Colônia

O  ato visceral: um texto sobre Colônia é aqui de Priscila Gomes por  Tatiana Azeñas

É o status quo, é a paz branca, é a cidade organizada, é a ordem e o progresso e assim seria para sempre se não fosse por alguns que egoisticamente insistem em olhar.

O ato visceral, profano e insistente de alguns, nos lembra a náusea que deveríamos sentir por certas questões que não deveriam ser permitidas, mas que, no entanto, não são apenas aceitas, mas também encorajadas e defendidas pela grande maioria das pessoas, pois são constituintes da sociedade onde existimos.

Ao terminar a leitura coletiva de Colônia é aqui de Priscila Gomes, vieram à minha mente as palavras de um dos meus mestres de teatro. Ele falava da náusea, como esse sentimento que nos incomoda profundamente e diante do qual não é possível estar tranquilo ou simplesmente se entregar esquecê-lo. A náusea percorre nosso corpo nos tornando carne de um mal-estar interno que, se não for expulso, nos mata.

Devemos escolher muitas vezes entre exorcizar o horror ou morrer sob suas garras. A arte tem uma grande barriga, porque sabe como digerir os processos mais turbulentos, mais insanos, mais dolorosos de nossa humanidade. Assimila o horror e nos lança algo que, sem ser o próprio horror, nos lembra de forma contundente a sua existência de tal maneira que nossa própria barriga é tomada pelo horror que nos traz notícias, parece que podemos até sentir o cheiro que ele emana. Assim, a arte muitas vezes nos obriga ao exercício da memória, nos abre os olhos. Não me entendam mal, não estou falando aqui da arte que descafeina o mundo, aquela que pega os horrores da moda e os expõe em uma vitrine de vidro polido no meio de um shopping. Estou falando mais do trabalho artesanal do artista que nos faz suar frio desde o primeiro olhar, aquele que nos atravessa como uma faca pedindo respostas e lançando perguntas diretamente, aquele que nos machuca porque desperta em nós a fragilidade e nos coloca de joelhos diante de nossa própria vulnerabilidade e ingenuidade e muitas outras coisas nos lembram o mais desprezível que existe na alma humana, inclusive, é claro, na nossa.

Diante disso, nos perguntamos, para que serve a arte? Para que serve a náusea que nos provoca quando bem-feita? Se já temos que lidar com os desconfortos causados pela vida, por que nos incomodar com o sofrimento dos outros? Por que saber sobre genocídios, guerras, abusos? Por que pensar em suas crianças, suas mulheres, seus loucos, seus excluídos?


A arte abre os olhos, depois de um tempo pode até provocar o crescimento de olhos em nossas mãos, em nossas costas, na planta dos nossos pés. Corremos o risco de andar por aí com a pele cheia de olhos, expondo nossas feridas e as dos outros. Então, para que serve a arte? Para que escrever, registrar e falar sobre os grandes bolsões de dor sobre os quais a nossa sociedade foi construída? A sociedade gerou o sistema, o sistema pariu a cidade. A cidade, do jeito que a conhecemos, como essa máquina colonizadora e hegemônica de moer pessoas, só pode existir graças à existência de "sua colônia", suas prisões, seus manicômios, suas favelas, seus rios mortos de tão sujos, seus pobres, suas prostitutas, seus loucos. Graças aos seus lixões, o sistema se mantém vivo e saudável. Neles são lavados todos os seus pecados, são escondidas todas as suas misérias, é separado o joio do trigo. Enquanto seus habitantes fazem vista grossa, olham de soslaio e depois desistem de seus próprios olhos andando cegos. Essa cegueira é a filha saudável do sistema que nos engoliu. O antídoto que a arte nos dá pode, talvez, nos servir para nos devolver o dom de olhar.


El acto visceral: um texto sobre Colônia é aqui de Priscila Gomes

Es el statu quo, es la paz blanca, es la ciudad organizada es el orden y el progreso y así sería por siempre si no fuera por algunos que egoístamente insisten en mirar. El acto visceral, profano e insistente de algunos, nos recuerdan la náusea que deberíamos sentir por ciertas cuestiones que no deberían ser permitidas, pero que, sin embargo, no son solo aceptadas sino también alentadas y defendidas por la grande mayoría de las personas, pues son constitutivas de la sociedad donde existimos.

Al terminar la lectura colectiva de Colonia é aquí de Priscila Gomes, vino a mi mente las palabras de uno de mis maestros de teatro. Él hablaba de la náusea, como ese sentimiento que nos incomoda profundamente, ante el cual no es posible estar apacible o simplemente entregarse a olvidarlo. La nausea recorre nuestro cuerpo volviéndonos carne de un malestar interno que, si no es expulsado, nos mata.

Debemos escoger muchas veces entre exorcizar el horror o morir bajo sus garras. El arte tiene barriga grande, porque sabe cómo digerir los procesos mas turbios, más insanos, más dolorosos de nuestra humanidad. Asimila el horror y nos arroja, algo que, sin ser el propio horror, nos recuerda contundentemente su existencia de una forma tal que nuestra propia barriga es tomada por el horror del que nos trae noticias, parece que podemos sentir incluso el olor que desprende. Así el arte muchas veces nos obliga al ejercicio de la memoria, nos abre los ojos. No me malentiendan, no hablo aquí del arte que descafeína el mundo, aquel que toma los horrores de moda y los exhibe en una vitrina de vidrio pulido en medio de un shopping. Hablo más bien del artesanal trabajo del artista que nos hace sudar frío desde la primera mirada, aquel que nos atraviesa como un puñal pidiendo respuestas y lanzando preguntas a rajatabla, aquel que nos duele porque despierta en nosotros la fragilidad y nos pone de rodillas frente a nuestra propria vulnerabilidad e ingenuidad y muchas otras nos recuerda lo más despreciable que yace en el alma humana, incluso, claro, en la nuestra.


Ante eso nos preguntamos, ¿para qué el arte? ¿Para qué la náusea que nos provoca cuando bien hecho? Si ya tenemos que lidiar con las incomodidades provocadas por la vida, ¿para qué molestarnos con lo que otros sufren? ¿Para qué saber de los genocidios, las guerras, los abusos? ¿Para qué pensar en sus niños, sus mujeres, sus locos, sus excluidos?


El arte nos abre los ojos, después de un tiempo puede incluso provocar que nos crezcan ojos en las manos, en la espalda en la planta de los pies. Corremos el peligro de andar por ahí con la piel llena de miles ojos, a flor de piel las heridas nuestras y la de los otros. Entonces, ¿para qué el arte? ¿Para que escribir, registrar y hablar de los grandes bolsones de dolor sobre los cuales se ha edificado nuestra sociedad?

La sociedad engendró el sistema, el sistema parío la ciudad. La ciudad, del modo que la conocemos, como esa máquina colonizadora y hegemonizante de moler gente, solo puede ser gracias a la existencia de “su colonia”, sus cárceles, sus manicomios sus favelas, sus ríos muertos de tan sucios, sus pobres, sus putas, sus locos. Gracias a sus vertederos, el sistema se mantiene vivo y saludable. En estos se lavan todos sus pecados, se esconden todas sus miserias se separa la paja del trigo. Mientras sus habitantes hacen la vista gorda, mirar con el rabo del ojo y después prescinden de los propios ojos andando ciegos. Esa cegara es la hija saludable del sistema que nos ha tomado. El antídoto que el arte nos da puede, tal vez, servirnos para devolvernos el don de mirar.

Quem são os loucos?  por  Maria Eduarda Cândido 

O que é loucura? No dicionário, é: “distúrbio ou alteração mental, caracterizado pelo afastamento do indivíduo de seus métodos habituais de pensar, sentir e agir”.

Percebe que a definição se refere ao indivíduo? 

Eu nunca entendi, então, por que a tal loucura se encaixa em moldes sociais. Afinal, se somos indivíduos distintos, temos métodos de vivência distintos. 

Sendo assim, o que define de fato a loucura? É comum chamarmos pessoas com doenças mentais de loucas, ou qualquer pessoa que vá contra algo que nós acreditamos. 

Mas isso é realmente ser “louco”? Ter uma fé diferente, uma postura diferente, gostos, escolhas, sexualidade, cores, raças, ascendência… E se sim, o que é “normal”?

De onde vem esse normal? 

Quem dita o que é correto ou não? Quem deu o poder para essa pessoa decidir tudo isso? E pior: por que aceitamos? Quem nos deu a autoridade de aceitar essas determinações sem questiona-las? 

E por que EU não questiono? Por qual razão é tão difícil me levantar e defender fulana, quando ela é tratada como louca? 

E pior: estou sendo louca em questionar a existência da loucura? 

Acho que, na verdade, a loucura não passa de preconceitos enraizados tão profundamente, que geram uma estranhamento quando nos deparamos com eles sendo expostos por terceiros.

E o preconceito, nada mais é, do que o medo infundado do que não se conhece, fomentado pela necessidade infundada de se meter na vida que os outros levam, já que a nossa vida se torna desinteressante e difícil demais para lidarmos. 

Então, acho que posso dizer que a loucura nada mais é do que uma tentativa de fugir da nossa própria realidade, nos dedicando a realidade do outro. 

Não é engraçado? Dizemos que os loucos estão vivendo em outra realidade quando, na verdade, somos nós que estamos tentando fazer isso. 

No final, nós é que somos os loucos da história. 


A humanidade e sua crueldade cega.  por  Aline Lopes

“Colônia é Aqui” é uma dramaturgia que mergulha nas profundezas sombrias da história brasileira, resgatando um capítulo muitas vezes negligenciado. Essa dramaturgia embasado na obra “Holocausto Brasileiro” da renomada jornalista Daniela Arbex, lança luz sobre os horrores vividos no maior manicômio do Brasil, situado em Barbacena, Minas Gerais.

O início com a chegada do “trem de doido” a Colônia, é particularmente comovente, evocando uma sensação de desolação e desespero que permeia durante toda a leitura. Ruah nos confronta com a crueldade do passado, ao mesmo tempo em que nos desafia a refletir sobre as injustiças presentes em nossa sociedade atual.

A leitura nos transporta para o Hospício Colônia, conhecido como depósito de restos humanos, onde os desafortunados eram despejados como lixo, vítimas de uma sociedade que os rotulava como loucos e impróprios. Por meio de uma narrativa visceral, somos confrontados com a crueldade e desumanidade enfrentadas por aqueles que ali foram encarcerados, desde pacientes com diagnósticos banais até mulheres, homens e crianças marginalizados por sua cor, gênero ou orientação sexual.

Os personagens, representados por Loucuras e Corpos Nus, ecoam os gritos silenciados daqueles que foram privados de sua humanidade. Suas vozes se entrelaçam em um coro de tragédia e resistência, revelando histórias de amor, perda, luta e sobrevivência em meio ao abandono e à opressão.

“Colônia é Aqui” de Ruah não é apenas uma dramaturgia é um manifesto contra a injustiça e a indiferença. É um lembrete de que, ao revisitar o passado, podemos aprender com ele e evitar repetir os mesmos erros no presente e no futuro. Esta dramaturgia, impulsionada pela coragem e pela resiliência, nos convida a confrontar nossos demônios coletivos e a nunca mais permitir que o holocausto brasileiro se repita.

Referência: - Colônia é Aqui de Ruah - Elas Tramam.

- Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex

Silêncio e Sombras   por  Aline Lopes

Nas paredes nuas do passado, sombras dançam,

Ecos distantes de uma dor que nunca descansa.

Lágrimas antigas, marcadas pela solidão,

Almas perdidas em um mar de escuridão.


O silêncio gritante envolve cada canto,

Testemunha muda do abandono e do pranto.

Homens e mulheres, esquecidos pelo tempo,

Presos em um destino cruel, sem alento.


No desespero da ausência, a esperança se dilui,

Cada suspiro, um lamento, uma prece que flui.

E ainda assim, mesmo no vazio mais profundo,

A verdade crua persiste, como um eco no mundo.


Não há palavras para descrever a dor sem medida,

A injustiça cravada na alma, ferida após ferida.

E assim, o tempo segue, mas a memória perdura,

Um testemunho silente de uma história obscura.


Que estas palavras sejam um tributo, uma ode,

Aos que foram esquecidos, à sua saga tão rude.

Que seus ecos ressoem, que não sejam em vão,

Na eterna busca por redenção, na luta pelo perdão.


Para onde vai o trem de louco?  por  Laís Scarpe

Em Colônia é aqui, Ruah baseia sua dramaturgia no Hospital Psiquiátrico Colônia de Barbacena (MG), manicômio fundado em 1903, onde 60 mil pessoas morreram em mais de 60 anos de funcionamento.

O Hospital Colônia virou símbolo de segregação social e higienismo. Ele recebeu através do “trem de louco” - nome dado ao vagão que transportava as pessoas para o hospital - todo tipo de gente: pessoas com transtornos mentais, prostitutas, órfãos, LGBT’s, negros, pessoas em situação de rua e até mesmo meninas adolescentes grávidas de estupro cometido por algum senhor do dinheiro disposto a sumir com o “problema”, vide a Empregadinha.

Ruah enfatiza que os pretextos para internação eram esdrúxulos e políticos, alternando as falas das personagens “Loucura” dizendo o que são, aludindo aos motivos das internações no Hospital Colônia: mãe solo, prostituta, alcoólatra, ex-escravos, homossexuais e, inclusive, a amante de um político conservador e a esposa desse político. No “trem de louco" embarcava quem fosse problema para figuras influentes na sociedade da época ou quem fosse considerado um “ninguém".

Ainda na cena 1, Ruah explicita como poderiam ser considerados loucos um conhecido, um parente - até mesmo o próprio expectador. Qualquer cidadão, filho da pátria mãe gentil.

No manicômio de Barbacena, os internos viviam em ambientes insalubres, desprovidos de higiene básica, recebiam choques elétricos constantes e eram obrigados a tomar pílulas que, ora faziam dormir os hiperativos, ora energizavam os tidos como quietos demais.

Ao mesmo passo, Ruah traz um recorte contemporâneo dos manicômios, quando ilustra o caso de Laurinha. Uma criança alegre e brincalhona, cheia de vida, como toda criança deveria ser, mas que foi dopada com medicamentos com o pretexto de ser agitada demais. Nessa cena, Ruah coloca, acertadamente, a temática da medicalização da vida pela indústria farmacêutica e o biopoder médico.

Entre uma cena e outra, a música clássica proposta por Ruah propicia uma atmosfera mais pesada à cena — como no filme “Réquiem para um sonho” — fazendo o açougue humano e o cemitério de esperanças mortas ficarem mais impactantes para a experiência sensorial do público. Concomitantemente, Ruah escancara a coisificação humana que ocorria em Barbacena, onde os internos eram usados como mão de obra escrava e seus corpos mortos vendidos para universidades brasileiras ilegalmente.

A dramaturgia encerra fazendo um comparativo com o campo de concentração de Auschwitz da Segunda Guerra Mundial, visto que esse terror ocorrido na cidade-manicômio ficou conhecido como o Holocausto Brasileiro. A dramaturgia de Ruah faz lembrar que o manicômio ainda existe na sociedade, seja na maneira como tratamos as pessoas consideradas subcidadãs, seja quando dopamos os corpos que não são produtivos para o sistema.

Conhecendo a mulher   por  Dandara Dias de Oliveira

Este texto conta a história de uma de muitas mulheres na sociedade brasileira.

Maria era uma mulher, negra, favelada, mãe solo, e o pior de todas as características impostas, “barraqueira”, que vivia seus dias sobrevivendo nas quebradas que a vida lhe dispunha.

Como mulher, era vista como a louca, de temperamento forte, que mudava seu discurso de acordo com o que lhe agradava. Mas ninguém realmente conhecia Maria. Não sabia das lutas diárias travadas por ela. Não conhecia as dores sentidas por ela, não dividia suas tarefas pesadas e rotineiras.

Como mulher negra, sua cor lhe classificava como uma ninguém, sem voz nem vez na comunidade. Desmerecedora de direitos, e principalmente sentia no dia a dia as dores sofridas na pele. Mas ninguém realmente a conhecia. Suas lutas não eram vistas pela sociedade.

Como mulher, negra, favelada, seus dias eram de correria, tendo que sair de sua residência de madrugada e retornar altas horas da noite, para o sustento de sua casa, e sem falar em passar todo o dia pensando no perigo de sua vizinhança. Mas ninguém conhecia as preocupações que ela sentia, dos perigos que ela corria..

Como mulher, negra, favelada, mãe solo, trabalhava intensamente para por na mesa a comida dos seus filhos, que passavam o dia todo sozinhos, mas isto era necessário para sua sobrevivência, julgada pela vizinhança e acusada de abandonar suas crianças.

Como mulher, negra, favelada, mãe solo, “barraqueira”, que mesmo cansada enfrentava todos aqueles que a maltratavam, que ameaçava retirar os seus filhos. Mal sabiam a difícil luta que ela travava todo dia.

E por falar em “barraqueira”, este é um dos inúmeros adjetivos mal(ditos) lançados a mulher. Esta não pode ficar cansada, exausta, inquieta, que a acusam de histérica, estressada, ou de TPM. Mas ninguém realmente conhece a mulher.