Fluoretação da água:
argumentos contrários no século XXI
argumentos contrários no século XXI
Paulo Capel Narvai
Marco A. Manfredini
“Não grite. Apenas melhore seus argumentos”
Bispo Desmond Tutu (1931-2021), Prêmio Nobel da Paz em 1984
“O problema não é que as pessoas tenham opiniões, isso é ótimo. O drama é que as pessoas tenham opiniões sem saber do que falam!”
José Saramago (1922-2010), Prêmio Nobel de Literatura em 1998
Baixo Guandu, 70 anos
Em outubro de 2023, com a presença do governador do Estado, de representantes do Ministério da Saúde, de várias autoridades públicas e de pesquisadores científicos, foi comemorado no Espírito Santo, e em todo o Brasil, o aniversário de 70 anos do início da fluoretação das águas de abastecimento público no Brasil, ocorrido em 31 de outubro de 1953, em Baixo Guandu, no Vale do Rio Doce. Uma justa comemoração, aliás, pois essa tecnologia de saúde pública, que consiste em ajustar os teores naturalmente existentes de fluoretos nas águas, até que se situem em torno do valor aceito como ótimo para prevenir cárie dentária, tem feito muito pela saúde bucal de brasileiros que a ela têm acesso. O êxito no emprego da fluoretação no Brasil é amplamente reconhecido, seja por relatos de experiências de especialistas dessa área do SUS, seja pela grande quantidade de artigos científicos, livros e capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior. A iniciativa de Baixo Guandu se deu apenas sete anos após a de Grand Rapids, nos Estados Unidos, a pioneira em nível mundial a fluoretar suas águas. Profissionais brasileiros de odontologia e saúde pública daquele período foram, portanto, ativos, atentos e competentes para se manter em sintonia com o que havia de mais avançado no mundo no âmbito da ciência e das práticas de saúde pública e realizar ações relevantes na área de saúde bucal no Brasil.
A fluoretação da água nascida no Espírito Santo logo ganhou a companhia de Marília, SP (1956), Taquara, RS (1957) e de Curitiba, PR (1958) e, consolidando-se nos anos 1960, foi instituída como política pública em 1974, por meio da Lei nº 6.050, de 24 de maio. Mas as diferentes condições e características do saneamento em nosso país têm produzido efeitos negativos também sobre a aplicação da fluoretação no Brasil, que registra importantes desigualdades regionais, conforme mostra a Figura 1.
Não obstante as desigualdades, o Brasil é um dos líderes mundiais na cobertura da fluoretação da água, ficando em segundo lugar na classificação global liderada pelos Estados Unidos, registrando, segundo o Ministério da Saúde, mais de 100 milhões de pessoas beneficiadas em todo o país. Por essa razão, a fluoretação das águas é parte integrante das diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) em implementação no país, instituída pela Lei nº 14.572, sancionada em 8 de maio de 2023 pelo presidente da República. A medida é uma típica intervenção de saúde pública, adotada para prevenção da cárie dentária, pois apresenta um poder preventivo de cerca de 60%, após um período de 10 anos.
Figura 1. Unidades Federativas segundo a porcentagem de cobertura da fluoretação da água em municípios com mais de 50 mil habitantes, na segunda década do século XXI.
Fonte: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/181
Baixo Guandu, não!
O enfrentamento das desigualdades na fluoretação da água não parece estar, porém, na agenda política de muitas lideranças odontológicas e de saúde pública. As desigualdades são reais e o descumprimento da lei faz com que milhões de pessoas sejam prejudicadas. As populações das regiões norte e nordeste são as mais atingidas. Por isso, foi com surpresa e um certo espanto que tomamos conhecimento, quando se comemoravam em outubro de 2023 os 70 anos dessa política pública, uma das mais longevas da saúde pública brasileira, que atravessou enormes dificuldades nessas sete décadas, mas se manteve e se expandiu, de uma manifestação contra a fluoretação feita pelo coordenador estadual de saúde bucal do Rio Grande do Norte (RN). Não se tratou, nesse caso, das habituais perorações antiflúor costumeiras na internet, em sites e redes sociais monetizadas, em busca apenas de audiência e falsas polêmicas. A postagem, feita no grupo “Dentistas Pela Democracia”, abordou vários aspectos da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB)/Brasil Sorridente e se inicia com o autor se apresentando: “Olá, sou (...) servidor público da secretaria Estadual da Saúde do RN.” Tendo em vista se tratar de um coordenador estadual de Saúde Bucal, a postagem é relevante e contém afirmações que, se não forem questionadas, podem ganhar força na opinião pública e, inclusive, no plano institucional. Como foi uma postagem extensa, reproduzimos a seguir apenas o trecho relativo à fluoretação:
“(...) Deixo claro que respeito a ciência abomino o negacionismo e acompanho desde os anos 1980 as conjunturas políticas do nosso país e os caminhos percorridos pela odontologia. (...) Agora vou comentar a proposta de fluoretação das águas de abastecimento, que pode ser bom para São Paulo, pro sudeste ou pro Sul. Resgatar pauta dos anos cinquenta ou sessenta é nossa única alternativa na prevenção da cárie? Estão comemorando o que? É a panacéia da Saúde bucal? Não há outra alternativa? O que é bom para o sul é bom para Nordeste e para a Amazônia? No semiárido vamos fluoretar água dos carros pipa? Da transposição do São Francisco? Os rios secaram. Aonde bebo? Aonde o boi bebe? Não avançamos nada? A fluoretação é também a panacéia mundial? Estou atento, querendo contribuir, mas aqui estamos cansados, dessas propostas que sabemos ser inexequíveis. Pronto. Tem mais coisas mas por enquanto é isso. PS: Se alguém for defender a fluoretação não comece falando da experiência do baixo Guandu.”
Baixo Guandu, sim
Começamos justamente não atendendo ao pedido contido na frase final da postagem, pois começamos este artigo falando da experiência de Baixo Guandu. E o fazemos por reconhecermos naquele fato de interesse sanitário e na referida comemoração, um fato extraordinário, de grande importância e, provavelmente, o mais significativo da odontologia em saúde pública no Brasil. A experiência de Baixo Guandu não foi, ao contrário do que se pode pensar, um caminhar em linha reta, sem problemas e dificuldades. Bem ao contrário. Não foi nada fácil manter a fluoretação em Baixo Guandu nos últimos 70 anos. Houve, como ocorreu em dezenas de municípios, pelo menos uma interrupção por um longo período, nos anos 1980 e 1990, da fluoretação em Baixo Guandu, conforme a notícia do Jornal do Sinodonto, edição de outubro de 1995, que reproduzimos na Figura 2. Mas suspeita-se que, durante a ditadura civil-militar (1964-1988), interrupções também teriam ocorrido. Foi a ação política e institucional de profissionais de odontologia e de saúde pública do Espírito Santo, que enfrentaram a situação de interrupção, denunciando-a e agindo junto às autoridades capixabas, que possibilitou a retomada dessa medida na cidade. Relatórios de pesquisas de epidemiologia da cárie, realizadas pelas Universidades Federal do Espírito Santo (UFES) e de São Paulo (USP), foram decisivos para mostrar os efeitos deletérios da interrupção da fluoretação e, em seguida, os benefícios que vieram com sua retomada, conforme se pode constatar na Figura 3. Já no começo do século XXI, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (UNESP), do campus de Araçatuba, avaliaram a situação epidemiológica da cárie na população de Baixo Guandu, em 2005. Constataram que enquanto no Brasil, na idade-índice de 12 anos, apenas 23,6% das crianças não apresentavam a doença, em Baixo Guandu essa porcentagem atingia 46,8%. A esse respeito, cabe registrar a importância, decisiva, de ações de vigilância sanitária e de vigilância epidemiológica, pois detectam efeitos da ausência da medida quando ela deve ser executada ou quando a execução não vem sendo feita a contento. É ingenuidade, portanto, supor que no Sul e no Sudeste as coisas acontecem apenas porque, afinal, é o Sul e o Sudeste. A geografia, despolitizada, não explica coisa alguma.
Figura 2. Reprodução de notícia publicada no Jornal do Sinodonto/Espírito Santo, em 1995.
Fonte: Jornal do Sinodonto, out 1995.
Figura 3. Índice CPOD aos 12 anos idade em diferentes anos em Baixo Guandu, ES, no período de 1953 a 2006.
Fontes: Freire & Freire 1961, Chaves 1960, Dantas 1998, FSP-USP/Sinodonto-ES 1999; 2003, Casotti 2006.
Não apenas Baixo Guandu
O argumento que se refere à fluoretação como uma tecnologia que pode ser boa para São Paulo, o Sudeste ou o Sul, mas não seria boa para o Nordeste e a Amazônia parece, em princípio, cabível. Afinal, são contextos macrorregionais com muitas diferenças. Mas, no caso da fluoretação, qual argumento sustenta o questionamento de que o bom para o Sul não seria bom para o Nordeste? Não foi apresentado qualquer argumento. Pode-se afirmar, porém, com base em conhecimentos científicos, que se trata do oposto. Nesse caso, a tecnologia da fluoretação, por suas características (de ajustar algo que naturalmente ocorre nas águas), pode, e em nosso entender deve, ser tão boa para o Nordeste e o Norte, quanto vem sendo boa para o Sul e o Sudeste, com suas limitações e muitas dificuldades operacionais. Aliás, vem sendo boa para o Nordeste, a julgar pelos níveis de prevalência de cárie em capitais nordestinas que fluoretam as águas (como Aracaju, por exemplo) em comparação com as que não o fazem (como Natal e João Pessoa, por exemplo), conforme mostra a Figura 4. Decerto que nessas cidades, muitas outras variáveis precisam ser consideradas para compreender os diferentes níveis do índice CPOD. Não obstante, uma dessas variáveis é a fluoretação das águas, com a força preventiva descrita na literatura científica. A geografia, despolitizada, reiteramos, não explica coisa alguma.
Figura 4. Evolução do índice CPOD aos 12 anos de idade, no período 1996-2010 em João Pessoa, Aracaju e Natal.
Fonte: elaborado pelos autores a partir de dados do Ministério da Saúde, divulgados em 1997, 2004 e 2010.
Outro argumento que não encontra sustentação na ciência contemporânea é o que se refere à fluoretação como uma tecnologia que decorreria de uma política de “resgatar pauta dos anos cinquenta ou sessenta” como “nossa única alternativa na prevenção da cárie”. Em primeiro lugar, ninguém argumenta que o emprego da fluoretação seria a “única alternativa na prevenção da cárie”. Ao contrário, o que é fartamente reiterado na literatura é que a fluoretação não é um equivalente a uma vacina contra a cárie, pois a cariologia e a epidemiologia seguem reiterando que essa doença tem causas multifatoriais e que não há um fator de risco específico a ser enfrentado. Por isso, essa afirmação não contribui para aprofundar o debate sobre fluoretação.
Quanto à fluoretação ser uma “pauta dos anos cinquenta ou sessenta” trata-se, certamente, de desinformação, pois está em curso, nos anos 2020, um fecundo debate, no campo científico e nas práticas sanitárias, no Brasil e no mundo, sobre o papel da tecnologia da fluoretação das águas na redução de desigualdades intraurbanas, interurbanas e inter-regionais, como o que se trava atualmente no Canadá, envolvendo as cidades de Edmonton (fluoretada) e Calgary (não fluoretada). No site do CECOL/USP, o Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal, estão disponíveis informações que indicam que a fluoretação é uma pauta contemporânea, como revela o anúncio feito em 6 de setembro de 2023 pela cidade de Nottingham, na Inglaterra, de que “dará início à fluoretação das águas de abastecimento público” e a notícia, divulgada pelo The Guardian, de que o Reino Unido quer expandir a cobertura da fluoretação da água para prevenir cárie dentária e diminuir desigualdades na distribuição da doença.
Nos Estados Unidos da América (EUA), o documento Healthy People 2030, fixa como um objetivo nacional de saúde alcançar a meta de 77% da população daquele país com acesso à água fluoretada em 2030. Essa porcentagem era de 65% em 2000 e 73% em 2018. Em notícia publicada no dia 12 de junho de 2023, o Centro para Prevenção e Controle de Doenças (CDC), vinculado ao governo dos EUA, reiterou que a fluoretação da água de abastecimento público é a maneira mais eficiente e econômica de fornecer flúor a todos em uma comunidade, independentemente de idade, renda ou educação, pois além da comprovada eficácia dessa tecnologia, sua aplicação leva a uma economia média de US$ 32 por pessoa por ano, ao evitar gastos com assistência odontológica. Embora o argumento do “alto custo” da fluoretação da água não tenha sido utilizado no caso analisado neste artigo, cabe registrar o slogan adotado pelo Estado do Mississippi, nos EUA, de que o custo para manter uma pessoa beneficiada pela fluoretação ao longo de toda a sua vida é menor do que o de uma restauração dentária.
No Brasil, país autossuficiente na produção dos insumos necessários à fluoretação das águas, o custo da fluoretação é compatível com os custos operacionais do tratamento da água e, para os usuários, praticamente não alteram os valores das tarifas de água.
Uma revisão sobre custos e benefícios da fluoretação, que levou em conta 14 pesquisas cujos resultados foram publicados entre 2001 e 2017, realizadas em sete países (EUA, Brasil, Nova Zelândia, Canadá, Chile e África do Sul), concluiu que o custo per capita anual da fluoretação variou de US$ 212,00 em comunidades com 50 indivíduos, a US$ 0,03 em locais com mais de 10 milhões de habitantes. Os gastos evitados com cuidados odontológicos variaram de US$ 0,00, em comunidades de pequeno porte demográfico, a US$ 159,00 em localidades de grande porte populacional. As evidências científicas indicam que, mesmo na perspectiva de múltipla exposição ao flúor, a fluoretação continua sendo uma importante tecnologia de saúde pública, uma vez que, na maioria dos cenários, o seu custo foi menor que os custos com tratamentos odontológicos.
Estas são apenas algumas informações que se contrapõem à noção, equivocada, de que a fluoretação seria algo anacrônico. Ao contrário, ela é atualmente, central no debate sobre desigualdades e iniquidades em saúde bucal e sobre eficácia alocativa de recursos públicos em sistemas de saúde que consideram o conceito ampliado de saúde.
Como o Brasil é um dos países que, hoje, graças ao trabalho incansável de muitos profissionais de odontologia e de saúde pública, está na vanguarda mundial no emprego da tecnologia de fluoretação das águas, há sim muito a comemorar. Não se trata apenas de Baixo Guandu. Este é um assunto de interesse mundial. É muito bom termos o que comemorar.
“Não avançamos nada?”
Na referida postagem, o autor pergunta “No semiárido vamos fluoretar água dos carros pipa? Da transposição do São Francisco? Os rios secaram. Aonde bebo? Aonde o boi bebe? Não avançamos nada?”.
Ninguém propõe fluoretar microssistemas, ou soluções alternativas de abastecimento de água. Nessas situações, como também nas águas provenientes de poços artesianos, em condomínios fechados, o cuidado requerido dos órgãos de vigilância sanitária é que, antes de distribuir qualquer água para consumo humano, os teores de fluoretos naturalmente existentes nas águas sejam aferidos, para assegurar à população água segura para consumo humano.
Sem desconsiderar a importância do acesso à água fluoretada por todas as pessoas beneficiadas pelos sistemas de abastecimento público de água (SAA), cabe ponderar que, no caso específico do RN, apenas a fluoretação dos SAA das dez cidades com maior porte demográfico no estado (Natal, Mossoró, Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Macaíba, Ceará-Mirim, Extremoz, Caicó, Assú e São José de Mipibu) corresponderia a beneficiar 1.772.263 habitantes. Ainda que as coberturas dos SAA não atinjam 100% nessas cidades, a cobertura potencial do benefício preventivo atingiria 53,7%, mais da metade de toda a população potiguar. Hoje, nenhuma conta com esse benefício. Cabe registrar que o RN, com 85,9%, é o estado da região Nordeste com a maior porcentagem de população servida por rede de abastecimento de água.
Nesse contexto, chama a atenção o argumento contrário à fluoretação, que se assenta na situação sanitária de 14,1% da população. Argumentação similar foi usada durante o governo Fernando Collor (1990-92) quando se pretendeu implantar no Brasil a fluoretação do sal de cozinha, em detrimento da estratégia que, mais de três décadas antes, fora iniciada em Baixo Guandu. Dizia-se algo como “já que as pessoas não têm acesso à água, então o melhor é fluoretar o sal, pois o sal é consumido por todos”. Além de não se sustentar no plano ético, o argumento chega a ser perverso, pois aceita, tacitamente, que quem não tem acesso à água, pode seguir... sem acesso à água. Era, como se escreveu à época, a prática de “quebrar o termômetro e não enfrentar a febre”.
Na Paraíba, a fluoretação das águas das dez cidades de maior porte demográfico (João Pessoa, Campina Grande, Santa Rita, Bayeux, Sousa, Cabedelo, Cajazeiras, Guarabira e Sapé) corresponderia a beneficiar 44,3% da população. Hoje, nenhuma conta com esse benefício.
O que significa, nesse contexto, a indagação “Não avançamos nada?”?
Na 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 2023, foi aprovada proposta favorável à medida (“Ampliar o acesso à atenção integral da saúde bucal e investir em ações como a fluoretação das águas...)”, com base na decisão da Conferência Nacional, Livre e Democrática de Saúde Bucal de indicar a “ampliação do acesso à água fluoretada” no Brasil.
Proposições em defesa da fluoretação da água têm sido aprovadas em todas as conferências nacionais de saúde, desde a 8ª CNS, realizada em março de 1986. Naquele ano, em outubro, e como parte do processo da 8ªCNS, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Saúde Bucal (CNSB). No relatório final da 1ªCNSB os delegados, dentre os quais representantes da sociedade civil, incluindo trabalhadores, lideranças comunitárias e de movimentos sociais, aprovaram proposta denunciando o “descumprimento da legislação vigente no que se refere à fluoretação das águas”.
Na 2ª CNSB, realizada em 1993, os delegados afirmaram ser “inadmissível o comportamento adotado pelo poder público quanto à fluoretação das águas de abastecimento público, condenando 70% da população brasileira a sobreviverem sem esse benefício” e aprovaram proposta que pedia “o cumprimento da Lei 6.050/74 que obriga a fluoretação das águas de abastecimento pelo poder público” pedindo que seu controle sanitário fosse “exigido como direito básico de cidadania em todos os municípios” e que a “Coordenação Nacional de Saúde Bucal do Ministério da Saúde deverá prestar contas anualmente sobre a situação da fluoretação no país, a partir de dados coletados através de coordenações odontológicas de estados e municípios, ou órgão similar”. Além disso, indicaram que “os Conselhos de Saúde deem especial atenção ao cumprimento da lei de fluoretação das águas” e que deveriam valer-se “dos dados fornecidos pelo Sistema de Vigilância Sanitária, para exercer rigorosa fiscalização”.
Propostas de igual teor foram aprovadas também na 3ªCNSB, realizada em 2004, em que se pediu “o cumprimento da Lei n.º 6.050/1974 (...) nas esferas federal, estadual e municipal realizando campanhas de esclarecimentos à população sobre a importância do consumo de água fluoretada, tanto da rede pública como da comercializada (...)”, bem como “melhorar a qualidade do tratamento da água garantindo a sua fluoretação e ampliar a rede de distribuição visando à universalização do abastecimento em todos os municípios dentro das normas legais vigentes”, considerando-se necessário “garantir a qualidade da água e a manutenção do nível ótimo de flúor, não somente nas áreas urbanas, mas também nas comunidades rurais que não são assistidas pelas estações de tratamento de água, com emissão de relatórios regulares, por parte dos gestores, aos órgãos competentes, inclusive aos conselhos de saúde”.
A questão ética posta pela postagem contrária à fluoretação diz respeito, portanto, ao fato de que o descumprimento da lei, e de tudo o que vem sendo recomendado há várias décadas por conferências e conselhos de saúde, está sendo proposto, supostamente, em nome dos 14,1% que não dispõem de água proveniente de SAA. Há, portanto, a aceitação, tácita, de que 85,9% da população pode deixar de se beneficiar de uma medida preventiva reconhecidamente eficaz e eficiente. O que o leitor pensa disso, sob o imperativo ético da justiça?
Panaceia
Dentre os argumentos frequentemente brandidos pelos que se opõem ao controle dos teores de fluoretos em águas utilizadas para consumo humano, está a suposição de que “flúor na água é uma medicação em massa”. Trata-se de um erro crasso que, cometido em meados do século XX segue na agenda, esta sim uma pauta anacrônica, de quem pensa defender “a liberdade”, combatendo “quem quer colocar veneno na água”. Também frequentemente esse erro é acompanhado de uma menção, que se pretende erudita, à mitologia grega e a Panaceia. Há nisso, portanto, um duplo erro.
O primeiro é a ideia despropositada de “medicação em massa”, pois fluoretos ocorrem naturalmente em águas, com diferentes teores dependendo de cada localidade, e nada têm de medicamentos. Praticamente não há águas isentas de flúor, ou fluoretos. O que a tecnologia da fluoretação faz é, partindo desses teores naturais, proceder ao ajuste dos níveis de fluoretos nas águas, para que sejam seguras ao consumo humano e contenham fluoretos em quantidades tais que produzam o efeito preventivo contra a cárie dentária. De modo geral, esse ajuste deixa as águas com as quantidades de fluoretos similares às contidas nas águas dos mares e oceanos. Nada mais natural; nada mais oposto à ideia de medicamento ou remédio. A tese da “medicação em massa” é um conceito que não resiste ao exame de um bom estudante do ensino médio. Mas é utilizada por espertalhões em busca de audiência, para atemorizar incautos e criar pânico sanitário em pessoas de boa-fé, mas ignorantes.
O segundo erro, derivado do primeiro, diz respeito a Panaceia.
Asclépio é na mitologia grega um semideus, filho de Apolo com a mortal Corônis. Sua habilidade em curar, utilizar ervas e realizar procedimentos cirúrgicos projetou sua fama, passando-se a crer que seria capaz até mesmo de trazer os mortos de volta à vida. Foi punido por Zeus que o matou, não se sabe bem por que motivo. Asclépio teve com Lampecia duas filhas e lhes ensinou o que sabia. Panaceia foi uma delas e, segundo a literatura sobre o tema, seu nome foi composto por duas partículas que são pan (todo) e akos (remédio), pois a essa filha de Asclépio, que desenvolveu grande habilidade com ervas, conhecendo-as profundamente, se atribuía a capacidade de curar todas as enfermidades. Do nome de Panaceia derivou o substantivo panaceia, com o significado de algo com propriedades para curar todos os males físicos e morais, uma espécie de “remédio universal”.
A associação de ideias entre fluoretação da água e panaceia significa uma de duas possibilidades: ou quem faz essa associação não sabe o que é fluoretação, ou não sabe sobre o mito de Panaceia. Mas pode ocorrer de a pessoa nada saber sobre ambas, como se vê em várias manifestações sobre o tema. Uma dessas manifestações, feita pela Fluoride Action Network, uma organização que se opõe à fluoretação, foi publicada na revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A entidade afirma (sic) que “o flúor é uma medicação; sua ação é tópica e não sistêmica; e sua adição seria responsável pela fluorose dentária, alterações nos ossos, cartilagens e cérebro”. Conforme argumen-tamos, fluoretos não são medicamentos e, como qualquer elemento químico, em concentrações não toleradas pelo organismo humano, pode produzir efeito tóxico. No caso dos fluoretos, em concentrações muitas vezes superiores ao teor ótimo de 0,7 mgF/L de água. Mas, no Brasil, o valor máximo permitido (VMP) de fluoretos em águas para consumo humano, fixado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é 1,5 mgF/L. Valores acima desse VMP não são preconizados, sendo esta, justamente, uma das razões por que essa tecnologia de saúde pública tem seu foco dirigido ao controle e regulação desses teores – para que jamais excedam o VMP. Sobre a ação dos fluoretos sobre o esmalte dentário ser “tópica e não sistêmica” isso diz respeito ao mecanismo de ação e não ao modo de uso. Trata-se, portanto, de argumento relevante em termos bioquímicos, mas não associado à fluoretação da água, como tecnologia de saúde pública. Quanto à fluorose dentária, há consenso na literatura científica de que, nos níveis em que têm se expressado contemporaneamente, inclusive no contexto brasileiro, não representam problema de saúde pública.
Voltando às filhas de Asclépio, quem associa a fluoretação com Panaceia está focando na filha errada. A associação a ser feita não é com Panaceia, mas com Higeia, a irmã dela, pois foi Higeia, cujo nome daria origem ao termo higiene, que deixando de lado as ervas da sua irmã, dedicou-se a aprender e desenvolver o poder da prevenção das enfermidades, às coisas que se deveria fazer para evitar doenças, ao invés de apenas perseguir a cura.
A fluoretação da água visa à obtenção de um efeito preventivo. Quem cuida desses assuntos de prevenção, na mitologia grega, é Higeia, não Panaceia.
Cansaço
A postagem do coordenador estadual de saúde bucal do Rio Grande do Norte é concluída com um enigmático “Estou atento, querendo contribuir, mas aqui estamos cansados, dessas propostas que sabemos ser inexequíveis. Pronto. Tem mais coisas, mas por enquanto é isso”.
Contribuições são, decerto, sempre muito bem-vindas. Uma contribuição importante poderia ser uma retratação dos erros contidos nas afirmações sobre fluoretação. Ou, se for o caso, apresentando ao público mais argumentos – e melhores, sobretudo se relativos às restrições à fluoretação. Um desses argumentos pode se referir ao que foi mencionado como “propostas que sabemos ser inexequíveis”.
Por que a fluoretação seria inexequível no Rio Grande do Norte? Afinal, quais seriam as restrições operacionais à medida? O que a torna “inexequível” no estado?
Como a postagem foi encerrada com um categórico “Pronto. Tem mais coisas...”, é preciso admitir que nessas coisas que faltam podem estar argumentos que nos façam mudar completamente o que pensamos sobre o tema. Mas, para isso, precisamos conhecer os argumentos, as coisas que faltam. Compreendê-los.
Até lá, porém, seguiremos defendendo o que a lei determina, o que a ética impõe aos que tomam decisões em nome do Estado brasileiro, em qualquer âmbito, e ao que nossos conhecimentos, inclusive os derivados da experiência de Baixo Guandu, nos recomendam fazer, pois entendemos que se colocar contrário ou omisso frente à fluoretação constitui uma afronta às necessidades do povo brasileiro, e em especial das populações mais vulneráveis, porque interromper a fluoretação, ou não realizá-la onde deve ser feita, constitui ato juridicamente ilegal, cientificamente insustentável e socialmente injusto, conforme procuramos demonstrar neste artigo.