Aqui se trata de um tesouro escondido, de um livro que deveria ser lido diariamente, porque ele contém mais conteúdo do que milhares de conselheiros, e mais substância do que todos os outros livros do mundo.
Antigamente, quando os monges criaram esta bela letra inicial, a Sagrada Escritura ainda era proibida na Igreja para pessoas comuns. Não é uma maluquice? “Desconhecer a Escritura é desconhecer a Cristo”, já dizia o padre da Igreja Jerônimo. Como se chegou a isso? Na condição de simples cristão, ninguém lia a Bíblia; era ouvida exclusivamente durante a liturgia, em pequenas doses seguidas de comentários da Igreja.
O monge e inquisidor dominicano Melchior Cano é uma figura como que tirada de O nome da rosa. Quando, em 1559, um bispo espanhol exigiu a tradução da Bíblia na língua nacional, Cano interveio e advertiu que isso poderia levar a situações como na Alemanha, onde Martinho Lutero, quarenta anos antes, havia traduzido a Bíblia para o alemão. A Bíblia não seria para “mulheres de carpinteiros”: “Ainda que as mulheres anseiem, com insaciável apetite, comer desse fruto, é necessário proibi-las e postar diante dele uma lâmina flamejante, a fim de que as pessoas não possam alcançá-lo”. Teresa d’Ávila, a grande reformadora da Igreja no século XVI, também foi afetada por tal proibição e, em consequência disso, sofreu horrivelmente. Contudo, à noite, teve uma inspiração que muito a consolou: “Então o Senhor me disse: ‘Não se aflija, pois eu lhe darei um livro vivo’”.
Como seria se sempre tivéssemos conosco uma Bíblia ou uma edição de bolso do Evangelho, tal como nosso celular? O que aconteceria se tratássemos a Bíblia exatamente como lidamos com nosso celular? Se voltássemos para pegá-la, porque a esquecemos em casa, se a tomássemos mais de uma vez nas mãos durante o dia, se lêssemos as mensagens de Deus na Bíblia, tal como lemos as mensagens no celular?
Papa Francisco
Os ataques do inquisidor Melchior Cano devem ser lidos menos como registro da opressão das mulheres do que como ataque ao povo. Naquela época, como hoje, as mulheres interessavam-se mais do que os homens pela religião. Talvez se pensasse que as mulheres iriam ler e discutir a Bíblia ardorosamente; e se elas, depois, ainda se deixassem contaminar pela Reforma, então surgiria uma nova igreja em cada esquina. Com efeito, Lutero havia estabelecido o famoso princípio Sola Scriptura: um cristão só precisaria da Escritura, e não, adicionalmente, das interpretações dos sacerdotes. A Bíblia seria autoexplicativa. Com efeito, já nos tempos de Lutero, o movimento reformatório enredava-se em uma porção de variadas formas de interpretação. Todos queriam seguir a Bíblia. Contudo, de fato, uns seguiam a interpretação de Calvino, outros a de Zuínglio, outros, ainda, a interpretação de Thomas Müntzer ou de John Knox…
Já faz tempo que a Igreja reconheceu o erro de ter mantido a Bíblia em segredo, como se fosse uma peça de literatura perniciosa. Hoje é perfeitamente normal que o papa Francisco incentive os jovens católicos a lerem intensamente a Bíblia: “Vocês têm nas mãos, portanto, algo divino: um livro como fogo, um livro no qual Deus fala. Por isso, recordem-se: a Bíblia não foi feita para ser colocada em uma prateleira, mas para ser levada nas mãos, para ser lida frequentemente, a cada dia, quer sozinhos, quer acompanhados. Além disso, acompanhados vocês praticam esportes, vão ao shopping; por que então não ler juntos, em dois, em três ou em quatro, a Bíblia? Quem sabe ao ar livre, mergulhados na natureza, no bosque, na beira do mar, de noite, à luz de velas… Vocês fariam uma experiência forte e envolvente!”. Contudo, naturalmente, é preciso dizer: faz parte da história da culpa da Igreja o fato de ela, ao longo de séculos, não ter permitido que pessoas simples bebessem livremente da riqueza da Palavra de Deus.
No entanto, a Igreja não desistiu de um princípio: a Bíblia é o livro da Igreja. Ela cresceu a partir de sua vida; foi e permanece seu ventrículo. Diz o papa Bento: “Jamais podemos ler a Bíblia sozinhos. Encontramos demasiadas portas fechadas e resvalamos facilmente no erro. A Bíblia foi escrita pelo povo de Deus e para o povo de Deus sob a inspiração do Espírito Santo”. Não devemos esquecer-nos da conexão viva com a Igreja, a fim de não nos fazermos senhores da Bíblia. “Para alcançar seu objetivo, até o demônio cita a Bíblia”, dizia Shakespeare.
Mas o que é, exatamente, a “Palavra de Deus”? Tudo o que Deus nos tem a dizer, disse-nos por Jesus Cristo. Ele é a revelação das revelações e a própria “Palavra de Deus”. Temos acesso à Palavra de Deus na forma escrita, na Sagrada Escritura, e na forma oral, na Tradição (ou transmissão) apostólica. Pode-se imaginar isto concretamente: até o ano 397 – quando o Sínodo de Cartago estabeleceu quais livros pertencem à Sagrada Escritura –, gerações de cristãos viveram praticamente sem o Novo Testamento. Viveram, portanto, sem a “Palavra de Deus”? Não, a Palavra estava viva neles, “eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4,12). Do contrário, eles não teriam sobrevivido às catacumbas e aos cruéis jogos circenses da Antiguidade.
Ler o Evangelho e ler sempre de novo, continuamente, a fim de ter sempre mais diante dos olhos o espírito, os gestos, as palavras, os pensamentos de Jesus, para poder pensar, falar, agir como Jesus e seguir-lhe o exemplo e as instruções.
Beato Charles de Foucauld (1858–1916)
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó - não dos filósofos ou dos eruditos! Deus de Jesus Cristo. Só se pode encontrar e guardar nos caminhos instruídos no Evangelho.
Blaise Pascal, depois de fazer uma experiência de Deus
No Antigo Testamento, Deus mostra-Se como o Criador e o sustento do mundo, como guia e educador da humanidade. Também os livros do Antigo Testamento são Palavra de Deus e Sagrada Escritura. Sem o Antigo Testamento não é possível compreender Jesus. [121-123, 128-130,140]
No Antigo Testamento começa uma grande história didática sobre a fé, que no Novo Testamento sofre uma decisiva viragem e atinge a meta com o fim do mundo e o retorno de Cristo. Aqui o Antigo Testamento revela-se mais do que um simples prelúdio ao Novo. Os Mandamentos e as profecias do Povo da Antiga Aliança, com as suas promessas para toda a humanidade, nunca foram revogados. Nos livros da Antiga Aliança encontra-se um insubstituível tesouro de orações e de sabedoria; em particular, os Salmos pertencem à oração quotidiana da Igreja.
Só quando nos encontramos com o Deus vivo aprendemos o que é a Vida. Não há nada mais belo que ser encontrado pelo Evangelho, por Cristo.
Bento XVI, 24.04.2005
Desconhecer a Escritura é desconhecer Cristo.
São Jerônimo (347-419, padre e doutor da Igreja, exegeta e tradutor da Bíblia)
No Novo Testamento consuma-se a Revelação de Deus. Os quatro evangelhos - segundo São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João - são o coração da Sagrada Escritura e o mais precioso tesouro da Igreja. Neles mostra-Se o Filho de Deus como Ele é e como vem ao nosso encontro. Nos Atos dos Apóstolos conhecemos os primórdios da Igreja e a ação do Espírito Santo. Nas cartas apostólicas a vida do ser humano é iluminada, em todas as suas dimensões, pela Luz de Cristo. No Apocalipse de São João antevemos o fim dos tempos. [124-130,140]
Jesus é tudo o que Deus nos queria dizer. Todo o Antigo Testamento prepara a encarnação do Filho de Deus. Todas as promessas de Deus encontram em Jesus o seu cumprimento. Ser cristão significa unir-se cada vez mais profundamente à vida de Cristo. Para isso é preciso ler e viver os evangelhos. Madeleine Delbrêl diz: "Através da Sua Palavra, Deus diz-nos quem Ele é e o que quer; Ele di-lo definitivamente e para cada dia. Quando temos o nosso Evangelho nas mãos, devemos considerar que aí habita a Palavra que Se tornou carne para nós e nos quer atingir para recomeçarmos a Sua vida num novo lugar, num novo tempo, num novo ambiente humano."
A Sagrada Escritura não é algo que pertence ao passado. O Senhor não fala no passado, mas no presente; Ele fala conosco hoje, dá-nos a Luz, mostra-nos o caminho da Vida, concede-nos a comunhão, e, assim, prepara-nos e abre-nos para a Paz.
Bento XVI, 29.03.2006
Todos os batizados pertencem à Igreja de Jesus Cristo. Portanto, também os batizados que se acham separados da total comunhão da Igreja Católica são com razão chamados cristãos e são, assim, nossas irmãs e irmãos. [817-819]
As divisões da única Igreja de Cristo aconteceram por causa de adulterações do ensinamento de Cristo, erros humanos e escasso espírito de reconciliação - na maioria das vezes, por parte dos representantes de ambos os lados. Os cristãos atuais não têm nenhuma culpa dos cismas históricos da Igreja. 0 Espírito Santo age também nas comunidades eclesiais separadas da Igreja Católica, em benefício da salvação das pessoas. Todos os dons aí existentes, como a Sagrada Escritura, os Sacramentos, a fé, a esperança, o amor e os outros Carismas, provêm de Cristo. Onde vive o Espírito de Cristo há uma dinâmica interior no sentido de uma "reunificação", porque o que pertence a todos quer crescer com todos.
BÍBLIA Por "Bíblia" (gr. biblos = livro) designam os judeus e os cristãos uma coleção de escritos sagrados que surgiram num período de mais de 1000 anos e constituem o documento da sua fé. A Bíblia cristã é substancialmente mais abrangente que a judaica, pois, além dos escritos desta, contém ainda outros livros do Antigo Testamento, quatro Evangelhos, as Cartas de São Paulo e outros escritos da Igreja primitiva.
A Sagrada Escritura lê-se corretamente se for lida em atitude Orante, ou seja, com a ajuda do Espírito Santo, sob cujo influxo ela surgiu. Ela contém a Palavra de Deus, isto é, a decisiva mensagem de Deus para nós. [109-119, 137]
A Bíblia é como uma longa carta de Deus dirigida a cada um de nós. Por isso, temos de acolher as Sagradas Escrituras com grande amor e respeito. Primeiro, devemos realmente ler a carta de Deus, isto é, não isolar pormenores sem atender ao todo. Depois, devemos orientar esse todo para o seu coração e mistério, ou seja, para Jesus Cristo, de quem fala toda a Bíblia, mesmo o Antigo Testamento. Portanto, devemos ler as Sagradas Escrituras na mesma fé viva da Igreja em que elas surgiram.
A Bíblia é a carta do amor de Deus dirigida a nós.
Sören Kierkegaard (1813-1855, filósofo)
Ler a Sagrada Escritura significa pedir o conselho de Cristo.
São Francisco de Assis (1182-1226, "o maior cristão depois de Cristo", fundador de uma ordem, místico)
A Igreja busca a sua vida e a sua força na Sagrada Escritura, como quem busca a água num poço. [103-104, 131-133, 141]
Além da presença de Cristo na Sagrada Eucaristia, a Igreja nada honra com mais veneração que a presença de Deus na Sagrada Escritura. Na Santa Missa, acolhemos o Evangelho de pé, porque é o próprio Deus que nos fala com palavras humanas.
Não tenho ilusões. Não consigo imaginar Deus Pai. Tudo o que posso ver é Jesus.
Beata Madre Teresa (1910-1997, o "anjo de Calcutá", fundadora das Missionárias da Caridade, Nobel da Paz)
Em Jesus Cristo foi o próprio Deus que veio ao mundo. Ele é a última palavra de Deus. Ouvindo-O, toda pessoa humana, em todos os tempos, pode saber quem é Deus e o que é necessário para a sua salvação. [66-67]
No Evangelho de Jesus Cristo está perfeita e completamente disponível a Revelação de Deus. Para que ela nos seja clara, o Espírito Santo introduz-nos na Verdade cada vez mais profundamente. A Luz de Deus penetra na vida de algumas pessoas de um modo tão forte, que elas veem o "céu aberto" (At 7,56). Foi assim que surgiram os grandes lugares de peregrinação, como Guadalupe, no México, Lourdes, em França, ou Fátima, em Portugal. As "revelações privadas" dos videntes não podem aperfeiçoar o Evangelho de Jesus Cristo; embora não sejam universalmente vinculativas, podem ajudar-nos a entendê-lo melhor, desde que a sua verdade seja examinada pela Igreja.
Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Seu Filho.
Hb 1,1ss.
No texto disponibilizado, há um roteiro para a Leitura Orante da Palavra de Deus, sobre uma passagem que ilustra bem o que expusemos até aqui.