CAPÍTULO 18

A IMPRESCINDIBILIDADE DO PENSAMENTO CRÍTICO: OS DESAFIOS DOCENTES NA ERA DA PÓS-VERDADE




KARLAN YURY KEINER¹

GIZELI FERMINO COELHO²

RESUMO

Frente às adversidades do século XXI, é indispensável dialogar sobre o pensamento crítico. Com a disseminação das tecnologias da informação, a disponibilidade quase que infinita de documentos e de materiais gerou muitas expectativas para os docentes, democratizando o acesso ao conhecimento. No entanto, alguns reveses surgiram: além das distrações inerentes à tecnologia, como sites de entretenimento e jogos on-line, fenômenos como as Fake News e o conceito de “Pós-Verdade” ganharam espaço no cotidiano, moldando comportamentos e interferindo diretamente em processos de dimensões globais – como as eleições norte-americanas de 2016. O apelo às crenças pessoais e argumentos emocionais tornaram-se práticas comuns, que ganham cada vez mais notabilidade em virtude da ignorância de boa parcela dos internautas. Opiniões sem quaisquer embasamentos científicos são compartilhadas excessivamente, a mentira é banalizada e “bolhas virtuais” se expandem. O ensino com rigor é desmoralizado e o profissional da educação é acusado de doutrinamento por pessoas que, muitas vezes, não entendem sequer o significado dos termos que utilizam. Destarte, o presente artigo tem como objetivo auxiliar na compreensão de como esses eventos ocorrem, quais são os métodos utilizados por seus agentes e como o pensamento crítico é essencial neste combate, auxiliando a preservação do ensino científico. Assim, cultivando o diálogo de forma honesta, é possível desintoxicar o debate público e conservar a democracia – tão acossada por movimentos de cunho autoritário, que utilizam essas ferramentas modernas de desinformação.

PALAVRAS-CHAVE:

Conscientização. Socialização. Dialética. Alienação.

¹ Pós-graduando em Políticas Educacionais e Educação Democrática pelo Centro UniversiárioCesumar – Unicesumar. Graduando em Administração Pública pela Universidade do Estado de Catarina – UDESC. Graduado em Licenciatura em História pelo Centro UniversiárioCesumar – Unicesumar.

² Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Mestre em Educação pela mesma instituição. Especialista em Arte e Educação pela Faculdade Tecnológica América do Sul. Graduada em Pedagogia pala Universidade Estadual de Maringá – UEM. Professora orientadora de Trabalho de Conclusão de Curso da Pós-Graduação-EAD Unicesumar.

INTRODUÇÃO

A formação de cidadãos capacitados para a análise e reflexão é de suma importância para a construção de uma sociedade crítica. É imprescindível ter ciência de que a cidadania é um exercício contínuo, e que o aprendizado não acontece apenas nas instituições de ensino. Nesta linha de raciocínio, Mészáros (2008) endossa que é preciso compreender a educação enquanto uma questão muito mais ampla do que a tradicional, por considerar que a aprendizagem acontece ao longo da vida.

A ausência de uma educação satisfatória de base é terreno fértil para a colonização intelectual, que acaba por convencer o oprimido de que a opressão que sofre lhe é benéfica, mesmo que isso signifique lutar contra seus próprios interesses enquanto classe (SOUZA, 2017). Assim, com o cidadão incapaz de refletir criticamente e exposto às novas técnicas de alienação, o debate público foi severamente afetado. Neste cenário, ganha destaque o financiamento de disparos em massa por meio de aplicativos de mensagens, como o Whatsapp, e a utilização de softwares que realizam ações nas redes sociais de forma automatizada – os Bots.Todo esse processo impulsionou o fenômeno conhecido por “pós-verdade”, termo que designa uma situação na qual as crenças e o apelo emocional têm mais importância e influência que os fatos historicamente consolidados.

Através dessas ferramentas, a verdade é relativizada e o revisionismo histórico ganha força, sendo preciso decifrá-los. O aumento exponencial nos canais de comunicação não foi acompanhado por algumas variáveis, como a qualidade no trato das mensagens e a ética profissional. Filtros tradicionais foram excluídos no processo de disseminação destas, fazendo com que a subjetividade dos fatos fosse alterada de acordo com a vontade dos emissores, que não costumam possuir qualificação alguma para aquela atividade – vide blogueiros e youtubers, que angariam milhões de seguidores e, em muitas oportunidades, instigam os alunos a hostilizar o docente.

Neste ínterim, é substancial o emprego do pensamento crítico no cotidiano, investigando o entorno e levantando questionamentos, a fim de desvelar as questões impostas e demandar um sistema que seja melhor para a maioria. Hegel (2004) fornece subsídios para lidar com os desafios contemporâneos, através da filosofia dialética; por meio da tese, antítese e síntese. Ideias são expostas, contestadas pelo contraditório e fazem com que novas discussões sejam constituídas.

A escolha do tema é de fundamental importância na defesa da escola democrática, para além de compreender que os problemas aqui exibidos prejudicam diversas classes e setores na sociedade, apesar de causarem severos danos ao âmbito educacional. O conhecimento sem lastro científico é nocivo, abre margem para pseudociências e apego às crenças pessoais, inferindo diretamente no aprendizado e podendo gerar resultados como o movimento antivacina– além de influenciar as políticas que regem o sistema.

O artigo foi desenvolvido com base na pesquisa bibliográfica, realizada com obras de autores consagrados, vide István Mészáros (2008), Moacir Gadotti (1995, 1997) e Paulo Freire (1981, 2000); revistas eletrônicas, como a Revista Observatório e a Revista UNO; além de artigos científicos recentes, disponibilizados no Portal de Periódicos CAPES.

Este trabalho está subdividido em dois itens, somados às considerações finais. Primeiramente, o texto discorre sobre o significado de pensamento crítico, com o intuito de apresentar o conceito e discutir a importância do questionamento e realidade social; pois, conforme Freire (2000), não há criatividade sem curiosidade; a liberdade só pode ser alcançada durante o exercício da busca pelas respostas que cercam o indivíduo – fazendo com que a pergunta seja um alicerce crucial no processo pedagógico. No segundo item, será enfatizado o processo de relativização da verdade e o apelo emocional, enquanto variáveis da pós-verdade, além de salientar como a inteligência coletiva pode contribuir para superação das adversidades aqui apresentadas. Por fim, nas considerações finais, são disponibilizados os resultados e contribuições da pesquisa.

O PENSAMENTO CRÍTICO, DIALÉTICA E REALIDADE SOCIAL

O método tradicional de ensino, por meio do qual o professor é o detentor do conhecimento e utiliza seu posto apenas para compartilhá-lo de forma técnica, não se faz eficiente na contemporaneidade.Talvez nunca tenha sido, mas historicamente servia enquanto mecanismo de controle social. Segundo Souza (2016), isso mantém os indivíduos conformados com sua realidade, além de não instigar mudanças na sociedade, mantendo o status quo; papel este que outrora fora realizado pela Igreja Católica, e hoje pela elite econômica. Nesta linha, Mészáros (2008) afirma que o sistema vigente de produção molda a educação para servir aos seus interesses, mesmo que para isso precise falsificar a história e deturpar conceitos. Sendo assim, acontece o processo de internalização, em que se incute no indivíduo o seu papel na sociedade, aceitando seu futuro sem questioná-lo, preservando a ordem do sistema capitalista. Nas palavras de Souza (2017), a estrutura de poder vigente precisa ser legitimada e, para que as classes desprovidas de informação obedeçam, é preciso ter uma aparente razão e lógica no discurso. Logo, no mundo moderno, quem é encarregado deste papel é a elite intelectual, que é “comprada” pela elite econômica, anteriormente mencionada. Dessa forma, as classes oprimidas são convencidas a lutarem por ideais e reformas que, inclusive, agravam seu quadro de miséria. Portanto, entende-se a educação tradicional e acrítica enquanto instrumento de manipulação, tolhendo a iniciativa discente e isolando o ensino da realidade social da escola e seus agentes. A história não pode ser resumida em uma sucessão de acontecimentos, tratados como científicos, sem a problematização dos eventos; caso contrário, a verdade será sempre determinada pelas elites. Além do mais, tal método de ensino desconsidera o conhecimento empírico, que é tão importante quanto nossa instrução teórica, e igualmente necessário para construirmos instrumentos de emancipação pessoal e social.

Frente ao cenário exposto, correntes teóricas surgiram com o propósito de contrapor essa forma de ensino e aprimorar o processo pedagógico, dentre as quais a teoria educacional de Paulo Freire. Seu método não focava apenas na difusão de conhecimento, mas no despertar da conscientização política, instigando o questionamento e contando com a participação ativa dos alunos – alfabetizando a partir da realidade em que a pessoa vivia. Consoante Freire (1981), se não há consciência, não há liberdade; conforme raciocina-se e buscam-se respostas às perguntas impostas, caminha-se rumo à liberdade – que é um exercício permanente de emancipação. Por consequência das perguntas que são formuladas, respostas são apresentadas, e nesse processo de descoberta ocorre o que Paulo Freire (1981) denomina como conscientização do ser. Não basta apenas saber ler e escrever, é essencial que o aluno faça uso político e social do conhecimento em sua rotina, evidenciando a inevitabilidade do ensino produtivo com base em sua realidade social, para que compreenda o mundo a partir de sua perspectiva. A conjuntura da sociedade não pode ser negligenciada, é imperativo manter o debate dialético ativo entre o indivíduo e a sociedade. Todo projeto precisa de direções, e essa mediação não pode sufocar a iniciativa dos alunos, mas sim auxiliá-los a um desenvolvimento satisfatório de suas potencialidades. A autonomia e o respeito às singularidades individuais são determinantes para o desenvolvimento do coletivo; no entanto, não se pode confundir esses pontos com o individualismo – que parte para o lado filosófico do conceito. Longe disso, é necessário superar essa mentalidade egocêntrica e ter ciência de que o indivíduo moderno é um ser social:

[...] nossa subjetividade é constituída também pelos outros, pelas relações que com eles estabelecemos. Desse modo nossa subjetividade é sempre social. Somos fundamentalmente singulares, mas sempre construídos a partir de outros, é assim que entendemos subjetividade, a partir do ser humano assumido como pessoa = relação (GUARESCHI, 2018, p. 26).

Os respectivos recursos pedagógicos supracitados fornecem alicerces consistentes para o desenrolar do pensamento crítico, de forma que a dialética perpasse as instituições de ensino. Gadotti (1997) demonstra que a dialética é um método que remete a séculos antes de Cristo, sendo Sócrates o dialético grego de maior destaque. O autor expõe que outros filósofos de tempos longínquos trataram do tema, como Zenão de Eleia, Lao Tsé, Platão e Aristóteles – apesar de cada autor compreendê-la de forma distinta. Todavia, o método dialético, tal qual é conhecido hoje, teve maior destaque a partir do século XVIII, com a contribuição filosófica de Hegel (2004), que apresenta a dialética da seguinte forma: em sua base, a tese, a ideia central; a antítese como o contraditório; a síntese, sendo uma conclusão a partir da tese e antítese, que fornecerá elementos para futuras discussões – uma nova tese. Apesar das variações de pensamento referentes ao tema, é importante frisar que:

[...] a questão que deu origem à dialética é a explicação do movimento, da transformação das coisas. Na visão metafísica do mundo, à qual a dialética se opõe, o universo se apresenta como "um aglomerado de 'coisas' ou 'entidades' distintas, embora relacionadas entre si, detentoras cada qual de uma individualidade própria e exclusiva que independe das demais 'coisas' ou 'entidades'. A dialética considera todas as coisas em movimento, relacionadas umas com as outras (GADOTTI, 1997, p. 16).

Dessa forma, não apenas a Constituição Cidadã de 1988 fornece a autonomia necessária para a implementação de tal método, mas documentos como a Base Nacional Comum Curricular e os Parâmetros Curriculares Nacionais seguem a mesma linha, e são taxativos nesse aspecto: “[...] é papel do Estado democrático investir na escola, para que ela prepare e instrumentalize crianças e jovens para o processo democrático, forçando o acesso à educação de qualidade para todos e às possibilidades de participação social” (BRASIL, 1998, p. 33).Como adendo, é indispensável ter em mente que não existe autonomia absoluta em uma instituição de ensino, pois ela sempre contará com as condições materiais do seu entorno e com o respectivo momento histórico do qual faz parte.

Em vista dos pontos elencados, percebe-se o porquê da urgência em adotar o método pedagógico dialético, crítico e reflexivo: situar o indivíduo no mundo, humanizar o ensino, possibilitar o debate saudável entre partícipes, formar um cidadão capaz de interpretar problemas inerentes ao sistema do qual faz parte, romper a lógica da educação voltada para o mercado – e não para a sociedade -, direcionar jovens para o processo democrático de participação social; enfim, itens que auxiliam a evitar a exploração material e intelectual de um povo.

PÓS-VERDADE E A RELATIVIZAÇÃO DOS FATOS

Antes de mais nada, é preciso esclarecer o significado do termo “Pós-Verdade”. Citado brevemente na introdução, o termo é utilizado para designar uma situação em que fatos históricos e métodos científicos são ignorados, desmoralizados ou minimizados, em detrimento das crenças pessoais e o apelo emocional: não existe racionalidade na análise. Nesta circunstância, um fato pode ser esgarçado de tal forma que seu significado se torna subjetivo, abrindo margem para uma série de conspirações. Guareschi (2018) evidencia que a indiferença com a cientificidade dos fatos pode denotar um mundo sem verdades, normalizando o ato de mentir, indicando um mundo sem limites éticos. O autor demonstra que tudo que era considerado sólido até então vem se fragilizando, tornando-se maleável e, junto com essa mudança, ocorre a aceitação gradual da mentira, possibilitando o revisionismo histórico – que tem o propósito de endossar novas narrativas.

Nesse universo, uma informação não precisa ter lastro verídico, ela só precisa ir ao encontro do que o indivíduo já acredita, satisfazendo sua necessidade em estar com a razão. As bolhas ideológicas são criadas dessa forma, liquidando o diálogo do contraditório, pois o sujeito tem por hábito a exclusão daquele que pensa diferente – sobretudo quando este publica algo que não lhe agrada. Souza (2016) expõe que a maioria das pessoas não tende a aceitar a verdade, porque isto implica em uma autocrítica, uma responsabilidade pelos atos individuais – a qual, muitas vezes, imputa-se ao outro. As tecnologias contemporâneas acabam por alimentar esse comportamento, por conta da lógica dos algoritmos que sustentam suas plataformas, como o Youtube; pois o site sempre recomenda conteúdo semelhante ao que o internauta acessa, inibindo a diversidade de informação.

Contudo, apesar de a nomenclatura ser recente, suas técnicas são utilizadas há muito tempo. Zarzalejos (2017) mostra que essa confusão sobre a realidade vai ao encontro de manobras conspiratórias, que pretendem incitar hostilização contra determinadas parcelas da sociedade, bem como fomentar métodos mitomaníacos de fazer política, ferramentas poderosas de persuasão que ganharam força no século XX, em especial, na década de 30. Neste caso, o autor se refere, especialmente, ao movimento Nazista, que é um exemplo didático ao estudo aqui investigado; sendo, inclusive, a responsável pela conspiração do “marxismo cultural”. Ao considerar a boa aceitação das ideias socialistas e comunistas nos idos da década de 30, frente à histórica quebra da bolsa de valores de 1929 e o desprestígio do sistema capitalista, os nazistas se apropriaram do termo “socialista” e apelam aos trabalhadores alemães. A adoção do termo fez-se presente apenas no nome do partido, pois o próprio idealizador do movimento, Adolf Hitler, discorre em sua obra “Mein Kampf” sobre questões que fogem completamente a qualquer concepção teórica socialista: o desprezo pelos povos miscigenados e a busca pela “raça superior ariana”;o caráter nacionalista e segregador do partido; a desmoralização da intelectualidade;os elogios feitos ao racismo estrutural norte-americano; culpabilização do “marxismo-judeu-internacional” pelo tratado de Versalhes e a posterior miséria alemã; narra lutas corporais contra os marxistas; explica como arruinar os sindicatos marxistas e priorizar os sindicatos nazistas; enaltece a perseguição aos comunistas realizada pelo fascismo italiano[...] dentre a infinidade de características que demonstram o desarranjo ideológico nazista, que não possui alinhamento algum com o socialismo exposto no nome do partido.

A cor vermelha de nossos cartazes foi por nós escolhida, após reflexão exata e profunda, com o fito de excitar a esquerda, de revoltá-la e induzi-la a frequentar nossas assembleias, isso tudo nem que fosse só para nos permitir entrar em contato e falar com essa gente (HITLER, 2017, p.74).

Sobre a Alemanha Nazista, outra acusação recorrente é de que, por contar com um Estado forte, esta seria uma nação comunista. Nessa linha rasa de pensamento, todos os países poderiam ser classificados como comunistas em certa medida, caracterizando um erro de análise. Primeiro por anacronismo histórico, em que não se compreende o papel do Estado no século XX e suas alterações conforme o início do século XXI, quando qualquer país que conte com políticas sociais é tido como socialista - pelos grupos radicais e seus seguidores. Segundo, por ignorância: não ter noção de que o Estado era utilizado a favor de certa parcela da população para benefício próprio; de que sindicatos nazistas eram favorecidos em detrimento de outros que eram perseguidos (marxistas); do desarmamento, perseguição e aniquilação dos judeus e comunistas por parte do governo, etc. Outro fator que contribui para essa incompreensão reside na concepção grosseira de que comunismo significa um Estado totalitário, sendo que comunistas advogam pelo fim deste. Após as reformas necessárias tomadas pelo proletariado no período de transição (socialismo), uma nova sociedade seria moldada pelos homens; por entender que o Estado, tal qual hoje, serve apenas aos interesses da elite.

Este é um assunto complexo que exige um estudo profundo, fora utilizado aqui com o objetivo de demonstrar como a falsificação histórica acontece – e como tem raízes distantes. Neste caso, apesar de parecer inofensiva, ela tem seus efeitos: pretende desqualificar quaisquer movimentos e partidos de oposição. Dessa maneira, as pautas sociais e econômicas dessa vertente são ligadas a um movimento de caráter fascista do século passado, sugerindo que medidas que visam reparar a desigualdade social são, no fundo, nazistas – ou causarão distorções maiores que as existentes. A lógica é subvertida de tal forma que os fatos históricos não mais importam para as redomas de desinformação, pois não corroboram com a narrativa que pretendem inculcar no seguidor.

A infinidade de materiais e relatos de sobreviventes daquele período podem provar o que de fato aconteceu; mas nada disso tem importância para o conspirador. Em uma situação hipotética: podem existir noventa e nove provas sobre um fato, mas se houver apenas uma prova divergente, aquela será utilizada como viés de confirmação por esses grupos fanatizados. Outro exemplo famoso e recente foi de quando a embaixada alemã no Brasil postou um vídeo no Facebook, explicando o que foi o movimento nazista. Os revisionistas brasileiros de extrema-direita não tardaram em “ensinar” aos próprios alemães o que era o Nazismo, e o porquê de a própria embaixada estar errada; o que denota não apenas ignorância, mas uma prepotência sem limites.

O fenômeno da “Pós-Verdade” ganhou popularidade e dimensões globais em 2016, com o Referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia em 2016 e com as eleições presidenciais norte-americanas, do mesmo ano. No primeiro caso, D’Ancona (2018) evidencia que, apesar das consequências econômicas que o Reino Unido poderia sofrer ao retirar-se da União Europeia (perda de empregos, queda no salário médio, aumento do custo da cesta básica etc), de acordo com dados apresentados por especialistas, a força da Pós-Verdade prevaleceu; com 52% dos votos, a nação situada no noroeste da Europa conseguiu, por meio de plebiscito, sair do bloco econômico criado em 1992. Os jornais britânicos auxiliaram muito nesta lida, publicando notícias extremamente xenofóbicas, como as de que imigrantes se envolviam com frequência em casos de estupro, que utilizavam serviços públicos sem contribuir na mesma medida que os britânicos, ou que o dinheiro investido na União Europeia seria revertido para o sistema de saúde. Ao considerar a população em idade avançada nesta nação, é de se esperar o impacto negativo destas fake-news. Não só pelo conservadorismo no que se refere às pautas sociais, mas pela falta de prática na verificação das fontes de informação; ou pior, quando jornais tradicionais acabam reverberando meias-verdades.

Já nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016, o candidato pelo Partido Republicano, Donald J. Trump, foi o personagem principal da história. Conforme Zarzalejos (2017), as plataformas de verificação de notícias (fact-checking) contabilizaram até 217 inverdades nos discursos de Trump, durante a corrida presidencial, representando 79% de todas as alegações verificadas dos políticos em disputa. Dentre a variedade de notícias falseadas, dois boatos auxiliaram Donald Trump a impulsionar sua campanha: de que Hillary Clinton vendia armas ao Estado Islâmico e que o Papa Francisco teria “chocado” o mundo ao declarar apoio ao candidato.

No Brasil, essa forma de fazer política com recursos tecnológicos talvez tenha se notabilizado a partir de 2013, com manifestações nacionais, inspiradas em acontecimentos estrangeiros que utilizavam a internet para organização de protestos, vide a Revolução Verde (Irã), Occupy Wall Street (EUA) e a Primavera Árabe (Oriente Médio e norte da África).

Em junho de 2013, em São Paulo, o Movimento Passe Livre foi às ruas contra o aumento de R$0,20 na tarifa do transporte público. A cobertura dada pelo noticiário foi de início negativa, classificando os manifestantes e suas ações como criminosas. Mas, ao perceber o potencial de crítica ao governo existente nesta e em outras manifestações, passou-se a definir os protestos como pacíficos e a utilizar a bandeira nacional como símbolo. Eles não mais causavam tumulto no trânsito e passou-se, nos noticiários, a dar ênfase em determinadas bandeiras como contra os gastos da Copa, a PEC 37 e, de modo abstrato, a corrupção (CORONATO, 2018, p.27).

Com a crescente popularização dos computadores pessoais e, principalmente, dos smartphones, a difusão de informação aumentou de forma exponencial. Nesse caminho, que parecia enveredar apenas para pontos positivos, algumas variáveis não acompanharam o progresso tecnológico, como a qualidade de informação e ética profissional. Tradicionais meios de comunicação perderam espaço para aplicativos de mensagens instantâneas, que podem eleger um presidente por meio de disparos de mensagens padronizadas. Historicamente, os meios de comunicação seguem uma cartilha determinada por seus superiores, e que muitas vezes servem de satélite para um regime autoritário. De qualquer forma, ao menos contam com profissionais das respectivas áreas necessárias para o trato da informação, contando com filtros preliminares até que a notícia seja apurada e disponibilizada. O mesmo não acontece na internet, em que um sujeito sem qualquer instrução prévia pode inventar um acontecimento que nunca existiu e gerar engajamento acerca daquilo; depois do estrago, basta o emissor assegurar que seu conteúdo é puro entretenimento e que não possui comprometimento com nada. A disponibilidade da utilização de Whatsapp ilimitado, concedido por algumas operadoras, parece fortalecer essas engrenagens: o indivíduo está apto apenas a receber uma corrente, sem poder checar a veracidade da informação, pois seu plano não permite que ele faça uma pesquisa na internet. Essa fraqueza foi muito bem aproveitada nas eleições brasileiras de 2018, por meio da qual empresários financiaram disparos de Fake-News em massa (inclusive com a utilização de CPFs falsos), para impulsionar a candidatura do político que prometeu favores às respectivas classes.

Ao realizar uma rápida pesquisa na internet, percebe-se como essas características estão arraigadas nas redes sociais: boataria, perfis falsos, grupos racistas [...] todos utilizando de uma suposta “liberdade de expressão” para cometerem crimes virtuais, fazendo com que a internet pareça terra sem leis. Muitas vezes, são materializados através de memes, virais que têm como função narrar situações e causos corriqueiros do nosso dia a dia através de vídeos e imagens. De fácil utilização, o meme pode se apresentar como uma postagem, uma resposta em forma de comentário; uma fórmula muito compatível com o comportamento inconsequente de certos grupos políticos. Coronato (2018) destaca que grupos como o MBL (Movimento Brasil Livre) utilizam esses meios de alienação e histeria coletiva para desvirtuar a realidade e atacar não apenas políticos de oposição, mas também artistas e a arte, tendo como caso mais famoso o da exposição Queer Museu – atitudes que foram adotadas por movimentos fascistas do século XX.

O negacionismo científico, atrelado ao nacionalismo iletrado e o revisionismo histórico, devem ser esmagados; caso contrário, o Estado, as escolas, universidades e demais serviços públicos essenciais, serão molestados de tal forma que a classe trabalhadora regredirá décadas de luta social. A Democracia deve ser resguardada, toda e qualquer movimentação que venha a ameaçar seu pleno funcionamento deve ser suprimida. Compreender o funcionamento dessa nova engenharia é primordial, pois a contemporaneidade exige, mais do que nunca, que haja posicionamento combativo e criticidade na verificação dos fatos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização do pensamento crítico, conforme abordado na pesquisa, proporciona numerosas ferramentas de combate ante a contemporaneidade; especialmente no ambiente escolar, que costuma ser o local onde o indivíduo “fura a bolha”, uma vez que questiona todo o bombardeio de informação que recebeu durante sua vida. Devido às técnicas de alienação adotadas no mundo, a conscientização do sujeito é elemento substancial no exercício de emancipação individual, despertando sua curiosidade científica, bem como a percepção do “eu” enquanto ser social; sem ignorar as situações materiais que permeiam o ambiente escolar.

De nada adianta uma instituição de ensino que visa perpetuar o status quo sem contestação alguma, internalizando no cidadão o seu papel predefinido na sociedade. O processo edificante da aprendizagem deve ser acompanhado da educação crítica dos acontecimentos e fatos históricos, para que erros do passado não venham a se repetir no futuro – e para que novas formas de discursos populistas, recheados de apelos emocionais, não sobrepujem a realidade dos fatos. O presente artigo entende que a missão a ser cumprida não é fácil, precisa da colaboração dos pares e busca embasar futuras pesquisas. Só é possível criar um corpo social sadio e bem instruído com a participação da comunidade, canalizando inteligência coletiva, socializando o conhecimento e compartilhando experiências.

REFERÊNCIAS

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