Essas são perguntas que sempre me fazem e vou tentar explicar um pouco desse assunto.
Trinta elementos químicos da tabela periódica são necessários à manutenção da vida, desde os organismos mais simples, como os microrganismos unicelulares, aos mais complexos, como o ser humano. Destes, 14 são classificados como traços (Se, Si, Sn, F, I, B, V, Cr, Mn, Fe, Co, Cu, Zn, Mo), por serem necessários em baixíssimas concentrações. Dentre os elementos traços, 8 deles fazem parte dos elementos da tabela periódica conhecidos por metais de transição (veja a Figura 1), os quais serão o foco deste artigo devido às suas funções específicas no meio biológico.
Figura 1: A região destacada em vermelho da tabela periódica representa os elementos classificados como metais de transição. Os íons formados pelos elementos V, Cr, Mn, Fe, Co,, Cu e Zn do 3o período e o Mo do 4o período representam os essenciais aos seres vivos.
A importância desses elementos traços metálicos está no fato deles participarem, principalmente, de processos de transferência de elétrons a um custo energético muito menor do que os compostos de natureza orgânica (constituídos apenas por átomos de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio). Isso quer dizer, que eles podem participar de reações de óxido-redução (redox) ganhando um elétron da substância que será oxidada, ou perdendo um elétron para a substância que será reduzida, mais facilmente que os compostos orgânicos presentes no meio biológico.
Esse conceito químico, que parece complicado, pode ser explicado de maneira mais simples, quando consideramos os processos metabólicos realizados pelos seres vivos para a obtenção da energia (produção de ATP) necessária à manutenção de seus processos fisiológicos vitais e os comparamos com processos similares realizados em laboratório. Usando como exemplo a respiração, os seres vivos a utilizam para obter energia a partir da oxidação da glicose (redutor) pelo oxigênio (oxidante), gerando energia química, que é armazenada na forma de ATP e o gás carbônico e vapor d'água são produzidos como subprodutos. Se essa mesma reação de oxidação da glicose for feita em laboratório, num tubo de ensaio, a temperatura necessária para essa reação ocorrer com o oxigênio do ar seria maior do que 300o C. Uma diferença brutal em relação ao processo bioquímico!
Assim, a obtenção de energia a partir da oxidação da glicose com o oxigênio do ar só se tornou possível aos seres vivos que habitam o planeta Terra, graças a um processo complexo, que ocorre por etapas encadeadas de transferência de elétrons que contam com a participação de proteínas, que possuem metais de transição específicos na sua constituição química. O mesmo vale para outros vários processos de importância crucial para a manutenção da vida em nossos aquários.
As proteínas são formadas por uma sequência de aminoácidos ligados entre si e existem cerca de 20 aminoácidos, de ocorrência natural, que são utilizados na construção das proteínas, que são biomoléculas que têm várias funções biológicas. Quando elas participam de reações bioquímicas são chamadas de enzimas e, normalmente, quando essas reações são do tipo redox, têm íons de metais de transição como componentes essenciais para sua atividade bioquímica. Esses íons metálicos têm afinidade por aminoácidos específicos dessas proteínas, originando o que se conhece por sítio ativo (veja figura 2 abaixo), que é o local onde o substrato da reação química vai se ligar para a transferência de elétrons acontecer.
Dos vinte aminoácidos de origem natural, apenas seis têm afinidade pelos íons metálicos essenciais. A histidina tem afinidade por Zn2+, Cu+/2+ e Fe2+; a metionina por Cu+/2+ e Fe2+/3+; a cisteína por Zn2+, Cu+/2+, Fe2+/3+ e Mo4+/6+; a tirosina por Fe3+; os ácidos glutâmico e aspártico têm afinidade por Fe2+/3+, Mn3+, Zn2+, Mg2+ e Ca2+.
Figura 2: Esquema mostrando uma sequência hipotética de aminoácidos (representados como bolinhas vermelhas), que formam uma proteína (representada pela fita azul), onde em seu interior existe o sítio ativo onde os metais se ligam a um conjunto de aminoácidos específicos dessa estrutura proteica. É nesse sítio ativo onde ocorre a transferência de elétrons entre o substrato a ser oxidado ou reduzido.
No caso da respiração, utilizada como exemplo, o processo bioquímico ocorre nas mitocôndrias das células, e é tecnicamente conhecido como fosforilação oxidativa. Esse processo só é possível de ocorrer na temperatura ambiente, porque íons de ferro e cobre estão presentes nos sítios ativos de algumas das enzimas que executam etapas principais do processo, como é o caso dos citocromos (veja Figura 3).
Figura 3: Esquema da estrutura do citocromo, que é um das principais enzimas envolvidas em processos bioquímicos redox. Geralmente íons de Fe3+ ocupam o sítio ativo dessa enzima, que na figura é identificado na cor azul.
O processo inverso ao da respiração é a fotossíntese, que ocorre em 2 fases; uma na presença de luz e outra no escuro. Na fase escura, o gás carbônico é reduzido produzindo a glicose. Nesse processo existe a participação de uma enzima fundamental, conhecida por anidrase carbônica, que contém zinco no seu sítio ativo. Na fase clara, que ocorre nas organelas celulares conhecidas por cloroplastos, a água é oxidada até formar o oxigênio. Esse processo requer a transferência de 4 elétrons e conta com a participação da clorofila e outros pigmentos, que absorvem a energia luminosa e a utilizam para transferir elétrons aos fotossistemas 1 e 2, onde existem uma série de enzimas que possuem Fe3+ e Cu2+ nos sítios ativos, dentre elas os citocromos. O processo é finalizado por uma enzima, que contém manganês no sítio ativo, e é capaz de fazer a transferência para a molécula de água dos 4 elétrons necessários para a formação do oxigênio. Sem a participação desses metais traços específicos nessas enzimas, a fotossíntese não aconteceria!
Tanto na respiração, quanto na fotossíntese, radicais livres de oxigênio podem ser formados pelo mau funcionamento do sistema redox metabólico. Esses radicais livres são extremamente tóxicos para os organismos e são desativados por enzimas como a catalase, que contem Fe3+ e as dismutases, que possuem Cu2+ nos sítios ativos.
Além da respiração e da fotossíntese, outro processo bioquímico de crucial importância para nossos aquários é a nitrificação / desnitrificação, que, também, dependem de íons metálicos traços para ocorrer. Na nitrificação a amônia (NH3) é oxidada pelo oxigênio a nitrato (NO3-), enquanto na desnitrificação, o nitrato é reduzido por um composto orgânico doador de elétrons a nitrogênio gasoso (N2). As etapas envolvidas nos processos bioquímicos dessas transformações são mostradas, esquematicamente, na figura 4 abaixo, na qual são destacados os íons metálicos (ferro, cobre, molibdênio e vanádio), que participam de cada uma das etapas dos processos.
Figura 4: Indicação dos íons metálicos que participam das enzimas responsáveis pelas etapas dos processos de nitrificação, desnitrificação e fixação do N2 do ar.
A tabela abaixo apresenta uma relação dos elementos traços metálicos com função biológica comprovada em organismos marinhos e sua respectiva faixa de concentração em que são encontrados na água do mar.
Esses elementos, embora essenciais, possuem uma faixa de concentração ótima. Abaixo dela, eles podem ser limitantes ao crescimento e ao desenvolvimento dos organismos. Quando acima, podem se tornar extremamente tóxicos, como é o bem conhecido caso do cobre no aquário marinho, que embora indispensável para os processos de respiração, fotossíntese e nitrificação/desnitrificação comentados anteriormente, pode ser extremamente tóxico se estiver fora da faixa de concentração ideal.
Os testes convencionais vendidos em lojas de aquário não são capazes de detectar os elementos traços. Mesmo no ICP-OES mais sensível, a maioria desses elementos estão presentes em concentrações abaixo do limite de detecção do equipamento, sendo necessário a utilização de métodos de pré-concentração para tornar a quantificação possível (veja aqui o artigo sobre os testes de ICP para mais informações).
Outro problema com esses íons metálicos traços esta relacionado com a estabilidade que eles apresentam na água salgada. Como discutido anteriormente, os íons metálicos traços estão sempre ligados a alguns aminoácidos específicos que formam as enzimas. No caso deles estarem isolados, sem a proteção desses aminoácidos, ou de algum outro quelante, eles se transformam em pequenas partículas sólidas do respectivo hidróxido ou carbonato metálico, (fenômeno químico conhecido como precipitação), e, também, podem ser incorporados nas rochas calcárias (pela mesma ação da formação de carbonatos), ficando indisponível para a maioria dos organismos que não possuem mecanismos fisiológicos específicos capazes de reverter esse processo.
Por exemplo, o íon Fe3+ quando livre na água, rapidamente formará partículas de Fe(OH)3, que se depositarão no substrato e/ou serão removidas pela filtração mecânica. Para que os organismos possam utilizar esse elemento nessa forma não solúvel, eles precisam secretar substâncias chamadas de sideróforos, as quais são capazes de sequestrar o Fe3+ dessas partículas, formando quelato solúvel e tornando possível sua absorção e utilização pelas células. Processos semelhantes podem ocorrer para os outros íons metálicos traços. Por exemplo, esponjas secretam uma substância chamada amavadina, que é capaz de sequestrar o vanádio do meio, e acumulá-lo nos seus tecidos. A figura 5 mostra o processo de quelação do Fe3+ por um sideróforo e o quelato formado pelo vanádio e a amavadina.
Mesmo na forma quelada, esses metais traços podem ser removidos do sistema por impregnação nas rochas, carvão ativado, skimmer, etc. Dessa forma, em função dessas inúmeras variáveis, é difícil haver uma regra de quanto tempo eles permanecerão disponíveis na água para uso dos organismos.
Figura 5: Quelatos formados entre o Fe e o sideroforo secretado por microrganismos e entre o vanádio e a amavadina secretada por esponjas.
Essas características dos elementos traços na água salgada dificultam estabelecer uma regra para a rotina de reposição. Primeiro, por ser difícil saber a concentração na qual eles se encontram na água do aquário e o quanto será necessário repor. Segundo, pela dificuldade em estabilizá-los para que não precipitem ao serem adicionados na água do aquário. Os produtos vendidos nas lojas do ramo para reposição de elementos traços devem ser formulados com substâncias quelante, que imitam o papel dos aminoácidos das proteínas, que ao mesmo tempo impedem a precipitação e possibilitam a assimilação pelos organismos. São várias substâncias que podem ser usadas para esse fim como o ácido cítrico, o ácido dietileno amino tetra-acético (EDTA), entre outras, mas para a preparação desses quelatos sintéticos, não basta apenas misturar essas componentes num mesmo frasco.
Como se trata de elementos em concentrações muito baixas, como pode ser visto na tabela na faixa de ppb, a reposição deles pode não ser necessária, já que na rotina de manutenção e alimentação existem algumas fontes desses elementos, as quais de certa forma, podem suprir a necessidade dos seres do aquário, como por exemplo:
- na alimentação: quando é utilizado alimentos vivos ou derivados, os elementos traços presentes nesse alimento acabam sendo incorporados no organismo que o consumiu.
- nas trocas parciais / suplementação: os sais utilizados na fabricação da mistura de para produzir a água do mar sintética e suplementos químicos em geral, mesmo sendo de grau de pureza PA, possuem alguns contaminantes, dos quais muitos são elementos traços essenciais. Uma descrição dos contaminantes presentes e suas quantidades podem ser encontradas nas fichas de análises que acompanham os reagentes.
De todos os elementos traços, o mais seguro e, talvez, indicado para ser suplementado no aquário é o Fe3+. Estudos científicos sugerem, que mesmo no oceano, esse elemento está em concentração limitante para vários organismos.