Providência Divina

Este breve resumo descreve a doutrina bíblica da Providência Divina, que é um aspecto da relação entre o Criador e Sua criação. Esta descrição segue a perspectiva luterana e seu formato é ideal como guia para estudos bíblicos e debates sobre este assunto. Para textos mais completos e melhor explicados, consulte os livros de dogmática listados ao final.

Criação

Deus criou todas as coisas, pequenas e grandes (Jo 1:1-3; Rm 11:36; Sl 104:24). A criação divina não foi um ato necessário, mas por sua própria vontade (Sl 115:3). Deus criou o universo, o mundo e a nós para a Sua própria glória, por causa de Si mesmo ( Jó 41:11; Pv 16:4; Is 45:9; Rm 9:20,21; Ap 4:11).

Providência Divina

Providência Divina é o ato externo de toda a Trindade, através do qual Deus:

  • com eficácia preserva as coisas criadas, tanto na sua totalidade, como individualmente;
  • coopera nas ações e efeitos das coisas criadas;
  • governa livre e sabiamente todas as coisas para Sua própria glória e para o bem-estar e a segurança do universo, especialmente dos piedosos.

Deus Preserva

Concurso Divino

  • Nós não confundimos Deus com a natureza (panteísmo), nem separamos Deus das "leis da natureza", como se as leis da natureza pudessem existir de forma independente (deísmo).
  • Deus emprega Causas Secundárias, ou meios, pelos quais Ele preserva e dirige a sua criação. Esta doutrina é chamada de Concurso Divino.
  • Causa Primária: A operação dos meios está subordinada à operação de Deus (Sl 127:1), ou seja, sem o concurso de Deus, o que nós consideramos natural não iria acontecer.
  • A operação de Deus (causa primária) e a operação dos meios (causa secundária) são simultâneas e constituem uma ação única, indivisível.
  • As leis da natureza não são independentes de Deus, mas elas são simplesmente a vontade e o poder de Deus exercidos no ser e agir das criaturas, dentro das propriedades e poderes que Ele determinou para cada uma delas (Sl 119:90,91). Assim, o pão nutre, o medicamento cura, o veneno mata, só por causa da influência contínua de Deus sobre Suas criaturas.
  • Também é da vontade de Deus que façamos uso dos meios que Ele designou para o nosso bem-estar. Para enfermidade corporal, devemos recorrer à medicina; para enfermidade da alma, devemos recorrer aos meios da graça (Palavra e Sacramentos), pelos quais Deus opera e mantém a fé (Rm 10:17). É pecado querer testar a providência divina, não usando os meios prescritos por Deus, pois neste caso estaríamos testando a Deus (Mt 4:6,7).
  • As leis da natureza não são imutáveis, separadas da vontade de Deus (Sl 115:3, 135:6,7). Quando Deus, excepcionalmente, permite que uma lei natural seja quebrada, chamamos isso de um milagre. Por exemplo, Deus faz com que uma massa atraia outra massa na proporção direta do produto das massas e na proporção inversa ao quadrado da distância e chamamos isso de "lei da gravidade". Mas se Deus momentaneamente quebra essa regra e faz um machado de ferro flutuar (2 Reis 6:5-6), chamamos isso de um milagre.
  • A ciência só pode estudar e achar resposta para "como" as coisas "costumam acontecer". O Método Científico requer que uma hipótese seja confirmada experimentalmente, levando a um resultado previsível. Portanto, a ciência não pode assumir a existência, nem pode investigar milagres, que são exceções à regra. A questão do "porque" as leis da natureza são como são não pode ser tratada com as ferramentas da Física e da Ciência, porque ela é imune à experimentação e a testes. Ela pertence ao domínio da Metafísica, que inclui o estudo da religião. (Essa parte não é teologia oficial luterana, mas é a minha própria explicação.)

Boas e Más Ações

  • Quanto ao concurso de Deus nas ações dos seres morais (humanos e anjos), devemos distinguir entre boas e más ações.
  • Más Ações:
    • Deus, em Sua santidade perfeita, é tão contrário às más ações, que ele as odeia, as proíbe e as condena (Lv 19:2; Sl 5:4-6).
    • Deus muitas vezes impede a ocorrência de atos de maldade (Gn 20:6; Sl 33:10).
    • Sempre que Ele permite que más ações aconteçam, Ele as controla de tal forma que elas sirvam aos seus propósitos sábios e santos (Gn 50:20; Sl 91:10-12; Rm 8:28). Deus "somente regula e fixa um limite para o mal, determinando até onde deve ir, por quanto tempo deve durar, [quando e como Ele o quer obstaculizar e castigar], fazendo com que tudo, não obstante seja mal em si mesmo, sirva à salvação de seus eleitos." [Fórmula de Concórdia, Art. XI] (Pv 16:9; Jó 1:12, 2:6)
    • Até que ponto Deus coopera (concorre) em más ações?
      • Deus concorre nelas apenas na medida em que elas são ações, não na medida em que elas são más (Deus concorre em produzir o "efeito", mas não o "defeito").
      • Portanto, Deus não é nem o autor de, nem um cúmplice de más ações.
      • Podemos dizer que Deus "permite o mal, ou sofre a sua ocorrência" (Sl 81:12; At 14:16; Rm 1:24,28).
    • Mas tal permissão:
      • não é uma condescendência dócil, nem uma atenuação da Lei, nem uma fraqueza em Deus, nem tampouco indiferença para com o pecado.
      • é antes um ato negativo, na medida em que Deus não coloca dificuldades insuperáveis no caminho do pecador, o qual se precipita na iniqüidade por sua livre e espontânea vontade (Tg 1:13,14; Mc 7:21-23; Rm 1:24-28; 2 Ts 2:11-12).
      • Deus realmente permite, mas não é da sua vontade o que Ele permite.
    • Tanto a consciência das pessoas, quanto as Escrituras, sustentam que os seres humanos, e não Deus, são pessoalmente responsáveis por seus atos (não somos como robôs, ou como animais movidos pelo mero instinto) (Rm 2:14,15; Mt 12:36).
  • Boas Ações:
    • Deus governa as boas ações que os incrédulos fazem como cidadãos, de acordo com seu governo geral do mundo, e os recompensa com bênçãos terrenas e temporais (Ex 1:20,21).
    • Deus governa as ações espiritualmente boas nos crentes pela operação do Espírito Santo, o qual confere não só a capacidade de fazer o bem, mas também realiza Ele mesmo a boa ação (Fp 2:13; 2 Co 3:5).

Necessidade e Contingência

  • "É indispensável que as coisas aconteçam precisamente como acontecem (necessidade), ou poderiam elas acontecer de outra maneira (contingência)?"
    • Baseados nas Escrituras, precisamos afirmar ambas alternativas, tanto a necessidade, como a contingência das coisas.
    • Necessidade: do ponto de vista da providência divina, dizemos que todas as coisas estão predeterminadas (Mt 26:54; At 4:27,28; Jó 14:5; Sl 139:16; Sl 115:3).
    • Contingência: do ponto de vista da responsabilidade humana, dizemos que todas coisas acontecem de forma livre e incerta e, portanto, ninguém é coagido ou forçado a pecar (Mt 26:14-16, 26:24; Jo 19:12; Mt 27:5; Tg 1:13,14; Sl 55:23; Is 38:5; At 27:33-36; Ef 6:2,3).
    • A rejeição da necessidade leva ao epicurismo e ao ateísmo (as coisas acontecem sem Deus, por acaso ou por alguma regra independente de Deus).
    • A rejeição da contingência leva ao fatalismo e ao estoicismo (desprezo dos meios divinamente ordenados).
  • Nós estamos sujeitos, tanto no reino da natureza como no da graça, aos meios que Deus designou para nosso bem-estar, como a medicina para o corpo (Lc 10:34; 1 Tm 5:23), e os meios da graça para a nossa alma (Rm 10:17; Mt 28:19).
  • Embora o próprio Deus não esteja restrito aos meios que Ele designou (o que explica os milagres e como alguém poderia ser salvo sem ser alcançado pela igreja), é tanto tolo, quanto pecaminoso, tentar por à prova a divina providência, a priori, pondo de lado os meios designados por Deus (Mt 4:6,7).
  • As passagens das Escrituras que descrevem o dia da morte como contingente devem ser consideradas como revelação graciosa para nossa admoestação e consolo. Elas não fazem Deus menos imutável em sua essência ou em seus decretos (1 Sm 15:29; Ml 3:6).
  • Como afirmou Martinho Lutero: nós oramos, como se tudo dependesse exclusivamente de Deus, mas nós devemos trabalhar, como se tudo dependesse de nós.

Comentário Final

  • Embora essas explicações contenham contradições lógicas (por exemplo, necessidade versus contingência) e elas não satisfaçam a razão humana, nós devemos restringir nosso pensamento a esses limites, que são estabelecidos nas Escrituras (2 Co 10:5).
  • Aqui está um exemplo prático da necessidade de contradições para explicar coisas que são muito complexas:
    • Projeções cartográficas diferentes (e contraditórias) são necessárias para traduzir a superfície real tridimensional do geóide da Terra para uma imagem bidimensional do globo em um mapa. Todas as representações globo são "verdadeiras", mesmo que elas se contradigam. Por exemplo, a projeção cilíndrica do globo mostra a Groenlândia maior do que o Brasil, o que é falso, mas a projeção policônica (casca de laranja), que mostra os países em tamanho correto, divide o Canadá em partes desconexas, o que também é falso. Da mesma forma, Deus tem de fazer uso de algumas contradições para explicar certas verdades, para as quais não há equivalência na natureza ou em nossa lógica limitada, como a Trindade e a Unidade de Deus, e as duas naturezas, humana e divina, de Cristo. Cada uma das declarações aparentemente contraditórias é verdadeira dentro dos respectivos limites de aplicação e todas são necessárias para formar uma imagem mais clara da verdade revelada.

Referências

Texto extraído em maior parte de:

    • F. Pieper, Christian Dogmatics. Vol. 1, Concordia Publ. House, 1950.
    • J. T. Mueller, Christian Dogmatics. Concordia Publ. House, 1955.
    • E. W. A. Koehler, Sumário da Doutrina Cristã, Editora Concórdia, 2002.

(Carlos Lange é membro da Riverbend Lutheran Church em Edmonton, Canadá.)