca com arame farpado onde quase feriu o animal dias antes. Devagarzinho fui seguindo pela pequena trilha dentro dos matos. Logo mais adiante, já bem próximo da sede, reparei na tal cerca que o João havia me alertado antes. De fato os arames farpados estavam lá. Quem não fosse bastante cuidadoso certamente poderia se ferir.
Passei por uma cancela que dava acesso ao curral, subindo pelos fundos da casa. À primeira vista parecia não ter ninguém por perto. Ao chegar no pátio apeei e me aproximei da entrada da cozinha. A casa é bem grande e confortável. Encostada à beira do fogão de lenha, uma mulher de pele tostada pelo sol mexia o leite dentro de um enorme caldeirão de alumínio com uma colher de pau também muito grande. Parecia estar fazendo requeijão ou doce de leite. Conversei um tempinho com ela, mas logo saí. Não vi mais ninguém pelos arredores.
Peguei o cavalo e continuei andando, agora pela estrada que ia para Salto da Divisa, cidade próxima ao rio Jequitionha, não muito distante dali. Nessa mesma estrada, um pouco mais adiante, ficava a casa da minha avó Etelcina, mãe da minha mãe. De repente, tomado por um forte impulso, naquele mundo que somente eu parecia existir, apertei os flancos do cavalo, afrouxei as rédeas e saí em disparada.
O vento açoitava a minha cara com força, dando até para ouvir o assobio. Percebendo que o velho animal estava ficando cansado, aliviei a corrida e voltei a cavalgar normalmente.
Chegando ao ponto onde ficava a casa da minha avó, não encontrei nada além do capim alto. Não havia nenhum vestígio que um dia existira uma casa por ali. Na verdade eu já esperava encontrar aquilo mesmo: nada, apenas amargas lembranças de um tempo sofrido, muito difícil. Eu não sabia se era bom ou ruim continuar ali, se aquelas lembranças me faziam bem ou mal. Foi algo que ficou sem resposta. Aquele era o último ponto da minha viagem, o destino final. Dali eu não passei.
O tempo às vezes é cruel e amargo. Obriga-nos a fazer coisas pelas quais não esperamos fazer. É o que as pessoas chamam de destino? Agora estava voltando pelo mesmo caminho, como se estivesse apagando os meus rastros. Os rastros podem ser apagados seja pelo vento, pela água da chuva ou pela mão de alguém. Mas as lembranças permanecem.
Mesmo sabendo o que não vou encontrar mais, o desejo de estar ali novamente é grande. Aquilo foi parte da minha vida. Foi um mundo de aventuras, de descobertas, de tristezas e alegrias. Porque assim é a vida. Foi assim que aprendi a viver: entre os animais e a natureza. Sem isto eu não sou ninguém, sou apenas mais um perdido neste mundo, no meio desse imenso universo que nos cerca. Assim continuará sendo até que as portas de um outro mundo se abram, pois será este o destino de cada um de nós.
Minha aventura encerra-se aqui, de volta para minha casa, pedalando minha surrada bicicleta pelas trilhas do passado e do presente.
O futuro... quem sabe?
Imagens: na primeira foto, João fazendo uma das suas vacas deitar-se no chão. Na segunda foto, a mesma vaca, porém, ajoelhando-se. A terceira foto foi uma recompensa para fechar com chave de ouro.
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