Crime e Castigo, de Dostoiévski (resenha)

Existem clássicos difíceis de ler e clássicos menos difíceis de ler. Os difíceis são aqueles com alguma complexidade formal, tipo a transfiguração da linguagem efetuada por Guimarães Rosa ou a estranha sintaxe e pontuação empregadas por Saramago ou as frases longuíssimas e divagantes do Proust ou o texto em versos clássicos, rimados e metrificados, mais difíceis de ler do que a prosa. Os menos difíceis são aqueles que, embora tratem de temas profundos (porque se não tratassem não seriam clássicos), fazem-no sem nenhuma pretensão de inovar a linguagem, valendo-se de um fraseado e vocabulário acessíveis ao leitor mediano. Crime e Castigo, primeiro dos grandes romances do período de maturidade de Dostoiévski, encaixa-se nesta segunda categoria, dos clássicos menos difíceis de ler.


As traduções dos clássicos da literatura russa para o português costumavam ser realizadas por via indireta. Traduzia-se a partir da tradução inglesa ou francesa. Se traduzir é trair, você tinha aí uma dupla traição, do russo para o francês ou inglês, e deste para o vernáculo. Felizmente neste admirável século novo apareceu um Paulo Bezerra para traduzir as obras do Dostoiévski direto do russo, com sua ocasional rudeza, longas falas às vezes desconexas, que as traduções via francês aplainavam, embelezavam. O próprio Bezerra, no posfácio ao Crime e Castigo, faz referência a esse fato. Diz ele: “Dostoiévski é rude quando a forma do discurso o requer, grosseiro quando o nível de educação e escolaridade dos falantes o exige, deselegante segundo as circunstâncias.” Em sua tradução, procura preservar esses aspectos. Eu mesmo uns 15 anos atrás tentei ler o Crime e Castigo de uma dessas traduções antigas, em edição da Abril Cultural, achei o texto português muito artificial, e desisti quando soube então do lançamento da nova tradução do Bezerra. Só que levei todos esses quinze anos até enfim comprar a tradução e ler. Minha fila de leituras é longa e às vezes anda devagar.


Embora não seja difícil de ler, Crime e Castigo é um livro estranho, porque por trás dele existe uma teoria repugnante, defendida pelo protagonista: a de que certos homens superiores têm direito de matar pelo bem da humanidade. Essa teoria dos homens superiores é perigosa; retomada por Nietzsche na forma do super-homem, acabou servindo de ideologia para justificar o extermínio, pelos nazistas, dos judeus e outras minorias, embora todos saibamos que o próprio Nietzsche foi um bom sujeito e jamais manifestou pensamentos antissemitas. Esse tipo de teoria também serviu de justificativa para os comunistas exterminarem os chamados “inimigos da classe operária”, levando aos fuzilamentos em massa e até genocídios (dos ucranianos, por exemplo, ou no Camboja). O personagem Raskólnikov publica essa sua tese de que indivíduos extraordinários têm “direito ao crime” pelo bem da humanidade no jornal Discurso Semanal.  Isto no livro.


Claro que essa teoria não foi criada por Dostoiévski. A obra reflete o estado de espírito na sociedade russa daquele tempo, uma sociedade autoritária (como é até hoje sob Putin), com disseminação de ideias revolucionárias e niilistas entre os estudantes, alguns dos quais chegaram a cometer atos tresloucados como a tentativa de assassinato do tzar pelo estudante Karakozov, membro de um grupo de radicais dispostos a se autossacrificarem. O próprio Dostoiévski passou uma temporada na Sibéria acusado de subversivo, o que lhe inspirou seu Recordações da casa dos mortos.


A vida do autor não era fácil na época. Enquanto escrevia o livro Dostoiévski era perseguido pelos credores e sofria de um recrudescimento de sua epilepsia. Escreveu o autor numa carta então: “Minha epilepsia piorou tanto que se eu trabalhar por uma semana ininterruptamente tenho um ataque, e na semana seguinte não consigo trabalhar porque o resultado de dois ou três ataques será a apoplexia. No entanto, preciso terminar. Esta é minha situação.” Além disso, Dostoiévski sofria constantes pressões dos editores da revista literária O Mensageiro Russo, onde a obra foi originalmente publicada em doze capítulos mensais, para que corrigisse ou retirasse  trechos da obra para evitar problemas com a censura ou porque aqueles trechos desagradaram aos editores.


A história do livro transcorre num período relativamente limitado do tempo – começa dois dias e meio antes de Raskolnikov cometer seu crime e prossegue por uma extensão de umas duas semanas – em contraste com clássicos como Guerra e Paz e Os Miseráveis que abrangem períodos longuíssimos. Um estudante tresloucado assassina a machadadas uma velha usurária, mas acaba matando também, sem querer, sua irmã vendedora ambulante que surgiu no momento do crime. A velha não merecia viver e ele fez bem em livrar o mundo daquela “pulga” inútil. O resto do livro trata, em suma, de sua crise de consciência. Não que ele se convença de que não deveria tê-la matado, mas não está à altura daquele ato em tese justificável. Ou seja, Raskolnikov não é um Napoleão. Depois, como é típico da literatura genial de Dostoiévski, você tem uma série de personagens demasiadamente humanos que vão interagindo tipo novela de televisão (onde todo mundo acaba interagindo com todo mundo) com o protagonista e entre si, em cenas às vezes patéticas, outras vezes tocantes, por vezes chocantes também, com longos diálogos tipo cinema nouvelle vague e pitadas de reflexão filosófica. E tem o clichê da “prostituta virtuosa vítima da sociedade” também, que vem do tempo dos evangelhos. E o resto da história não vou contar para não estragar sua leitura.


A tradução do Bezerra oferece no final uma lista dos principais personagens, o que muito facilita a leitura para o leitor desmemoriado feito eu, já que estes são chamados ora pelo longo prenome (tipo Rodion Románovitch), ora pelo sobrenome (Raskólnikov), ora pelo apelido (Ródia), e às vezes o personagem tem um segundo apelido afetivo, por exemplo, Dúnia e Dúnietchka. Memorizar isso tudo não é fácil.


Para terminar, vou aproveitar para falar rapidinho de duas outras obras, menores, do Dostoiévski que li logo depois do Crime e Castigo. Uma é Noites Brancas, que não chega a ser um romance, é uma novela, um gênero intermediário entre o conto e o romance. Eu já tinha lido antes, faz muitos anos, mas havia esquecido a história. Reli agora na mesma edição de 1976 em que tinha lido originalmente. Essa edição reúne O Jogador e Noites Brancas. Mas se você pretende ler recomendo as edições da Editora 34 traduzidas direto do russo. O livro já começa com um parágrafo de intensa beleza que sublinhei quando li pela primeira vez. É um texto romântico de um Dostoiévski ainda jovem, com 27 anos. Um rapaz tímido e uma moça presa à avó se encontram casualmente e contam suas vidas um ao outro. Li também O Jogador, obra-prima sem o voos filosóficos dos livros mais alentados de Dostoiévski. Baseia-se na experiência do autor como jogador compulsivo, que perdia muito dinheiro nos cassinos da Europa. Tem uma personagem impagável, uma velha cuja morte iminente os parentes estão esperando para porem a mão na herança, mas que de repente surge, lépida e fagueira, no alto de seus 75 anos, no cassino e começa a dilapidar sua fortuna, deixando desesperados os herdeiros.