Fausto II, de Goethe (resenha)

O segundo Fausto, assim como Os anos de viagem de Wilhelm Meister, é uma obra escrita por Goethe na velhice, em que se sente livre para dar asas à criatividade, sem se ater aos padrões formais ou estéticos da época, ou mesmo de qualquer época. Devido à complexidade do texto, longa duração, troca-troca de cenários e profusão de personagens (na encenação de Gründgens de 1958 são 92, afora o coro com 21 integrantes), a peça na época de Goethe foi considerada impossível de ser montada, e somente em 1875, mais de quarenta anos após a morte do autor, foi encenado na íntegra pela primeira vez.


Embora Goethe fosse um autor de grande prestígio, condecorado por Napoleão, braço direito do duque de Weimar, amigo de Schiller, Schopenhauer e outras sumidades, cuja peça Götz von Berlichingen, publicada aos 24 anos, foi sucesso no mundo de língua alemã, e cujo romance Os sofrimentos do jovem Werther estourou em toda a Europa, quando mais velho também sofreu muitas críticas por combater a Revolução Francesa, não apoiar a causa da unificação alemã, juntar-se a uma mulher dezesseis anos mais jovem, de classe social inferior, e só legalizar a união dezoito anos depois, pela postura religiosa mais panteísta do que propriamente cristã. O centenário de seu nascimento, em 1849, passou praticamente despercebido, em contraste com o de Schiller dez anos depois, comemorado com grande pompa. Somente com a unificação do Reich alemão, em 1871, foi que Goethe se tornou uma espécie de poeta nacional, posição que manteria na República de Weimar, pós-Primeira Guerra Mundial. O nazismo não se apropriou de seu pensamento na mesma proporção em que se apropriou do pensamento do filósofo Nietzsche. Na Alemanha pós-nazista o prestígio de Goethe é tamanho que o instituto incumbido de difundir a cultura e o idioma alemães recebeu seu nome: o Instituto Goethe, onde estudei por tantos anos.


Vou tentar resumir a extensa história do Fausto II. É pura fantasia, quase um delírio, mistura de teoria econômica, mitologia grega, conflito bélico, alegoria, grandes obras de engenharia, mundo sobrenatural, desfile carnavalesco...


O primeiro ato abre com Fausto, que carrega a culpa da tragédia de Margarida, deitado num gramado florido de um local aprazível (anmutige Gegend). O espírito Ariel anuncia que, durante seu sono, será banhado pelo orvalho do Lete, o rio do esquecimento que fazia os recém-mortos esquecerem a vida pregressa, e assim perderá a memória das desgraças passadas e terá uma chance de começar sua busca do zero. Fausto acorda lépido e fagueiro, já querendo se alçar à existência suprema (höchsten Dasein).


Na cena seguinte, na sala do trono, o demônio Mefistófeles torna-se o novo bobo da corte do Imperador (supõe-se do Sacro Império Romano Germânico) e, após ouvir as queixas do chanceler, do comandante do exército, do tesoureiro e do mordomo da corte, todos reclamando da falta de dinheiro e outras mazelas, sugere uma solução que hoje é algo corriqueiro, mas na época só tinha sido testado na Revolução Francesa, com resultados inflacionários: emitir papel-moeda tendo por lastro os tesouros ainda inexplorados do império.


A terceira cena, a mais longa do primeiro ato, reconstitui uma espécie de baile de máscaras (Mummenschanz) do Carnaval florentino, onde um arauto vai anunciando os diversos personagens. Participam dessa mascarada o próprio Fausto fantasiado do deus da riqueza, Plutão; seu acompanhante, uma figura macilenta representando a Avareza, é Mefistófeles; e o Imperador está disfarçado do deus Pã, simbolizando a busca de prazer.


Na cena subsequente, os conselheiros do imperador elogiam o recém-lançado papel-moeda, que já começa a ser esbanjado, numa política monetária irresponsável. Depois, para satisfazer um desejo do imperador, Fausto é incumbido por Mefistófeles de descer ao Reich der Mütter, o Reino das Mães, seja lá o que for isso, para conjurar os espíritos dos arquétipos da beleza, os personagens da mitologia antiga Helena, mulher mais bela do mundo, e Páris, que ao raptá-la desencadeou a Guerra de Troia. Fausto se apaixona por Helena. Enquanto sua primeira paixão, Margarida, foi uma criação de Goethe, a trama envolvendo Helena já se encontrava na lenda original e na versão teatral inglesa de Christopher Marlowe. No final do ato, Helena e Páris são apresentados à corte numa espécie de ilusionismo, mas Fausto, ao ver que Páris vai raptar Helena novamente, num acesso de ciúmes destrói a ilusão.


No princípio do segundo ato, Mefistófeles trouxe Fausto de volta ao quarto gótico onde, no início da primeira parte, Fausto se lamentava: “Eis-me, pobre asno, entre os pedantes, / E sou tão sábio como dantes!” Mefistófeles veste o manto de Fausto, que jaz inconsciente. O antigo assistente de Fausto, Wagner, agora se tornou alquimista, e está tentando gerar um ser humano artificial. Embora a ciência proponha teorias para a origem da vida a partir de uma “sopa primordial”, jamais conseguiu criá-la em laboratório. Só na lenda e literatura consegue-se gerar vida: o golem do folclore judaico, o homúnculo da alquimia e o monstro criado pelo Dr. Frankenstein na obra de Mary Shelley. Mefistófeles testemunha o sucesso da experiência de Wagner, mas o homúnculo recém-criado só consegue subsistir dentro de um frasco. O homúnculo, Mefistófeles e Fausto partem em jornada ao mundo da mitologia antiga, onde Fausto sai em busca de Helena de Troia, Mefistófeles encontra as Greias ou Fórcidas, três irmãs que já nasceram anciãs e compartilham um mesmo dente e olho, e acaba se disfarçando como uma delas, e o homúnculo, na tentativa de se libertar do frasco e se tornar plenamente humano, acaba colidindo no mar com a carruagem de conchas da nereida Galateia, seu frasco se rompe e ele se dissolve nas águas.


O terceiro ato aborda o casamento de Fausto com Helena. O rei lacedemônio Menelau, tendo após a Guerra de Troia reavido a esposa Helena, envia-a para a capital Esparta a fim de preparar uma cerimônia de sacrifício. No palácio ela depara com Mefistófeles, disfarçado de Greia, que insinua que a própria Helena será a vítima desse sacrifício, convencendo-a a fugir para uma fortaleza inexpugnável na bucólica Arcádia, onde ela acaba se casando com Fausto e tendo um filho com ele, Euphorion. Ou seja, pela segunda vez Helena é “raptada”, desta feita através do ardil de Mefistófeles! Euphorion não para quieto e, ao dar uma de Ícaro e tentar voar cada vez mais alto, acaba se estatelando. Helena acompanha o filho até o Hades, o mundo dos mortos, deixando Fausto sozinho. Mefistófeles remove o disfarce e se revela.


No início do quarto ato, Fausto já não se encontra na Arcádia, tendo sido transportado para o alto de uma montanha na Alemanha. Observando as nuvens, reconhece numa delas o ideal da beleza, Helena, e em outra a beleza da alma de Margarida. Fausto, abrindo mão de seus sonhos de poder e amor, acalenta propósitos mais pragmáticos: seu objetivo agora é conquistar terra ao mar, via diques e canais. O Imperador do primeiro ato vem enfrentando uma tentativa de usurpação de seu trono (talvez pelo insucesso de sua nova política econômica), e Mefistófeles mais Fausto vão ajudá-lo a derrotar as tropas do usurpador. Fausto recebe uma faixa de terra na costa e torna-se um homem de ação, refletindo o lado prático de Goethe, que por um longo período assessorou o duque de Weimar na administração do seu ducado, incentivando-o inclusive a explorar minas.


O quinto ato começa com Fausto já idoso. Ele conseguiu aterrar uma boa faixa do mar mas está descontente com a cabana de um casal de velhos (Philemon e Baucis) que se ergue em meio à sua propriedade e obstrui a vista das terras conquistadas. Pede a Mefistófeles que os transfira para outro local, mas o casal resiste e na confusão perde a vida. Entram em cena quatro mulheres sinistras, personagens alegóricas: Carência, Necessidade, Culpa e Preocupação. Só esta última consegue atingir Fausto, cegando-o. Fausto enfim supera o egoísmo e quer conquistar novas terras ao mar para abrigar os destituídos, em uma espécie de “cidade modelo”. Fausto morre e Mefistófeles vem reivindicar sua alma, mas os anjos o passam para trás e levam a alma de Fausto consigo. A cena final descreve o mundo sobrenatural, celeste, com seus santos anacoretas, coro dos anjos, coro dos meninos abençoados, coro das penitentes, mulher samaritana, Maria Egipcíaca, Mater Gloriosa, e a própria Gretchen, Margarida, como uma das penitentes. Fausto (embora culpado pela desgraça de Margarida e do casal de velhos) enfim escapou às garras do demônio e teve sua alma salva. A cena foi belamente musicada pelo compositor Gustav Mahler na Parte Dois de sua monumental Sinfonia dos Mil.


Mas goste você ou não da trama (você pode achar meio sem pé nem cabeça!), uma obra literária não pode ser julgada somente por ela. Se literatura fosse apenas contar uma história, qualquer um poderia ser escritor, porque todo mundo sabe contar. Assim como na pintura existe algo mais que a cena representada (porque se pintura fosse apenas isto, a fotografia a teria substituído por completo), na literatura existe algo mais do que a trama: o estilo, a arte da escrita, a maneira de contar. Existem escritores que contam ótimas histórias mas com um estilo deficiente (Paulo Coelho) e escritores com um estilo sofisticadíssimo mas com uma trama que se arrasta e cansa (esta foi a minha impressão ao ler Proust).


A grandeza do Fausto de Goethe não está apenas na história contada. Assim como a Odisseia, Paraíso perdido e A divina comédia, trata-se de uma obra poética. Mas não é uma obra poética convencional, seguindo um esquema rímico e métrica fixos, como por exemplo Os Lusíadas, escritos em oitavas decassilábicas (estrofes de oito versos com dez sílabas cada) com esquema rímico AB AB AB CC – As armas e os Barões assinalados / Que da Ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados... – ou a Divina comédia, escrita em tercetos hendecassilábicos italianos (que correspondem ao decassílabo português) – Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura... – com esquema rímico ABA BCB. Fausto é uma espécie de “museu da poesia”, uma ostentação da genialidade, da exuberância poética de Goethe, da sua capacidade de brincar com as palavras, inventar palavras, criar rimas inusitadas, incomuns, adaptar ao alemão formas poéticas de outras culturas, como o hexâmetro dactílico da antiga poesia greco-romana. Diferentes estruturas poéticas – redondilhas, alexandrinos, versos de 15 sílabas, hendecassílabos, etc. – vão se alternando no decorrer da obra, associadas a diferentes personagens ou estados de espírito ou situações. Uma overdose, um porre de poesia. Quem quiser se aprofundar nisto pode ler o artigo “E Tudo Fica Melodia – Observações Sobre a Versificação do Fausto de Jenny Klabin Segall” do Helmut Paul Erich Galle disponível na Internet. Está tudo muito bem mastigadinho lá.


Uma interpretação corrente do Fausto II (mas que não é a única) é que ele prenuncia o mundo moderno que começava a emergir no tempo de Goethe, com seu papel moeda, a lanterna mágica trazendo de volta à existência personagens já desaparecidos (como faz o cinema hoje), culto da imaginação (hoje passamos boa parte do tempo no mundo imaginário dos filmes, séries, novelas, histórias em quadrinhos, videogames), grandes obras de engenharia...


Não sei quantas traduções do Fausto existem em português, mas a única fiel à métrica do texto original é a de Jenny Klabin Segall, como atesta a nota inicial, que diz: “A numeração dos versos desta tradução corresponde à dos versos originais, e, bem assim, com poucas exceções, o ritmo, a metrificação, e a disposição das rimas”. O problema da tradução poética é que palavras que rimam no idioma original não rimam necessariamente no idioma da tradução. Por exemplo, “amor” e “dor” rimam em português, mas não em alemão ou inglês. Assim, o tradutor, para preservar o esquema rímico, tem que achar outras palavras que rimem. Com isso, o texto, que fluía com naturalidade no idioma original, soa artificial no idioma da tradução.